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A esquerda identitária e a satanização da

maioria

1. Wilson Gomesdisse:

9 de novembro de 2018

2.3K
(Arte Andreia Freire/ Revista CULT)

Eu não sou um homem hétero, cis, branco e cristão. Mas se fosse um deles, muito
dificilmente votaria em um partido desses da esquerda identitária. Cada pessoa vota,
principalmente em eleições majoritárias, calculando perdas e ganhos. Todo mundo precisa
de um torrão de açúcar para se dar ao trabalho e à agonia de participar de eleições. Mas para
quem é homem hétero, cis, branco e cristão, a esquerda identitária oferece apenas uma culpa
e um conjunto de dívidas e obrigações daí decorrentes. Ora, ninguém gosta de se sentir
culpado nem de assumir responsabilidade por pecados, principalmente quando julga que
não os cometeu.  Nem gosta de ouvir o tempo todo que tudo em sua vida é resultado de
privilégios, principalmente quando olha em volta e vê que tem menos do que mereceria ter.
Ou nem se considera propriamente uma pessoa desprovida de méritos, esforços e
sacrifícios, que não tenha que matar um leão por dia, que não tenha tido que enfrentar
desvantagens e dificuldades. Mas a esquerda identitária basicamente diz para esse sujeito
que sua vida se resume a privilégios, que ele é parte da injustiça social e que tem que se
acostumar a perder para que os outros possam, enfim, ganhar alguma coisa.

O bolsonarismo faz parte de uma onda mundial de guinada à direita conservadora, que tem
um dos seus fundamentos na chamada guerra cultural. Trata-se, dentre outras coisas, de
uma reação (e de um reacionarismo) aos avanços liberais em pautas relacionadas a minorias
e a controvérsias morais. Mas é também um movimento importante no jogo na política
identitária.

A luta identitária

Política identitária (identity politics), para quem não sabe, é uma forma de politização das
contraposições entre determinados grupos sociais cujos membros reconhecem que o seu
pertencimento é compelido por aspectos da sua identidade. Exemplos de tais identificações
são grupos de referência – ou “comunidades”, como dizem os americanos –, como aqueles
baseados em cor, sexo, orientação sexual, etnia, em deficiências, dialetos, origem
geográfica, identidade de gênero etc. O mundo da luta identitária acaba se tornando um
conjunto de peças que nunca formam um mosaico, porque há superposições e há colisões,
em que cada pauta identitária tende a se fragmentar em um processo infinito, uma vez que
constantemente aparece uma nova microidentidade se desgarrando do núcleo a que se
vinculava e reivindicando o direito à autorrepresentação. Estabelecido o princípio de que só
a autorrepresentação é a autêntica representação e estabelecida uma ética de convivência
que se move pela inclusão de qualquer reivindicação de identidade, o resultado é uma
fragmentação infinita assumida como destino.

Uma forte vertente da política baseada em identidades é aquela que estabelece que os
grupos identitários são oprimidos e que o caminho para a justiça passa pela remoção da
opressão. Antes, a identificação do tipo de opressão a que cada comunidade está submetida
é o princípio de corte identitário: quem sofre da mesma opressão, se identifica uns com os
outros sob aquele aspecto. Depois, no interior do recorte feito, vão se identificando
sucessivos estratos de opressão, a que parte dos membros da comunidade estão submetidos
e outra parte não, que fornecem sucessivos pontos de corte, identidade dentro das
identidades, até que não se tenha mais nada para cortar. “Átomo”, em grego, significa
literalmente o que não pode mais ser cortado ou recortado. Individuum, em latim, é o que
não pode mais ser dividido. A atomização é para onde se dirige a lógica dos cortes e
recortes que perpassam a política identitária.

Os problemas começam quando inevitavelmente grupos identitário muito coesos e muito


engajados na luta contra a opressão estrutural começam a satanizar categorias de opressores.
E é aí que o tal homem hétero, cis, branco etc. aparece na equação como o demônio em
comum em quase todos os grupos oprimidos. A palavra-chave aqui é privilégio. O mundo
identitário vive da identificação de opressões e de privilégios. O homem, hétero, cis, branco
é a quintessência da reunião de privilégios, mas a cada um desses adjetivos correspondem
privilégios específicos de que participam mesmo pessoas que não os possuam todos de vez.
Assim, homossexuais, cis e ricos vivem em um bolsão de privilégio, como mulheres
brancas, educadas e cristãs vivem em outro bolsão de privilégio, embora nenhuma dessas
subcategorias tenha direto ao máximo privilégio das cinco estrelas. Incumbe, então, a cada
pessoa admitir os privilégios da sua categoria e da sua subcategoria e a cada um desses
privilégios reconhecido ver reduzir, na mesma proporção, os seus direitos de representar
alguma categoria e ver aumentar os limites da sua autorização identitária para falar em
nome dos outros – o tal “lugar de fala”.

O passo seguinte é o processo que atribui a todos os membros do grupo de referência


oprimido os dividendos da superioridade moral da sua posição, enquanto cobra de todos os
indivíduos da categoria oficialmente opressora o pagamento das dívidas que é dos
opressores. Assim todo homem de algum modo pode ser convocado a responder pelo
machismo, independentemente da sua responsabilidade individual e compartilhamento das
ideias machistas. Ou todo branco poderá ser responsabilizado pelo racismo, independente
das suas posições pessoais sobre a matéria. E a coisa pode chegar a tal ponto, na retórica e
na prática, que frequentemente já nem se sabe ao certo se o inimigo a ser derrotado é o
machismo, o racismo, a homofobia ou o homem, branco, heterossexual e cisgênero.

Pautas identitárias e política eleitoral

Enquanto as lutas identitárias se processam em âmbitos que compartilham os seus


pressupostos, como os ambientes acadêmicos ou o campo da cultura, sobretudo aqueles
dominados por valores de esquerda, a posição prospera e gera avanços consideráveis na luta
por direitos e por estima social. É possível gerar empatia social para além dos afetados pelas
e implicados na luta identitária. É possível, inclusive, haver ganhos na transferência de, pelo
menos, parte da pauta identitária para outros domínios sociais, como o âmbito jurídico ou a
esfera pública. Mas quando as lutas identitárias se apresentam para públicos que não
compartilham os seus exigentes pressupostos ou não aceitam as consequências implicadas
nas suas premissas, é difícil imaginar que possam prosperar.

A esquerda identitária precisa decidir o que disputa no campo político, se quer ganhar
eleições ou se quer simplesmente vencer o campeonato de superioridade moral.
Superioridade moral é importante, mas ter razão não é superior a ter votos se o propósito é
ganhar disputas eleitorais. De fato, a democracia tem em seu cerne este inconveniente: para
governar você precisa ter a maioria do seu lado. Um lado não precisa necessariamente ser
melhor que o outro, mas precisa ser maior. E o seu lado não se torna maior apenas porque
você acredita ter superioridade moral. A esquerda tem grande dificuldade de entender isso e
trata a disputa eleitoral como se fosse uma extensão das tretas e disputas que ambientes
acadêmicos dominantemente de esquerda mantêm, em moto contínuo, no seu interior. Com
isso, fala cada vez mais para si mesma e cada vez menos com os que estão fora dos muros
de autocomplacência e de extrema afinidade em que se refugia.

Estes dois movimentos em falso (a satanização dos opressores e imposição, aos indivíduos
singulares, das obrigações de pagar por opressões históricas das categorias a que pertencem)
podem ser politicamente fatais. A prova disso são os sucessivos êxitos eleitorais recentes
dos ultraconservadores, quando resolvem se promover como um discurso de emancipação
daqueles que foram satanizados pelos seus adversários da esquerda liberal identitária. Como
tal paradoxo é possível?

A questão é que heterossexuais, cis, brancos e cristãos são numerosos. Principalmente


quando o discurso “aceite a culpa, admita os seus privilégios, pague o preço” pode ser mal
recebido por pessoas que não se identifiquem integralmente com todas as cinco
características, mas que, digamos, caia na malha fina de três ou quatro delas. A começar por
mulheres heterossexuais, cis, brancas e cristãs ou homens, cis, não brancos e cristãos. À
medida que o jogo das culpas e responsabilizações identitárias se estende, o universo vai
ficando repleto de adversários. E mesmo quem não se sentia adversário, será lembrado disso
por algum identitário em seu turno de patrulha da opinião pública. E assim se forma o
paradoxo: como ganhar uma eleição quando a maioria dos eleitores precisa assumir-se
culpado e privilegiado para começo de conversa?

Numa dessas entrevistas ao vivo neste ciclo eleitoral, indagado sobre políticas de
compensações para negros em função do passado escravocrata do país, Bolsonaro reagiu
prontamente: “Eu nunca escravizei ninguém”. A multidão de eleitores de Bolsonaro vibrou
em uníssono pelos grupos de WhatsApp Brasil afora. “Que horror”, disse a esquerda
identitária, “essa gente fascista saiu do armário”. Na verdade, ali se registrava pela enésima
vez o fato de que não existe qualquer torrão de açúcar para este público no discurso
identitário quando ele se torna discurso eleitoral. A esquerda identitária diz para a maioria
numérica da sociedade que ela tem que arrastar correntes para sempre, para purgar por
privilégios que ela não reconhece, expiando incessantemente uma culpa histórica que
jamais poderá cessar. Estrategicamente a direita conservadora aparece no cenário para
oferecer à maioria, paradoxalmente, uma oportunidade emancipatória: “Você não
escravizou ninguém, a culpa não é sua, não abra mão dos seus direitos para pagar uma
dívida que você, singularmente, não contraiu”.

Satanizações

No campo político, a satanização do outro é um dos expedientes de comunicação estratégica


mais eficazes. O bolsonarismo precisava de um inimigo a ser satanizado para construir a sua
própria identidade, do mesmo modo como a esquerda identitária precisou do homem
heterossexual, cis, branco e cristão para construir o seu próprio espantalho. O bolsonarismo
fuçou no imaginário político popular e achou “o comunista”. Revolveu estratos mais
recentes dos sedimentos do imaginário e achou a esquerda identitária. Retirou daí a
dimensão belicosa do “todo homem é um estuprador”, o antirracismo em sua forma “quem
é branco me deve”, descobriu a turma da opção preferencial pelos pobres na forma “a elite
branca não tem direitos ou valor”, etc. É desse barro que se esculpe “o esquerdista” como
espantalho. Que, amalgamado com “o comunista”, “o defensor de direitos humanos que diz
que a culpa do homicídio é da vítima e do sistema e não do assassino”, gera o inimigo
conveniente para ser satanizado.

O que o bolsonarismo vendeu foi a ideia de que se você é cis, branco e hétero, a esquerda/os
comunistas/os direitos humanos/os petistas lhe farão arrastar correntes para sempre, farão
políticas públicas para transferir seus direitos para as suas minorias preferidas, não
reconhecerão seus méritos e valores e ainda destruirão a sua imagem. A satanização
consiste justamente nisto: em demonstrar que o outro deve ser temido, odiado e, quando
surgir a oportunidade, exorcizado. Ambos os lados, o bolsonarismo ou a esquerda
identitária, satanizam o seu inimigo predileto. Mas neste momento, no Brasil, o
bolsonarismo foi mais eficiente em converter a satanização em voto. E em produzir uma
“metassatanização”: a satanização da satanização das pessoas brancas, cis, hétero, cristãs.

Lutas identitárias fazem definitivamente parte do horizonte político do século 21. Há boas
razões históricas e sociais para que elas existam. Mas toda luta se compõe de tentativas e
erros, táticas e estratégicas que se provam eficientes e outras que não levam a lugar algum.
Já há muita bibliografia sobre as consequências, para a fragmentação da esquerda, das
pautas identitárias. Ou sobre o quão contraproducente para tais pautas é a dispensa da
empatia social, trocada pela imposição do dogma da autorrepresentação, a famigerada “treta
do lugar de fala”. Gostaria de incluir dentre essas táticas destinadas ao fracasso, como lição
que se pode depreender do sucesso eleitoral da onda ultraconservadora que prospera no
mundo, a satanização da maioria. Afinal, ao fim e ao cabo, a democracia liberal é um
governo de maiorias. Pisar nos pés da maioria e ainda pretender vencer eleições não parece,
portanto, uma ideia promissora. Ainda mais se, no fim das contas, a satanização do outro,
além de taticamente ineficaz, não me parece nenhuma dimensão essencial, moralmente
superior ou democraticamente justificável da luta por direitos, estima social, igualdade e
respeito.

Identitarismo: A Nova Cara do


Liberalismo
 LavraPalavra
 novembro 25, 2020
 5 Comentários
Por Arthur Moura e Ricardo Nascimento
“No fim das contas, a pauta identitária, quando voltada exclusivamente
para si mesma, tem esvaziado o debate político e o tornado facilmente
cooptável pelos interesses do mercado, pois desuniversaliza as pautas
enquanto centraliza o debate no monitoramento do comportamento
individual. Foca na exclusiva construção de diferenças, deixando de lado
a identificação por semelhanças.” 

Introdução
Este texto é resultado do grupo de estudos Concreto Pensado, do
coletivo Bacamarte, do qual fazemos parte. Nossos estudos têm
perpassado temas como a indústria cultural, correlações ente marxismo
e arte, análises de conjuntura, discussões sobre a questão da mulher na
pandemia e diversos outros temas, todos sob a orientação do
materialismo histórico-dialético como método.

Somos um coletivo de artistas independentes que vêm buscando aliar a


teoria à prática como forma privilegiada de compreender e superar
determinados limites impostos pela sociedade hodierna. As lives que
fizemos estão disponíveis no canal da Bacamarte Produções
no YouTube e agora pensamos em registrar em formato de texto o
debate sobre a questão do identitarismo, transmitido em
videoconferência no dia 25 de outubro de 2020 (NASCIMENTO;
CHALHOUB, 2020). Há também uma análise, baseada neste artigo,
disponível no canal da 202 filmes (MOURA, 2020).
O livro escolhido como referência foi “Armadilha da Identidade: raça e
classe nos dias de hoje”, de Asad Haider, prefaciado pelo professor Silvio
Almeida. Como leitura complementar há diversos outros autores que
também nos serviram como base e nos ajudaram a melhor descortinar
esse tema tão complexo. Ao longo do texto buscaremos destacar alguns
pontos importantes colocados por esses outros referenciais também.

Identitarismo versus Marxismo
Recentemente temos visto principalmente na internet – assim como
também nas relações sociais concretas – diversas polêmicas que
envolvem os chamados setores identitários com o restante da sociedade
de espectros políticos mais amplos. Isso naturalmente tem gerado
enormes desgastes sociais desde as relações interpessoais às
organizações e demais setores da sociedade, como o próprio Estado
burguês. Essas polêmicas são carregadas de termos como lugar de
fala, apropriação cultural, cancelamento, lacração, pós-
moderno, opressão, privilégio, gênero, raça etc. Tudo isso faz parte das
lutas sociais que decorrem de uma contradição da ordem estrutural,
ainda que raras vezes esteja presente nessas polêmicas conceitos
como luta de classes, contradição, História e capitalismo. Há também
termos como inclusão, representatividade e empoderamento,
mas revolução e superação ou emancipação humana também pouco se
vê. Liberalismo também está presente, pois é a via escolhida por estes
setores de uma forma geral. Certamente há segmentos que partem de
uma leitura materialista e revolucionária, mas são veementemente
combatidos, quase sempre por correntes de caráter pós-moderno ou pela
extrema direita. Uma das armas preferidas dos setores identitários é
combater o materialismo histórico-dialético, resultando na criminalização
direta do comunismo e de qualquer luta que se pretenda emancipatória
do ponto de vista social, pois tal esforço requer enfrentar diretamente o
socio-metabolismo do capital.
Nesses termos o identitarismo funciona como uma espécie de moeda de
troca com o próprio sistema capitalista e sua máquina burocrática e
repressiva – o Estado – sobretudo quando reivindica inclusão no lugar do
rompimento definitivo, deixando de lado, portanto, a perspectiva
anticapitalista.  Segundo Haider (2019, p. 38):

“O que torna um movimento anticapitalista não é necessariamente o


tema de mobilização. O mais importante é saber se ele é capaz de atrair
um amplo espectro de massas e de possibilitar sua auto-organização,
buscando construir uma sociedade na qual as pessoas se governam e
controlam suas próprias vidas. Possibilidade essa que é
fundamentalmente impedida pelo capitalismo.”

A identidade, no entanto, é um dado material concreto. Como bem coloca


Silvio Almeida (2019, p. 08) no prefácio, “a identidade é […] algo objetivo,
vinculado à materialidade do mundo, e pessoas não-brancas como
Haider e eu somos pensados através da identidade, ainda que nela não
pensemos.” Ou seja, nós somos pensados por algo que já existe
historicamente. Somos, portanto, colocados em posições sociais
determinadas de acordo com a identidade e, claro, o poder aquisitivo.
Esse lugar social, por exemplo, pode ser o do negro jovem e periférico
enquanto alvo preferencial da polícia que se configura como a vida
matável, segundo conceito de Giorgio Agamben (2002).
Contexto histórico do identitarismo
Haider destaca no capítulo 1 a militância do Coletivo Combahee
River (CCR) um grupo de militantes negras e lésbicas formado em
Boston, Estados Unidos, em 1974, que tinha por orientação pensar a
identidade do negro, historicamente submetido a relações de dominação
direta sobre seus corpos, ações e pensamentos, mas num contexto geral
do capitalismo, o que quer dizer que sem pensar a relação dessa forma
de opressão com a economia, a política, a cultura, a história e o próprio
conhecimento a emancipação humana não poderia ser concretizada. 
Como Demita Frazer, do Combahee, colocou em 2017:
“Nós na verdade nunca, até onde posso dizer, no que diz respeito à
definição clássica, praticamos realmente o que as pessoas agora
chamam de política identitária. Porque a parte central e o foco central
não era um aspecto da nossa identidade, mas a totalidade do que
significava ser uma mulher negra na diáspora”. (Taylor apud HAIDER,
2019, p. 157)

O que se perdeu, no decorrer da história, foi a capacidade de superar tal


relação de dominação, acabando por reforçar a ideia de naturalização
das relações capitalistas e uma falsa ideia de superação ou combate ao
racismo. Nesse sentido, Stuart Hall faz uma importante síntese sobre a
forma como a questão racial cai nos trilhos do capital:

“O capital reproduz a classe como um todo, estruturada pela raça. Ele


domina a classe dividida, em parte, através dessas divisões internas que
tem o “racismo” como uma de suas consequências. Ele contém e dá
cabo das organizações representativas de classe confinando-as, em
parte, a estratégias e lutas especificamente raciais, as quais não
superam seus limites, suas barreiras. Através da raça, ele continua a
derrotar as tentativas de construir, num nível político, organizações que
de fato representem adequadamente a classe como um todo – isto é,
que a represente contra o capitalismo, contra o racismo.” (Hall apud
HAIDER, 2019, p. 133)

A luta do negro no contexto geral dos Estados Unidos das décadas de 60


e 70, portanto, não estava apartada da luta de classes, o que fica
evidente nas posições do CCR com relação ao racismo e sua relação
direta com o capitalismo, certamente contrariando a colocação de Hall
que se refere a outro contexto em meio a um identitarismo descolado das
relações de classe. A transformação social depende de uma série de
fatores. O próprio transcorrer do tempo pode ser um desses fatores. O
tempo avança e mudanças concretas acontecem no cenário social. No
que diz respeito a superar (ou emancipar) problemas sociais como a
exploração do homem pelo homem é preciso muito mais do que a
simples e automática passagem natural do tempo. Aliás, o tempo, neste
sentido, pode ser um verdadeiro aliado das relações de dominação, pois,
na medida em que passa, naturaliza tais relações. Os homens então
passam a acreditar que este fenômeno nada tem de histórico: ele é
natural, portanto, imutável.

No capítulo 2, “Contradições entre as pessoas”, Haider produz algumas


análises sobre o aprofundamento da ideologia identitária, nos EUA dos
anos 70, a partir do arrefecimento das lutas sociais em múltiplas novas
segregações, o que resultou, por exemplo, no apartamento das lutas,
fundando assembleias de POC (people of color: pessoas de cor, em
tradução livre).
“Em Santa Cruz, a ideologia identitária nos levou cada vez mais para
longe de um projeto genuinamente emancipatório. Suas consequências
não foram apenas a desmobilização do movimento, mas também uma
compartimentação política degradante. […] Ativistas “POC” focariam a
brutalidade policial, estudos étnicos e a teoria pós-colonial. O aumento
do custo de vida, a privatização da educação e a precarização do
trabalho se tornariam questões de “brancos”.” (HAIDER, 2019, p. 68)

A perda dessa materialidade, que é a perda da própria história de como


se forja a ideia de raça, resulta numa perspectiva identitária pura e
simples, sem qualquer relação direta com o passado a não ser por um
idealismo muitas vezes místico, metafísico. E o que é (ou se tornou) a
política identitária? Segundo Asad Haider (2019, p. 47):

“Na sua forma ideológica contemporânea, diferentemente da sua forma


inicial como teorização da prática política revolucionária, a política
identitária é um método individualista. Ela é baseada na demanda
individual por reconhecimento e toma essa identidade individual como
ponto de partida. Ela assume essa identidade como dada e esconde o
fato de que todas as identidades são construídas socialmente. E porque
todos nós temos necessariamente uma identidade que é diferente da de
todos os outros, ela enfraquece a possibilidade de auto-organização
coletiva. O paradigma da identidade reduz a política a quem você é como
indivíduo e a ganhar reconhecimento como indivíduo, em vez de ser
baseada no seu pertencimento a uma coletividade e na luta coletiva
contra uma estrutura social opressora. Como resultado, a política
identitária paradoxalmente acaba reforçando as próprias normas que se
propõe a criticar.”

Por isso, conclui Haider que “essa experiência me mostrou que a política
identitária é, ao contrário, uma parte integral da ideologia dominante. Ela
torna a oposição impossível.” (HAIDER, 2019, p. 68).

Raça, identidade e interseccionalidade: um processo histórico


perverso de descaracterização
De forma mais sintética, Haider (2019, p. 177) define a política identitária
“como a neutralização de movimentos contra a opressão racial. É a
ideologia que surgiu para apropriar esse legado emancipatório e colocá-
lo a serviço do avanço das elites políticas e econômicas.” (grifos nossos).
O autor (HAIDER, 2019) justifica tal colocação no desenrolar do livro,
esmiuçando as contradições das lutas sociais envolvendo negros,
brancos pobres e imigrantes ou mestiços, tendo como contradição
central o apartamento desses múltiplos setores como método privilegiado
de evitar a conflagração de lutas populares unificadas.
Importante destacar nesse ponto que a ideia de raça é fundada a partir
da luta de classes de anglo-americanos e afro-americanos contra a
classe dominante colonial europeia durante o processo de transição
americana ao capitalismo. Assim, a ideia de raça surge em primeiro lugar
como a ideia de “supremacia branca”, utilizada pela classe dominante
para dividir os trabalhadores brancos e negros americanos, justificando a
transição de um sistema de exploração de ambos baseado no trabalho
por dívida por tempo determinado para um sistema escravista por tempo
indeterminado, que foi imposto somente aos negros. Nota-se que a ideia
de raça surgiu então como um artifício para dividir a classe trabalhadora
na luta por impedir um processo da acumulação capitalista que
intensificava a sua exploração, que passou a se acelerar no século XVIII.
De fato, tanto escravidão quanto discriminação e exploração não se
vinculavam à cor da pele antes da constituição desse fenômeno histórico.

Assim, o caso dos Estados Unidos, a partir do século XVIII, constrói a


ideia de raça branca que levou irlandeses – historicamente discriminados
e explorados na Europa – a reproduzir futuramente sobre negros a
mesma ideia de sub-humanidade que outrora produziram discriminação
concreta sobre outros grupos sociais – entre eles e prioritariamente –
sobre os próprios irlandeses.

Nesse sentido, a ideia de identidade foi sendo modificada ao longo de


processos históricos que descaracterizaram sua proposta inicial. Haider
(2019) quer dizer por “diferente da sua forma inicial” a orientação
revolucionária do Coletivo Combahee River que, num de seus textos, “A
Black Feminist Statement”, criticava o racismo e o sexismo na esquerda:
“Somos socialistas porque acreditamos que o trabalho deve ser
organizado para o bem coletivo daqueles que fazem o trabalho e criam
os produtos, e não para o lucro dos patrões. Os recursos materiais
devem ser igualmente distribuídos entre aqueles que criam esses
recursos. Porém não estamos convencidos de que uma revolução
socialista que não seja também uma revolução feminista e antirracista
garantirá nossa libertação.” (CCR apud HAIDER, 2019, p. 30)

E continuam:

“Nunca acreditei que o Combahee, ou outros grupos feministas negros


de que participei, deveria focar apenas questões que diziam respeito a
nós, mulheres negras. Ou que, como mulheres lésbicas/bissexuais,
devêssemos focar apenas questões que diziam respeito a lésbicas. É de
fato importante notar que o Combahee foi fundamental na fundação de
um abrigo local para mulheres vítimas de violência. Trabalhamos em
aliança com ativistas comunitários, mulheres e homens, lésbicas e
pessoas heterossexuais. Éramos muito ativas no movimento por direitos
reprodutivos, apesar de, naquele tempo, a maioria de nós ser lésbica.
Formamos aliança com o movimento dos trabalhadores porque
acreditávamos na importância de apoiar outros grupos, mesmo se as
pessoas naquele grupo não fossem todas feministas. Entendíamos que a
construção de alianças era crucial para a nossa própria sobrevivência.”
(CCR apud HAIDER, 2019, p. 177-178)

Haider (2019, p. 31) afirma que “para o CCR, a prática política feminista
significava, por exemplo, participar dos piquetes durante greves na
construção civil durante os anos 70.” Portanto, ao longo da década de
60, o partido dos Panteras Negras, continua Haider (2019):

“teve que navegar entre duas preocupações. Eles reconheciam que os


negros foram oprimidos numa base especificamente racial e que,
portanto, tinham que se organizar de forma autônoma. Mas, ao mesmo
tempo, falar de racismo sem falar de capitalismo é esconder o que é
necessário para que o povo tenha de fato o poder em suas mãos.
Apenas cria uma situação em que o policial branco é substituído pelo
policial negro. Para os Panteras isso não era uma libertação.”

Segundo o CCR (apud HAIDER, 2019), os grandes sistemas de


opressão estão interligados.
Nacionalismo Revolucionário e Nacionalismo Reacionário
À orientação que considera a interligação entre os sistemas de opressão,
o autor (HAIDER, 2019) chama de nacionalista revolucionária, pois tinha
as lutas históricas entre as classes sociais (trabalhadores e burguesia)
como horizonte. Huey Newton (apud HAIDER, 2019, p. 36) afirma que há
dois tipos de nacionalismo – o nacionalismo revolucionário e o
nacionalismo reacionário:
“O nacionalismo revolucionário depende primeiro da revolução popular,
tendo como objetivo final o povo no poder. Portanto, para ser um
nacionalista revolucionário é necessário ser um socialista. Um
nacionalista reacionário não é um socialista, e o seu objetivo final é a
opressão do povo.”

O nacionalismo de uma forma geral funciona a partir da defesa de uma


abstração de conjunto totalizante de uma determinada população como
forma de legitimar e dar coesão ao próprio estado burguês, pois sem
estado não há qualquer serventia para a manutenção da ideia de uma
nação. O nacionalismo revolucionário ainda guardava muitos limites
neste sentido, pois não seria possível emancipar os trabalhadores por
meio de uma simples independência nacional, cujo qual pode
simplesmente não existir frente as relações entre economias centrais e
periféricas. Estas configuram-se como um capitalismo dependente,
segundo Ruy Mauro Marini (2000).

Ainda assim, a perspectiva defendida por Newton é muito mais avançada


que a orientação identitária liberal pós-moderna, pois pensa a luta
integrada com os diversos segmentos da classe trabalhadora que sofre
as consequências devastadoras do capitalismo. Para Newton
(apud HAIDER, 2019, p. 41), “o nacionalismo implicava uma perspectiva
política: ativistas negros se organizando em vez de seguirem a liderança
de organizações de brancos, construindo novas instituições em vez de
buscarem entrar na sociedade branca.” Como afirma Haider (2019, p.
37), “trata-se de uma conclusão óbvia quando se entende o socialismo
do modo que Huey Newton entendia: com o povo no poder”. E continua
(grifos nossos):
“Ele não pode ser reduzido à redistribuição de riqueza ou à defesa do
Estado de bem-estar social – socialismo é definido em termos do
poder político do povo. Portanto, não apenas o socialismo é um
componente indispensável da luta dos negros contra a supremacia
branca, mas a luta anticapitalista deve incorporar a luta pela
autodeterminação dos negros.”  (HAIDER, 2019, p. 37)
As contradições das mobilizações nacionalistas, porém, ressalta Haider
(2019, p. 41), vieram “na forma daquilo que Huey Newton descreveu
como “nacionalismo reacionário”, representado por grupos como a US
Organization, de Ron Karenga, com a qual os Panteras iriam mais tarde
entrar em conflito virulento.” E continua Haider (2019, p. 41):
“Como Newton apontou, o nacionalismo reacionário apresentou uma
ideologia de identidade racial, mas era baseado também em um
fenômeno material. A desagregação tornou possível a empresários e
políticos negros entrarem na estrutura de poder americana numa escala
que não havia sido possível anteriormente. E essas elites foram
capazes de usar a solidariedade racial como meio de encobrir suas
posições de classe. Se eles dissessem representar uma comunidade
racial unitária com um interesse unificado, poderiam suprimir as
demandas dos trabalhadores negros, cujos interesses eram, na
realidade, totalmente diferentes dos deles.” (grifos nossos)
Mas como esse processo de instrumentalização da solidariedade por
uma elite se relaciona com a identidade? Num dos diversos textos
pesquisado sobre o assunto, foi encontrada a seguinte definição de
identitarismo, sem indicação do autor, presente nos comentários do
texto “Luta de classes e “identitarismo”: emocionados no reino da
ignorância iluminada”, de Heribaldo Maia (2019, online):
“Grosso modo é a ideia de que a pessoa seria totalmente
determinada por algumas de suas propriedades e teria de agir de
acordo com as expectativas criadas sobre essas propriedades. Por
exemplo, um ser humano tem várias características que o tornam único,
mas você tem de se agarrar a apenas uma ou algumas delas e moldar
seu comportamento e ideias a partir disso. Um gay deve moldar seu
comportamento e ideias baseados na sua característica de ser gay. Todo
o resto do que faz dele um indivíduo único deve ser deixado de lado. E,
sendo gay, ele deve se comportar assim e assado. Politicamente falando,
é a ideia de que não existe nada que una a maior parte das pessoas, por
exemplo, não ser proprietário dos meios de produção. Cada grupo deve
se agarrar a particularismos de tal e tal grupo e faz com que o
capitalismo se adapte ao fato de que existem vários grupos com
diferentes expectativas de consumo e inserção na sociedade do
mercado. Não é possível então criar um movimento que respeite as
aspirações da maior parte das pessoas e tampouco tentar mudar o
sistema em que estamos.” (grifos nossos)
A identidade molda a experiência imediata das pessoas, mas para além
disso é preciso pensar que as classes sociais se antagonizam no
processo produtivo do capital, o que implica na divisão social do trabalho
e toda sua alienação decorrente que muda de acordo com as
transformações e crises do capitalismo. Por mais que nos Estados
Unidos houvesse a Rights Act de 1964, que tornou ilegal a segregação
racial, e o Voting Rights Act, de 1965, sobre o direito de voto, a estrutura
opressora permaneceu. O que nos chama atenção é a clara apropriação
da direita por essas pautas o que deve na verdade nos preocupar. O
autor (HAIDER, 2019, p. 31) cita o exemplo da campanha da Hillary
Clinton, “que adotou a linguagem da “interseccionalidade” e
do “privilégio”, utilizando-se da política identitária para combater o
surgimento de uma opção de esquerda no Partido Democrata em torno
de Bernie Sanders.”
As armadilhas da identidade
É nesse contexto histórico de produção concreta de desigualdades que a
armadilha da identidade mostra seus contornos. Mas, questiona Silvio
Almeida (2019, p. 09), “como a identidade pode ser uma “armadilha” se
dentro dela já inevitavelmente estamos?” Eis aí a questão central. Para
Haider (2019, p. 31):
“O que começou como uma promessa de superar algumas limitações do
socialismo, de modo a produzir uma política socialista mais rica, mais
diversa e inclusiva, terminou sendo aproveitado por aqueles com uma
política diametralmente oposta àquelas do CCR.”

De forma bastante reducionista, podemos dizer que armadilha é um


“artifício para capturar ou seduzir alguém” (AULETE, s/d, online). Nesse
sentido, como só pode fisgar incautos, será também uma indicação de
perigo para quem estiver atento. Da mesma perspectiva, identidade é um
estado de paridade absoluto, é a “circunstância de um indivíduo ser
aquele que diz ser ou aquele que outrem presume que ele seja”.
Enquanto dinâmica de socialização, pode-se dizer que é caracterizada
pela troca de impressões subjetivas, de compenetração no sentimento ou
no pensamento alheio, se alinhando de forma coesa em uma
conformação que resulta na fusão ou confusão das identidades
individuais em uma outra, única, coletiva. Analogamente, cria-se, como
consequência, uma dinâmica de diferenciação dessa identidade coletiva,
então unificada, de outros grupos que não compartilhem das mesmas
características ou cujas ideologias ou metodologias sejam consideradas
politicamente incompatíveis.
De fato, não é possível pensar o capitalismo sem a opressão de raça, no
entanto, é fundamental entender como essa associação se dá a fim de
atacar suas causas e não seus efeitos, sua aparência.

As armadilhas identitárias num olhar webero-marxista: luta de


classes e estratificação social
Embora seja um método de organização coletiva – onde é possível
identificar, enquanto tipos ideais weberianos, quem são oprimidos e
quem são opressores – urge estar (e sempre é preciso estar) atento às
armadilhas provocadas pelos desdobramentos desse processo de
organização social. A indignação – enquanto um dos sentimentos
possíveis e legítimos – capaz de levar à formação de grupos identitários
na luta antirracista, frequentemente é cooptada pela lógica fetichizadora
do capital, cujo racismo intrínseco acaba por direcionar essa luta para
seus próprios propósitos de automanutenção.
A fetichização, nesse caso, ocorre quando a percepção das relações
entre pessoas é substituída por relações econômicas, com valor
intrínseco associado a essas últimas em detrimento das primeiras. Nesse
sentido, a produção de grupos identitários com características
predefinidas e socialmente impostas, como colocado por Heribaldo Maia
(2019), conforma-se como o primeiro passo para transformá-las em
mercadorias: commodities negociáveis em relações de consumo. Oculta-
se então o trabalho intelectual concreto – aqui entendido como produção
de conteúdo e dados para as redes sociais – envolvido nessas relações,
transformando-o em mero objeto de troca, o qual se acredita ter valor
intrínseco traduzível em moeda de troca.
O processo acima descrito se refere ao âmbito econômico da perspectiva
marxista (MARX, 2017), mas procuraremos fazer também uma
contextualização no que diz respeito ao consumo – enquanto formação
de classes a partir do poder aquisitivo direcionado a nichos de mercado –
e no que tange aos aspectos sociais e institucionais numa perspectiva
weberiana (LEMOS, 2012), quando se considera poder de influência e
acesso a bens culturais, sociais e políticos.
Identidade enquanto mercadoria: a visão marxista
É necessário, nesse ponto, uma breve digressão para compreender a
relação estabelecida acima de identidades enquanto mercadorias, haja
vista que a produção de dados estatísticos sobre – e a partir de –
coletividades já é tratada como tal atualmente. Este processo se iniciou
no início do século XXI, quando os estudos de marketing e administração
passaram a utilizar a lógica de nichos de mercado. No livro “A cauda
longa” – conceito capaz de evidenciar a construção histórica dessa nova
perspectiva mercadológica – Chris Anderson (2006) demonstra
estatisticamente que é mais lucrativo investir em produtos que não
sejam mainstream, ou seja, em nichos de mercado:
“A escassez requer “hits”. Se houver apenas algum espaço disponível
nas prateleiras só é sensato preenchê-lo com os artigos que venderão
melhor. E se for apenas isso que está disponível, é apenas isso que as
pessoas vão comprar. Mas e se houver espaço infinito? Talvez os “hits”
sejam a maneira errada de olhar para um negócio. Afinal, existem muitos
mais não-“hits” do que “hits” e agora ambos estão igualmente
disponíveis. E se os não-“hits” (…) todos juntos equivalerem a um
mercado tão grande, se não maior, quanto ao dos “hits” em si?”
(ANDERSON, 2006, p. 08)

Não por acaso, empresas como Netflix, Apple e Amazon passaram a


utilizar essa estratégia, pois os grandes conglomerados se beneficiam
dessa lógica ao disponibilizarem bens e serviços em larga escala a
preços baixos, substituindo pequenos produtores que antes
comercializavam esses bens a um custo elevado e de forma local.
Nesse sentido, pensando a transformação da identidade em mercadoria,
buscamos a seguinte analogia (grifos nossos):
Uma mercadoria, portanto, é algo misterioso simplesmente porque nela o
caráter social do trabalho dos homens aparece a eles como
uma característica objetiva estampada no produto deste; […] (MARX,
2017, p. 147)
A “característica objetiva estampada no produto do trabalho”, no contexto
deste artigo e dessa argumentação, é a identidade reificada, ou seja, a
característica extrínseca a partir da qual se define a identidade: não
como resultado de um processo histórico baseado em elementos
concretos dialeticamente constituídos, mas como um estereótipo –
enquanto conjunto de características estanques – que a define. Seguindo
com a analogia (grifos nossos):
[…] porque a relação dos produtores com a soma total de seu próprio
trabalho (…) é apresentada a eles como uma relação social que
existe não entre eles, mas entre os produtos de seu trabalho. […]
(MARX, 2017, p. 147)
Entenda-se aqui “produtores” enquanto produtores de conteúdo e
dados para as redes sociais que também podem ser entendidos como
produtores de trabalho intelectual de abstração e performance social,
cuja soma total compreende o conjunto de dados obtidos – devidamente
tratados estatisticamente pelas empresas que os coletam. Essa “soma
total”, ou seja, esse conjunto de dados que configura uma identidade
coletiva, apresenta-se para aqueles que a produziram como uma relação
entre os produtos de seu trabalho, em outras palavras, entre suas
identidades reificadas, não como uma relação historicamente constituída,
entre pessoas que são atravessadas por múltiplas características
extrínsecas e intrínsecas que constituem – ou deveriam constituir – a
base de sua ação política ligada as contradições que se apresentam em
sua realidade material.
Note-se que a mesma analogia pode ser feita com relação a produção
acadêmica sobre alguma identidade específica ou a constituição de
identidades jurídicas no âmbito institucional do Estado.  Prosseguindo
com a analogia (grifos nossos):
[…] A existência das coisas enquanto mercadorias, e a relação de valor
entre os produtos de trabalho que os marca como mercadorias, não têm
absolutamente conexão alguma com suas propriedades físicas e com as
relações materiais que daí se originam… É uma relação social definida
entre os homens que assume, a seus olhos, a forma fantasmagórica de
uma relação entre coisas. (MARX, 2017, p. 147)

Por “relação de valor entre os produtos de trabalho que os marca como


mercadorias”, pode-se entender aqui como a relação de valor entre
o conteúdo e dados produzidos em rede que os caracteriza como
mercadorias. Estas evocam um valor simbólico fruto das interações
sociais entre pessoas concretas: o significado da identidade para quem a
produz. Por sua vez, a identidade associando-se à preferência por
determinadas marcas, bens e serviços, que não têm nenhuma relação
com a realidade concreta das pessoas que os consomem. A relação
entre os indivíduos, que gera o trabalho intelectual que se traduz na
mercadoria “conteúdo e dados produzidos em rede”, também gera
relações concretas historicamente constituídas, mas não se percebe a
relação entre as duas, pois a “relação entre coisas” mascara essa
relação entre pessoas. Em outras palavras, as relações de mercado
“tomam ares” de relações políticas de modo que se tem a impressão de
que a substituição não faz diferença. Mas faz. Basta dizer que se política
é pautada pela disputa por recursos comuns, a lógica que dá a
impressão de que as relações se dão entre coisas – não entre pessoas –
distorce o propósito da política para a satisfação não das necessidades
das pessoas, mas da produção de coisas.
Garante-se assim, a expansão do capital em seu já citado processo de
automanutenção. Como a mercadoria agora atende a nichos identitários,
estes grupos, resultantes da agregação social de produções subjetivas –
através do trabalho gratuito de produção de conteúdo para as redes
sociais – passam a ser o combustível que organiza a produção de
informações estruturadas que permitem manter e ampliar a produção de
mercadorias que atenda aos nichos de mercado consumidor. Em outros
casos, reativa nichos em decadência, como no caso de camisas de
malha unissex que agora carregam a expressão “não-binárie” de forma
destacada.

Um breve adendo: a identidade no mercado cultural


Sobre essa situação, vale comentar como se reproduz a identidade na
lógica da indústria cultural, haja vista nosso interesse nesse tema.
Enquanto artistas independentes de esquerda que se organizam
coletivamente, somos atravessados por diferentes perspectivas
ideológicas, numa dialética que evidencia uma clara contradição: somos
independentes por que rejeitamos os pressupostos de ampla
padronização da arte ou por que não conseguimos nos inserir por
inadequação técnica, ideológica ou estética?

Acreditamos, baseados na observação de nossa realidade, que existem


ambos os tipos de artistas independentes: aqueles que “buscam um
lugar ao sol” do mercado e aqueles que buscam a marginalidade
concreta a esse mesmo sistema, no sentido de pensar em alternativas à
relação capitalista de produção. Assim, o conceito do que se entende por
artista independe varia para cada um dos casos. No primeiro, trata-se
daquele que é independente porque executa também tarefas acessórias
– tais como produção executiva, divulgação, atividades técnicas e
articulação com outros artistas e com instituições – associando-as à sua
atividade-fim: a expressão artística em si. Têm independência
operacional da indústria cultural. No entanto, quando pensamos em
artistas independentes que optam por distanciar-se dessa indústria por
discordar de sua finalidade, temos o segundo caso: aqueles que se
consideram independentes porque pretendem autonomia deste mesmo
sistema. Note-se que essa definição é apenas mais ampla que a
primeira, não excluindo, portanto, as prerrogativas do primeiro caso: a de
trabalhadores que executam tarefas acessórias à sua atividade principal.
O que ocorre com artistas que buscam autonomia da indústria
cultural mainstrean é a ampliação do conceito para uma perspectiva
coletiva, em que a divisão social do trabalho é homogeneamente
distribuída entre todos e as decisões são tomadas coletivamente, num
processo de formação profissional, intelectual, socioafetiva e política.
Ocorre, no entanto, que a marginalidade do sistema hegemônico já foi
cooptada pelo capital, no sentido de apresentarem-se dois horizontes
para a indústria cultural, num processo dialético de marginalidade da
espetacularização e espetacularização da marginalidade. A
marginalidade da espetacularização diz respeito à capilaridade do poder
de produzir sozinho o espetáculo (aqui entendido na maior facilidade da
produção de conteúdo na internet e nas redes sociais). Já a
espetacularização da marginalidade, a sua legitimação enquanto
espetáculo. Assim o artista independente periférico passa a associar-se a
estéticas específicas que assim o categorizam, inserindo-se, portanto, na
lógica do mainstream. O que antes era lido como marginal, subversivo,
fora do padrão, ganha lugar no “centro do palco”, num processo de
assimilação do capital para viabilizar sua própria expansão. Esse
mecanismo se vale também da lógica identitária para produzir essa ideia
de marginalidade, como nichos estéticos para o mercado de consumo da
cultura.
Ironicamente, se o que era marginal passa a uma posição de
protagonismo e centralidade, novas marginalidades necessariamente se
produzem. Resta ao segundo tipo de artista independente – que deseja
manter-se fora da estrutura hegemônica – identificar na realidade
concreta que marginalidades são essas. E então negá-las, pois:
“[…] a arte como força política é somente arte enquanto preserva as
imagens da libertação; em uma sociedade que é em sua totalidade a
negação dessas imagens, a arte pode preservá-las somente através da
recusa total, isto é, não sucumbindo aos padrões da realidade sem
liberdade, seja em estilo, ou na forma, ou na substância. (MARCUSE
apud SILVEIRA, 2009, p. 46)

Uma pista então para identificar essas novas marginalidades talvez seja
justamente a rejeição das estéticas ou temas progressistas, que
substituem a emancipação coletiva pelo festivo domínio da marginalidade
como glamourização, portanto, entretenimento confortador. Trata-se de
lógica notoriamente inserida no campo da competição, haja vista sua
predisposição para produzir mercadorias – enquanto produtos culturais
resultantes da expressão artística – cujo capital simbólico reitere a
centralidade da identidade per se. Aqueles que forem capazes de melhor
expressar as expectativas sobre determinada identidade, serão aqueles
que obterão maior retorno financeiro e de reconhecimento social para
suas obras, inserindo-se com sucesso no mercado da indústria cultural.
A produção cultural baseada nessas premissas certamente produz
capital simbólico – no âmbito das abstrações – e novas elites na classe
artística – do ponto de vista das relações sociais. É sobre esse processo
de estratificação – que não se restringe à classe artística, mas à toda
classe trabalhadora – que abordaremos a seguir.
Identidade enquanto estratificação social: a visão weberiana
Subjacente às relações entre os detentores dos meios de produção e o
proletariado, anteriormente explicitadas, aplica-se a análise baseada na
estratificação econômica em relação a capacidade aquisitiva proposta
por Weber (apud LEMOS, 2012). Desse modo, se constituem “classes”
weberianas de acordo com a capacidade de consumo de determinados
grupos, como acontece com o denominado “Pink Money” em relação a
população LGBTI e, mais recentemente, o “Black Money”, relacionado à
população de pessoas autodeclaradas negras. De fato, as duas
abordagens – marxista e weberiana – se entrecruzam neste caso. Assim,
a classe dominante utiliza a subdivisão da classe trabalhadora em nichos
de mercado diferentes como mais um elemento desagregador das
pautas comuns – interesses semelhantes de grupos oprimidos distintos –
em interesses de consumo diversificados. E estimula a constituição
dessas diferenças através da diversificação cada vez maior de
mercadorias, cuja ampliação de escopo as potencializa ainda mais à
medida que se amplia seu consumo.
Note-se que, ao abordar a perspectiva marxista na seção anterior, o
tema central era a exploração por parte das classes dominantes –
enquanto empresariado dono dos meios de comunicação – na
identificação e posterior estímulo ao consumo de mercadorias que
atendam a esses nichos. Já na perspectiva weberiana, analisamos o
fenômeno que se dá a partir desse primeiro movimento: a constituição de
classes de consumo que competem entre si por satisfação de interesses
particulares na busca por ampliar seu poder de dominação econômica,
social e política, pois quanto maior a posse de bens e a amplitude de
consumo de serviços relacionados a um determinado nicho, mais se
aprofunda o processo de identificação amparado pelas relações sociais
mediadas pelas mercadorias consumidas (consequentemente aumenta
também o poder de influir nas decisões de compra de seus pares).
Social, pois o consumo ampliado de mercadorias que associem o
consumidor à identidade que ele deseja projetar, tende a aumentar
seu status naquela comunidade identitária (fora do âmbito econômico
estrito, quanto maior a produção intelectual relacionada àquela
identidade, maior será a relevância social do indivíduo que a veicule).
Política, no âmbito institucional principalmente, à medida que é capaz de
mobilizar a constituição de subjetividades jurídicas – na esfera pública –
e contratuais – na esfera privada – que garantam direitos a uma
determinada minoria política ou nicho de mercado, respectivamente (aqui
entendidos ambos como grupos identitários).
Assim, em complementação à abordagem econômica, já demonstrada,
as demandas político-institucionais – a influência nas decisões
políticas através das relações de dominação – e socioculturais – o
status ou prestígio relacionado ao acúmulo de bens simbólicos – também
ganham relevância na análise da dinâmica do identitarismo.
Com relação aos aspectos socioculturais, é possível relembrar um
episódio histórico, já mencionado no início deste artigo, que esperamos
ser suficiente para evidenciar como se dão essas relações sociais na
constituição de um fetichismo baseado na lógica de mercado em última
instância. Relembramos, então, o próprio Asad Haider (2019), quando
menciona o movimento do “nacionalismo reacionário”, no qual a elite, por
meio da mobilização de um capital simbólico derivado das lutas raciais,
desvia-se de questões concretas que atingem a totalidade da classe
trabalhadora: tanto negra enquanto minoria política, quanto a de outras
etnias. No mesmo sentido, é possível citar a solidariedade racial entre
elites brancas que se constitui como fonte de manutenção de prestígio
enquanto acúmulo de bens simbólicos: seja na produção intelectual, seja
na definição da etiqueta vigente ou do que consideram como referência
estética aceitável.
Já no que diz respeito aos aspectos político-institucionais, dois exemplos
bastante atuais – demandas por políticas públicas compensatórias em
detrimento das construtivas (MULLER, 2018) e eleições no sistema
representativo social-democrata – os quais são descritos brevemente a
seguir – poderão ser capazes de demonstrar como a dinâmica identitária
pode se constituir como uma armadilha nesse campo.

Assim, no que se refere às políticas públicas, basta mencionar a


demanda por ações do Estado no sentido de buscar reparações
históricas sem considerar a necessidade de concomitantemente pleitear
reformas mais profundas. De fato, o que não fica explícito neste processo
é a subjetivação jurídica que as inscreve em marcos legais e
institucionais que camuflam a necessidade de transformação da estrutura
que gera as desigualdades. Enquanto as políticas compensatórias são
concedidas sistematicamente pelo Estado, ainda que a conta-gotas, são
convenientemente deixadas de lado as políticas construtivas – aquelas
que constroem projetos com o objetivo de avançar na reconfiguração da
sociedade enquanto políticas capacitadoras. Ainda que seu viés seja
reformista, é clara a diferença entre priorizar apenas políticas
compensatórias e propor políticas ativas/positivas. Em alguma medida,
estas últimas representariam um avanço mais significativo no sentido de
diminuir desigualdades sociais em seus aspectos constitutivos, ainda que
sua lógica esteja inscrita no limitado escopo da socialdemocracia. Nesse
sentido, a armadilha identitária se apresenta quando a identidade é
considerada como o único viés de reconhecimento de pautas políticas.
Ao priorizar demandas que atendam somente a questões de minorias,
não pode ensejar identificar as demandas mais universais, tanto do ponto
de vista reformista – à medida que ajustes estruturais podem vir a
beneficiar os menos favorecidos, entre eles uma dada minoria política de
referência – seja do ponto de vista revolucionário – haja vista que pautas
comuns a todas as minorias oprimidas tem maior potencial de
mobilização para a luta política.

Com relação ao segundo exemplo – as eleições no sistema


representativo – basta mencionar que a política institucional na
socialdemocracia não é capaz de dar conta das demandas de autonomia
libertária da classe trabalhadora como um todo. Além disso, o fato de
determinada identidade ganhar representatividade política não significa
necessariamente que trabalhará em defesa dos melhores interesses do
grupo que diz representar. Deste modo, quando a identidade se torna
uma referência tautológica, corre-se o risco de considerar válida qualquer
candidatura apenas pela sua autoproclamação identitária, sem
considerar a sua proposta política ou mesmo seu posicionamento
ideológico. O caso Obama é clássico nesse sentido: embora seja muito
significativo simbolicamente ter um casal negro no mais alto cargo
executivo dos EUA, isso não significou mudanças concretas para a
comunidade negra americana como um todo, nem da perspectiva
reformista, nem da revolucionária.

O populismo autoritário e a
cultura do cancelamento
Destacamos aqui, entre os exemplos de armadilhas da identidade, o
fenômeno denominado “populismo autoritário”, cunhado por Stuart Hall,
que é citado no artigo de Achille Mbembe (2016), “A era do humanismo
está terminando”. O autor (MBEMBE, 2017, online) denomina o mesmo
fenômeno de “autoritarismo liberal”:
O principal choque da primeira metade do século XXI […] será entre
a democracia liberal e o capitalismo neoliberal […]. Apoiado pelo
poder tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua
hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos
desejos humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo
na primeira teologia secular global. Combinando os atributos de uma
tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas inquestionáveis
que as formas modernas de capitalismo compartilharam
relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra –
a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria
e da propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão. Cada um
destes artigos de fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a democracia
liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo
financeiro. É provável que o choque entre estas duas ideias e princípios
seja o acontecimento mais significativo da paisagem política da primeira
metade do século XXI, uma paisagem formada menos pela regra da
razão do que pela liberação geral de paixões, emoções e afetos.
(grifos nossos)
Assim, nos interessa destacar o que diz respeito à “liberação geral de
paixões, emoções e afetos” mencionada por Mbembe (2017, online),
como uma das armadilhas da identidade pela ênfase que dá ao viés
exclusivamente subjetivo enquanto modo de interpretação da realidade.
Por mais válido e legítimo individualmente que seja reconhecer traumas,
visões de mundo, impressões e percepções – compartilhando-as para
buscar sua superação através das trocas afetivas – constituir identidades
coletivas apenas a partir dessas percepções fracionadas embota a visão
objetiva, necessária a uma articulação social ampla. Impede-se, assim, a
organização a partir de pautas políticas comuns: coletivas enquanto
conjunto de ações propositivas universais, não de alinhamento
comportamental e personalista. Enquanto isso, detentores dos meios de
produção utilizam esses dados objetivos para ampliarem sua dominação
no sentido de definirem os critérios pelos quais as relações entre
pessoas se darão, substituindo de forma cada vez mais profunda o papel
do Estado e as próprias relações sociais concretas (grifos nossos):
“Em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas
serão tudo o que conta. As estatísticas e outros dados importantes serão
derivados principalmente da computação. Como resultado da confusão
de conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a
qualquer pessoa que não tiver nada para vender. A noção humanística e
iluminista do sujeito racional capaz de deliberação e escolha será
substituída pela do consumidor conscientemente deliberante e eleitor. Já
em construção, um novo tipo de vontade humana triunfará. Este não
será o indivíduo liberal que, não faz muito tempo, acreditamos que
poderia ser o tema da democracia. O novo ser humano será
constituído através e dentro das tecnologias digitais e dos meios
computacionais.” (MBEMBE, 2017, online)
Considerando que Mbembe escreveu este artigo em 2016, quando ainda
não estávamos no contexto da pandemia de COVID-19, tendemos a
acreditar que sua análise de conjuntura tome contornos ainda mais
graves, à medida que constatamos a intensificação das relações digitais. 
Nesse sentido, outra armadilha que a identidade traz é a individualização
das pautas políticas que acabam por convergir no compartilhamento e
circulação de sentimentos em comum, especialmente nas redes. Não é
de se admirar que, num contexto de opressão que se dá constante e
consistentemente, o ódio e o ressentimento se tornem um dos elementos
emocionais em torno dos quais se constituem a forma de manutenção
dessas identidades coletivas. Como coloca Mbembe (2017, online):
A era computacional – a era do Facebook, Instagram, Twitter – é
dominada pela ideia de que há quadros negros limpos no
inconsciente. As formas dos novos meios não só levantaram a tampa
que as eras culturais anteriores colocaram sobre o inconsciente,
mas se converteram nas novas infraestruturas do inconsciente.
Ontem, a sociabilidade humana consistia em manter os limites sobre o
inconsciente. Pois produzir o social significava exercer vigilância sobre
nós mesmos, ou delegar a autoridades específicas o direito de fazer
cumprir tal vigilância. A isto se chamava de repressão. A principal função
da repressão era estabelecer as condições para a sublimação. Nem
todos os desejos podem ser realizados. Nem tudo pode ser dito ou
feito. A capacidade de limitar-se a si mesmo era a essência da
própria liberdade e da liberdade de todos. Em parte, graças às formas
dos novos meios e à era pós-repressiva que desencadearam, o
inconsciente pode agora vagar livremente. A sublimação já não é mais
necessária. A linguagem se deslocou. O conteúdo está na forma e a
forma está além, ou excedendo o conteúdo. Agora somos levados a
acreditar que a mediação já não é necessária. Isso explica a crescente
posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um
desprezo geral pela democracia. […] No entanto, sob as condições do
capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal
sublimada. (grifos nossos)
Assim como Amazon, Netflix e Apple utilizam a estratégia de estimular o
consumo baseado em nichos mercadológicos, as redes
sociais, Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp promovem a criação
de bolhas estanques, baseadas em preferências políticas, entre outras
impossíveis de serem definidas, haja vista o hermetismo do
funcionamento dos algoritmos que as regem. O fato é que surgem
fenômenos como a instrumentação da linguagem: apagando a
polissemia de palavras e expressões, que passam a ser censuradas
indiscriminadamente, desconsiderando seu contexto e semiótica.
Também a repetição sistemática de temas específicos, baseado nas
preferencias e comportamento virtual dos usuários, dificulta sua
autonomia na interlocução com pontos de vista diferentes. Em redes
sociais com as mencionadas, a lógica de mercado, assim como a lógica
de segregação, já está posta pelos próprios algoritmos à medida que
estabelecem critérios de interação e seleção de conteúdo. Já
mencionamos também a questão do estímulo ao consumo segmentado,
baseado em preferências a partir da coleta de dados provenientes do
que os usuários escrevem, do que curtem e mesmo do que falam em voz
alta. Geram-se assim dados que são vendidos para outras empresas
anunciantes ou mesmo governos que desejem influenciar resultados
eleitorais, como já é de conhecimento geral. Achille Mbembe continua
(2017, online):
O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos
destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que
seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça
existencial. […] Neste contexto, os empreendedores políticos de maior
sucesso serão aqueles que falarem de maneira convincente aos
perdedores, aos homens e mulheres destruídos pela globalização e
pelas suas identidades arruinadas. […] Em um mundo centrado na
objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação
da política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política em
negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política.

No entanto, um fenômeno social que destacamos do autoritarismo


liberal de Mbembe (2017), no sentido que nos interessa discuti-lo – dada
a sua relação direta com o identitarismo –, é a chamada “cultura do
cancelamento”.
Caracterização da cultura do cancelamento
A cultura do cancelamento não é nova. Com o advento da pós-
modernidade, enquanto sintoma dessa cisão progressiva entre a
democracia liberal e o capital financeiro, ganhou novas formas e
desenvolveu seus próprios métodos. Trata-se tão somente da eliminação
por meio do constrangimento de adversários ou potenciais perigos que
possam causar dissonância na dinâmica interna de um determinado
segmento social/político. Os métodos utilizados hoje privilegiam a
internet como ferramenta potente na exposição pública de determinados
perfis nas redes sociais. Os que são cancelados, porém, não são
quaisquer indivíduos. Eles precisam ter algum tipo de visibilidade, o que
funciona como elemento que ajuda a reverberar o estrago causado,
servindo de exemplo aos demais. Segundo Wilson Gomes escreve no
texto “O cancelamento da antropóloga branca e a pauta
identitária” (grifos nossos):
“Cancelamentos e linchamentos são hoje das ações mais banais das
estratégias dos identitários, sejam esses de esquerda ou de direita,
principalmente depois que grande parte das nossas vidas passou a
transcorrer em direta relação com ambientes digitais. Nesses ambientes
é que se consegue facilmente mobilizar enorme montante de pessoas,
insuflar em grandes massas um estado de indignação moral ou furor
ético e, enfim, colocar alvo em pessoas, instituições e atos na direção
dos quais toda a fúria deve ser dirigida. Para o linchamento e o
cancelamento digitais se requer, antes de tudo, uma multidão unida por
algum sentimento de pertencimento recíproco, motivado pela
percepção de que todos estão identificados entre si por algum
aspecto essencial da sua própria persona social. Um recorte comum,
por meio do qual são separadas e antagonizados, de um lado, o “nós”,
de dentro do círculo, e, de outro, “eles”, os de fora.”  (GOMES, 2020,
online)
A projeção social do cancelado, ao passo que é prejudicado, é
inversamente apropriado pelo cancelador ou pela horda que cancela,
estando em disputa também o público que assiste ao espetáculo:
reagindo por meio de curtidas, compartilhamentos e comentários,
operando como pequenos espoliadores desses eventos. A derrota do
cancelado fica ainda mais evidente quando este se redime perante o
tribunal virtual como foi o caso da antropóloga Lilia Schwarz. A culpa e a
vergonha são amenizadas e às vezes o cancelado pode até ser
readmitido, mas não sem as marcas do passado. O cancelamento é não
só um método perverso de ódio e justiçamento, mas um meio eficiente
de burlar a complexidade de debates históricos e teóricos e,
principalmente, os antagonismos entre as linhas teóricas em disputa.

Existe uma seletividade no cancelamento e isso tem relação direta com o


funcionamento e métodos identitários. Todo mundo pode um dia ser
linchado digitalmente, explica Wilson Gomes (2020, online):
“[…] mas só pessoas com visibilidade e importância social e, o que é
mais importante, que pareciam vinculadas a ou simpatizantes da pauta
identitária, é que podem ser canceladas. O cancelamento envolve
ruptura e luto, uma vez que o cancelado tem que ter representado
alguma coisa para quem o cancela, mas o sentido de ultraje moral e fúria
linchadora é mesma.”

O cancelamento, portanto, é um método de acusação feito “aos gritos”


onde não existem argumentos, debates e espaço para o contraditório. O
cancelamento é uma prática de demonstração de poder, de influência
pela ameaça e de ação metódica na construção de párias sociais:
sujeitos sem prestígio ou credibilidade. Por isso, o cancelado passa a se
autopoliciar de forma que o medo se torna uma marca perene. Excluir
socialmente, recontar a história do cancelado – ressaltando todos os
seus pontos negativos e inculcando sua incapacidade de regenerar-se –
é o legado do cancelamento. Nesse sentido, trata-se então da prática da
pequena política, daquilo que não ofende o sistema exploratório geral:
numa ilusão de que, anulando a prática individual dos desajustados,
seria possível modificar as redes e formas de dominação e opressão. É
precisamente assim, afirma Carlos Nelson Coutinho (2010, p. 29),
“através da exclusão da grande política – que se apresenta a hegemonia
da época do neoliberalismo.”.

Gramsci (apud COUTINHO, 2010, p. 29), em “Cadernos do Cárcere”,


afirma o seguinte:
“A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos
Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de
determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena
política compreende as questões parciais e cotidianas que se
apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência
de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma
classe política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de
intrigas). Portanto, é grande política tentar excluir a grande política do
âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política.”

Carlos Nelson (COUTINHO, 2010, p. 31) complementa dizendo que a


hegemonia da pequena política:

“baseia-se precisamente no consenso passivo. Esse tipo de consenso


não se expressa pela auto-organização, pela participação ativa das
massas por meio de partidos e outros organismos da sociedade civil,
mas simplesmente pela aceitação resignada do existente como algo
“natural”. Mais precisamente, da transformação das ideias e dos valores
das classes dominantes em senso comum de grandes massas, inclusive
das classes subalternas. Hegemonia da pequena política existe,
portanto, quando se torna senso comum a ideia de que a política não
passa da disputa pelo poder entre suas diferentes elites, que convergem
na aceitação do existente como algo “natural”.” (grifos nossos)
O cancelamento faz parte da nova militância aguerrida, intimamente
ligada aos modos de funcionamento da comunicação rápida e fugaz,
porque não gera acúmulo teórico, só memórias de exposições
vexatórias. O resultado do cancelamento é também a disputa no
mercado das epistemes. Sempre que se cancela alguém, um outro toma
o seu lugar, ganhando projeção, influência social e dinheiro. Por
exemplo, substituindo ou dando mais visibilidade a autores negros que
consequentemente venderão mais livros, terão mais oportunidades
profissionais e acadêmicas, receberão mais convites para palestras e
lançamentos etc. O ressentimento é o que alimenta a cultura do
cancelamento.

Cultura do Cancelamento e Identitarismo


O consenso passivo daqueles que participam das dinâmicas de
cancelamento como espectadores baseia-se também no natural desejo
de agradar ou de evitar atritos considerados desnecessários. Nesse
sentido, as pessoas reagem à militância tóxica e agressiva dando razão
aos argumentos superficiais ou mesmo a meras acusações sem qualquer
argumento para não se indisporem com uma pauta aparentemente
progressista. Na verdade, a militância identitária tautológica – elitista que
é – para justificar suas acusações, utiliza-se de estatísticas de opressão
de grupos concretos e de militâncias sinceramente interessadas em
defender minorias políticas contra desigualdades sociais históricas.
Valem-se da solidariedade para impor pautas que favorecem apenas um
estrato do grupo identitário pretendido.

Quando as estratégias são mais grosseiras, constroem-se então


consensos baseados em argumentos falaciosos que justificam suas
perspectivas ideológicas ou epistemológicas como as
únicas moralmente aceitáveis, manipulando a subjetividade alheia por
meio da culpa. Quando mais sutis, justificam o isolamento do indivíduo
cancelado como “medida educativa necessária para seu processo
reflexivo”. Criam-se com isso situações extremamente delicadas, pois
mistura-se o que é já é considerado condenável no campo progressista
com o que é construção de novas etiquetas de linguagem, baseadas em
interpretações incipientes de teorias científicas por parte dessa mesma
militância. Essa confusão dificulta o posicionamento crítico de pessoas
comuns, que não conhecem as peculiaridades de uma determinada
minoria a fundo, fazendo com que optem por não se posicionar. Na
prática, a não-ação acaba se refletindo na progressiva admissão tácita,
pelo senso comum, do que aquela militância procura tornar um
consenso.
Trata-se de um fenômeno bastante comum na esquerda e na direita.
Pessoas bem-intencionadas, mas ignorantes quanto aos processos
históricos específicos de determinados grupos identitários, podem, em
vez de simplesmente aceitar suas palavras de ordem resignadamente, se
aliar ativamente a essa militância. A motivação parece se afigurar a
mesma: blindar-se preventivamente contra a possibilidade de
cancelamento futuro. Ocorre que o critério da militância identitária
tautológica não é baseado na ética, mas na etiqueta, portanto, ao menor
deslize ou sinal de questionamento ou discordância, esse grupo pode se
voltar contra um de seus apoiadores. Nessa lógica circular, não parece
haver escapatória senão a submissão absoluta à subjetividade daquela
identidade coletivamente constituída. Constata-se, nesse contexto, que
essa militância se baseia na valorização das aparências, no sentido de
pressupor que o outro evitará o confronto para manter a aura
progressista em um assunto que não domina diante de uma suposta
autoridade moral ou intelectual. É comum o uso de retóricas, falácias,
construções lógicas autorreferenciadas, censura linguística e exigência
de priorização de aspectos secundários ao debate: uso de pronomes de
tratamento específicos, supressão de termos considerados inadequados
ou prioridade epistemológica. Esse processo termina por esvaziar a
discussão, vencendo o oponente pelo cansaço, pois não consegue
identificar a necessidade objetiva a ser atendida, já que se trata por
definição de demanda subjetiva que precisa ser “respeitada” dentro de
uma lógica de dominação.

Ocorre que marxistas, por princípio, tendem a lidar com quaisquer


fenômenos sociais buscando desmistificar sua aparência em primeira
instância, partindo da materialidade em detrimento das construções
abstratas, contextualizando sua história e identificando contradições para
então tratá-las de forma dialógica. Recurso sistemático de
comportamento derivado do método materialista histórico-dialético.
Nesse sentido, outro expediente utilizado por essa militância identitária
tautológica é a associação vexatória: relativizam as críticas recebidas
comparando-as com argumentos usados por alas conservadoras ou
reacionárias, como se tivessem a mesma abordagem epistemológica.
Assim, uma crítica a uma dada atitude política de aliar-se a ideologia
neoliberal, por exemplo, será refutada com acusações de que fazemos a
mesma crítica da direita, também neoliberal, desqualificando o “mérito”
daquele indivíduo pertencente à uma minoria pelo fato dele pertencer a
uma identidade específica. Em outras palavras, apontam o preconceito –
de fato presente em pessoas de esquerda e de direita – como única
causa possível para a crítica a uma determinada atitude. Note-se que a
acusação de semelhança em si não faz sentido, pois embora o fenômeno
objeto de julgamento seja o mesmo, as motivações são diferentes e sua
análise recai sobre aspectos distintos. Da mesma forma que o
identitarismo reclama a relativização dos pontos de partida dos quais se
fazem as análises, contraditoriamente procura negar ao interlocutor a
avaliação de fenômeno anteriormente analisado por outrem sob olhar
diverso, ainda que as constatações finais sejam as mesmas.
Dito de outro modo, reforçam a centralidade dos debates em aspectos
secundários, relacionados à aparência, não à essência: aqui entendida
como a discussão das contradições identificadas pela crítica realizada
ou, em outras palavras, às peculiaridades contextualizadas do que foi
efetivamente evidenciado.

Por exemplo, parece óbvio que o comportamento de muitos


trabalhadores brancos reflete o preconceito estimulado pela classe
dominante, da mesma forma que esta considera útil aos seus propósitos
o ressentimento provocado pelos processos sócio-históricos de exclusão
de pessoas negras. No entanto, esse fenômeno não faz desaparecer o
fato de que trabalhadores negros e brancos são explorados e
estimulados a competirem entre si por postos no mercado de trabalho.
Assim, uma determinada apreciação sobre a competição entre negros e
brancos nessa esfera – haja vista que da perspectiva marxista o
problema encontra-se no estímulo dado pelas classes dominantes à
competição entre trabalhadores explorados pela mesma lógica sistêmica
– é tomada como idêntica à crítica da direita conservadora que acusa o
movimento negro de “vitimista” e preguiçoso – na perspectiva neoliberal
de meritocracia ou na perspectiva conservadora da estigmatização racial
– quando demanda cotas raciais ou o fim da discriminação de negros em
processos seletivos de trabalho. Desconsiderar essas diferenças anula o
debate e o centraliza na perspectiva única da identidade que, para essa
militância específica, é o centro único e imutável de todo e qualquer
questão.
Note-se que a reação defensiva dos identitaristas autorrecursivos
procura encobrir a admissão tácita de uma lógica da democracia
burguesa que, de fato, privilegiará apenas alguns. Como a militância
tautológica não quer ver expostos seus interesses particulares de
possível inserção numa elite, opta por atacar seus críticos por
associação a campos reacionários ou conservadores. Em vez de se
colocar de forma dialética no debate, aceitando as contradições
existentes e trabalhando no sentido de encontrar alternativas que as
superem para todo conjunto da identidade coletiva que defendem,
preferem a estratégia da associação vexatória. Isso só reforça a
evidência de uma capitulação desses grupos à logica de mercado,
baseada na aceitação de que a única alternativa possível é a
estruturação hierárquica e meritocrática, considerando aceitáveis,
portanto, que existam dinâmicas de exclusão de seus pares (desde que
não se apliquem a eles). Dessa forma, acabam por empobrecer um
debate que tem o potencial revolucionário de encontrar soluções mais
amplas e definitivas para a origem das desigualdades sociais que o
capitalismo ajuda a conservar.

O mesmo na direita, para citar um exemplo em outra esfera, onde


acusações de “cristofobia” se multiplicam indefinidamente a qualquer
discordância ou comportamento considerado ofensivo por um militante
identitário tautológico “que se entenda influente o suficiente para
mobilizar atenção nas redes”. Obviamente, é sempre importante levar em
conta a fala de outrem quando este identifica algo que considera
pessoalmente ofensivo. No entanto, é preciso mais uma vez relembrar
que o critério individual se aplica ao campo das relações individuais,
portanto, passíveis de debate e resolução neste mesmo circuito. Ocorre
que se transforma a insatisfação privada em acusação vexatória pública,
muitas vezes descolada da realidade do que venha a ser objetivamente
um ato discriminatório: agressão física, ofensa verbal ou comportamento
sistemático de impedimento ao acesso de direitos ou recursos
considerados universais apenas por pertencer a uma dada identidade.

Confunde-se aí a discriminação pessoal da estrutural, que é muitas


vezes inconsciente e não se soluciona exclusivamente por oposição
identitária. Em lugar de apontar a crítica ao comportamento
supostamente inadequado, esclarecendo as razões pelas quais são
consideradas ofensivas, opta-se pela execração do sujeito em si,
reforçando a ideia de que as discriminações acontecem devido a uma
suposta “contra-identidade” opressora, fixa e imutável. Evidencia-se
então o reforço de estereótipos que deveriam estar sendo combatidos,
de modo que a opção do acusado – ontologicamente enquadrado – é se
posicionar com a mesma radicalidade: ou aceita a “contra-identidade”
que lhe é imputada – assumindo a constante e sistemática vexação
pública – ou a nega – sendo imediatamente associado à figura abstrata
de um opressor estrutural em polo político conservador ou reacionário.
Ora, reforçar identidades como elementos incapazes de reabilitação e
adaptação é também um ato preconceituoso e desumano em si mesmo.

Há casos também em que acusações de transfobia, para citar outra


esfera, são baseadas não na percepção pessoal do ofendido, mas nos
pressupostos epistemológicos e ideológicos de setores específicos de
uma determinada corrente em um movimento social ou identitário mais
amplo. Acusar de transfobia uma pessoa que faz referência à biologia
dos corpos, nesse contexto, não parece fazer o menor sentido, haja vista
que é a própria condição biológica de uma pessoa transexual, em
oposição a como se percebe, que a define enquanto transexual. Não
houvesse a concretude biológica de machos e fêmeas, não haveria
sequer por que haver transexualidade. Nesse sentido, há, no entanto,
correntes de militância que defendem a ciência biológica como
construção estritamente social. Provavelmente interpretações rasas e
equivocadas de teorias de gênero pós-estruturalistas. Ora, pressupor que
o sistema classificatório da biologia é construído a partir de abstrações e
não de observação científica meticulosa e prolongada é igualmente um
contrassenso. Se as combinações de masculinidade e feminilidade
permanecem presentes nas variadas expressões de gênero, ainda que
se negue o sexo biológico, ainda serão diretamente derivadas daquilo
que existe historicamente em primeiro lugar: corpos de machos e
fêmeas. Na verdade, o que parece fazer mais sentido objetivamente é o
contrário: as abstrações relativas ao que se considera próprio de um
gênero ou de outro é que derivam dos comportamentos – estes sim,
socialmente construídos e devidamente categorizados de forma
estereotipada – encontrados com mais frequência em machos e fêmeas
da espécie.

Nesse sentido, o que se observa na militância queerativista de gênero –


pauta que aliás consideramos impropriamente colocada para a
comunidade LGBTI como prioritária, pois essa se relaciona mais
diretamente a questões sobre sexualidade – é assumir como
pressuposto único e fundamental o conceito de gênero em detrimento do
conceito de sexo, quando, na pior hipótese, ambos deveriam ser
considerados partes de um construto teórico, desde que partisse do
material para o abstrato, ou seja, do sexo para o gênero. Um dos
fenômenos que se deriva dessa percepção equivocada é a análise
anacrônica, utilizando-se do subterfúgio do revisionismo histórico. Um
exemplo disso é considerarem como transgêneros (note se tratar de
fenômeno cunhado por queerativistas que é totalmente diverso, e
anulatório, da transexualidade) figuras públicas de gays afeminados e
lésbicas masculinizadas, numa estratégia clara de apagar e substituir
identidades já inseridas com sucesso na lógica de mercado. Outro
exemplo, que ocorre em parte da militância do movimento negro que
associa figuras historicamente revolucionárias, como Malcom X, a
personagens políticos como Barack Obama. Desconsideram
completamente suas finalidades diametralmente antagônicas na
perspectiva sócio-histórica: respectivamente, a libertação pela
associação colaborativa entre diferentes identidades e a opressão da
classe trabalhadora pela divisão social em bases raciais. Por fim, citamos
a direita não-identitária brasileira, quando traz a visão universalista de um
mundo onde predomina, na verdade, a visão eurocêntrica do iluminismo
e/ou do liberalismo. Não percebem o quanto o ponto de vista que
defendem se identifica com uma perspectiva de branquitude que não
representa a todos os segmentos da sociedade brasileira em sua rica
multiplicidade epistemológica e cultural.
Identificar inimigos e aliados enquanto tipos coletivos ideais exige um
nível de conformação e comportamento em blocos coesos que, em
última instância, podem levar à legitimação de uma lógica sectária de
constituição de faschos. Isso não ocorre sem antes passar pelos nichos
mercadológicos e composição de guetos políticos que facilitam bastante
os processos de estímulo ao consumo de massas, o cerceamento das
pautas discursivas de luta política ampla e a constituição de elites de
referência para estes mesmos grupos identitários. Identificar-se
claramente para identificar o inimigo é uma faca de dois gumes, pois
pode induzir a erros causados pela avaliação apressada de
comportamentos individuais a partir de estereótipos coletivos. Além
disso, permite que o opressor – que tem meios e recursos para interferir
de forma ampla e massificada no comportamento – direcione as pautas,
sentimento de indignação e, principalmente, a proposição de soluções
(para eles) aceitáveis das contradições que se apresentam. Nessa
lógica, indivíduos se atacam entre si, sem perceber que são subtraídos
em tenebrosas transações…
Conclusão
O debate identitário é extremamente importante, pois através dele
identificamos como o indivíduo e grupos de indivíduos com
características semelhantes são oprimidos, no entanto, não é único
debate necessário, pois há outras instâncias e modos de produção da
vida que não são atravessados por esse viés. No fim das contas, a pauta
identitária, quando voltada exclusivamente para si mesma, tem
esvaziado o debate político e o tornado facilmente cooptável pelos
interesses do mercado, pois desuniversaliza as pautas enquanto
centraliza o debate no monitoramento do comportamento individual. Foca
na exclusiva construção de diferenças, deixando de lado a identificação
por semelhanças.

Ainda que seja necessário debater como cada um de nós reproduz o


racismo estrutural que dá sustento ao sistema capitalista a que está
intrinsecamente atrelado, bem como outras formas de discriminação, isso
não bastará para destruir os mecanismos que instrumentalizam a
comunicação através das redes sociais com seus algoritmos que
predeterminam critérios de visibilidade e meios de comunicação de
massa que segmentam pautas e olhares sobre os fatos. Certamente há
outros modos de comunicação possíveis – como as relações concretas –
e poder utilizar a rede mundial de computadores para pesquisa e
interação social é também um avanço em relação a precariedade de
comunicação existente em períodos históricos anteriores. No entanto, se
não há estímulo ao pensamento crítico e a um debate que não se prenda
a processos tautológicos – como tem sido predominantemente o da
perspectiva identitária – aqueles que têm meios para tentar distorcer
nosso olhar em favor de seus próprios interesses não hesitarão um
segundo em fazê-lo. Dessa forma, fica cada vez mais afastada a
possibilidade de organização coletiva em direção a mudanças radicais
nos modos de organização humana.

Obviamente, os movimentos identitários não são os únicos e principais


responsáveis pelas mazelas sociais e políticas que nos assolam. A
proposta desse artigo é apontar as armadilhas que o identitarismo traz
quando inserido na lógica do sistema capitalista, notadamente para os
setores identitários da esquerda, pois acreditamos que o debate nesse
espectro é urgente e necessário. Justamente porque classe e raça (bem
como gênero, sexualidade e outras formas de representação de minorias
políticas) estão associadas de forma intrínseca ao processo de
manutenção da exploração capitalista, é que a constituição de
identidades coletivas deve manter sempre em perspectiva modos
alternativos de associação política, notadamente aqueles que se
constituam pela classe – haja vista que sua maior abrangência
desestimula sectarismos – mantendo exposto o elemento central de
exploração em última instância: o trabalho humano. Dessa forma, no
contexto do livro de Haider (2019), ao considerar a perspectiva de raça
atrelada à de classe pela associação inseparável entre racismo e
capitalismo, será possível, encontrar formas de organização amplas,
articuladas, revolucionárias e emancipatórias.

Referências
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Horizonte: Editora UFMG, 2002.
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MBEMBE, Achille. A era do humanismo está terminando. Tradução:
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Último acesso em 07 nov 2020.
MOURA, Arthur. Identitarismo: a nova cara do liberalismo. YouTube.
202 Filmes. Exibido em 24 out 2020. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=uunxsMOMwtg>. Último acesso em
07 nov 2020.
NASCIMENTO, Ricardo. CHALHOUB, Rafael Bittencourt Nacif.
Armadilha da Identidade. Apresentação do grupo de estudos Concreto
Pensado. YouTube. Bacamarte Produções. Exibido em 25 out 2020.
Disponível em <https://www.youtube.com/bacamarteproducoes>. Último
acesso em 07 nov 2020.
SILVEIRA, Luís Gustavo Guadalupe. Alienação Artística: Marcuse e a
ambivalência política da arte. 2009. Dissertação de Mestrado em
Filosofia Social e Política. Uberlândia: UFU. 166 pp.

Artur Moura é Cineasta (202 filmes), formado em História pela UFF,


mestre em Educação pela FFP-UERJ.
Ricardo Nascimento é Tecnólogo em Marketing e Bacharel em
Administração pela UNESA, graduando em Ciências Sociais pela
UFF e membro fundador do coletivo Bacamarte.
 Crítica
 Antirracismo, Capitalismo, capitalismo
negro, Identidade, Identidade Negra, Identitarismo, Movimento
Negro, Nacionalismo, Poder negro, populismo, Socialismo

Como surgiu a política identitária e


qual sua relação com a ideologia
liberal?
 18 de setembro de 2021  Destaque, Mundo Combate Racismo Ambiental

Este fenômeno que parece ter surgido com o Occupy Wall Street, o Me too e o Black Lives
Matter, vem de muito antes

Carolina Maria Ruy, no Brasil de Fato 

Igualdade de gênero, combate ao racismo, preservação ambiental e tudo mais que se


relaciona com a evolução e emancipação humana faz parte do repertório de partidos e
de movimentos progressistas, como os sindicatos e o movimento estudantil. São
pautas que se aprimoram ao longo do tempo de acordo com as prioridades que o
momento histórico exige. Assim, secretarias especiais e organizações paralelas
convivem e complementam a luta central contra a exploração e pela dignidade do
trabalhador.

Nos últimos anos, entretanto, o ativismo social com base em traços específicos de
identidade parece distanciar-se e, mais do que isso, querer se sobrepor ao eixo em
torno do qual a esquerda tradicional se apoia: a luta de classes. Hoje a pauta
identitária interdita o debate político e seu discurso sectário e conceitual se afasta do
diálogo popular.

:: Artigo | Filmes sobre a atualidade mostram ódio e repúdio aos direitos humanos;
veja lista ::

Este fenômeno que parece ter surgido de movimentos como o Occupy Wall Street, o Me
too e o Black Lives Matter, vem de muito antes. As sementes desta militância
puramente identitária germinaram no Pós Guerra, se desenvolveram nos movimentos
americanos e europeus da década de 1960 e se consolidaram com o fim da Guerra
Fria.

No artigo “Moral do mercado: quando os direitos humanos cobrem a


economia neoliberal”, o articulista Graham Holton comenta como a economia liberal
se apropriou da concepção moderna dos direitos humanos, que está na raiz desse
ativismo civil e individualista. Ao comentar o livro “The Morals of the Market: Human
Rights and the Rise of Neoliberalism”, publicado em 2019, pela Verso Books (sem
tradução para o português), de Jessica Whyte, ele afirma que “pensadores neoliberais
usaram os direitos humanos para desafiar o socialismo, a social democracia e o
planejamento estatal”.

:: Artigo | Ku Klux Klan, Brilhante Ustra e Adolf Hitler: referências do bolsonarismo ::

Holton aponta o início da Guerra Fria, em 1947, como um marco e afirma que já
naquela época a então URSS denunciou a hipocrisia dos EUA que sustentava um
discurso baseado nos direitos humanos como a “linguagem moral do mercado
competitivo”, mas mantinha em seu território a segregação racial no Sul (o apartheid
estava em alta), a falta de direito das mulheres, as numerosas invasões a Países
estrangeiros e as más condições oferecidas aos trabalhadores e aos povos indígenas.
Soma-se à hipocrisia deste discurso pretensamente humanitário o fato de os EUA ter
sido o único país do mundo a fazer uso da bomba atômica, jogando-a nas cidades
japonesas de Hiroshima e Nagasaki  em 6 e 9 de agosto de 1945.

Na década de 1960, no auge da Guerra do Vietnã, a luta pelos direitos civis,


movimentos pacifistas e movimentos estudantis deram o contorno de uma “nova
esquerda”. Para o jornalista José Carlos Ruy aquele contexto foi o prenúncio do
neoliberalismo que viria nas décadas seguintes. Ele cita Eric Hobsbawn ao dizer que
“assumia-se tacitamente que o mundo consistia em vários bilhões de seres humanos
definidos pela busca de desejo individual” (Hobsbawn: 1995). Como exemplo da nova
esquerda Ruy aborda a trajetória do ativista Jerry Rubin. Ex-líder estudantil, Rubin
liderou alguns dos primeiros protestos contra a Guerra do Vietnã e foi fundador
do Youth International Party (Partido Internacional da Juventude). “Menos de duas
décadas depois ele tornou-se um capitalista de sucesso, investidor da Apple
Computers e teórico dos yuppies individualistas dos anos 80. Passou então a defender
que a criação de riquezas é a verdadeira revolução americana”, conclui.

:: Artigo | Sete anos do 7 a 1, e a metáfora de um país em queda livre ::

Com o fim da Guerra Fria na década de 1990 e a aparente hegemonia do


neoliberalismo, os americanos impuseram sua ideologia como verdade universal. Esta
ideologia baseada no individualismo, na alienação e na despolitização passou a
bombardear diuturnamente o cidadão comum e isso reverberou de forma acentuada
no Brasil.

Simultaneamente, a economia de mercado acirrava o desemprego e desencadeava


um processo de precarização das relações de trabalho, acelerando a desarticulação
entre os trabalhadores. Massificou-se o fenômeno da terceirização ao passo que
diminuiu a proteção do Estado e o trabalhador se viu cada vez mais oprimido pela
insegurança financeira e pela ameaça do desemprego.
Com a classe trabalhadora estrategicamente cindida, setores progressistas, sobretudo
da classe média, passaram a perder protagonismo entre o operariado e a dar cada vez
mais espaço a um ativismo segmentado, muitas vezes com base na busca por uma
suposta essência individual vendida pelo novo capitalismo. Passaram a adquirir um
caráter mais liberal, que na aparência se expressa como liberdade individual, mas na
essência traz também o sentido do livre mercado.

No artigo “A falsa dicotomia entre pautas identitárias e economia”, a cientista política


Tatiana Vargas Maia afirma que “a nova agenda política que emerge no século XXI,
focada em questões étnico-raciais e de gênero pulveriza as questões políticas e sociais
em pautas identitárias parciais e específicas”. Ela aponta que a crítica que esse debate
suscita é a de que “o foco na pauta identitária, sobretudo por partidos e movimentos
sociais de esquerda, provoca uma fragmentação do campo político, o que leva a um
paradoxal enfraquecimento desse campo”. E rebate essas críticas dizendo que “a
distinção entre economia e identidade é um binarismo popular que simplifica e
falsifica a discussão a respeito da cidadania contemporânea” e que os movimentos
identitários são “alguns dos movimentos políticos mais efervescentes e democráticos
das últimas décadas, como o movimento negro e o movimento feminista, que vêm
oxigenando a política e a sociedade brasileira de forma interessante e necessária”.

Mas a crítica que deve ser feita ao ativismo puramente identitário não é apenas que
ele pulveriza as questões políticas e sociais e fragmenta o campo progressista.

Os problemas são mais profundos e estão mais ligados ao conteúdo do que à forma.
Para resumir, podemos levantar que, em primeiro lugar, esse discurso que se
considera mais evoluído que um mero “binarismo popular” se distancia da realidade
do povo trabalhador, preso a urgências como emprego, renda e sobrevivência.

Em segundo lugar, como colocado por Graham Holton, o ideal de sociedade


desenhado pelo liberalismo no pós guerra e imposto como farol e como verdade pelos
americanos, é comumente usado para atacar regimes fora do capitalismo, sobretudo
países socialistas como Cuba e China. Isso fica claro em um trecho do artigo “A guerra
contra a China substituirá a Guerra ao Terror?”, de Thomas L. Friedman, que coloca
valores americanos liberais como “valores universais”. O trecho diz: “Não há dúvida de
que a melhor maneira de os Estados Unidos contrabalançarem a China é fazer aquilo
que a potência asiática mais odeia: confrontá-la com uma ampla coalizão
transnacional, baseada em valores universais compartilhados, como o estado de
direito, o livre comércio, os direitos humanos e os padrões básicos de contabilidade”.

Em terceiro lugar a concepção identitária desprovida de uma base classista renega o


fato de que a esquerda tradicional sempre se propôs a tratar de qualquer questão que
diz respeito à evolução humana e à evolução social, como as questões de gênero,
racial, além da questão ambiental. Mas o faz a partir da ideia da superação da
exploração capitalista.

E, em quarto lugar, a pauta identitária comumente aponta para soluções estéticas ao


invés de enfrentar as raízes dos problemas.

O efeito rebote que isso tem causado é assustador. É notório que nas eleições
americanas de 2016 trabalhadores afetados pela crise de 2008 viabilizaram a vitória
do empresário de extrema direita Donald Trump. A mesma linha de raciocínio pode se
aplicar à eleição de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018, lembrando que a chapa que o
confrontou foi fortemente influenciada pela pauta identitária.

Em 2020, mesmo com sua derrota, Trump conquistou uma votação expressiva entre
negros e latinos. No artigo “Voto de não brancos em Trump revela armadilha do
identitarismo“, a jornalista Maria Cristina Fernandes mostra que o perfil antissocial de
Trump não impediu “que ele tivesse, em relação à eleição de 2016, uma votação
proporcionalmente maior entre latinos, negros e asiáticos. Foi a melhor votação
republicana entre os não brancos dos últimos 60 anos”, mesmo depois da comoção
mundial provocada pela morte de George Floyd e de todo o vigor do Black Lives
Matter.

Isso mostra que o identitarismo tem uma receptividade maior entre a classe média
dos centros urbanos, com maior poder de consumo, mas afasta o povo que acaba
encontrando acolhimento em políticos simplórios que vendem soluções fáceis como
Trump e Bolsonaro.

Dissociar a luta de classes do ativismo social faz com que os militantes não se
identifiquem como trabalhadores, criando uma barreira entre uma militância seleta
que se vê como “vanguarda” e o povo.

Mas para ser vanguardista e revolucionária a esquerda deve ser crítica a esse discurso
liberal e tomar cuidado com as fronteiras tênues entre ele e as chamadas pautas
identitárias. Deve considerar o povo oprimido e a classe trabalhadora. Não dividir esse
povo entre mulheres, negros, indígenas, homossexuais etc. As questões raciais,
ambientais e de gênero só são revolucionárias quando abordadas a partir da raiz das
desigualdades e das injustiças históricas. Este é um caminho mais complexo e que
encontra grande resistência, uma vez que abala as estruturas sociais. Mas é o que
diferencia a esquerda progressista da direita liberal.

*Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical.

Edição: Vivian Virissimo

Imagem: Salvador Dali, O sono (1937)

Resenha — Como a
política identitária dividiu
a esquerda: uma entrevista
com Asad Haider
Amanda Santos

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Aug 3, 2020 · 2 min read

No livro “Mistaken Identity: Race and Class in the Age of


Trump”, Asad Haider faz uma rigorosa análise acerca das
políticas raciais norte-americanas e da história do país,
debatendo a relação mutável entre identidade pessoal e ação
política.

Haider argumenta que a política identitária contemporânea


neutraliza os movimentos contra a opressão social, em vez
de contribuir com a luta de base contra o racismo.

Para ele, a política identitária reforça as mesmas normas


que critica. O livro é encerrado apontando que o objetivo
final dos movimentos de massa é o paradoxo dos direitos.
Para combater tal objetivo, o autor sugere a retomada de um
universalismo insurgente, em que os grupos oprimidos não
se posicionam como vítimas passivas, mas como atores
políticos.

Na entrevista, Haider afirma que foi no ano de 1977 que


ocorreu a transição da política identitária como prática
revolucionária para uma ideologia liberal individualista.

Para ele, baseado em sua experiência de vida, não podemos


reduzir a identidade a algo fixo. Uma política que busca
fazer isso seria, então, um desserviço tanto para as pessoas
quanto para as histórias de mistura e dinamismo.

Em sua experiência com o ativismo universitário, aprendeu


sobre o marxismo por meio do movimento Black Power.
Atualmente, entretanto, muitos agem como se houvesse
incompatibilidade entre os dois termos, o que o motivou a
escrever o livro. A questão racial, portanto, deixa de
incorporar um programa de emancipação geral para tornar-
se um catalisador de polarização, fragmentação e derrota.

Por fim, conclui que, para que a política identitária seja


levada de volta às suas origens radicais, mesmo dentro de
um discurso político e uma forma de organização
contemporâneos, precisamos estar abertos a compreender
que nossas identidades não são a base de nada.

Para Haider, é necessário aceitarmos os aspectos instáveis e


multifacetados da nossa identidade, criando novas formas
de nos relacionarmos que superem a fragmentação para
qual a identidade conduz nos dias de hoje.

Referência bibliográfica

KUMAR, Rashmee. Como a política identitária dividiu a


esquerda: uma entrevista com Asad Haider. The Intercept,
2018. Disponível em:
<https://theintercept.com/2018/06/01/politica-identitaria-
asad-haider/?
fbclid=IwAR2kcr49Lve0z5JijG86UbNwYl2rBacnaYmJtTO
MTrfIg0R9oG2PaTahOAI>

Escrito em dezembro de 2018 para a disciplina de Poéticas


Visuais Contemporâneas

A política identitária e a
ideologia liberal
Nos últimos anos, entretanto, o ativismo social com base em traços
específicos de identidade parece distanciar-se e querer se sobrepor
ao eixo em torno do qual a esquerda tradicional se apoia: a luta de
classes

por Carolina Maria Ruy


Publicado 16/09/2021 21:04 | Editado 16/09/2021 21:22

Fotomontagem feita com as fotos de: Getty Images


Igualdade de gênero, combate ao racismo, preservação ambiental e
tudo mais que tange à evolução e emancipação humana faz parte do
repertório de partidos e de movimentos progressistas, como os
sindicatos e o movimento estudantil. São pautas que se aprimoram
ao longo do tempo de acordo com as prioridades que o momento
histórico exige. Assim, secretarias especiais e organizações paralelas
convivem e complementam a luta central contra a exploração e pela
dignidade do trabalhador.

Nos últimos anos, entretanto, o ativismo social com base em traços


específicos de identidade parece distanciar-se e, mais do que isso,
querer se sobrepor ao eixo em torno do qual a esquerda tradicional
se apoia: a luta de classes. Hoje a pauta identitária interdita o debate
político e seu discurso sectário e conceitual se afasta do diálogo
popular.

Este fenômeno que parece ter surgido de movimentos como o


Occupy Wall Street, o Me too e o Black Lives Matter, vem de muito
antes. As sementes desta militância puramente identitária
germinaram no Pós Guerra, se desenvolveram nos movimentos
americanos e europeus da década de 1960 e se consolidaram com o
fim da Guerra Fria.

No artigo “Moral do mercado: quando os direitos humanos cobrem a


economia neoliberal (1)”, o articulista Graham Holton comenta como
a economia liberal se apropriou da concepção moderna dos direitos
humanos, que está na raiz desse ativismo civil e individualista. Ao
comentar o livro “The Morals of the Market: Human Rights and the
Rise of Neoliberalism (2)”, de Jessica Whyte, ele afirma que
“pensadores neoliberais usaram os direitos humanos para desafiar o
socialismo, a social democracia e o planejamento estatal”.

Holton aponta o início da Guerra Fria, em 1947, como um marco e


afirma que já naquela época a então URSS denunciou a hipocrisia dos
EUA que sustentava um discurso baseado nos direitos humanos
como a “linguagem moral do mercado competitivo”, mas mantinha
em seu território a segregação racial no Sul (o apartheid estava em
alta), a falta de direito das mulheres, as numerosas invasões a Países
estrangeiros e as más condições oferecidas aos trabalhadores e aos
povos indígenas. Soma-se à hipocrisia deste discurso pretensamente
humanitário o fato de os EUA ter sido o único país do mundo a fazer
uso da bomba atômica, jogando-a nas cidades japonesas de
Hiroshima e Nagasaki em 6 e 9 de agosto de 1945.

Segregação racial nos EUA I Foto: Russel Lee

Na década de 1960, no auge da Guerra do Vietnã, a luta pelos direitos


civis, movimentos pacifistas e movimentos estudantis deram o
contorno de uma “nova esquerda”. Para o jornalista José Carlos Ruy
(3) aquele contexto foi o prenúncio do neoliberalismo que viria nas
décadas seguintes. Ele cita Eric Hobsbawn ao dizer que “assumia-se
tacitamente que o mundo consistia em vários bilhões de seres
humanos definidos pela busca de desejo individual” (Hobsbawn:
1995). Como exemplo da nova esquerda, Ruy aborda a trajetória do
ativista Jerry Rubin. Ex-líder estudantil, Rubin liderou alguns dos
primeiros protestos contra a Guerra do Vietnã e foi fundador do
Youth International Party (Partido Internacional da Juventude).
“Menos de duas décadas depois ele tornou-se um capitalista de
sucesso, investidor da Apple Computers e teórico dos yuppies
individualistas dos anos 80. Passou então a defender que a criação de
riquezas é a verdadeira revolução americana”, conclui.

Com o fim da Guerra Fria na década de 1990 e a aparente hegemonia


do neoliberalismo, os americanos impuseram sua ideologia como
verdade universal. Esta ideologia baseada no individualismo, na
alienação e na despolitização passou a bombardear diuturnamente o
cidadão comum e isso reverberou de forma acentuada no Brasil.

Simultaneamente, a economia de mercado acirrava o desemprego e


desencadeava um processo de precarização das relações de trabalho,
acelerando a desarticulação entre os trabalhadores. Massificou-se o
fenômeno da terceirização ao passo que diminuiu a proteção do
Estado e o trabalhador se viu cada vez mais oprimido pela
insegurança financeira e pela ameaça do desemprego.
Com a classe trabalhadora estrategicamente cindida, setores
progressistas, sobretudo da classe média, passaram a perder
protagonismo entre o operariado e a dar cada vez mais espaço a um
ativismo segmentado, muitas vezes com base na busca por uma
suposta essência individual vendida pelo novo capitalismo. Passaram
a adquirir um caráter mais liberal, que na aparência se expressa
como liberdade individual, mas na essência traz também o sentido do
livre mercado.

No artigo “A falsa dicotomia entre pautas identitárias e economia (4)”,


a cientista política Tatiana Vargas Maia afirma que “a nova agenda
política que emerge no século XXI, focada em questões étnico-raciais
e de gênero pulveriza as questões políticas e sociais em pautas
identitárias parciais e específicas”. Ela aponta que a crítica que esse
debate suscita é a de que “o foco na pauta identitária, sobretudo por
partidos e movimentos sociais de esquerda, provoca uma
fragmentação do campo político, o que leva a um paradoxal
enfraquecimento desse campo”. E rebate essas críticas dizendo que “a
distinção entre economia e identidade é um binarismo popular que
simplifica e falsifica a discussão a respeito da cidadania
contemporânea” e que os movimentos identitários são “alguns dos
movimentos políticos mais efervescentes e democráticos das últimas
décadas, como o movimento negro e o movimento feminista, que
vêm oxigenando a política e a sociedade brasileira de forma
interessante e necessária”.

Protestos em razão da morte de George Floyd,


nos EUA I Foto: Simon Dawnson/Reuters

Mas a crítica que deve ser feita ao ativismo puramente identitário não
é apenas que ele pulveriza as questões políticas e sociais e fragmenta
o campo progressista.

Os problemas são mais profundos e estão mais ligados ao conteúdo


do que à forma. Para resumir, podemos levantar que, em primeiro
lugar, esse discurso que se considera mais evoluído que um mero
“binarismo popular” se distancia da realidade do povo trabalhador,
preso a urgências como emprego, renda e sobrevivência.

Em segundo lugar, como colocado por Graham Holton, o ideal de


sociedade desenhado pelo liberalismo no pós guerra e imposto como
farol e como verdade pelos americanos, é comumente usado para
atacar regimes fora do capitalismo, sobretudo países socialistas como
Cuba e China. Isso fica claro em um trecho do artigo “A guerra contra
a China substituirá a Guerra ao Terror? (5)”, de Thomas L. Friedman,
que coloca valores americanos liberais como “valores universais”. O
trecho diz: “Não há dúvida de que a melhor maneira de os Estados
Unidos contrabalançarem a China é fazer aquilo que a potência
asiática mais odeia: confrontá-la com uma ampla coalizão
transnacional, baseada em valores universais compartilhados, como o
estado de direito, o livre comércio, os direitos humanos e os padrões
básicos de contabilidade”.

Em terceiro lugar a concepção identitária desprovida de uma base


classista renega o fato de que a esquerda tradicional sempre se
propôs a tratar de qualquer questão que diz respeito à evolução
humana e à evolução social, como as questões de gênero, racial, além
da questão ambiental. Mas o faz a partir da ideia da superação da
exploração capitalista.

E, em quarto lugar, a pauta identitária comumente aponta para


soluções estéticas ao invés de enfrentar as raízes dos problemas.

Parada LGBT em São Paulo I Foto: Reprodução

O efeito rebote que isso tem causado é assustador. É notório que nas
eleições americanas de 2016 trabalhadores afetados pela crise de
2008 viabilizaram a vitória do empresário de extrema direita Donald
Trump. A mesma linha de raciocínio pode se aplicar à eleição de Jair
Bolsonaro no Brasil em 2018, lembrando que a chapa que o
confrontou foi fortemente influenciada pela pauta identitária.

Em 2020, mesmo com sua derrota, Trump conquistou uma votação


expressiva entre negros e latinos. No artigo “Voto de não brancos em
Trump revela armadilha do identitarismo (6)”, a jornalista Maria
Cristina Fernandes mostra que o perfil antissocial de Trump não
impediu “que ele tivesse, em relação à eleição de 2016, uma votação
proporcionalmente maior entre latinos, negros e asiáticos. Foi a
melhor votação republicana entre os não brancos dos últimos 60
anos”, mesmo depois da comoção mundial provocada pela morte de
George Floyd e de todo o vigor do Black Lives Matter.

Isso mostra que o identitarismo tem uma receptividade maior entre a


classe média dos centros urbanos, com maior poder de consumo,
mas afasta o povo que acaba encontrando acolhimento em políticos
simplórios que vendem soluções fáceis como Trump e Bolsonaro.

Dissociar a luta de classes do ativismo social faz com que os


militantes não se identifiquem como trabalhadores, criando uma
barreira entre uma militância seleta que se vê como “vanguarda” e o
povo.

Mas para ser vanguardista e revolucionária a esquerda deve ser


crítica a esse discurso liberal e tomar cuidado com as fronteiras
tênues entre ele e as chamadas pautas identitárias. Deve considerar o
povo oprimido e a classe trabalhadora. Não dividir esse povo entre
mulheres, negros, indígenas, homossexuais etc. As questões raciais,
ambientais e de gênero só são revolucionárias quando abordadas a
partir da raiz das desigualdades e das injustiças históricas. Este é um
caminho mais complexo e que encontra grande resistência, uma vez
que abala as estruturas sociais. Mas é o que diferencia a esquerda
progressista da direita liberal.

 (1) Publicado no People´s World, em 30/08/2021


(https://peoplesworld.org/article/morals-of-the-market-when-
human-rights-cover-for-neoliberal-hegemony/) e reproduzido
no Rádio Peão Brasil (https://radiopeaobrasil.com.br/moral-do-
mercado-quando-os-direitos-humanos-cobrem-a-economia-
neoliberal/).
 (2) Publicado em 2019, pela Verso Books (sem tradução para o
português).
 (3) Em “A Revolução do Eu” publicado no Vermelho, em 2018
(https://vermelho.org.br/2018/05/11/1968-a-revolucao-do-eu/).
 (4) Publicado no El País, em 08/11/2018
(https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/06/opinion/154154443
1_898684.html).
 (5) Publicado no The New York Times e reproduzido no Estadão,
em 09/09/2021
(https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,a-guerra-
contra-a-china-substituira-a-guerra-ao-terror-leia-
artigo,70003834984).
 (6) Publicado no Valor Econômico, em 13/11/2020
(https://valor.globo.com/eu-e/coluna/maria-cristina-fernandes-
voto-de-nao-brancos-em-trump-revela-armadilha-do-
identitarismo.ghtml)

Eleutério F. S. Prado

Professor titular aposentado da Faculdade de Economia e Administração da USP

Divinização do dinheiro
"A sociedade do consumo é o último recurso de sobrevivência do capitalismo", escreve

o professor de Economia da USP Eleutério Prado

17 de setembro de 2021, 16:37 h Atualizado em 17 de setembro de 2021, 17:05


   

 6
Apoie o 247  Clube de Economia

Por Eleutério Prado 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

Se a mercadoria é a forma elementar do valor; o dinheiro é a forma geral do valor no

modo de produção capitalista. O valor, portanto, é aí a essência abstrata da riqueza; esta,

portanto, se manifesta em ambas essas formas – ainda que diferentemente: como forma

relativa na mercadoria e como forma equivalente no dinheiro. Essas duas formas, em

última análise, são formas da relação social de troca – mediações da relação de capital.

O próprio valor, portanto, é por excelência forma das relações sociais que constituem

esse modo de produção. Note-se, agora, que há uma maneira sintética de apresentar tudo

isso; eis que ela separa por uma barra a aparência da essência da mercadoria:

Como se vê na segunda expressão, o dinheiro tem um valor de uso funcional, ou seja,


cumpre várias funções imprescindíveis à reprodução do próprio capitalismo: meio de

expressão do valor em geral, meio de circulação, meio de entesouramento, meio de

empréstimo e veículo formal do valor que se valoriza.  Se o dinheiro-mercadoria (ouro,

por exemplo) é o lugar do fetiche, o dinheiro fiduciário, ainda como forma geral do

valor, é o lugar da divinização na sociedade moderna. Apesar disso, boa parte da teoria

econômica trata o dinheiro como algo quase supérfluo – mas não toda.

Divinização? Será? Se essa parece ser uma tese estranha para muitos, que se deixe então

à própria teoria econômica o trabalho de comprová-la. E esta última, como se verá,

parece confirmá-la. Por enquanto, saiba-se que “um sentimento de algo ilimitado, sem

barreiras, como que oceânico” pode assaltar a compreensão de mundo do ser humano
em geral na sociedade moderna. Tal como mostrou Freud, esse tipo de anseio pode

sobrevir até mesmo na psique de intelectuais altamente capacitados, na forma de

respostas ideativas à insatisfação, ao desamparo e à impotência com o estado das coisas,

com a difundida perversidade da sociedade realmente existente.[i]

Antes disso é preciso fazer alguns esclarecimentos. Se a mercadoria é valor e não-valor,

ou seja, a contradição entre valor e valor de uso, ela aparece no mercado como valor de

uso e valor de troca. Enquanto valor de uso ela consiste de algo que tem uma

materialidade natural, mas enquanto valor, a sua materialidade é puramente social, ou

seja, da ordem do significado – de um significado posto objetivamente no

funcionamento do sistema econômico. O valor aparece sob a forma de valor de troca; o

valor é o conteúdo do valor de troca. Tomando a mercadoria com um signo invertido[ii] –

ou seja, de um modo materialista –, tem-se:


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Posto isso, é preciso dizer que fetiche na sociedade moderna vem a ser o produto do

trabalho humano posto na forma de mercadoria. Consiste propriamente em atribuir o

caráter de valor ao valor de uso, identificando assim a forma valor com o suporte dessa

forma, ou seja, com o valor de uso. Se a mercadoria é tomada desse modo, o valor de

troca passa a estar fundado no valor de uso, mais propriamente, em suas propriedades

que satisfazem necessidades humanas. O valor, pois, parece interno ao valor de uso. De

qualquer modo, um exemplo clássico é pensar que o ouro como tal é dinheiro. Em geral,

tem-se:

O dinheiro-mercadoria, portanto, é o lugar do fetiche. O valor é “suprimido” como

essência do valor de troca. Em consequência, só fica a aparência do signo, isto é, o

significante, agora como valor ele mesmo.

Já a divinização é produto do pensar que compreende a mercadoria como valor de uso

que ganha valor de troca nos mercados, entendido ele mesmo, portanto, como valor. O

valor de troca é, assim, tomado como uma mera convenção criada pelo sujeito
“mercado”; e o valor de uso ou bem, em consequência, se torna um mero portador do

valor de troca. Este, sendo definido pelas interação de mercado entre produtores e

consumidores, afigura-se externo ao bem enquanto tal. Ora, essa idealização põe o

mercado e seus elementos constituintes como entes divinos. Em particular, põe o

dinheiro fiduciário como uma coisa divina, ou seja, como valor simplesmente.

Agora, veja-se que essa tese que aqui se defende não consiste numa acusação sem

fundamento, numa crítica externa ao modo de pensar dos economistas; não se trata, em

consequência, de uma mera desqualificação ideológica. Ao contrário, ela pode ser

provada com base em textos de autores que não criticam o sistema capitalista enquanto

tal, mas apenas os seus resultados aparentes em termos de desemprego, repartição da

renda etc. Aqui se emprega para essa finalidade dois escritos de economistas que

pertencem ao campo da Teoria Monetária Moderna (TMM). O primeiro deles vem a ser

um livro de Warren Mosler, o qual foi escrito com o objetivo de apontar o que considera

serem fraudes no campo da política econômica.[iii]

A primeira delas consiste em pensar que o Estado se encontra limitado em seus gastos

pela soma dos impostos que arrecada com os empréstimos que toma junto ao setor

privado – principalmente junto aos capitalistas. De fato, o Estado não enfrenta essa

restrição orçamentária que sempre se impõe para as empresas e as famílias: eis que pode

se financiar emitindo o dinheiro fiduciário que ele próprio cria institucionalmente. Daí

que Mosler diga: “o governo federal sempre pode gastar e pagar em seu própria moeda

corrente, pouco importa o tamanho do déficit ou a insuficiência das receitas que obtém”.

Mas, não haveria outras restrições além daquela propriamente monetária? E essa é uma

questão crucial que só poderá ser respondida mais à frente.


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Esse autor sabe que o Estado não deve criar mais demanda efetiva do que pode a oferta

agregada atender; pois, se o fizer, ele gerará inflação. Como acredita, entretanto, que

esse limite é dado pelo “pleno-emprego” da força de trabalho e da capacidade de


produção, julga que há uma ampla margem para promover o crescimento econômico

produzindo grandes déficits orçamentários. Diante da crise dos anos 1970, Mosler

acreditou que seria possível “promover a restauração da prosperidade americana”

simplesmente financiando esse déficit por meio da emissão de dinheiro fiduciário.

Como?

Ora, ele apresentou três propostas realmente fantásticas, as quais mostra em seu livro:

1ª) retirar todos os impostos sobre salários das folhas de pagamentos de todas as

organizações estatais e privadas; 2ª) fazer um fundo com 150 bilhões de dólares para os

governos estaduais para que eles pudessem criar empregos para todos os que quiserem

trabalhar; 3ª) criar um programa de emprego com salário mínimo para todos os que

estivessem fora da força de trabalhadores, mas que estavam querendo nela entrar. Em

conjunto, essas três propostas pretendiam fazer um milagre e este seria produzido

meramente por meio da emissão de moeda. Ora, assim, ele supõe que o dinheiro seja

todo poderoso, já que tem, por si mesmo, a capacidade de restaurar uma prosperidade

que fora perdida. Mesmo que não o diga, ele toma essa aptidão extraordinária como

uma força oceânica, divina

Agora, é preciso examinar certas afirmações de um livro de Ann Pettifor que se chama

de modo bem ilustrativo de O poder do dinheiro.[iv] Para ela, “a profissão de economia

não parece compreender o dinheiro, os bancos e o sistema de crédito”. Ora, de modo

peculiar, essa autora considera o dinheiro como uma mera “construção social” cuja

“produção é elástica”, ou seja, que não sofre grandes restrições normalmente. O seu

único limite estaria na capacidade de produção máxima que seria improvável atingir,

mas que, se fosse por ventura atingida, haveria inflação.

De qualquer modo, essa autora julga que o “poder de criar dinheiro vem do ar”, ou seja,

algo que cai do céu no balanço dos bancos centrais e dos bancos comerciais. O dinheiro

é para ela um “grande avanço civilizacional” já que “permite fazer o que se quer dentro

dos limites dos recursos naturais e humanos. É assim, porque o dinheiro ou o crédito
não existe como resultado da atividade econômica, como muito acreditam… o dinheiro

cria a atividade econômica”. Será? Teria o dinheiro essa capacidade divina ou estaria

essa autora movida por um desejo reformador que apenas pode ser satisfeito num

mundo imaginário?

Ora, dinheiro não é nem criado por um poder exógeno ao sistema econômico nem surge

do nada – apesar da aparência em contrário, algo que apenas se sustenta quando a sua

emissão é tomada isoladamente. Ora, a produção de dinheiro está de fato integrada

como parte intrínseca do sistema econômico. É-lhe, pois, endógena. A criação do

dinheiro obedece a uma lógica que é interna ao devir desse complexo social que inclui a

produção e a circulação de mercadoria, o sistema financeiro como um todo, assim como

o Estado. E essa lógica, como bem se sabe, visa sobretudo a geração de lucro. Se não é

determinista, se se impõe por meio da política e da tecno-política, está voltada para a

produção e a reprodução do capital – que, como se sabe, é a causa motora do modo de

produção capitalista.

Para os adeptos da teoria monetária moderna, a emissão de dinheiro parece advir

meramente de opções de política econômica ou, de modo ainda mais redutivo, parece

ser uma questão que se resolve no campo das teorias econômicas. Para propor reformas

miraculosas, eles sempre começam apontando erros nas crenças dos economistas e dos

políticos. Ao fazê-lo, eles cometem um erro ainda maior que consiste em ignorar a

natureza do sistema econômico expandido, que não pode deixar de incluir o Estado.

Como foi apontado por Anwar Shaikh[v], ignoram as conexões entre o gasto estatal, o

financiamento desse gasto, o nível de emprego resultante com a rentabilidade do capital

e com as necessidades de sua acumulação – que é insaciável. Ao fazê-lo, ignoram

também a natureza conflitiva dos interesses que movem as classes sociais e suas

frações.

Grosso modo, a consideração dos seguintes pontos mina a pretensão salvadora do

capitalismo que atravessa toda a teoria monetária moderna: (a) pleno emprego aparente
não pode ser atingido, senão raramente e por pouco tempo, na economia capitalista. Eis

que, se acontece como evento, isso diminui drasticamente o poder de barganha dos

capitalistas frente o dos trabalhadores. Um alto nível de emprego tende a elevar os

salários reais e, assim, a reduzir as taxas de lucro; (b) A formação de preços depende do

regime da concorrência que, atualmente, se dá sob o comando dos oligopólios. O efeito

deflacionário do aumento da produtividade, algo ocorrente no passado, foi suprimido

historicamente de tal modo que a concorrência, hoje, se dá sob uma elevação rastejante,

mas constante, dos preços; (c) Em consequência, uma aceleração “perigosa” da inflação

pode surgir como resposta da concorrência entre as empresas capitalistas em virtude de

uma queda da lucratividade; episodicamente, pode surgir de restrições na oferta por

outras causas;

(d) O Estado não é uma instituição “benevolente” que esta “fora” do sistema econômico

e pode, por isso, conduzi-lo sabiamente visando o “bem-estar da sociedade como um

todo”. Ao contrário, o Estado está também atravessado pelas contradições inerentes às

relações sociais entre as classes que existem no capitalismo. Procura, entretanto,

constranger de algum modo as suas manifestações agonísticas, preferencialmente em

detrimento dos trabalhadores.

(e) Como o Estado está inexoravelmente comprometido com a acumulação de capital –

industrial e financeira – a emissão monetária feita pelos bancos está condicionada a esse

mesmo objetivo. A emissão de dinheiro para outros objetivos entra em conflito com a

natureza do capitalismo e sofre, por isso, uma oposição ferrenha das classes dominantes

por meio de seus representantes na mídia e nas instituições políticas.

Os adeptos da teoria monetária moderna, em consequência, são críticos impotentes da

financeirização e do neoliberalismo. Eles não compreendem a ligação entre a

emergência desses processos que tem o caráter de “sujeitos” históricos e o ocaso do

capitalismo. O próprio mundo da vida social e cultural contemporâneo está marcado

pela divinização. É assim que na sociedade desencantada, que fora apresentada por Max
Weber na passagem do século XIX para o século XX, os mutantes humanos caíram

finalmente “sob a dependência de um novo deus perverso ou sadeano[vi], o Divino

Mercado, que lhes diz sempre: gozem![vii] Ora, esse apelo da sociedade do consumo é o

último recurso de sobrevivência do capitalismo, pois ele está em conflito aberto com os

imperativos ecológicos.

Notas

[i] Ver Freud, Sigmund – O mal-estar na civilização. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

[ii] Ferdinand Saussure que elevou o signo à categoria central da linguística moderna

tinha uma compreensão idealista dele e, por isso, punha o significado sobre o

significante. Note-se, porém, que o signo invertido não é o significante tal como

entendido usualmente.

[iii] Mosler, Warren – The deadly innocent frauds of economic policy. EUA: Valance

Co., 2010.

[iv] Pettifor, Ann – The production of money – How to break the power of bankers.

New York: Verso, 2017.

[v] Johnson, Nick – Teoria monetária moderna e inflação – a crítica de Anwar Shaikh.

In: https://eleuterioprado.blog/2019/04/22/a-critica-de-anwar-shaikh-a-tmm/

[vi] Adjetivo relativo ao tom obsceno, mas reveladores, dos escritos do Marquês de

Sade.

[vii] Dufour, Dany-Robert – O divino mercado – A revolução cultural liberal. Rio de

Janeiro: Companhia de Freud, 2008.

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Paulo Freire’s Ideas Are Just as
Powerful Today as Ever
BY

PETER MCLAREN
Socialist educator Paulo Freire was born one hundred years
ago today in the Brazilian city of Recife. A longtime
comrade of Freire, leading Marxist pedagogue Peter
McLaren writes about how his life and work remain deeply
relevant today.

Paulo Freire’s celebrity has made him both a target and a prophet in his home country
of Brazil. (UNICEN Argentina)
Our new issue, “The Working Class,” is out in print and online now. 
Today marks the centennial anniversary of the birth of Brazilian philosopher
Paulo Freire. Most widely known for his magisterial Pedagogy of the
Oppressed, Freire continues to be a lodestar for teachers working in poverty-
stricken communities across the globe, and for just about anyone who’s
searching for a sense of justice in an unjust world.

Every critically minded educator has at some point used Freire in their
teaching — either to gain some insight into the upside-down world of the
oppressed or as the inspiration that led them to view teaching as a way to
overturn society’s asymmetries of power and privilege. Freire’s literacy
programs for empowering peasants are now used in countries all over the
globe, and Pedagogy of the Oppressed is currently the third-most-cited work
in the social sciences, and first in the field of education.
Freire’s celebrity has made him both a target and a prophet in his home
country of Brazil. Presently, he is being singled out by far-right groups like
Movimento Brasil Livre and Revoltados Online, and president Jair Bolsonaro
claims he is behind a conspiracy of Marxist indoctrination in the Brazilian
school system.

In fact, Bolsonaro’s attempts to extinguish Freire’s memory recall US


Republican attacks on critical race theorists and Marxist educators. Bolsonaro
and the right-wing movement Escola sem Partido have encouraged school
students to film teachers during class, especially if they suspect them of
advocating left-leaning ideas or, worse still, sponsoring Freirean-inspired
political or social views. A federal deputy from Bolsonaro’s party has even
introduced a bill to strip Freire of his ceremonial title as the “patron of
Brazilian education.”

Even conservatives in the United States have jumped on the Freire-bashing


bandwagon. The Economist’s recent issue “The threat from the illiberal left”
includes an article devoted to “woke culture” that disingenuously describes
Freire’s pedagogy as written in the spirit of Mao’s Cultural Revolution. Never
mind that the article plucks its evidence from a single footnote of Pedagogy of
the Oppressed, or, more importantly, that Freire’s work was premised on
solidarity with the masses and stands against the kind of violence that became
a part of the Cultural Revolution.

So, why should Bolsonaro and the Economist target Freire? What is it about


his ideas that they find so threatening?

The Life of a Revolutionary Educator


Paulo Freire grew up in Northeastern Brazil in the state of Recife during the
global Great Depression of the 1930s. He learned to read by making letters
from the branches of the mango tree in whose shade he would sit under as a
youth. Freire’s experience of hunger and poverty at a young age eventually
caused him to fall four grades behind his classmates, and the death of Freire’s
father in 1933 only made matters worse.
Despite that, Freire eventually was able to finish his schooling, graduate from
university, earn a doctorate from the University of Recife in 1959, and be
admitted to the legal bar (although he never practiced law). He began his
professional life at the age of twenty-six, working as a Portuguese teacher at
Oswaldo Cruz Secondary School. In 1946, he was appointed director of the
Department of Education and Culture of Social Services, an employer’s
institution created to provide workers and their families in the state of
Pernambuco with health, housing, education, and leisure services. In 1961, he
became the director of the Department of Cultural Extension of Recife
University and was involved in a storied educational project aimed at dealing
with mass illiteracy in 1962.

Freire’s 1962 literacy project in Recife brought him international recognition,


particularly for his use of folk traditions and his placing importance on the
collective construction of knowledge. It was there that Freire began to create
what he called “cultural circles” — a term he preferred to “literacy classes,”
since “literacy” and “illiteracy” assumed that reading and writing were already
an integral part of the workers’ social world.

One such cultural circle saw three hundred sugarcane harvesters learn to read
and write in an astonishing forty-five days. Understandably buoyed by
Freire’s success, the Brazilian government led by president João Goulart drew
up plans to establish two thousand Freirean cultural circles that would ideally
reach five million adult learners and teach them to read within a two-year
period. It was to be a great accomplishment in a country where only half the
adult population could read and write.

That did not happen. Instead, in 1964, a right-wing military coup overthrew
Goulart’s democratically elected government. Freire was accused of preaching
communism and interrogated and arrested. He was imprisoned by the military
government for seventy days and went into self-exile for fear that his
prominent position in the national literacy campaign might lead to his
assassination. Indeed, the Brazilian military considered Freire “an
international subversive” and “a traitor to Christ and the Brazilian people,”
accused of trying to turn Brazil into a “Bolshevik country.”
Freire’s sixteen years of exile were both tumultuous and productive: after a
brief stay in Bolivia, he spent five years in Chile, where he became involved
in the Christian Democratic Agrarian Reform Movement and worked as a
UNESCO consultant with the Research and Training Institute for Agrarian
Reform. He served a visiting appointment in 1969 to Harvard University’s
Center for Studies in Development and Social Change, only to move the
following year to Geneva, Switzerland. There, he acted as a consultant to the
Office of Education of the World Council of Churches, where he developed
literacy programs for Tanzania and Guinea-Bissau that focused on the re-
Africanization of their countries. He was also involved in the development of
literacy programs in postrevolutionary former Portuguese colonies such as
Guinea-Bissau and Mozambique, and he assisted the governments of Peru and
Nicaragua with their own literacy campaigns.

Freire was decidedly Marxist, but his language never canvassed the political
landscape with the usual Marxist-Leninist argot.

Freire finally returned to Brazil in 1980 to teach at the Pontificia Universidade


Catolica de São Paulo and the Universidade de Campinas. From 1980 to 1986,
he was the supervisor of the adult literacy project for the Workers’ Party in
São Paulo. Freire worked briefly as secretary of education of São Paulo, from
1989 to 1992, continuing his radical agenda of literacy reform for the people
of that city.

Global Literacy Campaigns


All during his time in exile, Freire had been writing what would soon become
classics: Pedagogy of the Oppressed, Cultural Action for Freedom,
and Pedagogy in Process: Letters to Guinea-Bissau. Freire’s work would be
taken up later by educators, philosophers, and political activists in North
America and Europe, but it was fundamentally minted in the Global South: in
the base communities, urban barrios, shantytowns, and favelas where it
influenced — and was influenced by — countless social movements, from the
anti-apartheid efforts in South Africa to the Landless Workers’ Movement in
Brazil.
Freire always encouraged educators to reinvent his work rather than simply
“transplant” it across various national borders, as he saw his teachings as
emerging from a distinctly Brazilian context. He had arrived at that realization
early on, having himself taken lessons from like-minded educators whose
experience in other countries with mass literacy campaigns he needed to adapt
to Brazil.

Freire met the architect of the Cuban Literacy Campaign, Raúl Ferrer, in 1965
at the World Conference Against Illiteracy in Tehran. Ferrer and Freire met
again in 1979 to discuss the role of literacy in the Sandinista revolution in
Nicaragua.

Freire considered the Cuban Literacy campaign, which was responsible for
making literate over nine hundred thousand people in less than one year, as
among the great educational achievements of the twentieth century. He said
similar things about the Sandinista’s literacy campaign in Nicaragua.

A 1972 edition of Pedagogy of the Opressed in Portuguese.

Freire openly acknowledged Cuban independence leader José Martí as one of


the most important revolutionary thinkers of the twentieth century, and he was
a staunch admirer of Fidel Castro and Ernesto Che Guevara. President Hugo
Chavez in turn was a great admirer of Freire and expressed to me a desire to
bring Freire’s work into the Bolivarian Revolution — a mission of which I
was able play a brief and modest role.

The week after Freire’s unexpected death, he was scheduled to attend a


ceremony in Cuba where Fidel Castro was to present him with a major award
for his contribution to education. According to his friends, this was to be the
most important award of Freire’s life.

A Resolute Marxist
For Freire, challenging capitalism was an urgent and pressing necessity. He
did not often provide exact descriptions of what his vision of a socialist
alternative would look like, but Freire’s adherence to a materialist
epistemology was firm and deep, and he maintained throughout his life a
modernist faith in human agency and in language’s unshakeable sociality.

Freire was decidedly Marxist, but his language never canvassed the political
landscape with the usual Marxist-Leninist argot. He did not, for instance,
preach that all value originates in the sphere of production, nor did he believe
that the main role of schools is to serve the agents of capital and its masters.

He did, however, view capitalist education as reproducing the social relations


of a dominating and exploitative social order, and that the typical nostrum of
“improving one’s lot” through education was often an ideological veil
channeling human solidarity into false narratives of individual hard work,
reward, and progress.

Freire was a formidable philosopher, but instead of isolated musings, he used


philosophy in the service of advancing his emancipatory pedagogy. Freire’s
vision of liberation from authoritarian forms of education was drawn from the
Hegelian dialectic of master and slave; his description of the self-
transformation of the oppressed was inspired by the existentialism of Martin
Buber and Jean-Paul Sartre; and his conception of the historicity of social
relations was influenced by the historical materialism of Karl Marx.

Freire’s emphasis on love as a necessary precondition of authentic education


was part of an abiding affinity he had with radical Christian liberation
theology. Dom Hélder Câmara, a Brazilian Roman Catholic archbishop of
Olinda and Recife — who had a profound influence on Freire — captured the
spirit of liberation theology in a few short phrases: “When I give food to the
poor, they call me a saint. When I ask why the poor have no food, they call me
a communist.”

Freire, himself a Catholic, was not overly concerned with “religiosity” but
rather with the prospect of a liberated church — in a region where much of the
education system was still under control of religious authorities. Freire
dreamed instead of what he called “the prophetic church”: a Church that
would stand in solidarity with the victims of capitalist society. It was that
vision that led Gustavo Gutierrez, who codified Liberation Theology’s central
tenet of the “option for the poor,” to invite Freire to elaborate some of the key
elements of the emerging radical Christian doctrine.

Pedagogy of the Oppressed


Despite all of Freire’s connections to liberation theology, the description that
most readily captures Freire’s vocation is that of “philosopher of praxis.”
Freire’s philosophy was designed, simply put, to help human beings actively
become more fully human — and that political and ethical project meant
understanding and also transforming the world. This was a task best captured
in Freire’s popularized saying, “reading the word and the world.”

Freire was unrivaled in his obsession with the power of the spoken and written
word — with what that power reveals about the world as it appears before us
and about what the world could be. For Freire, the sphere of literacy enables
human beings to live in the subjunctive mode — in an “as if” state that opens
up pathways to new worlds.

Another of Freire’s categories, “untested feasibility,” was an elaborate


philosophy of hope that called for disenfranchised groups to move beyond
their “limit situations” — i.e., the constraints placed on their humanity by
underdevelopment — and transform those adverse conditions into a space for
creative experimentation. This was, for Freire, what was at stake in literacy: a
practice that could be used to disenfranchise and exclude just as easily as it
could be to emancipate.
Buttressing Freire’s pedagogy was a complex but solid materialist vision of
the world and its transformation. For Freire, any action taken on the world
necessarily transforms the world as we know it. Moreover, transforming the
world affects the manner in which individuals act on it after. To enter into this
process is how individuals learn to become subjects who act upon a dynamic,
open world rather than remaining passive objects that are merely acted upon
in a closed, unchanging system. This was Freire’s vision of how the oppressed
can overcome subjugation.

“Dialogue” and “dialectic” are key words in the Freirean vocabulary. The
dialogical “encounter,” as Freire called it, is actually the opposite of
indoctrination (an irony lost on Brazilian and American critics concerned with
critical race theory or Freirean “indoctrination”). Freire resisted what he called
“banking education” — depositing taken-for-granted knowledge into the
brain-pain of hapless students — because it was both socially oppressive and
assumed a world so fixed that the same lessons could be repeated ad nauseam.
As Freire says in Pedagogy of the Oppressed:

Since dialogue is the encounter in which the united reflection and action of the
dialoguers are addressed to the world which is to be transformed and humanized, this
dialogue cannot be reduced to the act of one person’s ‘depositing’ ideas in another, nor
can it become a simple exchange of ideas to be ‘consumed’ by the discussants. . . .
Because dialogue is an encounter among [humans] who name the world, it must not be a
situation where some [humans] name it on behalf of others.

As subjects, we are encouraged by Freire to break out of the prison house of


prefabricated knowledge and its attendant relations of domination by changing
the material conditions that shape us. Standing with the oppressed was for
Freire not just an ethical imperative — as it was for liberation theology — but
also an epistemological one: it was, he insisted, the only way to break with the
idea that there is some realm of pure ideas to be plucked out and transmitted
by designated authorities. Truth, for Freire, was always dialogic, always about
the self and the other bound together in a dialectical contradiction of everyday
life.
Freire Today
Freire always resisted being identified with the many different movements and
trends within education to which some have claimed he was affiliated,
whether it was popular education, adult education, educational change,
nonformal education, progressive education, or Marxist pedagogy. Whereas
some of these currents would eventually fall into the hands of educational
policy wonks, Freire’s project remained firmly a pedagogy of the oppressed.

Our world is one that Freire in many senses fought to forestall: one where
knowing through problem-posing is losing ground to endless culture wars;
where teachers are being criticized for evidence-based reasoning; where
people are punished for challenging the history of the United States’ colonial
entanglements and its brutal history of slavery. The kind of courageous
thinking that Freire called for makes the moral cowardice of most of today’s
political leaders and public figures all the more damning.

What is needed in our school systems today is a pedagogy that enables


students to understand their lived experiences in broader, more complex
sociopolitical contexts. The culture wars in the United States and Brazil are at
least in part about the fear of what this would mean: rightly or wrongly,
inviting students to consider the merits of feminist theory, critical race theory,
decolonial theory, and other languages of analysis also means reflecting on the
historical experiences that make those perspectives possible in the first place.

At its root, whether it’s in Brazil or the United States, the Right is stoking
fears of a vast conspiracy of indoctrination because they themselves are afraid.
By imagining our schools as a place of Darwinian struggle to impose
competing worldviews, conservatives are conveniently trying to make us
forget what Freire helped us to understand: that education is not just about
static worldviews but also, potentially, about world-changing. Or as Freire put
it: “Reading the world comes before reading the word.”

ABOUT THE AUTHOR


Peter McLaren is codirector of the Paulo Freire Democratic Project and
international ambassador for Global Ethics and Social Justice. He is one
of the world’s leading scholars of critical pedagogy and is the author of
more than forty books, including, most recently, Pedagogy of
Insurrection.

The best books on Fascism


recommended by Ruth Ben-Ghiat

In an era of Trumpism and fake news, the word ‘fascist’ is thrown


around with increasing ease and little attention paid to its origins and
history. Ruth Ben-Ghiat, political commentator and historian at New
York University, recommends the best books for understanding
fascism's history and recognizing it today.

F ascism is your area of historical expertise. Because


the word ‘fascist’ is so often used and misused, first I want
to ask: How do you define it?

There is no simple definition of fascism. It’s a movement anchored to


the cult of the strong leader that sees nation as more important than
class. It toys with the rhetoric of revolution. It mobilizes the masses,
but its aim is to install a dictatorship that ultimately subjects everyone
—of every class, race and gender—to its rule.

As an Italianist, could you offer insights into the root of the


word?

Fascism’s roots trace back to the word fasces, which is Latin for


‘bundle of rods.’ When Benito Mussolini founded his movement in
1919, he wanted to distinguish it from a political party. He gave his
movement the name Fasci Italiani di Combattimento, to identify it as
a league. To get to power, they became a party in 1921, but initially
the fascist movement was made up of loose groupings, squads of
blackshirts who perpetrated all the violence.

Read

Anatomy of Fascism, by Columbia University political


scientist Robert Paxton, is your first recommendation. Why
did you choose it?

The Anatomy of Fascism has great strengths. Paxton set out to look at


what fascists do, not what they say. He does an excellent job of
looking at how Hitler and Mussolini in Germany and Italy were able
to use ‘conservative complicities’, as he calls them. They wouldn’t
have gotten to power without conservative elites, who wanted to use
them to get rid of the threat presented by the left. Throughout the
book, he looks at how the pacts fascists made to get into power played
out during the dictatorship. He’s very good at mapping the geography
of power, and what I call the ‘authoritarian bargains’ among groups,
parties, organs of the state and leaders.

“The eternal mystery of fascism is:


Why did so many people buy into it?”
The book has been criticized for shortchanging the role of ideology in
wanting to show what fascists did and not what they said. He argues
that fascists like Mussolini and Hitler had “empty and contradictory
rhetoric.” This goes back to an old school of thought in Italy,
represented by Noberto Bobbio and others, who argued, in essence,
that fascism had no culture; it was just violence. In my way of
thinking, this is not a helpful way to proceed to understand how
fascism appealed to so many people. In my work, I look at how
ideology and rhetoric precede and influence action, including
violence.

Paxton posits that fascism is a protean phenomenon. What


does he mean by this point?

The eternal mystery of fascism is: Why did so many people buy into
it? The protean nature of fascism is key to unlocking that mystery.

Its ideology was protean, if not inherently contradictory. Mussolini,


who was a great sloganeer, said in 1921, “fascism is a revolution of
reaction.” What does that mean? Fascism took from the left, in its
ideas about revolution and its practice of disrupting everything. And
yet fascism was profoundly conservative: it wanted to turn back the
clock on female emancipation and worker autonomy. Fascism is a
revolution to impose order. In that sense, it is protean.

It’s also protean because leaders like Hitler and Mussolini had many
different policies to enfold different people in the fascist state. For
example, they had social welfare policies, like pre- and postnatal
assistance, to appeal to women.

Read

Walter Benjamin pointed out that fascism replaces


reasoned debate with theatrics. That point seems central to
your next fascism book, Fascist Spectacle by sociologist
Simonetta Falasca-Zamponi.

Fascist Spectacle is a valuable book from a sociologist who is quite


theoretical but also very, very attentive to how policies play out in
daily life and to the connection between rhetoric and action.

Falasca-Zamponi looks at how fascism used aesthetics in every realm


of life as an anesthetic. She examines their rallies, newsreels and
rituals like the adoption of black shirts. She makes the important point
that these rituals made people into uncritical automatons who were
willing to trust what they were told, even when it was contradictory to
what they saw, heard or sensed.

“Fascist leaders appeal to sore points in


the psyche”
Today, Trump tells his followers the exact same thing: “what you’re
seeing and hearing is not what’s happening.” That statement has a
very long genealogy. Authoritarian-minded rulers want us to lose all
trust in ourselves. Falasca-Zamponi shows us the role of fascist
spectacle in getting people to believe that reality was what the leader
said it was.

In your book Fascist Modernities, you explored how


Mussolini’s fascist program seduced Italian intellectuals.
Could you tell us more about that?

Intellectuals bought into fascism for many reasons. Fascist leaders


appeal to sore points in the psyche. In the case of Italy, Mussolini
knew that intellectuals were sensitive to the idea that Italians were
backwards, soft, sentimental, mandolin-playing old men, rather than a
modern and martial forward-looking people. So, Mussolini proposed a
utopian vision of modernity and invited different groups to express
their own fascist vision. The mirage of modernity and empire that
Mussolini offered seduced some. The book also includes cameos of
eminent intellectuals who were initially antifascist, but who became
collaborators after many years of living under the Mussolini machine.
Do you see similarities between black shirts and red hats?
Before the election of Donald Trump, former Secretary of
State Madeleine Albright pointed out that Trump seemed to
have swiped some of Mussolini’s rhetoric, like his call to
“drain the swamp” in the nation’s capital. How strong are
the stylistic similarities between fascism and Trumpism?

Watching a Trump rally is what prompted me to do political


commentary. When I saw the ecstatic emotion around his person, how
he bonded with supporters by stoking hatred toward a common enemy
like immigrants, when I saw the rituals of chanting “lock her up”
about his political opponent, and of course, how he demonized the
press—all of this was familiar to me as a scholar of fascism.

“Watching a Trump rally is what


prompted me to do political
commentary”
The stylistic similarities certainly extended beyond his rallies. The
way he retweets racist propaganda and seduces people with mirages
about “making America great again.” The right wing in the United
States has a very long tradition of mocking the liberal press, but
Trump goes far further. In the tradition of what fascist leaders do, he
turns his supporters against any voices that are independent of his
own.

Read
The Origins of Nazi Violence, by Cornell historian Enzo
Traverso, is your next recommendation.

The Origins of Nazi Violence is a wonderful book that identifies the


roots of the Nazi killing machine. Traverso is a historian in the
European mode, in that he is quite philosophical and also includes
some of his own family history, having grown up in an area formerly
occupied by Nazis. All of his work is fabulous, but given how
concerned we should be now about how authoritarian movements
come to power, this is an invaluable introduction. It’s the right book
for right now.

Both you and Traverso show how imbuing supporters with


an existential dread of others is integral to fascist
movements. Can you describe this process?

To have people buy into a state policy of internment of immigrants—


including babies, which is what the United States has now on its
border—you have to deploy the panoply of propaganda techniques to
get people to fear others enough to support such extreme policies.

Trump proudly uses repetition, as Hitler did. The reason Trump did so
many rallies during his campaign and since taking office is that mass
gatherings can catalyze hatred and help keep it alive. In my research
for my next book, Strongmen, I found that Trump thought, once he
was in office, that Hillary Clinton chants were no longer needed. So,
he went to a rally and said, we don’t need this anymore.

But that wasn’t a popular stance with his base. So, ever the marketer,
he reintegrated the “lock her up” chants into his rallies, fanning the
flames of misogyny and hatred. And he still uses it two and a half
years after the election.
Read

Next, let’s talk about one of the most important books of


the 20th century, Hannah Arendt’s The Origins of
Totalitarianism. 

Your readers may be familiar with The Origins of Totalitarianism and


her historical genealogies of the main components of Nazism, which
begin with the imperial mindset and imperial methods of repression
during the colonial period.

Her most useful (and her most chilling) conclusion for today is that
totalitarian tools were not specific to Nazism or Stalinism or any
ideology. The Hitler and Stalin and Mussolini regimes used a common
set of tools to create certain kinds of subjects. The key thing in
totalitarianism is the isolation of the individual that causes the
inability to distinguish between fact and fiction.

“The key thing in totalitarianism is the


isolation of the individual that causes
the inability to distinguish between fact
and fiction”
Civil society healthy depends on horizontal bonds—with churches,
with family, through networks—rather than the vertical bonds
between the ruler and the people. Once people who no longer know
what truth is and are ruled by fear, the horizontal bonds of community
that keep civil society together are severed and the totalitarian bond
becomes difficult to break.

Many of her observations have application far beyond the regime she
was talking about. Her words should be studied today by those who
want to do what to prevent the further spread of authoritarian regimes
and the ideologies they are propagating.

Arendt suggests that totalitarianism was a “novel form of


government” that “differ[ed] essentially from other forms
of political oppression known to us such as despotism,
tyranny and dictatorship.” Is that right?

Not entirely, but the 20th century did produce the phenomenon of
totalitarian dictatorships with personality cults fed by mass media.
That was the basis of the regime of Mao, of Hitler, and of Mussolini.
Mass media enable these men to efficiently propagate and standardize
the messages of their regimes. That distinguishes modern
dictatorships.

I am skeptical of some of the categories used today. For example,


“soft authoritarianism.” We need to take all of these categories with a
grain of salt. However, authoritarian regimes can be seen as part of a
continuum.

“The 20th century produced the


phenomenon of personality cults fed by
mass media”
In certain states, like China under Mao and the Soviet Union under
Stalin, rule by terror and control extended through the bureaucracy,
throughout society to the individual. While Mussolini was a terroristic
ruler, responsible for the death of millions, the pope and the king were
always alternate sources of authority and emotional attachment in
Italy; control was never as complete.
Read

Finally, the last of the fascism books you recommend is a


1963 novel by Natalia Ginzburg.

Family Lexicon, which is more like a novelized memoir, is a valuable


testimony of how private life unfolded during Fascist Italy. The family
in question was anti-Fascist and half-Jewish and the bonds and private
language of the family are effectively set against the encroachments
and tyranny of the Fascist state. The perspective of the female narrator
is also important given the predominance of testimonies from anti-
Fascist men.

What does Family Lexicon teach about life under fascism


that will be useful to 21st-century readers?

One lesson of the book is the importance of family ties in creating


spaces of autonomy from the dictatorship. Another is that the
normalization of authoritarianism is a creeping process, parents who
knew something about life under democracy often felt differently
about Mussolini than children who grew up only with him as leader
and saw his face everywhere. We are at the opposite end of the
authoritarian arc, we are at the start, in a period of declining
democracy. In this case the task is not to hide away and become
apolitical, nor to accept all the small changes in policy, and tone of
public life without doing something to protest against it, using the
freedoms we have now.
In 2017, you wrote, “Trump is not a Fascist. He does not
aim to establish a one-party state.” Lately, you’ve written
about Trump’s efforts to undermine faith in elections. Do
you think you need to revise your distinction?

I don’t. I think it’s very important to distinguish leaders of the past,


who wanted to have one party dictatorships. Few exemplars of those
types of dictatorships remain, the most prominent ones are  China and
North Korea. Today you don’t need a one-party state to do what you
want to do as an autocrat. Putin and Orban retain the semblance of
democracy and have elections but they are not free or fair ones and the
opposition press barely exists. Nor would Trump and Bolsonaro need
a one-party state. Orban tries to legitimize this system calling it
“illiberal democracy” but I prefer “new authoritarian.”

Your book project is underway and seems to focus on all


the current political figures you just mentioned. Can you
please tell me about that project?

Strongmen is a history of the authoritarian form of rule and how it has


evolved over a hundred years. Post-Communists like Putin and Orban
are in the book but no Communist rulers, since my aim is to study
how these men ruined democracies. Most of the chapters are
organized thematically. So the reader can learn, in turn, how the use of
propaganda, violence, corruption, masculinity, etc. have evolved from
the time of Mussolini up to the time of Trump and Erdogan today.
This way we can isolate what is off-the-table, such as mass killing on
the scale of Mao or Stalin and what is still used effectively today. So
to come back to the question: Is Trump fascist? He is not a fascist, but
he uses tools, such as rallies and propaganda and personality cults,
very effectively and these tools come from the fascist past.

Interview by Eve Gerber


Five Books aims to keep its book recommendations and interviews up
to date. If you are the interviewee and would like to update your
choice of books (or even just what you say about them) please email
us at editor@fivebooks.com
Juca Simonard

Jornalista, tradutor e professor de francês. Trabalhou como redator e


editor do Diário Causa Operária entre 2018 e 2019. Auxiliar na edição
de revistas, panfletos e jornais impressos do PCO, e também do jornal
A Luta Contra o Golpe (tabloide unificado dos comitês pela liberdade
de Lula e pelo Fora Bolsonaro).

Evergrande, a agonia capitalista e as insurreições populares


Crise da gigante empresa imobiliária chinesa Evergrande abalou deu um susto no

sistema financeiro, que sobrevive por um fio, e mostrou a agonia do imperialismo

22 de setembro de 2021, 17:30 h Atualizado em 22 de setembro de 2021, 21:10


   

 1

(Foto: REUTERS)
Apoie o 247  Clube de Economia

Por Juca Simonard

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A crise da gigante empresa imobiliária chinesa Evergrande abalou as Bolsas de valores

no mundo inteiro. Pela primeira vez em quase 15 meses - quando o mundo vivenciava o
auge da pandemia do novo coronavírus - o minério de ferro saiu cotado abaixo de US$

100. Além do mercado imobiliário, a empresa cumpre papel fundamental na cadeia

produtiva mundial, com atuação no setor automobilístico, tecnológico, de saúde, etc. A

atuação da empresa é tão ampla que chega até mesmo no futebol.

A incorporadora imobiliária tem 200 mil funcionários, presença em mais de 280 cidades

e afirma ser responsável por gerar 3,8 milhões de trabalhos indiretos na China.
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A crise da empresa é uma típica crise capitalista de superprodução. Durante anos, a

Evergrande foi favorecida pelos créditos fáceis das instituições financeiras chinesas, que

permitiram um aumento da produção. Ocorre que, com a crise capitalista econômica

mundial, aumentada pela pandemia, caiu o poder de compra da população e das

empresas, diminuindo a arrecadação da Evergrande, que agora se encontra com

dificuldade para vender seus imóveis e, desta forma, conseguir dinheiro para pagar suas
dívidas com credores.

Crise em cadeia

A Evergrande acumula dívidas no valor de mais de US$ 300 bilhões (cerca de R$ 1,6

trilhão), o que corresponde a um total de 2% do PIB chinês e é do tamanho da economia

da África do Sul. Os números mostram a amplitude da crise financeira que ocorreria se,

por falta de recursos, a empresa chinesa tivesse de dar calote nas dívidas. Surgiria um

“contágio” em todo o sistema financeiro mundial, encadeando falências atrás de

falências nas instituições financeiras mundiais, atingindo a produção capitalista - já

altamente debilitada pelo neoliberalismo nas últimas décadas e pela pandemia.


Do Brasil à Europa, passando pelos Estados Unidos, as Bolsas de valores registraram

importantes recuos na segunda-feira. A desaceleração da economia chinesa, maior PIB

do mundo (US$ 24,143 trilhões), que nos últimos anos mostra aspectos além da situação

da Evergrande, já está levando a uma crise generalizada da produção capitalista. O

calote financeiro da imobiliária pioraria a situação.


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Para exemplificar, a fabricação do aço fechou em baixa de 8,8% no porto de Qingdao,

na China, acumulando uma queda no valor de 61% desde a cotação recorde de US$240

em maio deste ano - a matéria-prima liderava o boom de commodities. Enquanto no

Brasil, houve queda no valor da Vale e das siderúrgicas Gerdau, CSN e Usiminas na

Bolsa de Valores de São Paulo.

Além disso, a crise da Evergrande levaria a uma queda do mercado local chinês,

afetando na exportação de produtos de outros países, como a carne e a celulose do

Brasil, afetando as ações da JBS e da Suzano, por exemplo.

Acordo acalma especuladores

No entanto, na manhã desta quarta-feira, 22, a gigante imobiliária chinesa anunciou um

pequeno acordo com um credor local, para evitar o calote dos juros de um título

estimado em US$ 35,9 milhões.


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por taboola

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das menores agendas da história

Ibovespa cai mais de 3% seguindo exterior em meio a caso Evergrande; dólar sobe a R$
5,32

Em comunicado à Bolsa de Valores de Shenzhen, uma subsidiária da empresa informou

sobre a negociação, o que acalmou a situação dos especuladores. Pelo menos

momentaneamente, a curto prazo, pois a nota não menciona o pagamento dos juros de

outro título que também vencem na quinta-feira, quando a empresa terá de pagar juros

de US$ 84 milhões. É esta dívida que mais preocupa os acionistas internacionais.

A estabilização momentânea, após a nota da subsidiária, expressou-se com a

recuperação, nesta quarta, do valor do minério de ferro que subiu para US$ 103,38 por

tonelada na bolsa de Dalian. No Brasil, os papéis da Vale se valorizam cerca de 5%.

Porém, essa situação é paliativa e apenas alivia a crise por alguns dias. Para evitar um

colapso do mercado como o que destruiu a economia norte-americana em 2008, também

iniciando com uma bolha imobiliária, o governo chinês deve interferir na reestruturação

da empresa.
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Segundo o ING, órgão financeiro alemão, a reestruturação deve ser longa, e há grandes

possibilidades de que a empresa seja parcialmente vendida para terceiros ou estatizada.

O susto causado no início da semana fez até o mais neoliberal dos neoliberais defender

a intervenção estatal na crise da empresa - como foi feito pelo governo Roosevelt nos

EUA após a crise de 1929, e, desta vez de forma criminosa, pelo governo Obama, que

injetou trilhões nos bancos para salvá-los da crise de 2008, enquanto deixou o povo

arcar com a crise.


A insurreição popular volta à cena

Por mais que a implosão do sistema financeiro internacional seja resolvido

momentaneamente com a resolução do problema da Evergrande, a bolha financeira

mundial ainda existe, e pode estourar a qualquer momento. A situação da empresa

chinesa é apenas um dentre os vários casos pelo mundo que podem ocasionar o

desencadeamento geral da crise capitalista.

A situação mostra a agonia geral do imperialismo, “fase superior do capitalismo”

(Lênin) - isto é, sua fase final, que é a atual. Desde o século XX, o capitalismo já não é

mais o jovem que florescia com o livre mercado e o parlamentarismo. Tornou-se um

sistema internacional parasitário, de espoliação dos recursos mundiais por alguns

monopólios e de constantes crises. Virou uma ditadura mundial, em alguns períodos

mais aberto politicamente, em outros, totalmente fechado (como no caso do fascismo).

Este sistema vive atualmente como um paciente terminal numa UTI, à base de aparelhos

e máquinas - ou seja, artificialmente. A cada crise econômica, a humanidade se

aproxima do toque de sinos que anuncia a superação total do atual sistema.

A pobreza, a miséria, a fome, a inflação, a crise política, etc. têm levado à falência dos

regimes políticos de aparência democrática. Por um lado, aumenta o totalitarismo das

classes dominantes (censura, repressão policial, golpes de Estado, etc.), por outro,

insurreições populares contra o domínio dos monopólios explodem por todo o mundo.

A profunda destruição, de tipo fascista, da organização política e sindical dos

trabalhadores, promovida pelas “democracias” para levar adiante a política de “choque”

do neoliberalismo, está sendo rompida pela realidade, pela hecatombe social e

econômica que assola o planeta. 

Na América Latina, vimos exemplos disso com a rebelião das massas no Chile, no

Equador, na Argentina, na Bolívia e na Venezuela, contra o imperialismo. No Oriente


Médio e na Ásia Menor, os Estados Unidos enfrentam uma dura resistência no Iraque,

estão perdendo a guerra na Síria e foram expulsos pelo Talibã no Afeganistão - uma

derrota tão avassaladora que deve promover rebeliões em todo mundo árabe e

muçulmano, estimulando grupos islâmicos radicais, como Hamas (Palestina) e

Hezbollah (Líbano), no mundo pobre.

Da mesma forma, apesar do seu poder bélico, o imperialismo tem dificuldades de se

impor contra regimes políticos não-alinhados, como China, Rússia, Cuba, Venezuela,

Irã, etc. A polarização política tomou conta do planeta, tanto nos países atrasados, como

Brasil e África do Sul, quanto nos países imperialistas: França, EUA, Inglaterra, Itália,

Alemanha, etc.

Um programa para a crise capitalista

Por este motivo, a vanguarda revolucionária precisa ter um programa para a crise

imperialista. O programa socialista para os tempos modernos já foi elaborado por

Trótski para a IVª Internacional. Este programa inclui uma série de reivindicações

imediatas que os trabalhadores devem levantar durante o período de crise capitalista.

Abaixo, alguns de seus principais pontos:

 Escala móvel de salários e escala móvel das horas de trabalho - redução da jornada de
trabalho sem perda salarial e aumento dos salários, num programa para combater o
desemprego e a miséria;
 Formação de comitês de greve e de fábrica dos operários - os verdadeiros interessados
em resolver a crise social e econômica - para aumentar o controle sobre a produção
pelos trabalhadores e para superar a política de paralisia das atuais lideranças
sindicais;
 Abolição do "segredo comercial" para que os trabalhadores saibam a verdadeira
situação das empresas, evitando o absolutismo dos capitalistas e evidenciando suas
fraudes para espoliar os operários;
 Estatização com controle administrativo dos trabalhadores sobre as empresas falidas;
 Realização de grandes obras públicas para restabelecer a malha industrial, ferroviária,
rodoviária, etc. e, ao mesmo tempo, dar trabalho à grande massa de desempregados;
 Expropriação sem indenização das companhias monopolistas da indústria da guerra,
das estradas-de-ferro, das mais importantes fontes de matérias-primas (latifúndio,
mineradoras; reestatização completa da Petrobras, da Eletrobras…), etc;
 Estatização dos bancos privados e do sistema de crédito para promover o
planejamento econômico sem ser prejudicado pelos abusos dos banqueiros;
 Armamento do povo para romper com a ditadura da burocracia capitalista (polícia,
exército permanente), e intensificação das greves com ocupações (piquetes);
 Nacionalização da terra e reforma agrária, contra o latifúndio;
 Mobilização contra as guerras imperialistas e a pilhagem da burguesia: ‘confisco dos
benefícios de guerra e expropriação das empresas que trabalham para a guerra’;

Essas são algumas das reivindicações operárias imediatas que Trótski colocou como

fundamentais para a resolução da crise capitalista. Atualmente, os trabalhadores ainda

precisam de um programa para enfrentar a pandemia, como a formação de Conselhos

Populares de Saúde; fim das patentes das vacinas; produção pelo Estado (se necessário,

com expropriação da malha industrial privada) de equipamentos de proteção, como

máscara, luvas, álcool em gel, e a sua distribuição gratuita; ampla testagem contra a

Covid-19 organizada de forma gratuita pelo governo; nenhum despejo durante a

pandemia; etc.

No entanto, todas essas reivindicações, que deveriam ser discutidas em um Congresso

do Povo (como proposto pela Frente Brasil Popular) que reúna as organizações

operárias e populares, só podem ser vitoriosas se forem acompanhadas da luta política

geral, aglomerando os explorados em torno de “Fora Bolsonaro” e “Lula Presidente,

por um governo dos trabalhadores”.

José Pessoa Araújo

José Pessoa de Araújo é cordelista. Entre seus livros estão “Florestan


Fernandes, o engraxate que se tornou sociólogo”; “Lamarca, Herzog e
outros Heróis”; “Lula, sua vida e sua Luta”, entre outros
Marighella na luta contra a Ditadura
Parte do livro “Lamarca, Herzog e outros Heróis”. Segunda parte do capítulo dedicado a

Marighella. Editora Scortecci, 1998. Reedição pela Editora FiloCzar

22 de setembro de 2021, 17:24 h Atualizado em 22 de setembro de 2021, 18:11


   

 ...

(Foto: Reprodução)
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Chicote do Pessoa

Marighella na luta contra a Ditadura

Por José Pessoa de Araújo

Leia a parte 1 aqui.

Quando deixou a prisão

Recomeçou sua luta

Tinha sido anistiado

E entrou numa disputa

Queria ser deputado

Lutar por uma causa justa


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Eleito em quarentena e cinco

Em seguida foi cassado


No ano quarenta e oito

Já não era deputado

Mas nunca esmoreceu

Pois era um abnegado

Entrou na clandestinidade

O resto da sua vida

Era muito corajoso

Mas tinha a alma ferida

Batalhava sem cessar

A causa estava perdida

Marighella militou

No Partido Comunista

Era muito respeitado

Como um grande ativista

Defendia o proletário

Como bom socialista


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Mas nem todos aceitaram

Sua maneira de ser

Acabou sendo expulso

Mas não se deixou vencer

Continuou sua luta

Não importava perder

Na vida de um guerreiro

Nem sempre vem vitória

Quando ele está na guerra

Conforme mostra a história


Às vezes é necessário

Dar a mão à palmatória

Do partido comunista

Desligou-se ele, então

Marighella com seu grupo

Partiu pra separação

E fundou uma aliança

Pra dar continuação


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Libertar a pátria amada

Visava sua batalha

Dura, difícil, intrincada

Que acabava só com a mortalha

A luta foi prolongada

Não incêndio de palha

A discrepância que existe

No Brasil é imoral

Uns têm muito, outros nada


A diferença é brutal

É preciso urgentemente

Uma reforma social

Marighella desejava

Um Brasil equilibrado

Foi morto covardemente

Sem que tivesse usado

A pistola que trazia

Assim que foi atacado


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O delegado Fleury

Que servia à ditadura

Assassinou Marighella

Naquele alameda escura

Foi isso em sessenta e nove

Na vigência da tortura 

Marighella foi-se embora

Mas deixou um idealismo

Lutou contra a ditadura

Não tinha medo de abismo

Defendia cegamente

Um real socialismo

Poeta, muito obrigado!

O Brasil o reverencia

A memória de um guerreiro

Que acreditou certo dia


Na justiça para todos

Também na democracia

O Brasil não se esquece

De um Carlos Marighella

Que lutou heroicamente

Pra acabar com a mazela

Deste país tão bonito

Desigual e de favela

Identitarismo: A Nova Cara do


Liberalismo
 LavraPalavra
 novembro 25, 2020
 5 Comentários
Por Arthur Moura e Ricardo Nascimento
“No fim das contas, a pauta identitária, quando voltada exclusivamente
para si mesma, tem esvaziado o debate político e o tornado facilmente
cooptável pelos interesses do mercado, pois desuniversaliza as pautas
enquanto centraliza o debate no monitoramento do comportamento
individual. Foca na exclusiva construção de diferenças, deixando de lado
a identificação por semelhanças.” 

Introdução
Este texto é resultado do grupo de estudos Concreto Pensado, do
coletivo Bacamarte, do qual fazemos parte. Nossos estudos têm
perpassado temas como a indústria cultural, correlações ente marxismo
e arte, análises de conjuntura, discussões sobre a questão da mulher na
pandemia e diversos outros temas, todos sob a orientação do
materialismo histórico-dialético como método.
Somos um coletivo de artistas independentes que vêm buscando aliar a
teoria à prática como forma privilegiada de compreender e superar
determinados limites impostos pela sociedade hodierna. As lives que
fizemos estão disponíveis no canal da Bacamarte Produções
no YouTube e agora pensamos em registrar em formato de texto o
debate sobre a questão do identitarismo, transmitido em
videoconferência no dia 25 de outubro de 2020 (NASCIMENTO;
CHALHOUB, 2020). Há também uma análise, baseada neste artigo,
disponível no canal da 202 filmes (MOURA, 2020).
O livro escolhido como referência foi “Armadilha da Identidade: raça e
classe nos dias de hoje”, de Asad Haider, prefaciado pelo professor Silvio
Almeida. Como leitura complementar há diversos outros autores que
também nos serviram como base e nos ajudaram a melhor descortinar
esse tema tão complexo. Ao longo do texto buscaremos destacar alguns
pontos importantes colocados por esses outros referenciais também.

Identitarismo versus Marxismo
Recentemente temos visto principalmente na internet – assim como
também nas relações sociais concretas – diversas polêmicas que
envolvem os chamados setores identitários com o restante da sociedade
de espectros políticos mais amplos. Isso naturalmente tem gerado
enormes desgastes sociais desde as relações interpessoais às
organizações e demais setores da sociedade, como o próprio Estado
burguês. Essas polêmicas são carregadas de termos como lugar de
fala, apropriação cultural, cancelamento, lacração, pós-
moderno, opressão, privilégio, gênero, raça etc. Tudo isso faz parte das
lutas sociais que decorrem de uma contradição da ordem estrutural,
ainda que raras vezes esteja presente nessas polêmicas conceitos
como luta de classes, contradição, História e capitalismo. Há também
termos como inclusão, representatividade e empoderamento,
mas revolução e superação ou emancipação humana também pouco se
vê. Liberalismo também está presente, pois é a via escolhida por estes
setores de uma forma geral. Certamente há segmentos que partem de
uma leitura materialista e revolucionária, mas são veementemente
combatidos, quase sempre por correntes de caráter pós-moderno ou pela
extrema direita. Uma das armas preferidas dos setores identitários é
combater o materialismo histórico-dialético, resultando na criminalização
direta do comunismo e de qualquer luta que se pretenda emancipatória
do ponto de vista social, pois tal esforço requer enfrentar diretamente o
socio-metabolismo do capital.
Nesses termos o identitarismo funciona como uma espécie de moeda de
troca com o próprio sistema capitalista e sua máquina burocrática e
repressiva – o Estado – sobretudo quando reivindica inclusão no lugar do
rompimento definitivo, deixando de lado, portanto, a perspectiva
anticapitalista.  Segundo Haider (2019, p. 38):
“O que torna um movimento anticapitalista não é necessariamente o
tema de mobilização. O mais importante é saber se ele é capaz de atrair
um amplo espectro de massas e de possibilitar sua auto-organização,
buscando construir uma sociedade na qual as pessoas se governam e
controlam suas próprias vidas. Possibilidade essa que é
fundamentalmente impedida pelo capitalismo.”

A identidade, no entanto, é um dado material concreto. Como bem coloca


Silvio Almeida (2019, p. 08) no prefácio, “a identidade é […] algo objetivo,
vinculado à materialidade do mundo, e pessoas não-brancas como
Haider e eu somos pensados através da identidade, ainda que nela não
pensemos.” Ou seja, nós somos pensados por algo que já existe
historicamente. Somos, portanto, colocados em posições sociais
determinadas de acordo com a identidade e, claro, o poder aquisitivo.
Esse lugar social, por exemplo, pode ser o do negro jovem e periférico
enquanto alvo preferencial da polícia que se configura como a vida
matável, segundo conceito de Giorgio Agamben (2002).
Contexto histórico do identitarismo
Haider destaca no capítulo 1 a militância do Coletivo Combahee
River (CCR) um grupo de militantes negras e lésbicas formado em
Boston, Estados Unidos, em 1974, que tinha por orientação pensar a
identidade do negro, historicamente submetido a relações de dominação
direta sobre seus corpos, ações e pensamentos, mas num contexto geral
do capitalismo, o que quer dizer que sem pensar a relação dessa forma
de opressão com a economia, a política, a cultura, a história e o próprio
conhecimento a emancipação humana não poderia ser concretizada. 
Como Demita Frazer, do Combahee, colocou em 2017:
“Nós na verdade nunca, até onde posso dizer, no que diz respeito à
definição clássica, praticamos realmente o que as pessoas agora
chamam de política identitária. Porque a parte central e o foco central
não era um aspecto da nossa identidade, mas a totalidade do que
significava ser uma mulher negra na diáspora”. (Taylor apud HAIDER,
2019, p. 157)

O que se perdeu, no decorrer da história, foi a capacidade de superar tal


relação de dominação, acabando por reforçar a ideia de naturalização
das relações capitalistas e uma falsa ideia de superação ou combate ao
racismo. Nesse sentido, Stuart Hall faz uma importante síntese sobre a
forma como a questão racial cai nos trilhos do capital:

“O capital reproduz a classe como um todo, estruturada pela raça. Ele


domina a classe dividida, em parte, através dessas divisões internas que
tem o “racismo” como uma de suas consequências. Ele contém e dá
cabo das organizações representativas de classe confinando-as, em
parte, a estratégias e lutas especificamente raciais, as quais não
superam seus limites, suas barreiras. Através da raça, ele continua a
derrotar as tentativas de construir, num nível político, organizações que
de fato representem adequadamente a classe como um todo – isto é,
que a represente contra o capitalismo, contra o racismo.” (Hall apud
HAIDER, 2019, p. 133)

A luta do negro no contexto geral dos Estados Unidos das décadas de 60


e 70, portanto, não estava apartada da luta de classes, o que fica
evidente nas posições do CCR com relação ao racismo e sua relação
direta com o capitalismo, certamente contrariando a colocação de Hall
que se refere a outro contexto em meio a um identitarismo descolado das
relações de classe. A transformação social depende de uma série de
fatores. O próprio transcorrer do tempo pode ser um desses fatores. O
tempo avança e mudanças concretas acontecem no cenário social. No
que diz respeito a superar (ou emancipar) problemas sociais como a
exploração do homem pelo homem é preciso muito mais do que a
simples e automática passagem natural do tempo. Aliás, o tempo, neste
sentido, pode ser um verdadeiro aliado das relações de dominação, pois,
na medida em que passa, naturaliza tais relações. Os homens então
passam a acreditar que este fenômeno nada tem de histórico: ele é
natural, portanto, imutável.

No capítulo 2, “Contradições entre as pessoas”, Haider produz algumas


análises sobre o aprofundamento da ideologia identitária, nos EUA dos
anos 70, a partir do arrefecimento das lutas sociais em múltiplas novas
segregações, o que resultou, por exemplo, no apartamento das lutas,
fundando assembleias de POC (people of color: pessoas de cor, em
tradução livre).
“Em Santa Cruz, a ideologia identitária nos levou cada vez mais para
longe de um projeto genuinamente emancipatório. Suas consequências
não foram apenas a desmobilização do movimento, mas também uma
compartimentação política degradante. […] Ativistas “POC” focariam a
brutalidade policial, estudos étnicos e a teoria pós-colonial. O aumento
do custo de vida, a privatização da educação e a precarização do
trabalho se tornariam questões de “brancos”.” (HAIDER, 2019, p. 68)

A perda dessa materialidade, que é a perda da própria história de como


se forja a ideia de raça, resulta numa perspectiva identitária pura e
simples, sem qualquer relação direta com o passado a não ser por um
idealismo muitas vezes místico, metafísico. E o que é (ou se tornou) a
política identitária? Segundo Asad Haider (2019, p. 47):

“Na sua forma ideológica contemporânea, diferentemente da sua forma


inicial como teorização da prática política revolucionária, a política
identitária é um método individualista. Ela é baseada na demanda
individual por reconhecimento e toma essa identidade individual como
ponto de partida. Ela assume essa identidade como dada e esconde o
fato de que todas as identidades são construídas socialmente. E porque
todos nós temos necessariamente uma identidade que é diferente da de
todos os outros, ela enfraquece a possibilidade de auto-organização
coletiva. O paradigma da identidade reduz a política a quem você é como
indivíduo e a ganhar reconhecimento como indivíduo, em vez de ser
baseada no seu pertencimento a uma coletividade e na luta coletiva
contra uma estrutura social opressora. Como resultado, a política
identitária paradoxalmente acaba reforçando as próprias normas que se
propõe a criticar.”

Por isso, conclui Haider que “essa experiência me mostrou que a política
identitária é, ao contrário, uma parte integral da ideologia dominante. Ela
torna a oposição impossível.” (HAIDER, 2019, p. 68).

Raça, identidade e interseccionalidade: um processo histórico


perverso de descaracterização
De forma mais sintética, Haider (2019, p. 177) define a política identitária
“como a neutralização de movimentos contra a opressão racial. É a
ideologia que surgiu para apropriar esse legado emancipatório e colocá-
lo a serviço do avanço das elites políticas e econômicas.” (grifos nossos).
O autor (HAIDER, 2019) justifica tal colocação no desenrolar do livro,
esmiuçando as contradições das lutas sociais envolvendo negros,
brancos pobres e imigrantes ou mestiços, tendo como contradição
central o apartamento desses múltiplos setores como método privilegiado
de evitar a conflagração de lutas populares unificadas.
Importante destacar nesse ponto que a ideia de raça é fundada a partir
da luta de classes de anglo-americanos e afro-americanos contra a
classe dominante colonial europeia durante o processo de transição
americana ao capitalismo. Assim, a ideia de raça surge em primeiro lugar
como a ideia de “supremacia branca”, utilizada pela classe dominante
para dividir os trabalhadores brancos e negros americanos, justificando a
transição de um sistema de exploração de ambos baseado no trabalho
por dívida por tempo determinado para um sistema escravista por tempo
indeterminado, que foi imposto somente aos negros. Nota-se que a ideia
de raça surgiu então como um artifício para dividir a classe trabalhadora
na luta por impedir um processo da acumulação capitalista que
intensificava a sua exploração, que passou a se acelerar no século XVIII.
De fato, tanto escravidão quanto discriminação e exploração não se
vinculavam à cor da pele antes da constituição desse fenômeno histórico.

Assim, o caso dos Estados Unidos, a partir do século XVIII, constrói a


ideia de raça branca que levou irlandeses – historicamente discriminados
e explorados na Europa – a reproduzir futuramente sobre negros a
mesma ideia de sub-humanidade que outrora produziram discriminação
concreta sobre outros grupos sociais – entre eles e prioritariamente –
sobre os próprios irlandeses.

Nesse sentido, a ideia de identidade foi sendo modificada ao longo de


processos históricos que descaracterizaram sua proposta inicial. Haider
(2019) quer dizer por “diferente da sua forma inicial” a orientação
revolucionária do Coletivo Combahee River que, num de seus textos, “A
Black Feminist Statement”, criticava o racismo e o sexismo na esquerda:
“Somos socialistas porque acreditamos que o trabalho deve ser
organizado para o bem coletivo daqueles que fazem o trabalho e criam
os produtos, e não para o lucro dos patrões. Os recursos materiais
devem ser igualmente distribuídos entre aqueles que criam esses
recursos. Porém não estamos convencidos de que uma revolução
socialista que não seja também uma revolução feminista e antirracista
garantirá nossa libertação.” (CCR apud HAIDER, 2019, p. 30)

E continuam:

“Nunca acreditei que o Combahee, ou outros grupos feministas negros


de que participei, deveria focar apenas questões que diziam respeito a
nós, mulheres negras. Ou que, como mulheres lésbicas/bissexuais,
devêssemos focar apenas questões que diziam respeito a lésbicas. É de
fato importante notar que o Combahee foi fundamental na fundação de
um abrigo local para mulheres vítimas de violência. Trabalhamos em
aliança com ativistas comunitários, mulheres e homens, lésbicas e
pessoas heterossexuais. Éramos muito ativas no movimento por direitos
reprodutivos, apesar de, naquele tempo, a maioria de nós ser lésbica.
Formamos aliança com o movimento dos trabalhadores porque
acreditávamos na importância de apoiar outros grupos, mesmo se as
pessoas naquele grupo não fossem todas feministas. Entendíamos que a
construção de alianças era crucial para a nossa própria sobrevivência.”
(CCR apud HAIDER, 2019, p. 177-178)

Haider (2019, p. 31) afirma que “para o CCR, a prática política feminista
significava, por exemplo, participar dos piquetes durante greves na
construção civil durante os anos 70.” Portanto, ao longo da década de
60, o partido dos Panteras Negras, continua Haider (2019):

“teve que navegar entre duas preocupações. Eles reconheciam que os


negros foram oprimidos numa base especificamente racial e que,
portanto, tinham que se organizar de forma autônoma. Mas, ao mesmo
tempo, falar de racismo sem falar de capitalismo é esconder o que é
necessário para que o povo tenha de fato o poder em suas mãos.
Apenas cria uma situação em que o policial branco é substituído pelo
policial negro. Para os Panteras isso não era uma libertação.”
Segundo o CCR (apud HAIDER, 2019), os grandes sistemas de
opressão estão interligados.
Nacionalismo Revolucionário e Nacionalismo Reacionário
À orientação que considera a interligação entre os sistemas de opressão,
o autor (HAIDER, 2019) chama de nacionalista revolucionária, pois tinha
as lutas históricas entre as classes sociais (trabalhadores e burguesia)
como horizonte. Huey Newton (apud HAIDER, 2019, p. 36) afirma que há
dois tipos de nacionalismo – o nacionalismo revolucionário e o
nacionalismo reacionário:
“O nacionalismo revolucionário depende primeiro da revolução popular,
tendo como objetivo final o povo no poder. Portanto, para ser um
nacionalista revolucionário é necessário ser um socialista. Um
nacionalista reacionário não é um socialista, e o seu objetivo final é a
opressão do povo.”

O nacionalismo de uma forma geral funciona a partir da defesa de uma


abstração de conjunto totalizante de uma determinada população como
forma de legitimar e dar coesão ao próprio estado burguês, pois sem
estado não há qualquer serventia para a manutenção da ideia de uma
nação. O nacionalismo revolucionário ainda guardava muitos limites
neste sentido, pois não seria possível emancipar os trabalhadores por
meio de uma simples independência nacional, cujo qual pode
simplesmente não existir frente as relações entre economias centrais e
periféricas. Estas configuram-se como um capitalismo dependente,
segundo Ruy Mauro Marini (2000).

Ainda assim, a perspectiva defendida por Newton é muito mais avançada


que a orientação identitária liberal pós-moderna, pois pensa a luta
integrada com os diversos segmentos da classe trabalhadora que sofre
as consequências devastadoras do capitalismo. Para Newton
(apud HAIDER, 2019, p. 41), “o nacionalismo implicava uma perspectiva
política: ativistas negros se organizando em vez de seguirem a liderança
de organizações de brancos, construindo novas instituições em vez de
buscarem entrar na sociedade branca.” Como afirma Haider (2019, p.
37), “trata-se de uma conclusão óbvia quando se entende o socialismo
do modo que Huey Newton entendia: com o povo no poder”. E continua
(grifos nossos):
“Ele não pode ser reduzido à redistribuição de riqueza ou à defesa do
Estado de bem-estar social – socialismo é definido em termos do
poder político do povo. Portanto, não apenas o socialismo é um
componente indispensável da luta dos negros contra a supremacia
branca, mas a luta anticapitalista deve incorporar a luta pela
autodeterminação dos negros.”  (HAIDER, 2019, p. 37)
As contradições das mobilizações nacionalistas, porém, ressalta Haider
(2019, p. 41), vieram “na forma daquilo que Huey Newton descreveu
como “nacionalismo reacionário”, representado por grupos como a US
Organization, de Ron Karenga, com a qual os Panteras iriam mais tarde
entrar em conflito virulento.” E continua Haider (2019, p. 41):
“Como Newton apontou, o nacionalismo reacionário apresentou uma
ideologia de identidade racial, mas era baseado também em um
fenômeno material. A desagregação tornou possível a empresários e
políticos negros entrarem na estrutura de poder americana numa escala
que não havia sido possível anteriormente. E essas elites foram
capazes de usar a solidariedade racial como meio de encobrir suas
posições de classe. Se eles dissessem representar uma comunidade
racial unitária com um interesse unificado, poderiam suprimir as
demandas dos trabalhadores negros, cujos interesses eram, na
realidade, totalmente diferentes dos deles.” (grifos nossos)
Mas como esse processo de instrumentalização da solidariedade por
uma elite se relaciona com a identidade? Num dos diversos textos
pesquisado sobre o assunto, foi encontrada a seguinte definição de
identitarismo, sem indicação do autor, presente nos comentários do
texto “Luta de classes e “identitarismo”: emocionados no reino da
ignorância iluminada”, de Heribaldo Maia (2019, online):
“Grosso modo é a ideia de que a pessoa seria totalmente
determinada por algumas de suas propriedades e teria de agir de
acordo com as expectativas criadas sobre essas propriedades. Por
exemplo, um ser humano tem várias características que o tornam único,
mas você tem de se agarrar a apenas uma ou algumas delas e moldar
seu comportamento e ideias a partir disso. Um gay deve moldar seu
comportamento e ideias baseados na sua característica de ser gay. Todo
o resto do que faz dele um indivíduo único deve ser deixado de lado. E,
sendo gay, ele deve se comportar assim e assado. Politicamente falando,
é a ideia de que não existe nada que una a maior parte das pessoas, por
exemplo, não ser proprietário dos meios de produção. Cada grupo deve
se agarrar a particularismos de tal e tal grupo e faz com que o
capitalismo se adapte ao fato de que existem vários grupos com
diferentes expectativas de consumo e inserção na sociedade do
mercado. Não é possível então criar um movimento que respeite as
aspirações da maior parte das pessoas e tampouco tentar mudar o
sistema em que estamos.” (grifos nossos)
A identidade molda a experiência imediata das pessoas, mas para além
disso é preciso pensar que as classes sociais se antagonizam no
processo produtivo do capital, o que implica na divisão social do trabalho
e toda sua alienação decorrente que muda de acordo com as
transformações e crises do capitalismo. Por mais que nos Estados
Unidos houvesse a Rights Act de 1964, que tornou ilegal a segregação
racial, e o Voting Rights Act, de 1965, sobre o direito de voto, a estrutura
opressora permaneceu. O que nos chama atenção é a clara apropriação
da direita por essas pautas o que deve na verdade nos preocupar. O
autor (HAIDER, 2019, p. 31) cita o exemplo da campanha da Hillary
Clinton, “que adotou a linguagem da “interseccionalidade” e
do “privilégio”, utilizando-se da política identitária para combater o
surgimento de uma opção de esquerda no Partido Democrata em torno
de Bernie Sanders.”
As armadilhas da identidade
É nesse contexto histórico de produção concreta de desigualdades que a
armadilha da identidade mostra seus contornos. Mas, questiona Silvio
Almeida (2019, p. 09), “como a identidade pode ser uma “armadilha” se
dentro dela já inevitavelmente estamos?” Eis aí a questão central. Para
Haider (2019, p. 31):
“O que começou como uma promessa de superar algumas limitações do
socialismo, de modo a produzir uma política socialista mais rica, mais
diversa e inclusiva, terminou sendo aproveitado por aqueles com uma
política diametralmente oposta àquelas do CCR.”

De forma bastante reducionista, podemos dizer que armadilha é um


“artifício para capturar ou seduzir alguém” (AULETE, s/d, online). Nesse
sentido, como só pode fisgar incautos, será também uma indicação de
perigo para quem estiver atento. Da mesma perspectiva, identidade é um
estado de paridade absoluto, é a “circunstância de um indivíduo ser
aquele que diz ser ou aquele que outrem presume que ele seja”.
Enquanto dinâmica de socialização, pode-se dizer que é caracterizada
pela troca de impressões subjetivas, de compenetração no sentimento ou
no pensamento alheio, se alinhando de forma coesa em uma
conformação que resulta na fusão ou confusão das identidades
individuais em uma outra, única, coletiva. Analogamente, cria-se, como
consequência, uma dinâmica de diferenciação dessa identidade coletiva,
então unificada, de outros grupos que não compartilhem das mesmas
características ou cujas ideologias ou metodologias sejam consideradas
politicamente incompatíveis.
De fato, não é possível pensar o capitalismo sem a opressão de raça, no
entanto, é fundamental entender como essa associação se dá a fim de
atacar suas causas e não seus efeitos, sua aparência.

As armadilhas identitárias num olhar webero-marxista: luta de


classes e estratificação social
Embora seja um método de organização coletiva – onde é possível
identificar, enquanto tipos ideais weberianos, quem são oprimidos e
quem são opressores – urge estar (e sempre é preciso estar) atento às
armadilhas provocadas pelos desdobramentos desse processo de
organização social. A indignação – enquanto um dos sentimentos
possíveis e legítimos – capaz de levar à formação de grupos identitários
na luta antirracista, frequentemente é cooptada pela lógica fetichizadora
do capital, cujo racismo intrínseco acaba por direcionar essa luta para
seus próprios propósitos de automanutenção.
A fetichização, nesse caso, ocorre quando a percepção das relações
entre pessoas é substituída por relações econômicas, com valor
intrínseco associado a essas últimas em detrimento das primeiras. Nesse
sentido, a produção de grupos identitários com características
predefinidas e socialmente impostas, como colocado por Heribaldo Maia
(2019), conforma-se como o primeiro passo para transformá-las em
mercadorias: commodities negociáveis em relações de consumo. Oculta-
se então o trabalho intelectual concreto – aqui entendido como produção
de conteúdo e dados para as redes sociais – envolvido nessas relações,
transformando-o em mero objeto de troca, o qual se acredita ter valor
intrínseco traduzível em moeda de troca.
O processo acima descrito se refere ao âmbito econômico da perspectiva
marxista (MARX, 2017), mas procuraremos fazer também uma
contextualização no que diz respeito ao consumo – enquanto formação
de classes a partir do poder aquisitivo direcionado a nichos de mercado –
e no que tange aos aspectos sociais e institucionais numa perspectiva
weberiana (LEMOS, 2012), quando se considera poder de influência e
acesso a bens culturais, sociais e políticos.
Identidade enquanto mercadoria: a visão marxista
É necessário, nesse ponto, uma breve digressão para compreender a
relação estabelecida acima de identidades enquanto mercadorias, haja
vista que a produção de dados estatísticos sobre – e a partir de –
coletividades já é tratada como tal atualmente. Este processo se iniciou
no início do século XXI, quando os estudos de marketing e administração
passaram a utilizar a lógica de nichos de mercado. No livro “A cauda
longa” – conceito capaz de evidenciar a construção histórica dessa nova
perspectiva mercadológica – Chris Anderson (2006) demonstra
estatisticamente que é mais lucrativo investir em produtos que não
sejam mainstream, ou seja, em nichos de mercado:
“A escassez requer “hits”. Se houver apenas algum espaço disponível
nas prateleiras só é sensato preenchê-lo com os artigos que venderão
melhor. E se for apenas isso que está disponível, é apenas isso que as
pessoas vão comprar. Mas e se houver espaço infinito? Talvez os “hits”
sejam a maneira errada de olhar para um negócio. Afinal, existem muitos
mais não-“hits” do que “hits” e agora ambos estão igualmente
disponíveis. E se os não-“hits” (…) todos juntos equivalerem a um
mercado tão grande, se não maior, quanto ao dos “hits” em si?”
(ANDERSON, 2006, p. 08)

Não por acaso, empresas como Netflix, Apple e Amazon passaram a


utilizar essa estratégia, pois os grandes conglomerados se beneficiam
dessa lógica ao disponibilizarem bens e serviços em larga escala a
preços baixos, substituindo pequenos produtores que antes
comercializavam esses bens a um custo elevado e de forma local.
Nesse sentido, pensando a transformação da identidade em mercadoria,
buscamos a seguinte analogia (grifos nossos):
Uma mercadoria, portanto, é algo misterioso simplesmente porque nela o
caráter social do trabalho dos homens aparece a eles como
uma característica objetiva estampada no produto deste; […] (MARX,
2017, p. 147)
A “característica objetiva estampada no produto do trabalho”, no contexto
deste artigo e dessa argumentação, é a identidade reificada, ou seja, a
característica extrínseca a partir da qual se define a identidade: não
como resultado de um processo histórico baseado em elementos
concretos dialeticamente constituídos, mas como um estereótipo –
enquanto conjunto de características estanques – que a define. Seguindo
com a analogia (grifos nossos):
[…] porque a relação dos produtores com a soma total de seu próprio
trabalho (…) é apresentada a eles como uma relação social que
existe não entre eles, mas entre os produtos de seu trabalho. […]
(MARX, 2017, p. 147)
Entenda-se aqui “produtores” enquanto produtores de conteúdo e
dados para as redes sociais que também podem ser entendidos como
produtores de trabalho intelectual de abstração e performance social,
cuja soma total compreende o conjunto de dados obtidos – devidamente
tratados estatisticamente pelas empresas que os coletam. Essa “soma
total”, ou seja, esse conjunto de dados que configura uma identidade
coletiva, apresenta-se para aqueles que a produziram como uma relação
entre os produtos de seu trabalho, em outras palavras, entre suas
identidades reificadas, não como uma relação historicamente constituída,
entre pessoas que são atravessadas por múltiplas características
extrínsecas e intrínsecas que constituem – ou deveriam constituir – a
base de sua ação política ligada as contradições que se apresentam em
sua realidade material.
Note-se que a mesma analogia pode ser feita com relação a produção
acadêmica sobre alguma identidade específica ou a constituição de
identidades jurídicas no âmbito institucional do Estado.  Prosseguindo
com a analogia (grifos nossos):
[…] A existência das coisas enquanto mercadorias, e a relação de valor
entre os produtos de trabalho que os marca como mercadorias, não têm
absolutamente conexão alguma com suas propriedades físicas e com as
relações materiais que daí se originam… É uma relação social definida
entre os homens que assume, a seus olhos, a forma fantasmagórica de
uma relação entre coisas. (MARX, 2017, p. 147)

Por “relação de valor entre os produtos de trabalho que os marca como


mercadorias”, pode-se entender aqui como a relação de valor entre
o conteúdo e dados produzidos em rede que os caracteriza como
mercadorias. Estas evocam um valor simbólico fruto das interações
sociais entre pessoas concretas: o significado da identidade para quem a
produz. Por sua vez, a identidade associando-se à preferência por
determinadas marcas, bens e serviços, que não têm nenhuma relação
com a realidade concreta das pessoas que os consomem. A relação
entre os indivíduos, que gera o trabalho intelectual que se traduz na
mercadoria “conteúdo e dados produzidos em rede”, também gera
relações concretas historicamente constituídas, mas não se percebe a
relação entre as duas, pois a “relação entre coisas” mascara essa
relação entre pessoas. Em outras palavras, as relações de mercado
“tomam ares” de relações políticas de modo que se tem a impressão de
que a substituição não faz diferença. Mas faz. Basta dizer que se política
é pautada pela disputa por recursos comuns, a lógica que dá a
impressão de que as relações se dão entre coisas – não entre pessoas –
distorce o propósito da política para a satisfação não das necessidades
das pessoas, mas da produção de coisas.
Garante-se assim, a expansão do capital em seu já citado processo de
automanutenção. Como a mercadoria agora atende a nichos identitários,
estes grupos, resultantes da agregação social de produções subjetivas –
através do trabalho gratuito de produção de conteúdo para as redes
sociais – passam a ser o combustível que organiza a produção de
informações estruturadas que permitem manter e ampliar a produção de
mercadorias que atenda aos nichos de mercado consumidor. Em outros
casos, reativa nichos em decadência, como no caso de camisas de
malha unissex que agora carregam a expressão “não-binárie” de forma
destacada.

Um breve adendo: a identidade no mercado cultural


Sobre essa situação, vale comentar como se reproduz a identidade na
lógica da indústria cultural, haja vista nosso interesse nesse tema.
Enquanto artistas independentes de esquerda que se organizam
coletivamente, somos atravessados por diferentes perspectivas
ideológicas, numa dialética que evidencia uma clara contradição: somos
independentes por que rejeitamos os pressupostos de ampla
padronização da arte ou por que não conseguimos nos inserir por
inadequação técnica, ideológica ou estética?

Acreditamos, baseados na observação de nossa realidade, que existem


ambos os tipos de artistas independentes: aqueles que “buscam um
lugar ao sol” do mercado e aqueles que buscam a marginalidade
concreta a esse mesmo sistema, no sentido de pensar em alternativas à
relação capitalista de produção. Assim, o conceito do que se entende por
artista independe varia para cada um dos casos. No primeiro, trata-se
daquele que é independente porque executa também tarefas acessórias
– tais como produção executiva, divulgação, atividades técnicas e
articulação com outros artistas e com instituições – associando-as à sua
atividade-fim: a expressão artística em si. Têm independência
operacional da indústria cultural. No entanto, quando pensamos em
artistas independentes que optam por distanciar-se dessa indústria por
discordar de sua finalidade, temos o segundo caso: aqueles que se
consideram independentes porque pretendem autonomia deste mesmo
sistema. Note-se que essa definição é apenas mais ampla que a
primeira, não excluindo, portanto, as prerrogativas do primeiro caso: a de
trabalhadores que executam tarefas acessórias à sua atividade principal.
O que ocorre com artistas que buscam autonomia da indústria
cultural mainstrean é a ampliação do conceito para uma perspectiva
coletiva, em que a divisão social do trabalho é homogeneamente
distribuída entre todos e as decisões são tomadas coletivamente, num
processo de formação profissional, intelectual, socioafetiva e política.
Ocorre, no entanto, que a marginalidade do sistema hegemônico já foi
cooptada pelo capital, no sentido de apresentarem-se dois horizontes
para a indústria cultural, num processo dialético de marginalidade da
espetacularização e espetacularização da marginalidade. A
marginalidade da espetacularização diz respeito à capilaridade do poder
de produzir sozinho o espetáculo (aqui entendido na maior facilidade da
produção de conteúdo na internet e nas redes sociais). Já a
espetacularização da marginalidade, a sua legitimação enquanto
espetáculo. Assim o artista independente periférico passa a associar-se a
estéticas específicas que assim o categorizam, inserindo-se, portanto, na
lógica do mainstream. O que antes era lido como marginal, subversivo,
fora do padrão, ganha lugar no “centro do palco”, num processo de
assimilação do capital para viabilizar sua própria expansão. Esse
mecanismo se vale também da lógica identitária para produzir essa ideia
de marginalidade, como nichos estéticos para o mercado de consumo da
cultura.
Ironicamente, se o que era marginal passa a uma posição de
protagonismo e centralidade, novas marginalidades necessariamente se
produzem. Resta ao segundo tipo de artista independente – que deseja
manter-se fora da estrutura hegemônica – identificar na realidade
concreta que marginalidades são essas. E então negá-las, pois:

“[…] a arte como força política é somente arte enquanto preserva as


imagens da libertação; em uma sociedade que é em sua totalidade a
negação dessas imagens, a arte pode preservá-las somente através da
recusa total, isto é, não sucumbindo aos padrões da realidade sem
liberdade, seja em estilo, ou na forma, ou na substância. (MARCUSE
apud SILVEIRA, 2009, p. 46)

Uma pista então para identificar essas novas marginalidades talvez seja
justamente a rejeição das estéticas ou temas progressistas, que
substituem a emancipação coletiva pelo festivo domínio da marginalidade
como glamourização, portanto, entretenimento confortador. Trata-se de
lógica notoriamente inserida no campo da competição, haja vista sua
predisposição para produzir mercadorias – enquanto produtos culturais
resultantes da expressão artística – cujo capital simbólico reitere a
centralidade da identidade per se. Aqueles que forem capazes de melhor
expressar as expectativas sobre determinada identidade, serão aqueles
que obterão maior retorno financeiro e de reconhecimento social para
suas obras, inserindo-se com sucesso no mercado da indústria cultural.
A produção cultural baseada nessas premissas certamente produz
capital simbólico – no âmbito das abstrações – e novas elites na classe
artística – do ponto de vista das relações sociais. É sobre esse processo
de estratificação – que não se restringe à classe artística, mas à toda
classe trabalhadora – que abordaremos a seguir.
Identidade enquanto estratificação social: a visão weberiana
Subjacente às relações entre os detentores dos meios de produção e o
proletariado, anteriormente explicitadas, aplica-se a análise baseada na
estratificação econômica em relação a capacidade aquisitiva proposta
por Weber (apud LEMOS, 2012). Desse modo, se constituem “classes”
weberianas de acordo com a capacidade de consumo de determinados
grupos, como acontece com o denominado “Pink Money” em relação a
população LGBTI e, mais recentemente, o “Black Money”, relacionado à
população de pessoas autodeclaradas negras. De fato, as duas
abordagens – marxista e weberiana – se entrecruzam neste caso. Assim,
a classe dominante utiliza a subdivisão da classe trabalhadora em nichos
de mercado diferentes como mais um elemento desagregador das
pautas comuns – interesses semelhantes de grupos oprimidos distintos –
em interesses de consumo diversificados. E estimula a constituição
dessas diferenças através da diversificação cada vez maior de
mercadorias, cuja ampliação de escopo as potencializa ainda mais à
medida que se amplia seu consumo.
Note-se que, ao abordar a perspectiva marxista na seção anterior, o
tema central era a exploração por parte das classes dominantes –
enquanto empresariado dono dos meios de comunicação – na
identificação e posterior estímulo ao consumo de mercadorias que
atendam a esses nichos. Já na perspectiva weberiana, analisamos o
fenômeno que se dá a partir desse primeiro movimento: a constituição de
classes de consumo que competem entre si por satisfação de interesses
particulares na busca por ampliar seu poder de dominação econômica,
social e política, pois quanto maior a posse de bens e a amplitude de
consumo de serviços relacionados a um determinado nicho, mais se
aprofunda o processo de identificação amparado pelas relações sociais
mediadas pelas mercadorias consumidas (consequentemente aumenta
também o poder de influir nas decisões de compra de seus pares).
Social, pois o consumo ampliado de mercadorias que associem o
consumidor à identidade que ele deseja projetar, tende a aumentar
seu status naquela comunidade identitária (fora do âmbito econômico
estrito, quanto maior a produção intelectual relacionada àquela
identidade, maior será a relevância social do indivíduo que a veicule).
Política, no âmbito institucional principalmente, à medida que é capaz de
mobilizar a constituição de subjetividades jurídicas – na esfera pública –
e contratuais – na esfera privada – que garantam direitos a uma
determinada minoria política ou nicho de mercado, respectivamente (aqui
entendidos ambos como grupos identitários).
Assim, em complementação à abordagem econômica, já demonstrada,
as demandas político-institucionais – a influência nas decisões
políticas através das relações de dominação – e socioculturais – o
status ou prestígio relacionado ao acúmulo de bens simbólicos – também
ganham relevância na análise da dinâmica do identitarismo.
Com relação aos aspectos socioculturais, é possível relembrar um
episódio histórico, já mencionado no início deste artigo, que esperamos
ser suficiente para evidenciar como se dão essas relações sociais na
constituição de um fetichismo baseado na lógica de mercado em última
instância. Relembramos, então, o próprio Asad Haider (2019), quando
menciona o movimento do “nacionalismo reacionário”, no qual a elite, por
meio da mobilização de um capital simbólico derivado das lutas raciais,
desvia-se de questões concretas que atingem a totalidade da classe
trabalhadora: tanto negra enquanto minoria política, quanto a de outras
etnias. No mesmo sentido, é possível citar a solidariedade racial entre
elites brancas que se constitui como fonte de manutenção de prestígio
enquanto acúmulo de bens simbólicos: seja na produção intelectual, seja
na definição da etiqueta vigente ou do que consideram como referência
estética aceitável.
Já no que diz respeito aos aspectos político-institucionais, dois exemplos
bastante atuais – demandas por políticas públicas compensatórias em
detrimento das construtivas (MULLER, 2018) e eleições no sistema
representativo social-democrata – os quais são descritos brevemente a
seguir – poderão ser capazes de demonstrar como a dinâmica identitária
pode se constituir como uma armadilha nesse campo.

Assim, no que se refere às políticas públicas, basta mencionar a


demanda por ações do Estado no sentido de buscar reparações
históricas sem considerar a necessidade de concomitantemente pleitear
reformas mais profundas. De fato, o que não fica explícito neste processo
é a subjetivação jurídica que as inscreve em marcos legais e
institucionais que camuflam a necessidade de transformação da estrutura
que gera as desigualdades. Enquanto as políticas compensatórias são
concedidas sistematicamente pelo Estado, ainda que a conta-gotas, são
convenientemente deixadas de lado as políticas construtivas – aquelas
que constroem projetos com o objetivo de avançar na reconfiguração da
sociedade enquanto políticas capacitadoras. Ainda que seu viés seja
reformista, é clara a diferença entre priorizar apenas políticas
compensatórias e propor políticas ativas/positivas. Em alguma medida,
estas últimas representariam um avanço mais significativo no sentido de
diminuir desigualdades sociais em seus aspectos constitutivos, ainda que
sua lógica esteja inscrita no limitado escopo da socialdemocracia. Nesse
sentido, a armadilha identitária se apresenta quando a identidade é
considerada como o único viés de reconhecimento de pautas políticas.
Ao priorizar demandas que atendam somente a questões de minorias,
não pode ensejar identificar as demandas mais universais, tanto do ponto
de vista reformista – à medida que ajustes estruturais podem vir a
beneficiar os menos favorecidos, entre eles uma dada minoria política de
referência – seja do ponto de vista revolucionário – haja vista que pautas
comuns a todas as minorias oprimidas tem maior potencial de
mobilização para a luta política.

Com relação ao segundo exemplo – as eleições no sistema


representativo – basta mencionar que a política institucional na
socialdemocracia não é capaz de dar conta das demandas de autonomia
libertária da classe trabalhadora como um todo. Além disso, o fato de
determinada identidade ganhar representatividade política não significa
necessariamente que trabalhará em defesa dos melhores interesses do
grupo que diz representar. Deste modo, quando a identidade se torna
uma referência tautológica, corre-se o risco de considerar válida qualquer
candidatura apenas pela sua autoproclamação identitária, sem
considerar a sua proposta política ou mesmo seu posicionamento
ideológico. O caso Obama é clássico nesse sentido: embora seja muito
significativo simbolicamente ter um casal negro no mais alto cargo
executivo dos EUA, isso não significou mudanças concretas para a
comunidade negra americana como um todo, nem da perspectiva
reformista, nem da revolucionária.

O populismo autoritário e a
cultura do cancelamento
Destacamos aqui, entre os exemplos de armadilhas da identidade, o
fenômeno denominado “populismo autoritário”, cunhado por Stuart Hall,
que é citado no artigo de Achille Mbembe (2016), “A era do humanismo
está terminando”. O autor (MBEMBE, 2017, online) denomina o mesmo
fenômeno de “autoritarismo liberal”:
O principal choque da primeira metade do século XXI […] será entre
a democracia liberal e o capitalismo neoliberal […]. Apoiado pelo
poder tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua
hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos
desejos humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo
na primeira teologia secular global. Combinando os atributos de uma
tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas inquestionáveis
que as formas modernas de capitalismo compartilharam
relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra –
a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria
e da propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão. Cada um
destes artigos de fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a democracia
liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo
financeiro. É provável que o choque entre estas duas ideias e princípios
seja o acontecimento mais significativo da paisagem política da primeira
metade do século XXI, uma paisagem formada menos pela regra da
razão do que pela liberação geral de paixões, emoções e afetos.
(grifos nossos)
Assim, nos interessa destacar o que diz respeito à “liberação geral de
paixões, emoções e afetos” mencionada por Mbembe (2017, online),
como uma das armadilhas da identidade pela ênfase que dá ao viés
exclusivamente subjetivo enquanto modo de interpretação da realidade.
Por mais válido e legítimo individualmente que seja reconhecer traumas,
visões de mundo, impressões e percepções – compartilhando-as para
buscar sua superação através das trocas afetivas – constituir identidades
coletivas apenas a partir dessas percepções fracionadas embota a visão
objetiva, necessária a uma articulação social ampla. Impede-se, assim, a
organização a partir de pautas políticas comuns: coletivas enquanto
conjunto de ações propositivas universais, não de alinhamento
comportamental e personalista. Enquanto isso, detentores dos meios de
produção utilizam esses dados objetivos para ampliarem sua dominação
no sentido de definirem os critérios pelos quais as relações entre
pessoas se darão, substituindo de forma cada vez mais profunda o papel
do Estado e as próprias relações sociais concretas (grifos nossos):
“Em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas
serão tudo o que conta. As estatísticas e outros dados importantes serão
derivados principalmente da computação. Como resultado da confusão
de conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a
qualquer pessoa que não tiver nada para vender. A noção humanística e
iluminista do sujeito racional capaz de deliberação e escolha será
substituída pela do consumidor conscientemente deliberante e eleitor. Já
em construção, um novo tipo de vontade humana triunfará. Este não
será o indivíduo liberal que, não faz muito tempo, acreditamos que
poderia ser o tema da democracia. O novo ser humano será
constituído através e dentro das tecnologias digitais e dos meios
computacionais.” (MBEMBE, 2017, online)
Considerando que Mbembe escreveu este artigo em 2016, quando ainda
não estávamos no contexto da pandemia de COVID-19, tendemos a
acreditar que sua análise de conjuntura tome contornos ainda mais
graves, à medida que constatamos a intensificação das relações digitais. 
Nesse sentido, outra armadilha que a identidade traz é a individualização
das pautas políticas que acabam por convergir no compartilhamento e
circulação de sentimentos em comum, especialmente nas redes. Não é
de se admirar que, num contexto de opressão que se dá constante e
consistentemente, o ódio e o ressentimento se tornem um dos elementos
emocionais em torno dos quais se constituem a forma de manutenção
dessas identidades coletivas. Como coloca Mbembe (2017, online):
A era computacional – a era do Facebook, Instagram, Twitter – é
dominada pela ideia de que há quadros negros limpos no
inconsciente. As formas dos novos meios não só levantaram a tampa
que as eras culturais anteriores colocaram sobre o inconsciente,
mas se converteram nas novas infraestruturas do inconsciente.
Ontem, a sociabilidade humana consistia em manter os limites sobre o
inconsciente. Pois produzir o social significava exercer vigilância sobre
nós mesmos, ou delegar a autoridades específicas o direito de fazer
cumprir tal vigilância. A isto se chamava de repressão. A principal função
da repressão era estabelecer as condições para a sublimação. Nem
todos os desejos podem ser realizados. Nem tudo pode ser dito ou
feito. A capacidade de limitar-se a si mesmo era a essência da
própria liberdade e da liberdade de todos. Em parte, graças às formas
dos novos meios e à era pós-repressiva que desencadearam, o
inconsciente pode agora vagar livremente. A sublimação já não é mais
necessária. A linguagem se deslocou. O conteúdo está na forma e a
forma está além, ou excedendo o conteúdo. Agora somos levados a
acreditar que a mediação já não é necessária. Isso explica a crescente
posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um
desprezo geral pela democracia. […] No entanto, sob as condições do
capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal
sublimada. (grifos nossos)
Assim como Amazon, Netflix e Apple utilizam a estratégia de estimular o
consumo baseado em nichos mercadológicos, as redes
sociais, Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp promovem a criação
de bolhas estanques, baseadas em preferências políticas, entre outras
impossíveis de serem definidas, haja vista o hermetismo do
funcionamento dos algoritmos que as regem. O fato é que surgem
fenômenos como a instrumentação da linguagem: apagando a
polissemia de palavras e expressões, que passam a ser censuradas
indiscriminadamente, desconsiderando seu contexto e semiótica.
Também a repetição sistemática de temas específicos, baseado nas
preferencias e comportamento virtual dos usuários, dificulta sua
autonomia na interlocução com pontos de vista diferentes. Em redes
sociais com as mencionadas, a lógica de mercado, assim como a lógica
de segregação, já está posta pelos próprios algoritmos à medida que
estabelecem critérios de interação e seleção de conteúdo. Já
mencionamos também a questão do estímulo ao consumo segmentado,
baseado em preferências a partir da coleta de dados provenientes do
que os usuários escrevem, do que curtem e mesmo do que falam em voz
alta. Geram-se assim dados que são vendidos para outras empresas
anunciantes ou mesmo governos que desejem influenciar resultados
eleitorais, como já é de conhecimento geral. Achille Mbembe continua
(2017, online):
O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos
destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que
seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça
existencial. […] Neste contexto, os empreendedores políticos de maior
sucesso serão aqueles que falarem de maneira convincente aos
perdedores, aos homens e mulheres destruídos pela globalização e
pelas suas identidades arruinadas. […] Em um mundo centrado na
objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação
da política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política em
negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política.

No entanto, um fenômeno social que destacamos do autoritarismo


liberal de Mbembe (2017), no sentido que nos interessa discuti-lo – dada
a sua relação direta com o identitarismo –, é a chamada “cultura do
cancelamento”.
Caracterização da cultura do cancelamento
A cultura do cancelamento não é nova. Com o advento da pós-
modernidade, enquanto sintoma dessa cisão progressiva entre a
democracia liberal e o capital financeiro, ganhou novas formas e
desenvolveu seus próprios métodos. Trata-se tão somente da eliminação
por meio do constrangimento de adversários ou potenciais perigos que
possam causar dissonância na dinâmica interna de um determinado
segmento social/político. Os métodos utilizados hoje privilegiam a
internet como ferramenta potente na exposição pública de determinados
perfis nas redes sociais. Os que são cancelados, porém, não são
quaisquer indivíduos. Eles precisam ter algum tipo de visibilidade, o que
funciona como elemento que ajuda a reverberar o estrago causado,
servindo de exemplo aos demais. Segundo Wilson Gomes escreve no
texto “O cancelamento da antropóloga branca e a pauta
identitária” (grifos nossos):
“Cancelamentos e linchamentos são hoje das ações mais banais das
estratégias dos identitários, sejam esses de esquerda ou de direita,
principalmente depois que grande parte das nossas vidas passou a
transcorrer em direta relação com ambientes digitais. Nesses ambientes
é que se consegue facilmente mobilizar enorme montante de pessoas,
insuflar em grandes massas um estado de indignação moral ou furor
ético e, enfim, colocar alvo em pessoas, instituições e atos na direção
dos quais toda a fúria deve ser dirigida. Para o linchamento e o
cancelamento digitais se requer, antes de tudo, uma multidão unida por
algum sentimento de pertencimento recíproco, motivado pela
percepção de que todos estão identificados entre si por algum
aspecto essencial da sua própria persona social. Um recorte comum,
por meio do qual são separadas e antagonizados, de um lado, o “nós”,
de dentro do círculo, e, de outro, “eles”, os de fora.”  (GOMES, 2020,
online)
A projeção social do cancelado, ao passo que é prejudicado, é
inversamente apropriado pelo cancelador ou pela horda que cancela,
estando em disputa também o público que assiste ao espetáculo:
reagindo por meio de curtidas, compartilhamentos e comentários,
operando como pequenos espoliadores desses eventos. A derrota do
cancelado fica ainda mais evidente quando este se redime perante o
tribunal virtual como foi o caso da antropóloga Lilia Schwarz. A culpa e a
vergonha são amenizadas e às vezes o cancelado pode até ser
readmitido, mas não sem as marcas do passado. O cancelamento é não
só um método perverso de ódio e justiçamento, mas um meio eficiente
de burlar a complexidade de debates históricos e teóricos e,
principalmente, os antagonismos entre as linhas teóricas em disputa.

Existe uma seletividade no cancelamento e isso tem relação direta com o


funcionamento e métodos identitários. Todo mundo pode um dia ser
linchado digitalmente, explica Wilson Gomes (2020, online):
“[…] mas só pessoas com visibilidade e importância social e, o que é
mais importante, que pareciam vinculadas a ou simpatizantes da pauta
identitária, é que podem ser canceladas. O cancelamento envolve
ruptura e luto, uma vez que o cancelado tem que ter representado
alguma coisa para quem o cancela, mas o sentido de ultraje moral e fúria
linchadora é mesma.”

O cancelamento, portanto, é um método de acusação feito “aos gritos”


onde não existem argumentos, debates e espaço para o contraditório. O
cancelamento é uma prática de demonstração de poder, de influência
pela ameaça e de ação metódica na construção de párias sociais:
sujeitos sem prestígio ou credibilidade. Por isso, o cancelado passa a se
autopoliciar de forma que o medo se torna uma marca perene. Excluir
socialmente, recontar a história do cancelado – ressaltando todos os
seus pontos negativos e inculcando sua incapacidade de regenerar-se –
é o legado do cancelamento. Nesse sentido, trata-se então da prática da
pequena política, daquilo que não ofende o sistema exploratório geral:
numa ilusão de que, anulando a prática individual dos desajustados,
seria possível modificar as redes e formas de dominação e opressão. É
precisamente assim, afirma Carlos Nelson Coutinho (2010, p. 29),
“através da exclusão da grande política – que se apresenta a hegemonia
da época do neoliberalismo.”.

Gramsci (apud COUTINHO, 2010, p. 29), em “Cadernos do Cárcere”,


afirma o seguinte:
“A grande política compreende as questões ligadas à fundação de novos
Estados, à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de
determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A pequena
política compreende as questões parciais e cotidianas que se
apresentam no interior de uma estrutura já estabelecida em decorrência
de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma
classe política (política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de
intrigas). Portanto, é grande política tentar excluir a grande política do
âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política.”
Carlos Nelson (COUTINHO, 2010, p. 31) complementa dizendo que a
hegemonia da pequena política:

“baseia-se precisamente no consenso passivo. Esse tipo de consenso


não se expressa pela auto-organização, pela participação ativa das
massas por meio de partidos e outros organismos da sociedade civil,
mas simplesmente pela aceitação resignada do existente como algo
“natural”. Mais precisamente, da transformação das ideias e dos valores
das classes dominantes em senso comum de grandes massas, inclusive
das classes subalternas. Hegemonia da pequena política existe,
portanto, quando se torna senso comum a ideia de que a política não
passa da disputa pelo poder entre suas diferentes elites, que convergem
na aceitação do existente como algo “natural”.” (grifos nossos)
O cancelamento faz parte da nova militância aguerrida, intimamente
ligada aos modos de funcionamento da comunicação rápida e fugaz,
porque não gera acúmulo teórico, só memórias de exposições
vexatórias. O resultado do cancelamento é também a disputa no
mercado das epistemes. Sempre que se cancela alguém, um outro toma
o seu lugar, ganhando projeção, influência social e dinheiro. Por
exemplo, substituindo ou dando mais visibilidade a autores negros que
consequentemente venderão mais livros, terão mais oportunidades
profissionais e acadêmicas, receberão mais convites para palestras e
lançamentos etc. O ressentimento é o que alimenta a cultura do
cancelamento.

Cultura do Cancelamento e Identitarismo


O consenso passivo daqueles que participam das dinâmicas de
cancelamento como espectadores baseia-se também no natural desejo
de agradar ou de evitar atritos considerados desnecessários. Nesse
sentido, as pessoas reagem à militância tóxica e agressiva dando razão
aos argumentos superficiais ou mesmo a meras acusações sem qualquer
argumento para não se indisporem com uma pauta aparentemente
progressista. Na verdade, a militância identitária tautológica – elitista que
é – para justificar suas acusações, utiliza-se de estatísticas de opressão
de grupos concretos e de militâncias sinceramente interessadas em
defender minorias políticas contra desigualdades sociais históricas.
Valem-se da solidariedade para impor pautas que favorecem apenas um
estrato do grupo identitário pretendido.

Quando as estratégias são mais grosseiras, constroem-se então


consensos baseados em argumentos falaciosos que justificam suas
perspectivas ideológicas ou epistemológicas como as
únicas moralmente aceitáveis, manipulando a subjetividade alheia por
meio da culpa. Quando mais sutis, justificam o isolamento do indivíduo
cancelado como “medida educativa necessária para seu processo
reflexivo”. Criam-se com isso situações extremamente delicadas, pois
mistura-se o que é já é considerado condenável no campo progressista
com o que é construção de novas etiquetas de linguagem, baseadas em
interpretações incipientes de teorias científicas por parte dessa mesma
militância. Essa confusão dificulta o posicionamento crítico de pessoas
comuns, que não conhecem as peculiaridades de uma determinada
minoria a fundo, fazendo com que optem por não se posicionar. Na
prática, a não-ação acaba se refletindo na progressiva admissão tácita,
pelo senso comum, do que aquela militância procura tornar um
consenso.
Trata-se de um fenômeno bastante comum na esquerda e na direita.
Pessoas bem-intencionadas, mas ignorantes quanto aos processos
históricos específicos de determinados grupos identitários, podem, em
vez de simplesmente aceitar suas palavras de ordem resignadamente, se
aliar ativamente a essa militância. A motivação parece se afigurar a
mesma: blindar-se preventivamente contra a possibilidade de
cancelamento futuro. Ocorre que o critério da militância identitária
tautológica não é baseado na ética, mas na etiqueta, portanto, ao menor
deslize ou sinal de questionamento ou discordância, esse grupo pode se
voltar contra um de seus apoiadores. Nessa lógica circular, não parece
haver escapatória senão a submissão absoluta à subjetividade daquela
identidade coletivamente constituída. Constata-se, nesse contexto, que
essa militância se baseia na valorização das aparências, no sentido de
pressupor que o outro evitará o confronto para manter a aura
progressista em um assunto que não domina diante de uma suposta
autoridade moral ou intelectual. É comum o uso de retóricas, falácias,
construções lógicas autorreferenciadas, censura linguística e exigência
de priorização de aspectos secundários ao debate: uso de pronomes de
tratamento específicos, supressão de termos considerados inadequados
ou prioridade epistemológica. Esse processo termina por esvaziar a
discussão, vencendo o oponente pelo cansaço, pois não consegue
identificar a necessidade objetiva a ser atendida, já que se trata por
definição de demanda subjetiva que precisa ser “respeitada” dentro de
uma lógica de dominação.

Ocorre que marxistas, por princípio, tendem a lidar com quaisquer


fenômenos sociais buscando desmistificar sua aparência em primeira
instância, partindo da materialidade em detrimento das construções
abstratas, contextualizando sua história e identificando contradições para
então tratá-las de forma dialógica. Recurso sistemático de
comportamento derivado do método materialista histórico-dialético.
Nesse sentido, outro expediente utilizado por essa militância identitária
tautológica é a associação vexatória: relativizam as críticas recebidas
comparando-as com argumentos usados por alas conservadoras ou
reacionárias, como se tivessem a mesma abordagem epistemológica.
Assim, uma crítica a uma dada atitude política de aliar-se a ideologia
neoliberal, por exemplo, será refutada com acusações de que fazemos a
mesma crítica da direita, também neoliberal, desqualificando o “mérito”
daquele indivíduo pertencente à uma minoria pelo fato dele pertencer a
uma identidade específica. Em outras palavras, apontam o preconceito –
de fato presente em pessoas de esquerda e de direita – como única
causa possível para a crítica a uma determinada atitude. Note-se que a
acusação de semelhança em si não faz sentido, pois embora o fenômeno
objeto de julgamento seja o mesmo, as motivações são diferentes e sua
análise recai sobre aspectos distintos. Da mesma forma que o
identitarismo reclama a relativização dos pontos de partida dos quais se
fazem as análises, contraditoriamente procura negar ao interlocutor a
avaliação de fenômeno anteriormente analisado por outrem sob olhar
diverso, ainda que as constatações finais sejam as mesmas.
Dito de outro modo, reforçam a centralidade dos debates em aspectos
secundários, relacionados à aparência, não à essência: aqui entendida
como a discussão das contradições identificadas pela crítica realizada
ou, em outras palavras, às peculiaridades contextualizadas do que foi
efetivamente evidenciado.

Por exemplo, parece óbvio que o comportamento de muitos


trabalhadores brancos reflete o preconceito estimulado pela classe
dominante, da mesma forma que esta considera útil aos seus propósitos
o ressentimento provocado pelos processos sócio-históricos de exclusão
de pessoas negras. No entanto, esse fenômeno não faz desaparecer o
fato de que trabalhadores negros e brancos são explorados e
estimulados a competirem entre si por postos no mercado de trabalho.
Assim, uma determinada apreciação sobre a competição entre negros e
brancos nessa esfera – haja vista que da perspectiva marxista o
problema encontra-se no estímulo dado pelas classes dominantes à
competição entre trabalhadores explorados pela mesma lógica sistêmica
– é tomada como idêntica à crítica da direita conservadora que acusa o
movimento negro de “vitimista” e preguiçoso – na perspectiva neoliberal
de meritocracia ou na perspectiva conservadora da estigmatização racial
– quando demanda cotas raciais ou o fim da discriminação de negros em
processos seletivos de trabalho. Desconsiderar essas diferenças anula o
debate e o centraliza na perspectiva única da identidade que, para essa
militância específica, é o centro único e imutável de todo e qualquer
questão.
Note-se que a reação defensiva dos identitaristas autorrecursivos
procura encobrir a admissão tácita de uma lógica da democracia
burguesa que, de fato, privilegiará apenas alguns. Como a militância
tautológica não quer ver expostos seus interesses particulares de
possível inserção numa elite, opta por atacar seus críticos por
associação a campos reacionários ou conservadores. Em vez de se
colocar de forma dialética no debate, aceitando as contradições
existentes e trabalhando no sentido de encontrar alternativas que as
superem para todo conjunto da identidade coletiva que defendem,
preferem a estratégia da associação vexatória. Isso só reforça a
evidência de uma capitulação desses grupos à logica de mercado,
baseada na aceitação de que a única alternativa possível é a
estruturação hierárquica e meritocrática, considerando aceitáveis,
portanto, que existam dinâmicas de exclusão de seus pares (desde que
não se apliquem a eles). Dessa forma, acabam por empobrecer um
debate que tem o potencial revolucionário de encontrar soluções mais
amplas e definitivas para a origem das desigualdades sociais que o
capitalismo ajuda a conservar.

O mesmo na direita, para citar um exemplo em outra esfera, onde


acusações de “cristofobia” se multiplicam indefinidamente a qualquer
discordância ou comportamento considerado ofensivo por um militante
identitário tautológico “que se entenda influente o suficiente para
mobilizar atenção nas redes”. Obviamente, é sempre importante levar em
conta a fala de outrem quando este identifica algo que considera
pessoalmente ofensivo. No entanto, é preciso mais uma vez relembrar
que o critério individual se aplica ao campo das relações individuais,
portanto, passíveis de debate e resolução neste mesmo circuito. Ocorre
que se transforma a insatisfação privada em acusação vexatória pública,
muitas vezes descolada da realidade do que venha a ser objetivamente
um ato discriminatório: agressão física, ofensa verbal ou comportamento
sistemático de impedimento ao acesso de direitos ou recursos
considerados universais apenas por pertencer a uma dada identidade.

Confunde-se aí a discriminação pessoal da estrutural, que é muitas


vezes inconsciente e não se soluciona exclusivamente por oposição
identitária. Em lugar de apontar a crítica ao comportamento
supostamente inadequado, esclarecendo as razões pelas quais são
consideradas ofensivas, opta-se pela execração do sujeito em si,
reforçando a ideia de que as discriminações acontecem devido a uma
suposta “contra-identidade” opressora, fixa e imutável. Evidencia-se
então o reforço de estereótipos que deveriam estar sendo combatidos,
de modo que a opção do acusado – ontologicamente enquadrado – é se
posicionar com a mesma radicalidade: ou aceita a “contra-identidade”
que lhe é imputada – assumindo a constante e sistemática vexação
pública – ou a nega – sendo imediatamente associado à figura abstrata
de um opressor estrutural em polo político conservador ou reacionário.
Ora, reforçar identidades como elementos incapazes de reabilitação e
adaptação é também um ato preconceituoso e desumano em si mesmo.

Há casos também em que acusações de transfobia, para citar outra


esfera, são baseadas não na percepção pessoal do ofendido, mas nos
pressupostos epistemológicos e ideológicos de setores específicos de
uma determinada corrente em um movimento social ou identitário mais
amplo. Acusar de transfobia uma pessoa que faz referência à biologia
dos corpos, nesse contexto, não parece fazer o menor sentido, haja vista
que é a própria condição biológica de uma pessoa transexual, em
oposição a como se percebe, que a define enquanto transexual. Não
houvesse a concretude biológica de machos e fêmeas, não haveria
sequer por que haver transexualidade. Nesse sentido, há, no entanto,
correntes de militância que defendem a ciência biológica como
construção estritamente social. Provavelmente interpretações rasas e
equivocadas de teorias de gênero pós-estruturalistas. Ora, pressupor que
o sistema classificatório da biologia é construído a partir de abstrações e
não de observação científica meticulosa e prolongada é igualmente um
contrassenso. Se as combinações de masculinidade e feminilidade
permanecem presentes nas variadas expressões de gênero, ainda que
se negue o sexo biológico, ainda serão diretamente derivadas daquilo
que existe historicamente em primeiro lugar: corpos de machos e
fêmeas. Na verdade, o que parece fazer mais sentido objetivamente é o
contrário: as abstrações relativas ao que se considera próprio de um
gênero ou de outro é que derivam dos comportamentos – estes sim,
socialmente construídos e devidamente categorizados de forma
estereotipada – encontrados com mais frequência em machos e fêmeas
da espécie.

Nesse sentido, o que se observa na militância queerativista de gênero –


pauta que aliás consideramos impropriamente colocada para a
comunidade LGBTI como prioritária, pois essa se relaciona mais
diretamente a questões sobre sexualidade – é assumir como
pressuposto único e fundamental o conceito de gênero em detrimento do
conceito de sexo, quando, na pior hipótese, ambos deveriam ser
considerados partes de um construto teórico, desde que partisse do
material para o abstrato, ou seja, do sexo para o gênero. Um dos
fenômenos que se deriva dessa percepção equivocada é a análise
anacrônica, utilizando-se do subterfúgio do revisionismo histórico. Um
exemplo disso é considerarem como transgêneros (note se tratar de
fenômeno cunhado por queerativistas que é totalmente diverso, e
anulatório, da transexualidade) figuras públicas de gays afeminados e
lésbicas masculinizadas, numa estratégia clara de apagar e substituir
identidades já inseridas com sucesso na lógica de mercado. Outro
exemplo, que ocorre em parte da militância do movimento negro que
associa figuras historicamente revolucionárias, como Malcom X, a
personagens políticos como Barack Obama. Desconsideram
completamente suas finalidades diametralmente antagônicas na
perspectiva sócio-histórica: respectivamente, a libertação pela
associação colaborativa entre diferentes identidades e a opressão da
classe trabalhadora pela divisão social em bases raciais. Por fim, citamos
a direita não-identitária brasileira, quando traz a visão universalista de um
mundo onde predomina, na verdade, a visão eurocêntrica do iluminismo
e/ou do liberalismo. Não percebem o quanto o ponto de vista que
defendem se identifica com uma perspectiva de branquitude que não
representa a todos os segmentos da sociedade brasileira em sua rica
multiplicidade epistemológica e cultural.
Identificar inimigos e aliados enquanto tipos coletivos ideais exige um
nível de conformação e comportamento em blocos coesos que, em
última instância, podem levar à legitimação de uma lógica sectária de
constituição de faschos. Isso não ocorre sem antes passar pelos nichos
mercadológicos e composição de guetos políticos que facilitam bastante
os processos de estímulo ao consumo de massas, o cerceamento das
pautas discursivas de luta política ampla e a constituição de elites de
referência para estes mesmos grupos identitários. Identificar-se
claramente para identificar o inimigo é uma faca de dois gumes, pois
pode induzir a erros causados pela avaliação apressada de
comportamentos individuais a partir de estereótipos coletivos. Além
disso, permite que o opressor – que tem meios e recursos para interferir
de forma ampla e massificada no comportamento – direcione as pautas,
sentimento de indignação e, principalmente, a proposição de soluções
(para eles) aceitáveis das contradições que se apresentam. Nessa
lógica, indivíduos se atacam entre si, sem perceber que são subtraídos
em tenebrosas transações…
Conclusão
O debate identitário é extremamente importante, pois através dele
identificamos como o indivíduo e grupos de indivíduos com
características semelhantes são oprimidos, no entanto, não é único
debate necessário, pois há outras instâncias e modos de produção da
vida que não são atravessados por esse viés. No fim das contas, a pauta
identitária, quando voltada exclusivamente para si mesma, tem
esvaziado o debate político e o tornado facilmente cooptável pelos
interesses do mercado, pois desuniversaliza as pautas enquanto
centraliza o debate no monitoramento do comportamento individual. Foca
na exclusiva construção de diferenças, deixando de lado a identificação
por semelhanças.

Ainda que seja necessário debater como cada um de nós reproduz o


racismo estrutural que dá sustento ao sistema capitalista a que está
intrinsecamente atrelado, bem como outras formas de discriminação, isso
não bastará para destruir os mecanismos que instrumentalizam a
comunicação através das redes sociais com seus algoritmos que
predeterminam critérios de visibilidade e meios de comunicação de
massa que segmentam pautas e olhares sobre os fatos. Certamente há
outros modos de comunicação possíveis – como as relações concretas –
e poder utilizar a rede mundial de computadores para pesquisa e
interação social é também um avanço em relação a precariedade de
comunicação existente em períodos históricos anteriores. No entanto, se
não há estímulo ao pensamento crítico e a um debate que não se prenda
a processos tautológicos – como tem sido predominantemente o da
perspectiva identitária – aqueles que têm meios para tentar distorcer
nosso olhar em favor de seus próprios interesses não hesitarão um
segundo em fazê-lo. Dessa forma, fica cada vez mais afastada a
possibilidade de organização coletiva em direção a mudanças radicais
nos modos de organização humana.

Obviamente, os movimentos identitários não são os únicos e principais


responsáveis pelas mazelas sociais e políticas que nos assolam. A
proposta desse artigo é apontar as armadilhas que o identitarismo traz
quando inserido na lógica do sistema capitalista, notadamente para os
setores identitários da esquerda, pois acreditamos que o debate nesse
espectro é urgente e necessário. Justamente porque classe e raça (bem
como gênero, sexualidade e outras formas de representação de minorias
políticas) estão associadas de forma intrínseca ao processo de
manutenção da exploração capitalista, é que a constituição de
identidades coletivas deve manter sempre em perspectiva modos
alternativos de associação política, notadamente aqueles que se
constituam pela classe – haja vista que sua maior abrangência
desestimula sectarismos – mantendo exposto o elemento central de
exploração em última instância: o trabalho humano. Dessa forma, no
contexto do livro de Haider (2019), ao considerar a perspectiva de raça
atrelada à de classe pela associação inseparável entre racismo e
capitalismo, será possível, encontrar formas de organização amplas,
articuladas, revolucionárias e emancipatórias.

Referências
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Horizonte: Editora UFMG, 2002.
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ANDERSON, Chris. A cauda longa – A nova dinâmica de marketing e
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MBEMBE, Achille. A era do humanismo está terminando. Tradução:
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Último acesso em 07 nov 2020.
MOURA, Arthur. Identitarismo: a nova cara do liberalismo. YouTube.
202 Filmes. Exibido em 24 out 2020. Disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=uunxsMOMwtg>. Último acesso em
07 nov 2020.
NASCIMENTO, Ricardo. CHALHOUB, Rafael Bittencourt Nacif.
Armadilha da Identidade. Apresentação do grupo de estudos Concreto
Pensado. YouTube. Bacamarte Produções. Exibido em 25 out 2020.
Disponível em <https://www.youtube.com/bacamarteproducoes>. Último
acesso em 07 nov 2020.

SILVEIRA, Luís Gustavo Guadalupe. Alienação Artística: Marcuse e a


ambivalência política da arte. 2009. Dissertação de Mestrado em
Filosofia Social e Política. Uberlândia: UFU. 166 pp.

Artur Moura é Cineasta (202 filmes), formado em História pela UFF,


mestre em Educação pela FFP-UERJ.
Ricardo Nascimento é Tecnólogo em Marketing e Bacharel em
Administração pela UNESA, graduando em Ciências Sociais pela
UFF e membro fundador do coletivo Bacamarte.
Capital em geral e a estrutura de
O Capital de Marx: novos
insights a partir dos Manuscritos
Econômicos de 1861-1863
 LavraPalavra
 novembro 26, 2020
 Um Comentário
Por Michael Heinrich, traduzido por Talles Lincoln Santos Lopes
Neste artigo, Michael Heinrich analisa os Manuscritos Econômicos de
1861-1863, de Karl Marx. A partir dessa análise, ele critica algumas das
teses centrais de Rosdolsky acerca da utilização dos Grundisse para a
interpretação da obra O Capital, especialmente no que se refere à
utilização da categoria “capital em geral”. Heinrich oferece, ao final,
novas interpretações da estrutura de O Capital, que prescindem de tal
categoria.

RESUMO: Até o momento, os Grundisse, a Contribuição à crítica da


economia política, e o “Urtext” da Contribuição, foram publicados nos
“English-language Complete Works” [de Marx e Engels], nos volumes 28
e 20. Dos manuscritos de 1861-1863, os quais consistem em 1.472
cadernos no total, apenas o primeiro encontra-se traduzido [em língua
inglesa] como as três partes das Teorias da mais-valia. Os cadernos
restantes foram traduzidos [para a língua inglesa] e serão publicados em
breve. O presente artigo analisa as dificuldades enfrentadas por Marx na
exposição dialética da forma capitalista da reprodução social. Heinrich
argumenta que os Manuscritos Econômicos de 1861-1863 explicam as
mudanças no plano [da obra sobre a crítica da economia política] de
Marx entre os Grundisse e O Capital.
 
A obra de Roman Rosdolsky, Gênese e Estrutura de O Capital de Karl
Marx (2001), originalmente publicada em 1968 [na Alemanha, sob o título
original “Zur Entstehungsgeschichte des Marxschen Kapitals”], exerceu
uma considerável e duradoura influência no debate sobre O Capital na
Alemanha Ocidental, o qual teve início com a ascensão do movimento
estudantil. Embora as interpretações baseadas na abordagem de
Rosdolsky tenham o mérito de minar as leituras economicistas e
positivistas de O Capital, tal ganho geralmente ocorreu ao custo de um
ofuscamento filosófico do conteúdo social e econômico da crítica da
economia política de Marx. O Capital parece, [na obra de Rosdolsky], ter
de ser lido através de duas perspectivas[1]: a primeira consiste em certo
entendimento da exposição dialética a partir da Lógica de Hegel, e a
segunda consiste numa série de considerações metodológicas
encontrada nos Grundisse, especialmente a elaboração, por Rodolsky,
do conceito de “capital em geral”. Ironicamente, o arrefecimento do
debate acerca de O Capital, decorrente da desarticulação da esquerda
estudantil em meados dos anos 1970, coincidiu com a publicação inédita
de muitos dos manuscritos que compõem os textos preparatórios de O
Capital, assim como de edições superiores dos manuscritos já
conhecidos, a partir da Marx-Engels Gesamtausgabe (MEGA)[2].
A MEGA se divide em quatro seções principais (obras, artigos e
rascunhos (com exceção dos rascunhos de O Capital); O Capital e os
seus textos preparatórios; cartas; excertos, resumos, notas, comentários
marginais etc.). A seção II da MEGA é de particular interesse para a
compreensão do desenvolvimento da teoria econômica de Marx. O
primeiro volume contém os Grundisse (1857/1858). Estes são o primeiro
manuscrito da teoria econômica do Marx “maduro”. O segundo volume
abarca o texto “Zur Kritik der politischen ökonomie. Erstes Heft”
(Contribuição à crítica da economia política), de 1859, o qual consiste
apenas em dois capítulos: um sobre a mercadoria e outro sobre o
dinheiro. Este segundo volume também contém um fragmento
denominado de Urtext – o “texto original” – da Contribuição, o qual é de
particular interesse considerando seu tratamento da lei de apropriação
conforme a circulação simples de mercadorias e da transição do dinheiro
para o capital, tendo em vista que nenhum dos dois temas aparece no
texto finalizado. Embora estes textos já sejam ambos conhecidos através
de edições anteriores (ao menos para os leitores em língua alemã), o
terceiro volume (o qual consiste em seis sub-volumes) contém a primeira
edição completa dos manuscritos de 1861-1863, intitulado “Zur Kritik der
politischen öKonomie”. Antes da publicação integral pela MEGA, apenas
as Teorias da mais-valia haviam sido publicadas a partir deste
manuscrito, o qual comporta ao total cerca de 2.400 páginas impressas e
é o mais longo dos manuscritos de Marx. Originalmente previsto como
uma continuação da obra de 1859, o texto logo se tornou um típico
manuscrito preparatório, no qual Marx se depara com problemas tanto na
investigação quanto na exposição [3]. Este manuscrito é o segundo
rascunho da teoria econômica de Marx. Ele representa a ligação vital
entre os Grundisse e O Capital.
A edição completa do segundo rascunho da teoria econômica de Marx,
escrito entre 1861 e 1863, já se constitui, certamente, como um dos
resultados mais significativos do trabalho desenvolvido na MEGA. O
manuscrito nos permite corrigir uma parte das teses centrais de
Rosdolsky. Primeiramente, revela-se como a interpretação de O
Capital feita por Rosdolsky, à luz do conceito de “capital em geral”, o qual
perpassa os Grundisse, não se sustenta diante de uma série de
problemas de conteúdo. E, em segundo lugar, permite-se responder à
questão da mudança da estrutura de O Capital – que consiste na relação
entre o conteúdo dos três volumes de O Capital e dos seis livros
originalmente previstos no plano de Marx (livro sobre o capital, livro sobre
a propriedade fundiária, livro sobre o trabalho assalariado, livro sobre o
Estado, livro sobre o comércio exterior e livro sobre o mercado mundial).
 
“Capital em geral” nos Grundisse

 
Longe de ser uma simples subdivisão do material sob análise
[Grundisse], a distinção entre “capital em geral” e “pluralidade de
capitais” constituía uma abordagem metodológica que refletia uma visão
específica da estrutura da sociedade burguesa. Sua originalidade pode
ser vista quando a comparamos com as análises econômicas de Marx
nos anos de 1840. Estas se direcionavam, principalmente, aos
movimentos do mercado, e nelas Marx considerava a concorrência como
o mecanismo crucial de explicação de um espectro muito diverso de
fenômenos. Por isso, em Trabalho Assalariado e Capital, Marx atribuía à
concorrência tanto o movimento dos salários quanto o desenvolvimento
das forças produtivas (Marx, 1849). Os Cadernos sobre David Ricardo,
de 1851, indicavam outra posição na qual Marx distinguia “o processo
real” de sua “lei” (Marx, 1850, p. 362). Os Grundisse marcaram uma
compreensão inteiramente nova sobre a concorrência. Marx escreve:
“Concorrência em geral, esta força locomotiva essencial da economia
burguesa, não estabelece suas leis [da economia burguesa], mas é sua
executora [executor]. Portanto, a concorrência desmedida não é um
pressuposto para a validade das leis econômicas, mas sim uma
consequência delas – a forma de manifestação na qual sua necessidade
[das leis econômicas] é externalizada” (Marx, 1857, Vol. 28, p. 475).
Ricardo simplesmente presume a concorrência desmedida para
compreender as leis do capital: a concorrência servia tão-somente como
uma hipótese teórica, “não como… desenvolvimento do capital, mas
como um pressuposto imaginário do capital” (Marx, 1857, Vol. 28, p.
480). De modo contrário, Marx estabeleceu a concorrência como forma
de manifestação das leis do capital. Ao realizar a crítica dessa
pressuposição, Marx encontrou o cerne da filosofia moral liberal-
burguesa e da economia política, formulado de modo clássico pela
“Fábula das Abelhas” de Mandeville e pela “Mão Invisível” de Adam
Smith: notadamente, que a irrestrita busca por interesses individuais
privados produzirá, no final das contas, o interesse geral. Logo no início
dos Grundisse, Marx escreve
“A questão é que o próprio interesse privado já é um interesse
socialmente determinado… É o interesse de pessoas privadas; mas, seu
conteúdo, assim como sua forma e meios de realização, são
determinados por condições sociais independentes deles” (Marx, 1857,
p. 94).
O interesse geral burguês não é o resultado da busca por interesses
privados, mas está presente, na verdade, no próprio ato desta busca, na
medida em que já determina tais interesses privados. Isto implica o
seguinte para a concorrência:
“Conceitualmente, a concorrência não é nada mais que a natureza
interna do capital, sua qualidade essencial, manifestada e percebida
como a ação recíproca de diversos capitais sobre si; tendência imanente
realizada como necessidade exterior” (Marx, 1857, Vol. 28, p. 341)
Para Marx, a percepção de que as leis da natureza interna do capital são
tão-somente externalizadas no movimento real dos capitais individuais
significou uma ruptura qualitativa em relação às suas análises anteriores
baseadas nas atividades do mercado. Seu problema principal tornou-se,
a partir de então, encontrar as categorias que o permitissem formular
adequadamente, na estrutura da sociedade burguesa, este insight. A
distinção entre “capital em geral” e “pluralidade de capitais” não resume
esse novo entendimento, tão fundamental para a crítica da economia
política; [essa distinção entre “capital em geral” e “pluralidade de
capitais”] foi simplesmente uma primeira tentativa de abordar esse novo
entendimento.
Embora esta distinção [entre “capital em geral” e “pluralidade de
capitais”] tenha aparecido de forma ampla nas discussões travadas nas
décadas de 1960 e 1970, nenhuma análise precisa desses conceitos
jamais foi realizada. Rosdolsky, por exemplo, definiu o conteúdo do
“capital em geral”, com base numa passagem dos Grundisse, como a
totalidade das características comuns a todos os capitais individuais
(Rosdolsky, 2001, p. 52). Para Rosdolsky, [essa característica comum]
era a valorização. Explicar a produção do mais-valor requer, inicialmente,
uma análise do imediato processo de produção, e, em seguida, do
processo de circulação, como um complemento necessário do processo
de produção. Contudo, a introdução do processo de circulação faz
parecer que o mais-valor é determinado pelo tempo de circulação e não,
exclusivamente, pelo mais-trabalho apropriado no imediato processo de
produção. Quando medido em face do capital total adiantado, o mais-
valor assume a forma transformada do lucro – com o qual Rosdolsky
encerra a seção sobre “capital em geral”. Não foi possível apresentar o
estabelecimento de uma taxa geral de lucro uma vez que esta pressupõe
a concorrência, ponto de partida a partir do qual a abstração teve de ser
realizada (Rosdolsky, 2001, p. 55). A compreensão de Rosdolsky do
“capital em geral” como conceito genérico que abarca todas as
características comuns dos diversos capitais não se sustenta. Isto porque
a taxa média de lucro também é uma característica comum a todos os
capitais, porém, de acordo com Rosdolsky, deve ser excluída da
exposição [do “capital em geral”]. Ademais, a definição, realizada por
Rosdolsky, do conteúdo do “capital em geral”, não está de acordo com a
seção planejada por Marx. Como mostram os rascunhos dos inúmeros
planos – planos, acrescente-se, publicados pelo próprio Rosdolsky -,
Marx não pretendia encerrar o “capital em geral” com “lucro”, mas com
“juros”[4].
Nos Grundisse, Marx inicialmente utiliza o conceito de “capital em geral”
na análise do processo de produção. Após avaliar os conceitos de capital
usados pelos economistas burgueses, ele [Marx] resume sua própria
abordagem da seguinte maneira:
“Capital, na forma que o consideramos até aqui, como uma relação de
valor e dinheiro, a qual deve ser distinguida, é capital em geral, isto é, a
quintessência das características que distinguem o valor como capital do
valor como simples valor ou como dinheiro” (Marx, 1857, Vol. 28, p. 236).
Isto é, “capital em geral” deveria abarcar aquelas características que
devem ser acrescentadas ao valor a fim de que este se torne capital: são
características que, como Marx escreveu, “transformam o valor em
capital” e que, por essa razão, também se tornam características de cada
capital individual. Contudo, a exposição do “capital em geral” não apenas
abstrai a existência de uma pluralidade de capitais, mas também exclui o
capital individual, considerado isoladamente:
“Entretanto, nós ainda não estamos preocupados nem com uma
forma particular de capital, tampouco com um capital individual distinto
de outros capitais individuais etc. Estamos diante do seu [do capital]
processo de devir. Esse processo dialético de devir é apenas a
expressão ideal do movimento real através do qual o capital vem a ser”
(Marx, 1857, Vol. 28, p. 229).
“Capital em geral” não deve ser compreendido como o conceito de um
objeto real, como um capital individual: não há correlação empírica direta.
O “processo dialético do seu devir”, observado no [conceito de] “capital
em geral”, é a reprodução no pensamento da natureza interna do capital:
as características que transformam o valor em capital devem ser
entendidas e compreendidas neste âmbito[5].
Marx não partiu do capital individual, como ele aparece (como lucro e
juros) e como ele existe na concorrência. Ele pretendia começar através
da elaboração das características do capital com base na lei do valor em
geral. Portanto, ele precisava mostrar como era possível a produção de
mais-valor com base na troca de equivalentes e como o mais-valor, ao
final, transformava-se nas formas lucro e juros, conforme estas [formas]
aparecem na superfície da sociedade burguesa. Como o capital não
havia sido exposto nas formas em que aparece na concorrência, Marx foi
levado a abstrair a concorrência durante este processo de
desenvolvimento conceitual. É de crucial importância, aqui,
[compreender] aquilo que Marx inclui sob [a noção de] “concorrência”:
não apenas o movimento real dos capitais individuais, mas também
qualquer relação que envolva capitais distintos, independentemente do
nível de abstração. Numa passagem dos Grundisse (após Marx ter
acabado de expor os problemas do processo de circulação), ele observa,
com firmeza:
“Tendo em vista que nós estamos lidando aqui com capital como tal,
capital no processo de formação – a pluralidade dos capitais não existe
ainda para nós – tudo que temos fora do capital não é nada além do
próprio capital…” (Marx, 1857, vol. 29, p. 115).
A exposição das características do “capital em geral” abstraindo a
concorrência implicava uma restrição considerável do conteúdo do
“capital em geral”, dado o amplo conhecimento de Marx sobre
concorrência. Por outro lado, como se tem normalmente negligenciado,
há um conteúdo específico pré-determinado que deve ser exposto. O
capital tem de ser conceituado, ao final, dentro da seção sobre “capital
em geral”, incluindo todas as características que se manifestam na
concorrência. Isto porque, 
“Na realidade, aquilo que é inerente à natureza do capital é
externalizado, como uma necessidade exterior, tão-somente através da
concorrência, a qual não passa da imposição, pelos distintos capitais, um
sobre o outro e sobre si mesmos, das determinações imanentes ao
capital” (Marx, 1857, Vol. 29, p. 39).
Portanto, Marx pretendia que a seção sobre “capital em geral” atingisse
dois objetivos. De um lado, o conteúdo do “capital em geral” devia ser
exposto em um nível específico de abstração – notadamente, abstração
da concorrência (a qual incluía tanto o movimento real quanto todas as
relações entre capitais distintos). Por outro lado, este conteúdo precisava
também ter um alcance específico, notadamente aquelas características
visíveis na concorrência. 
O atendimento simultâneo de ambos os objetivos evidenciou o problema
fundamental de toda essa abordagem [distinção entre “capital em geral”
e “pluralidade de capitais”].
 
A dissolução do “capital em geral” nos Manuscritos Econômicos de
1861-1863

 
Embora Marx tivesse planejado sua “Economia” por muito tempo, ele não
tinha nenhum plano detalhado em mente quando começou a escrevê-la
em 1857, como se evidencia da estrutura crua presente na “Introdução”
aos Grundisse (Marx, 1857, Vol. 28, p. 45). Rascunhos de planos
somente puderam surgir durante o curso de sua escrita, como resultado
do desenvolvimento da sua compreensão da estrutura da sociedade
burguesa. Ao terminar os Grundisse, Marx pretendia que sua obra
econômica consistisse em seis livros: capital, propriedade fundiária,
trabalho assalariado, Estado, comércio exterior e mercado mundial. Os
três primeiros livros deveriam estabelecer “as condições econômicas de
existência das três grandes classes nas quais está dividia a moderna
sociedade burguesa” (Marx, 1859, p. 261). No que se refere ao livro
sobre o capital, estavam previstas as seguintes seções: a) capital em
geral, b) concorrência, c) sistema de crédito, d) capital dividido em ações
(Letter, Marx to Engels, 2 April 1858, Selected Correspondence, p. 97).
A seção sobre “capital em geral” deveria abranger: 1. valor, 2. dinheiro, 3.
capital em geral (cf. Letter, 11 March 1857, MEW 29, p. 554).
A Contribuição à crítica da economia política (1859), Primeiro Livro, a
primeira e única edição da obra planejada, tratou dos dois primeiros
pontos [valor e dinheiro]. Em 1861, Marx iniciou a escrita do terceiro
ponto, o capítulo sobre “capital em geral” (tanto a primeira seção quanto
seu terceiro capítulo têm o mesmo nome). Contudo, logo o texto
transformou-se em um manuscrito preparatório, repleto de digressões e
antecipações de temas posteriores. Foi durante o curso deste manuscrito
que Marx desistiu de publicar uma continuação direta da Contribuição de
1859 e decidiu elaborar uma nova obra com o título de O Capital (Letter,
18 December 1862, MEW 30, p. 639). (Eu pretendo analisar a relação
entre os três volumes de O Capital e o plano original [de seis livros] na
seção final abaixo). Os Manuscritos de 1861-1863 revelam as
dificuldades de Marx em expor [o conceito de] “capital em geral” e
mostram como essa abordagem foi abandonada ao final.
As primeiras dificuldades já estavam evidentes nos Grundisse. Durante a
exposição do processo de circulação do capital, Marx deparou-se com o
problema de que tanto os elementos materiais do capital quanto os
meios de subsistência precisavam ser reproduzidos, além [do problema
de] que tal reprodução simultânea só poderia ser exposta ao se
considerar a relação entre diferentes capitais. Ou seja, as características
imanentes do processo de circulação necessitam da exposição de
diferentes capitais. No entanto, [esta exposição] não seria possível em
virtude do nível de abstração pretendido para o [conceito de] “capital em
geral”. Nesse ponto, Marx não podia fazer nada além de oferecer a
garantia [assurance]:
“Aqui, de qualquer modo, nós podemos tratar de um único capital em
ação, uma vez que estamos considerando o capital como tal” (Marx,
1857, Vol. 29, p. 111).
Outro problema surge com a lei da queda tendencial da taxa de lucro. Se
há uma lei geral, então esta deve ser exposta antes da concorrência: isto
é, na seção sobre “capital em geral”. Por outro lado, para Marx estava
nítido que a queda era da taxa média de lucro (Marx, 1857, Vol. 29, p.
132-3). Contudo, a taxa média de lucro não poderia ser tratada até a
seção sobre concorrência, [isto é,] após a lei de sua queda. E, por fim, a
incerteza de Marx [quanto à utilização do conceito de “capital em geral”]
também se evidencia na observação de que “‘capital em geral’ não era
simplesmente uma abstração, mas também tinha uma existência real”, a
qual havia sido reconhecida pelos economistas burgueses em sua
“doctrine of evening up” (Marx, 1857, Vol. 28, p. 378). Entretanto, Marx
nunca especificou o que ele entendia por esta existência real; na
verdade, ele usou essa expressão apenas uma vez [6]. 
Os Manuscritos de 1861-1863 revelam alterações na abordagem
[metodológica de Marx], em relação aos Grundisse, as quais resultam de
um estágio mais avançado de análise. Por exemplo, Marx trata, pela
primeira vez de forma sistemática, do desenvolvimento das forças
produtivas como um método de produção de mais-valor relativo. A seção
sobre o processo de produção do capital também abarca temas que
os Grundisse haviam destinado ao Livro sobre Trabalho Assalariado,
como a duração da jornada de trabalho (Marx, 1861-63; p. 158ff) e o
trabalho de mulheres e de crianças (ibid. p. 303ff). Esta incorporação de
maneira alguma foi arbitrária, tendo decorrido do reconhecimento de que
estes [temas] eram tendências imanentes ao capital. [Essa incorporação]
remete, também, ao posterior abandono de tratar separadamente, em
três volumes, as condições de existência das três classes principais
[trabalhadores assalariados, capitalistas e proprietários fundiários]. De
maneira interessante, Marx agora propõe-se a incorporar a acumulação
na exposição do processo de produção. Esta [a acumulação] havia sido
excluída dos Grundisse em virtude de requerer a consideração da
pluralidade de capitais (Marx, 1857, vol. 28, 245f). Enquanto,
nos Grundisse, Marx compreendia a acumulação, transformação de lucro
em capital, como um processo de um capital individual, os Manuscritos
de 1861-1863 incluíram a transformação de mais-valor em capital.
Embora tais alterações pudessem facilmente ser abarcadas no conceito
de “capital em geral”, houve alterações que o superaram [o conceito de
“capital em geral”], como a exposição da reprodução e da circulação do
capital social total e da taxa média de lucro.
Marx foi impelido a analisar o capital social total em sua crítica do
“Smith’s dogma”. Adam Smith havia sustentado que o valor total de uma
mercadoria se resolve [resolves itself] em salários e lucro (incluindo a
renda [rent]), assim como a parte do capital constante que participa do
valor da mercadoria poderia também se resolver em salários e lucro
[could also be resolved into wages and profit]. Isto levou à compreensão
por Adam Smith de que o valor total anual das mercadorias se resolvia
[resolved itself] em salários e lucro. Em contraste, Marx acreditava que a
parte constante do capital não poderia ser tratada dessa maneira.
Contudo, [esta crítica] o conduziu ao problema de 
“como é possível que os lucros e os salários anuais comprem o
fornecimento anual de mercadorias, as quais, além do lucro e dos
salários, também contêm capital constante (Marx, 1861-61, p. 398,
translated in Theories of Surplus Value, Part 1, p. 107).
Marx, por fim, resolveu este problema através da distinção entre dois
âmbitos [departments] do capital social total – um que produz os meios
de produção e outro que produz os meios de consumo – e do
intercâmbio [exchange] entre esses dois âmbitos. Uma série de
passagens (Marx, 1861-63, p. 402, 436) mostra que Marx pretendia
expor este ponto dentro do processo de circulação do capital – isto é, na
seção sobre “capital em geral”. Contudo, isto marcaria um abandono do
nível de abstração que ele indicara anteriormente: não apenas a
categoria capital social total não se encaixava adequadamente à
distinção entre “capital em geral” e concorrência, como também não fora
sistematicamente desenvolvida nos Grundisse. Os vários âmbitos do
capital social total também eram “formas particulares” de capital e, assim,
estavam expressamente excluídos da exposição do “capital em geral” (cf.
the quote above from Marx, 1857, vol. 28, p. 236).
Marx tratou do problema sobre se a renda [rent] absoluta é conciliável
com a lei do valor, numa digressão sobre a taxa média de lucro, e
observou:
“concorrência entre capitais procura, assim, tratar cada capital como uma
parte do capital agregado e, por conseguinte, [procura] regular sua
participação [de cada capital] no mais-valor e, consequentemente, no
lucro (Marx, 1861-63, p. 685, translated in Theories of Surplus Value,
Part 2, p. 29).
Posteriormente, Marx torna sua exposição mais precisa ao distinguir o
duplo movimento da concorrência: na mesma esfera de produção, a
concorrência conduz ao estabelecimento do valor de mercado unitário
[unitary market-value], e entre esferas de produção, a concorrência nivela
os valores [evens the values up] como “preços médios” (os quais Marx
inicialmente denominou “preços de produção” em O Capital), o que
viabilizava o estabelecimento de uma taxa média de lucro (Marx, 1861-
63, p. 777, 851ff). Marx pôde, então, explicar a possibilidade da renda
absoluta com base na lei do valor: se o valor dos produtos da terra está
acima dos preços médios, ainda assim eles são comercializados no seu
valor (tendo em vista que não participam no processo de compensação
[equalisation] que estabelece a taxa média de lucro), produzindo um
lucro excedente em relação à taxa média de lucro, o qual o proprietário
fundiário apropria como renda (absoluta) (Marx, 1861-63, p. 692). Marx,
então, decidiu incorporar tanto o processo de compensação
[equalisation] que ocorre na taxa média de lucro quanto a renda absoluta
(na verdade, como um exemplo deste processo) na seção sobre “capital
em geral” (Marx, 1861-63, p. 907 and letter to Engels, 2 August
1862, Selected Correspondence, p. 120). Embora Marx não ofereça
uma justificação explícita, há uma referência subsequente no excurso
sobre “Rendimento [Revenue] e suas fontes”. Nele, Marx mantém sua
posição de que juros, que deveria concluir a exposição sobre “capital em
geral” conforme os Grundisse, pressupõem lucro e, na verdade, a taxa
média de lucro (Marx, 1861-63, p. 1461).
A seção “Capital e Lucro”, uma das seções mais importantes dos
Manuscritos de 1861-1863, demonstra as dificuldades que Marx teve
para expor a taxa média de lucro (e, portanto, também parte da
“concorrência”) dentro do “capital em geral”. Embora quisesse tratar da
taxa média de lucro, Marx pretendia retomar a “relação da concorrência”
tão-somente como um “exemplo” (Marx, 1861-63, p. 1605). E, pouco
depois, lemos, com certa reserva:
“Uma investigação mais profunda deste ponto pertence ao capítulo sobre
concorrência. Não obstante, as considerações gerais e decisivas devem
ser acrescentadas aqui” (Marx, 1861-63, p. 1623).
Marx resume o que seriam essas “considerações gerais e decisivas” nos
seguintes termos:
“Na verdade, a questão pode ser explicitada da seguinte maneira: lucro –
como primeira transformação do mais-valor – e a taxa de lucro nessa
primeira transformação, expressa mais-valor em proporção ao capital
individual do qual é produto…
Lucro médio ou empírico [Empirical or average profit] expressa a mesma
transformação, o mesmo processo, mas em relação ao montante total de
mais-valor, e, por conseguinte, ao mais-valor apropriado por toda a
classe capitalista… A segunda transformação é um resultado necessário
da primeira, a qual decorre da natureza do próprio capital” (Marx, 1861-
63, p. 1629)
Marx pretendia, aqui, expor a relação entre mais-valor e o capital total,
tanto como processo de um capital individual quanto como processo do
capital social total. Ele tenta manter a distinção entre “capital em geral” e
“concorrência” enfatizando a concorrência como mero “agente” [“agency”]
através do qual a taxa média de lucro é determinada (Marx, 1861-63, p.
1628).
Não obstante, “capital em geral” já está em questionamento, não apenas
pelo fato de que os lucros médios – os quais Marx agora reconhece
como pertencente à natureza do capital – pressupõem uma análise da
concorrência; mas também porque não pode ser conciliado com a
distinção entre capital individual e capital social total. A categoria “capital
em geral” começa a se dissolver. Não é mais simplesmente a
“quintessência das características que distinguem o valor como capital do
valor e do dinheiro” (Marx, 1857, vol. 28, p. 236) e, portanto, também não
é capital individual. Embora Marx não explicite este problema,
aparentemente ele tinha consciência das deficiências de sua análise. Por
isso, ele escreve, no ponto seguinte, tratando da lei da queda tendencial
da taxa de lucro:
“Assim, portanto, mais uma vez estamos em terreno firme, onde, sem
entrar na concorrência entre capitais, podemos derivar a lei geral
diretamente da natureza geral do capital, tal como desenvolvida até
agora” (Marx, 1861-63, p. 1632).
Mesmo após a decisão de Marx de não publicar seu manuscrito como
uma continuação da Contribuição de 1859, mas sim como uma nova
obra, O Capital, ele manteve a distinção entre “capital em geral” e
“concorrência”, como demonstra sua carta a Kugelman, de 28 de
dezembro de 1862. Em janeiro de 1863, Marx rascunhou novos planos
para as seções sobre “O Processo de Produção” e sobre “Capital e
Lucro”, nos quais estabeleceu as mudanças descritas [acima] e a
exposição da taxa média de lucro (Marx, 1861-63, pp. 1816ff and 1861ff).
Os editores da MEGA interpretaram esse ato da seguinte maneira:
“O trabalho intensivo de Marx na elaboração deste manuscrito culminou
em um novo plano, estruturado em janeiro de 1863, no Caderno XVIII.
Este novo plano marcou a definição da estrutura do que deveria ser O
Capital. A inclusão da teoria do lucro médio na exposição assinalou o
abandono da distinção, anteriormente pretendida, entre capital em geral
e concorrência, e a expressão ‘capital em geral’ não foi mais usada,
posteriormente, por Marx” (MEGA, Part II, Vol. 3.1, Introduction, p. 12).
No entanto, isto não está correto. Embora as alterações feitas no novo
plano ponham em questionamento a antiga concepção de “capital em
geral”, Marx não reconheceu isso e tentou manter sua abordagem
anterior. Por exemplo, não apenas sua carta a Kugelmann, escrita
poucos dias depois de concluir o novo plano, ainda se refere à distinção
entre “capital em geral” e “concorrência”, como a alegação dos editores
da MEGA, de que Marx não mais utilizou o termo “capital em geral”,
também não está correta. O termo apareceu ao menos uma vez (Marx,
1861-63, p. 2099). Primeiramente e mais importante, Marx não poderia
“abandonar” a distinção entre “capital em geral” e “concorrência”, como
alegam os editores da MEGA. Essa distinção era constitutiva de sua
inteira exposição. Para que pudesse abandoná-la (o que de fato ocorre
posteriormente), ele precisaria de uma nova abordagem metodológica: e
Marx não a desenvolve nos Manuscritos de 1861-1863. Apesar de ter
encontrado o conteúdo essencial da futura obra O Capital, Marx ainda
não havia encontrado sua estrutura (que é mais do que a simples
ordenação do conteúdo).
As dificuldades com as quais Marx se deparou na exposição do “capital
em geral” nos Manuscritos de 1861-1863 podem ser resumidas a seguir.
“Capital em geral” precisava abarcar um conteúdo específico,
notadamente todas as características que aparecem no movimento real
dos capitais, na concorrência; por outro lado, este conteúdo devia ser
apresentado em um nível específico de abstração. Marx também foi
compelido a expor a reprodução do capital social total e a taxa média de
lucro. Para fazê-lo, primeiramente Marx abandonou o nível anterior de
abstração para dar conta da análise de um movimento particular da
concorrência; em segundo lugar, ao contrapor capital individual e capital
social total, Marx utilizou categorias que superam a distinção anterior
entre “capital em geral” e “concorrência”. Embora não estivesse
totalmente claro para Marx, dissolveu-se a sua concepção metodológica
original: contudo, não havia ainda uma nova no horizonte.
 
Interpretação da mudança dos planos de Marx

 
Rosdolsky tratou em detalhe a relação entre os três volumes de O
Capital e os seis livros originalmente planejados. Ele estabeleceu uma
separação precisa entre os três primeiros livros (capital, renda da terra,
trabalho assalariado) e os três finais (Estado, comércio exterior, mercado
mundial) e, corretamente, apontou que O Capital não abrange os
assuntos destinados aos três últimos livros, mas contém os elementos
principais dos três primeiros. Em específico, O Capital não apenas
abarca o conteúdo destinado à seção sobre “capital em geral”, como
também os temas planejados originalmente para as seções seguintes
(concorrência, sistema de crédito, capital dividido em ações). Embora o
esquema de Rosdolsky acertadamente reproduza a alteração de local
dos vários temas, sua tese, segundo a qual a mudança na estrutura
consistiu tão-somente num simples rearranjo dos capítulos individuais,
está errada. Rosdolsky via a mudança no plano de Marx como um
“progressivo estreitamento da estrutura original… a qual correspondeu,
contudo, a uma expansão da parte remanescente. Embora ele [Marx]
tivesse desistido de expor, separadamente, a concorrência e o capital
dividido em ações… a primeira seção do primeiro livro, que trata sobre
“capital em geral”, foi aos poucos expandida para abarcá-los” (Rosdolsky,
2001, p. 51-56)
Contudo, Rosdolsky falha ao não questionar se a expansão da seção
sobre “capital em geral” poderia ocorrer sem uma ruptura com a
abordagem subjacente.
“Assim como o plano estrutural original, os Volumes I e II de O
Capital estão restritos ao… ‘capital em geral’ … A real diferença
metodológica surge no Volume III de O Capital. Este supera o contexto
do ‘capital em geral’” (Rosdolsky, 2001, pp. 69-70). “Assim, a prévia e
fundamental distinção entre a análise do ‘capital em geral’ e aquela da
‘concorrência’ se encerra aqui” (Rosdolsky, 2001, p. 70).
Para Rosdolsky, portanto, Marx tratou a parte do “capital em geral” nos
dois primeiros volumes de O Capital, e a parte restante, juntamente com
a “concorrência”, no terceiro volume. Ao que parece, para Rosdolsky, a
mudança de plano de Marx envolveu uma simples reordenação dos
temas individuais. Não é de surpreender, portanto, que Rosdolsky seja
incapaz de citar qualquer razão concreta que justifique a necessidade de
mudança no plano, além da alegação de que a estrita distinção entre
“capital em geral” e “concorrência” foi um pontapé essencial (Rosdolsky,
2001, p. 51), posteriormente abandonado como uma limitação supérflua
e limitante (Rosdolsky, 2001, p. 52).
Rosdolsky compreendida a alteração de plano como uma mera
reorganização dos conteúdos, deixando a abordagem subjacente intacta:
“Nós, portanto, consideramos que as categorias ‘capital em geral’ e
‘pluralidade de capitais’ fornecem a chave para a compreensão, não
apenas da estrutura original, mas também da obra posterior, isto é, O
Capital” (Rosdolsky, 2001, p. 50).
Essa compreensão, errônea, exerceu uma ampla influência nas
interpretações posteriores de O Capital[7]. Como já exposto, “capital em
geral” implica que um específico conteúdo é apresentado num específico
nível de abstração; tal conceito não poderia sobreviver a um simples
reagrupamento de temas individuais. O Capital, portanto, contém uma
nova abordagem estrutural.
Contribuições recentes da República Democrática Alemã e da URSS
também sustentaram que O Capital superou o plano estrutural definido
pela categoria “capital em geral”. Contudo, os autores envolvidos nestas
contribuições não foram capazes de explicar por que, nem especificar a
nova concepção estrutural. Jahn/Niez (1978) afirmam, por exemplo, que
a “estrita versão do ‘capital em geral’ teria dificultado” a incorporação das
descobertas realizadas entre 1861 e 1863 e que, portanto, teve de ser
modificada.
No entanto, eles não explicam o porquê da modificação, nem como ela
foi realizada. Por fim, eles contradizem a própria posição ao afirmar “que
a noção de ‘capital em geral’ marca toda a exposição de O Capital”
(Jahn/Niezold, 1978, p. 168). Ternovski/Tscherpurenko (1987)
caracterizam “capital em geral simplesmente como um ‘universal
abstrato’, mas não avançam [na análise] ao afirmar, meramente, que a
‘restrição metodológica’ [do conceito de “capital em geral”] contradizia as
‘tarefas teóricas’” (Ternovski/Tscherpurenko, 1987, p. 179)[8].
 
A estrutura de O Capital

 
O Capital, publicado em 1867, não faz menção aos livros planejados em
1859, tampouco os três volumes de O Capital são idênticos ao
anteriormente previsto “Livro sobre Capital”. Os três volumes também
abarcam importantes seções dos livros planejados sobre propriedade
fundiária e trabalho assalariado. O “estudo específico sobre trabalho
assalariado” (Marx, 1867, p. 683), ao qual Marx faz referência, e o
tratamento independente da propriedade fundiária (Marx, 1894, p. 752),
constituem estudos específicos em níveis muitos distintos de abstração.
A exposição de Marx sobre as lutas pelo limite da jornada normal de
trabalho, os efeitos da maquinaria nas condições de trabalho, a lei geral
de acumulação capitalista e sobre salários e renda [rent] como
modalidades de rendimento [revenue], abarcaram a análise das
“condições econômicas de existência das três grandes classes” (Marx,
1859, p. 19), inicialmente prevista como objeto dos três primeiros livros.
A ligação íntima entre essas condições de existência e as leis do capital
tornou impossível tratá-las separadamente. Marx, então, escolheu como
objeto de O Capital a análise do “modo capitalista de produção” (Marx,
1867, p. 90).
No que se refere às quatro seções originalmente planejadas para o Livro
sobre Capital (capital em geral, concorrência, sistema de crédito, capital
dividido em ações), O Capital contém os conteúdos essenciais de todas
elas, embora não nesta ordem. Rosdolsky corretamente apontou a
mudança na localização dos temas. Contudo, houve também uma
alteração na abordagem metodológica que estruturou a exposição. O
Capital não pode mais ser compreendido nos termos da distinção
anterior entre “capital em geral” e “concorrência”: o conceito de “capital
em geral” foi abandonado. O reconhecimento, por Marx, desse processo,
repousa no fato de que “capital em geral” não é usado nem como título
de capítulo, tampouco ao longo do texto de O Capital.
A dissolução da abordagem anterior não foi inspirada por considerações
metodológicas genéricas, tampouco foi esquecida arbitrariamente, mas
teve de ser abandonada porque não poderia mais se sustentar. “Capital
em geral” foi abandonado porque não era mais possível elaborar todas
as determinações da forma (Formbestimmungen) necessárias para a
transição da “generalidade” para o “movimento real” abstraindo-se do
movimento da pluralidade de capitais. Era necessário considerar a
relação específica entre capital individual e capital social total, tanto no
processo de reprodução, quanto no processo de compensação
[equalisation] que produz a taxa média de lucro. Contudo, a exposição
desta relação [entre capital individual e capital social total] parecia levar a
uma tautologia. De um lado, os capitais individuais teriam que ser
analisados independentemente e aprioristicamente em relação ao capital
social total, o qual eles constituem. Por outro lado, o capital total impõe
limites ao movimento dos capitais individuais, de modo que a exposição
dos capitais individuais pressupõe a exposição do capital total. Marx lidou
com esse problema em O Capital tratando o capital individual e a
constituição do capital social total em diferentes níveis de abstração. Isto
é, nem o capital individual nem o capital social total, o qual Marx
inicialmente estabeleceu como seu objeto de estudo, são os fenômenos
determinados em última instância que parecem ser [finally determined
phenomena which they appear to be] do ponto de vista da observação
empírica. Em vez da abordagem anterior baseada na distinção entre
“capital em geral” e “concorrência”, O Capital trata dos capitais
individuais e da constituição do capital social total em três níveis
sucessivos: o imediato processo de produção, o processo de circulação e
o processo global, que pressupõe a unidade da produção e da
circulação.
O Volume I de O Capital analisa o capital individual no nível do imediato
[9]processo de produção, abstraindo sua interação com outros capitais. A
preocupação inicial de Marx é com a produção do mais-valor e com a
acumulação de capital. O Capítulo 25 marca o início do tratamento do
capital social total. Nesse ponto da exposição, capitais individuais são
distintos entre si tão-somente pela grandeza e composição orgânica;
razão pela qual apenas estes aspectos são considerados no tratamento
inicial do capital social total. O capital total é exposto meramente como a
soma aritmética dos capitais individuais. Contudo, mesmo neste nível de
abstração, o efeito do movimento do capital total sobre os capitais
indivisas torna-se visível e é ilustrado nas duas primeiras subseções do
Capítulo 25. O nível de análise seguinte, o processo de circulação do
capital [Volume II], inicia com o tratamento do circuit and turnover do
capital individual [10]. Entretanto, aqui [na exposição do processo de
circulação do capital], os capitais individuais não mais existem
meramente justapostos, e o capital social total deixa de ser a mera soma
dos capitais individuais. Marx afirma:
“Contudo, os circuitos [circuits] dos capitais individuais são interligados,
eles pressupõem um ao outro e condicionam um ao outro, e é
exatamente por serem interligados dessa forma que eles constituem o
movimento do capital social total” (Marx, 1885, p. 429).
O capital total é, portanto, considerado não apenas da perspectiva da
acumulação, mas também da reprodução. E, na medida em que este
processo requer certo grau de proporcionalidade, tanto no que se refere
ao conteúdo material quanto ao valor, ele [o processo de circulação do
capital] impõe limites ao movimento dos capitais individuais. No Volume
III de O Capital, no qual é estabelecido o processo global de acumulação
capitalista [process of capitalist accumulation as a whole] como unidade
dos processos de produção e circulação, Marx expõe a transformação do
mais-valor em lucro inicialmente como um processo envolvendo o capital
individual. Neste ponto, os capitais individuais, que produzem lucro,
constituem o capital social total ao estabelecer uma taxa geral de lucro.
O processo através do qual isso acontece não é aquele que se dá
meramente através da ligação de seus circuitos [circuits], mas através da
“concorrência”, não no sentido da economia burguesa de uma
concorrência perfeita, mas como a forma específica da reprodução social
(Verqesellschaftunq Sweise), a qual transforma capitais individuais em
componentes homogêneos do capital social total:
“Esta é a forma pela qual o capital toma consciência de si como poder
social, pela qual cada capitalista participa conforme sua parte [in
proportion to his share] no capital social total” (Marx, 1894, p. 297).
Embora a taxa geral de lucro seja estabelecida, primeiramente, na
concorrência entre capitais individuais, ela aparece como um
pressuposto finalizado em face do capital individual e, por conseguinte,
determina seu movimento [do capital individual]. Em cada um dos três
níveis [processo imediato de produção, processo de circulação e
processo global], portanto, o que é exposto é, primeiramente, o capital
individual, depois a constituição do capital social total a partir dos capitais
individuais, juntamente com o efeito retroativo do capital social total sobre
o movimento dos capitais individuais.
Nós demonstramos acima que a diferença fundamental entre
os Grundisse e as análises econômicas de Marx dos anos 1840 consiste
no reconhecimento da distinção entre as leis imanentes do capital e sua
manifestação no movimento real dos vários capitais. Marx tentou dar
conta dessa nova compreensão através da distinção entre “capital em
geral” e “concorrência”. A ruptura com essa abordagem [distinção entre
“capital em geral” e “concorrência”] em O Capital não significou que
este insight [de que o movimento real é a manifestação, como
necessidade exterior, da natureza interna do capital] se perdeu. A
abordagem anterior incluiu a visão definitiva de como o “movimento real
dos capitais”, a ser exposto na “concorrência”, devia ser compreendido:
como todas as circunstâncias e relações que surgissem na consideração
de vários capitais, independentemente do nível de abstração. A
exposição das leis imanentes do capital, portanto, e somente por essa
razão, tinha de ser realizada abstraindo-se de todas as relações que
envolvessem vários capitais. Por outro lado, em O Capital, Marx
reconhece que o “movimento real da concorrência”, o qual tão-somente
manifesta, mas não cria as leis do capital, não é idêntico ao movimento
da pluralidade de capitais, apenas constituindo uma parte deste. E essa
parte também está excluída de O Capital:
“Na exposição da coisificação das relações de produção e da autonomia
que elas adquirem para os agentes de produção, nós não entraremos na
forma através da qual estas relações aparecem para ele [os agentes da
produção] como leis sobrenaturais, dominando-os independentemente da
vontade deles, na forma em que o mercado mundial e suas conjunturas,
o movimento dos preços de mercado, os ciclos da indústria e do
comércio e a alternância entre prosperidade e crise prevalecem sobre
eles como uma necessidade cega. Isto porque o real movimento da
concorrência encontra-se fora do nosso plano e nós pretendemos tão-
somente expor a organização interna do modo de produção capitalista,
em sua média ideal” (Marx, 1894, p. 969f. my emphasis).
No entanto, essa abordagem não é totalmente sustentada no Volume III
de O Capital. As investigações de Marx na Parte V, em específico, não
estão finalizadas e a exposição da “média ideal” ocorre através do estudo
dos processos concretos de crises e do sistema contemporâneo inglês
de crédito. Há também a questão fundamental de até que ponto crises e
sistema de crédito podem ser expostos no nível previsto de abstração.
Por fim, uma questão surge ainda sobre como o estudo do “movimento
real” da concorrência deve ser conduzido: simplesmente pela “aplicação”
das leis gerais a um período histórico concreto ou um entendimento de
como estas leis gerais são realizadas no “movimento real” demandaria
uma investigação da relação historicamente específica entre os âmbitos
político e econômico e sua materialização  [da relação entre a política e a
economia] nas formas institucionalizadas [institutitional forms].
 
NOTAS DE RODAPÉ

[1] Este artigo é uma versão revisada de um paper originalmente


publicado em 1986 na PROKLA 65, sob o título “Hegel, die ‘Grundisse’
und das ‘Kapital’”. Tal publicação inclui uma seção sobre os problemas
da “exposição dialética”. [A presente tradução, por sua vez, é do artigo
“Capital in general and the structure of Marx’s Capital: New insights from
Marx’s ‘Economic Manuscripts of 1861-63’”, traduzido do alemão para o
inglês por Pete Burgess, e publicado na revista Capital & Class, em
primeiro de julho de 1989. Apenas a obra de Rosdolsky foi referenciada
em sua edição brasileira. As demais referências, inclusive as citações,
estão conforme a edição original, em inglês ou alemão, conforme o caso.
As adequações realizadas para o português brasileiro, bem como outras
informações acrescentadas pelo tradutor, estão indicadas por colchetes.
Infelizmente a versão do artigo em inglês não inclui a seção em que
Heinrich debate certa consideração acrítica das categorias da Lógica de
Hegel para a compreensão da exposição de Marx em O Capital].
[2] MEGA se difere das demais compilações das obras de Marx e Engels,
publicadas em vários períodos, em dois aspectos. Primeiramente,
pretende ser uma edição completa de toda a produção escrita de Marx e
Engels; não apenas tal tarefa implica publicar todas as suas obras
finalizadas, manuscritos e cartas, mas também todos os excertos,
rascunhos, notas marginais etc. Em segundo lugar, MEGA é editada
conforme princípios editoriais distintos daqueles de compilações
anteriores. Os textos são publicados em completa correspondência com
os originais, ou seja, na sua língua original, com a ortografia original e,
particularmente no caso de trabalhos incompletos e textos fragmentados,
sem nenhuma tentativa de ordenação do texto com base na obra
finalizada a que se refere. Cada volume acompanha, normalmente, um
volume tão grande quanto de anexos, situando a história do texto,
descrevendo os manuscritos e expondo todas as variações do texto
(tanto em virtude de diferentes edições, quanto em decorrência de
revisões feitas à mão). Também são apresentadas explicações históricas
e teóricas, uma bibliografia de fontes usadas por Marx e Engels, um
índice onomástico e um índice geral. Por fim, cada um dos volumes
apresenta uma introdução feita pelos editores, a qual fornece um
comentário sobre o texto e seu status no desenvolvimento do marxismo. 
[3] Portanto, Teorias da mais-valia não pode ser considerado como o
manuscrito do quarto volume de O Capital, o qual só foi planejado
posteriormente. 
 

[4] Outras interpretações elaboradas em estudos mais recentes sobre a


alteração que Marx realizou no plano da estrutura de O Capital são
igualmente insuficientes (Heinrich, 1982). Um exemplo extremo é o texto
de Wolfgang Müller, um dos principais pesquisadores da República
Democrática Alemã. Ele inicialmente defende que “capital em geral”
equivale à essência e “concorrência” equivale às formas de manifestação
(Müller, 1978, p. 21), e, posteriormente, identifica “capital em geral” com
a emergência histórica do capital e “concorrência” com seu
desenvolvimento completo (Müller, 1978, p. 35). A consequência dessa
concepção é de que essência e forma de manifestação existiriam em
uma relação de sucessão no tempo. 
 
[5] O “movimento real através do qual capital vem a ser”, expresso no
“processo dialético do seu devir”, não é a emergência histórica do capital,
mas sim o processo real, cotidiano, através do qual valor é transformado
em capital.
 

[6] Este fato não impediu o “Projektgruppe Entwicklung des Marxschens


Systems” CPEM, um grupo teórico que exerceu uma considerável
influência no debate sobre O Capital na Alemanha Ocidental nos anos
1970, de basear sua inteira interpretação nesse conceito (PEM, 1975,;
PEM, 1978, Otto/Bischoff et. Al., 1984).
 

[7] É a intepretação adotada por Mandel em sua introdução à edição da


Penguin de O Capital, na qual ele enquadra os dois primeiros volumes
como “capital em geral” e o terceiro como “concorrência” (Mandel, 1976,
p. 29).
 

[8] Os editores da MEGA também são bastante imprecisos, em sua


Introdução ao primeiro volume de O Capital, sobre o fato de Marx ter
percebido a “limitação de conteúdo” do “capital em geral” (MEGA, II Abt.,
Band 5, Introduction, p. 36) e, portanto, não tê-lo mais utilizado como
“perspectiva estrutural principal” (ibid. p. 41).
 

[9] Marx sintetiza o Volume I de O Capital nos seguintes termos:


“Estávamos tratando, até então, do processo imediato de produção, o
qual foi exposto a cada etapa como o processo de um capital individual”
(Marx, 1885, p. 470).
[10] E, no Volume II: “Tratamos, tanto na Parte 1 como na Parte 2, tão-
somente do capital individual, o movimento de uma parte autônoma do
capital social” (Marx, 1885, p. 429).
 

REFERÊNCIAS

 
Heinrich, Michael (1982). ‘Das “Kapital im Allgemeinen” and “Konkurrenz
der vielen Kapitalien” in der geplanten “Kritik der politischen okonomie”
and im “Kapital” von Karl Marx’. Unpublished M.A. thesis (Diplomarbeit),
Free University of Berlin (West).
 
Jahn, Wolfgang and Nietzold, Roland (1978). ‘Probleme der Entwicklung
der Marxschen politischen okonomie im Zeitraum von 1850 bis 1863’
in Marx Engels Jahrbuch 1, Berlin (GDR).
 
Mandel, Ernest (1976). ‘Introduction’ in Karl Marx, Capital, Vol. 1.
Penguin Books, Harmondsworth.
 
Marx, Karl (1849). ‘Wage Labour and Capital’ in Selected Works in One
Volume. Lawrence and Wishart, London, pp. 71-93.
 
Marx, Karl (1850). ‘Londoner Hefte 1850-53’ in MEGA IV Abteilung, Vol.
8, Berlin (DDR).
 
Marx, Karl (1857). Outlines of the Critique of Political Economy [the
Grundrisse] in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works, Vols. 28
and 29. Lawrence and Wishart, London (1986).
 
Marx, Karl (1858). ‘The Original Text of the Second and the Beginning of
the Third Chapter of “A Contribution to the Critique of Political Economy”
(the Urtext) in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works. Vol. 29.
Lawrence and Wishart, London (1968) pp. 430-507.
 
Marx, Karl (1859). ‘A Contribution to the Critique of Political Economy.
Part One’ in Karl Marx and Frederick Engels, Collected Works. Vol. 29.
Lawrence and Wishart, London (1986), pp. 257-389.
 
Marx, Karl (1861-63). ‘Zur Kritik der politischen okonomie (Manuscript
1861-63)’ in MEGA II. Abteilung, Vol 3. Berlin (GDR). Marx, Karl Theories
of Surplus-Value, Parts I, II and III, London, Lawrence and Wishart
(1969).
 
Marx, Karl (1867). Capital Vol. I. Penguin Books, London (1976).
 
Marx, Karl (1867a). Das Kapital, Band 1. First edition in MEGA II,
Abteilung, Vol. 5. Berlin (GDR).
 
Marx, Karl (1885). Capital, Vol. II. Penguin Books, Harmondsworth
(1978).
 
Marx, Karl (1894). Capital, Vol. III. Penguin Books, Harmondsworth
(1981).
 
Mller, Manfred (1978). Auf dent Weg zum ‘Kapital’. Zur Entuicklung des
Kapitalbegriffs von Marx in den Jahren 1857-1863. Berlin (GDR).
 
Otto, Axel and Bischoff, Joachim (1984). Grundsatze der Politischen
ökonomie. Der zseite Entuurf des ‘Kapitals’. (MEGA). Hamburg.
 
PEM (1975): Der 4.te Band des ‘Kapitals’? Konnuentar zu den ‘Theorien
über den
Mehruert’. West Berlin.
 
PEM (1987): Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie
(Rohentwurf). Kommentar, Hamburg.
 
Rosdolsky, Roman (2001). Gênese e Estrutura de O Capital de Karl
Marx. EDUERJ; Contraponto, Rio de Janeiro.
 
Ternowski, Michail and Tscherpurenko, Alexander (1987). ‘”Grundrisse”:
Probleme des zweiren and dritten Bandes des “Kapital”, and das
Schicksal des Begriffs des “Kapital im Allgemeinen”‘ in Marxistische
Studien, Jahrbuch des IMSF, 12.
 

Talles Lopes é Bacharel em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas da


Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Contato: talleslincoln@gmail.com
 

Fidel Castro e a Revolução


Cubana
 LavraPalavra
 dezembro 1, 2020
 Sem Comentários
Por Paulo Marçaioli
Resenha do livro Fidel e a Revolução – Judith Elaine dos Santos e Edgar
Jorge Kolling (orgs.). Ed. Expressão Popular. 2017.
“O que primeiro temos que nos perguntar, aos que fizemos esta
revolução, é com que intenção a fizemos. Se em algum de nós se
escondia a ambição, ânsia de mandar, o propósito desleal. Se em cada
um dos combatentes desta revolução havia um idealista, ou se com o
pretexto do idealismo, tinha outros fins. Se fizemos esta revolução
pensando que, quando a tirania fosse derrotada, desfrutaríamos dos
ofícios do poder. Se cada um de nós subiria num carro “rabo de pato”[1],
se cada um de nós viveria como um rei, se cada um de nós teria um
palacete, e daí para frente a vida, para nós, seria um passeio, já que
para isso havíamos sido revolucionários e havíamos derrotado a tirania.
Se o que estávamos pensando era tirar uns ministros para colocar
outros, se o que estávamos pensando era simplesmente tirar uns
homens para colocar outros homens. Ou se, em cada um de nós, havia
um verdadeiro desinteresse, se em cada um de nós havia um verdadeiro
espírito de sacrifício, se em cada um de nós havia o propósito de dar
tudo em troca de nada e se, de antemão, estávamos dispostos a
renunciar a tudo que não continuasse cumprindo sacrificadamente com o
dever de sinceros revolucionários. Temos que nos fazer essa pergunta
porque o futuro de Cuba, o nosso e o do povo, pode depender muito do
nosso exame de consciência”. Fidel Castro – 08/01/1959

As palavras supracitadas correspondem a parte do discurso pronunciado


por Fidel Castro quando da sua chegada a Havana, na Cidade
Liberdade, em 08/01/1959.

Fazia sete dias que os revolucionários do Movimento 26 de Julho haviam


derrotado a ditadura de Batista, que perdurara por 11 anos, desde o
golpe de estado de março de 1953.

O ditador Batista fugiu de Cuba para a República Dominicana na


madrugada de 1 de janeiro de 1959. Fidel tinha então 33 anos: líder
inequívoco dos revolucionários cubanos, já tinha atrás de si alguns anos
de prisão, exílio e luta revolucionária.

Na verdade, foi o mal sucedido ataque ao quartel de Moncada em 26 de


julho de 1953, quatro anos antes, portanto, o verdadeiro ponto de partida
da Revolução Cubana: o ataque ao quartel militar corresponde ao ponto
de partida da luta armada revolucionária na ilha. 43 revolucionários
tombaram e Fidel Castro, então um jovem advogado, foi condenado a 15
anos de prisão.

Da reclusão, formulou sua conhecida defesa, “A história me


absolverá”[2].

Após a saída de Fidel da cadeia em 12/06/1955, foi fundado o


Movimento 26 de julho que dirigiria a luta armada a partir da Sierra
Maestra. Em Julho daquele mesmo ano, os revolucionários no exílio no
México prepararam politicamente e militarmente a luta. Foi neste período
que Fidel conheceu Che Guevara, então um jovem médico que, nas
palavras de Castro, se dedicava então a dissecar corpos de coelhos para
estudo. Aprenderiam a arte militar na prática.

O embarque no Gramna no porto mexicano de Tuypaan ocorreu em


24/11/1956, barco que conduziu os 82 revolucionários pioneiros que
desencadeariam uma luta guerrilheira no campo durante 3 anos, até a
derrubada violenta da ditadura. Estavam no grupo Fidel Castro, Che
Guevara, Camilo Cienfuegos e Raul Castro.
No dia 18 de dezembro de 1956 ocorre o encontro de Fidel com Raúl e
cinco outros expedicionários, em Cinco Palmas. Consta ter havido o
seguinte diálogo, após um emocionante abraço:

“- Quantos fuzis trazem? – pergunta Fidel

– Cinco – responde Raúl.

– Com os dois que tenho eu, sete! Agora, sim, ganhamos a guerra!”

Muitos anos depois, Fidel Castro, já presidindo Cuba, diria que a política
é a arte de tornar possível o impossível. As diversas vitórias que a
revolução alcançaria ao longo das décadas subsequentes certamente
reafirmam este espírito nitidamente revolucionário de tornar o improvável
uma realidade.

É certo que a Revolução Cubana de 1959 não foi uma revolução


socialista, como o Outubro de 1917 na Rússia.

O caráter socialista da revolução foi declarado em 16/04/1961: a


proclamação do caráter socialista da revolução é uma resposta à
agressão imperialista perpetrada por mercenários articulados pela CIA
com a invasão da praia Girón e morte de sete cubanos.

O acirramento da violência entre a revolução cubana e o imperialismo


norte americana acentuou-se com as medidas democráticas tomadas
após a vitória de 1959. Por exemplo, uma lei de reforma agrária
estabeleceu a desapropriação de latifúndios e terras detidas por
estrangeiros, mediante uma indenização paga pelo estado por títulos
públicos de prazo de 10 anos. Houve a nacionalização das refinarias de
petróleo, das 36 centrais açucareiras e das companhias telefônicas e de
eletricidade, em resposta ao cancelamento da cota açucareira por parte
do governo dos EUA.
Mesmo com a atuação da contrarrevolução e sob sua ameaça, Cuba
conseguiu, no ano de 1961, a proeza de extinguir o analfabetismo na
Ilha. Tudo num prazo de um ano! Já a lei da reforma agrária beneficiou
200 mil famílias. Saúde e educação tornaram-se serviços de alcance
universal. Até os jogos de basebol, esporte querido dos cubanos,
tornaram-se necessariamente gratuitos, estabelecendo-se o direito ao
lazer.

É certo que Fidel e seus companheiros conheciam o marxismo leninismo


antes de 1961. Contudo, mesmo antes como depois da declaração
formal do caráter socialista da revolução, parece que aquelas lutas eram
mais inspiradas em José Martí e às jornadas de independência latino
americana, do que em Marx, Engels e Lênin. Sobre o assunto, talvez
seja sintomático que a denominação do partido dirigente revolucionário
como Partido Comunista Cubano (PCC) só tenha ocorrido em
01/10/1965.

Muitos anos depois, Cuba exportaria especialistas militares e militantes


internacionalistas para lutar pela independência de países na África,
mesmo contando com críticas e reservas por parte das direções
soviéticas. Cuba contribuiu diretamente com a liberação de Argélia,
Angola e Guiné Bissau – só em Angola, os cubanos enviaram 300 mil
combatentes em face de tropas fascistas sul-africanas, apoiadas pelos
EUA.

É certo que houveram dificuldades e necessidade de retificações, de


modo que a revolução cubana não se diferencia das demais no que se
refere a existência de contradições. Nos discursos de Fidel referentes ao
período que vai entre 1959/1961 há a defesa da mudança do regime
econômico por meio da educação, do sacrifício individual, da disciplina
consciente. Em 1961, os dirigentes cubanos, entre eles Che, suscitavam
o trabalho voluntário e a necessidade de se criar um novo homem.
Posteriormente, em pronunciamentos dos anos 1970, Fidel reconhece
que os estímulos materiais podem ser necessários para o incremento da
produtividade: para alcançar o comunismo, é necessário desenvolver as
forças produtivas, desenvolver a produção para permitir que os produtos
cheguem a todos.

É certo que o realismo dos dirigentes cubanos nunca foi um impeditivo


para que aquele povo lograsse alcançar grandes objetivos, metas que
poderiam parecer utópicas. No ano de 2000, Cuba tinha o maior número
per capta de médicos e professores do mundo. Mesmo após a derrota do
socialismo no leste europeu, os cubanos seguem com sua experiência
revolucionária, inclusive após a morte de seu principal dirigente em
novembro de 2016. Chamado de ditador por anticomunistas e liberais,
Fidel Castro manifestou o desejo, antes de morrer, no sentido que seu
nome não fosse inscrito em nenhuma rua, bustos e/ou estátua de Cuba.

Nota:
[1] “Rabo de pato”: expressão utilizada em Cuba para os luxuosos
automóveis dos anos 1950, cuja parte traseira era semelhante a um
“rabo de pato” e simbolizava o privilégio das elites dominantes.

[2] Resenha em http://esperandopaulo.blogspot.com/2014/12/a-historia-


me-absolvera-fidel-castro.html

O ultraliberalismo enquanto
categoria conceitual
 LavraPalavra
 dezembro 2, 2020
 Sem Comentários
Por João Elter Borges Miranda
“O ultraliberalismo enquanto categoria traz elementos mais precisos para
conceituar a série de correntes que se formam ao longo do século XX.
Tais correntes são, tradicionalmente, denominadas de neoliberais.”
O termo “neoliberal” é bastante controverso e escorregadio e está
distante de possuir status de uma categoria conceitual precisa e
sistematizada. Francisco de Oliveira colocará que o termo está aquém da
tragédia. “De nada nos serve agredir a realidade: neoliberalismo,
neocolonialismo são termos aquém da tragédia” (OLIVEIRA, 2006, p.
247). Pierre Salama apontará que “não sabemos ainda precisar com
exatidão o que é o neoliberalismo, que acabou se tornando uma
categoria muito difusa. Se por um lado é claro que conhecemos os seus
efeitos, em termos analíticos ele se tornou num conceito muito
escorregadio” (SALAMA, 2000, p. 139). E Virgínia Fontes afirmará que
neoliberalismo possuí caráter descritivo e viés de denúncia dos
antagonismos sociais provocados pelo capitalismo, porém, não propicia
vislumbrar os aspectos similarmente capitalistas no pós-guerra. Por isso,
a historiadora reivindica a sua categoria de capitali-imperialismo, a qual
abarca transformações tanto no âmbito da estrutura, quanto da
superestrutura (FONTES, 2010, p. 154).
Segundo Rodrigo Castelo, o termo neoliberalismo “demonstrou uma
vitalidade invejável nos anos 1990 a partir da luta ideológica travada pela
esquerda contra a chamada globalização capitalista. Com ele, os críticos
das mutações gestadas nos últimos 30-40 anos conseguiram
demonstrar, com alguma dose de eficácia, os efeitos econômicos,
políticos e sociais mais danosos para as classes subalternas”. Por isso,
muitos intelectuais da classe dominante “negaram a pecha, taxando seus
críticos de antiquados, ultrapassados, anacrônicos, que não teriam
percebido os ventos inevitáveis da mudança no mundo moderno, ou pós-
industrial” (CASTELO, 2011, p. 240).

O termo neoliberalismo ganhou, assim, uma série de facetas no conjunto


de análises do pensamento social crítico. No presente trabalho,
reivindicamos a categoria ultraliberalismo, ao invés de neoliberalismo. A
escolha pelo prefixo ultra, ao invés de “neo”, se dá por dois fatores.

O primeiro é porque o prefixo “neo” possuí origem grega, significando


novo, o que indica localização temporal. Por isso, optamos por não
adotar a noção de neoliberalismo, pois, concordando com a historiadora
Virgínia Fontes, esta noção, ainda que também possa ser adotada para
denunciar a série de medidas político-econômicas e ideológicas, “tem
como núcleo o contraste fundamental com o período anterior,
considerado por muitos como ‘áureo’”, de caráter keynesianista ou de
Estado de Bem-estar Social. O problema é que, ao apontar essa suposta
inflexão e descontinuação entre ambos períodos, isto é, entre o período
do pós-guerra (1945-1975), a chamada “era do ouro”[i], e o pós crise
estrutural do capital (1975-), a noção de neoliberalismo “reduz a
percepção do conteúdo similarmente capitalista e imperialista que liga os
dois períodos, assim como apaga a discrepância que predominara entre
a existência da população trabalhadora nacional nos países imperialistas
e nos demais” (FONTES, 2010, p. 154), colocando que o período pós
crise estrutural, no qual se vê a constituição da hegemonia da agenda
ultraliberal, trata-se de uma “nova era”[ii].
 O segundo fator que nos leva a adotar o prefixo “ultra” é que “neo”
indica, também, novos elementos constituintes no que concerne ao
conteúdo da agenda neoliberal. Contudo, para além de novos elementos,
o que se vê de fato é uma radicalização dos preceitos do liberalismo
clássico. O entendimento aqui é de que o prefixo “ultra” seria o mais
adequado porque indica tais transformações qualitativas, realizadas no
sentido de aprofundamento em várias escalas do capitalismo.

O chamado ultraliberalismo se trata de transformações qualitativas em


relação ao liberalismo, entretanto, não no sentido de constituição de uma
nova razão do mundo, mas sim para perpetuar a velha ordem e razão
burguesa, solidificando-a em patamares ainda mais regressivos de
expropriação e exploração da classe trabalhadora. Ou seja, ainda que se
possa ver uma radicalização do liberalismo, concordamos com a
historiadora Virgínia Fontes que aponta que não se vê, contudo,
transformações qualitativas nos “pressupostos da subsunção real do
trabalho no capital tais como estudados por Marx”, ainda que tenha
ocorrido a expansão quantitativa e internacionalizada (FONTES, 2005, p.
92).

O entendimento aqui, portanto, é que ocorreram transformações


qualitativas no âmbito dos preceitos ideológicos, no plano das ideologias,
denominado aqui genericamente de ultraliberalismo – e que isto
propiciou o aprofundamento em várias escalas do capitalismo,
especialmente a partir da crise estrutural do capital. Este
aprofundamento através de novas formas de expropriação e exploração
da classe trabalhadora, mas, os elementos que definem o capital como
uma relação social de subordinação desta classe em relação a burguesa
não foram alterados.

Tais transformações qualitativas que permeiam o ultraliberalismo podem


ser evidenciadas ao realizarmos uma comparação entre os autores do
chamado liberalismo clássico com aqueles do ultraliberalismo. São várias
correntes que vão se formando a partir do século XVIII, sendo Adam
Smith o pensador mais famoso, e que tem o seu ideário radicalizado ao
longo do século XX, constituindo uma série de correntes que, por sua
vez, compõe o que denominamos de ultraliberalismo, ao invés de
neoliberalismo.

Do liberalismo clássico ao ultraliberalismo


O liberalismo clássico vai ascender, sobretudo, no século XVIII, por conta
da resistência, lenta e tenaz, da burguesia em relação ao Antigo
Regime, que contrariava os interesses burgueses, assim como a visão
de mundo burguesa. Mas, é somente com as revoluções burguesas, com
destaque para Revolução Francesa, que o liberalismo alcança na classe
burguesa maior hegemonia. A crítica marxiana aponta que, com essas
transformações provenientes da primeira revolução industrial, a
economia política burguesa adotará como pressuposto a postulação que
interpreta as relações sociais capitalistas como naturais ou eternas,
entendendo-as como “configuração última e absoluta da produção
social”, e a concepção ética individualista das pessoas.
Desde 1848, a produção capitalista tem crescido rapidamente na
Alemanha, e já ostentava hoje seus frutos enganadores. Mas, para os
nossos especialistas, o destino continuou adverso. Enquanto podiam
tratar de Economia Política de modo descomprometido, faltavam as
relações econômicas modernas à realidade alemã. Assim que essas
relações vieram à luz, isso ocrreu sob circunstâncias que não mais
permitiam o seu estudo descompromissado na perspectiva burguesa. À
medida que é burguesa, ou seja, ao invés de compreender a ordem
capitalista como um estágio historicamente transitório de evolução, a
encara como configuração última e absoluta da produção social, a
Economia Política só pode permanecer como ciência enquanto a luta de
classes permanecer latente ou só se manifestar em episódios isolados
(MARX, 1988, p. 22).

A perspectiva burguesa por possuir atrelado à análise o seu projeto é,


assim, ideológica. É nesse contexto que o liberalismo se torna
hegemônico por oferecer os recursos analíticos para a economia política
burguesa, privilegiando a esfera privada, em relação a pública, e
deixando bem demarcado o espaço de cada uma. Torna-se hegemônica
também por justificar a propriedade privada, o lucro e a exploração da
classe trabalhadora pela classe burguesa. Categorias conceituais
como Estado mínimo e livre-mercado são originam-se no liberalismo
clássico, que dão fundamento ao primado da “igualdade perante a lei”, o
qual, por sua vez, norteou a constituição dos Estados de Direito
burguês no século XIX.
As crises do final do século XIX e XX, com destaque para a de 1929,
colocará em declínio o liberalismo clássico, originando uma reação que
constituirá o chamado novo liberalismo, o qual interpreta a liberdade
individual como objetivo central, entendendo que a falta de liberdade está
calcada na falta de emprego e direitos básicos, como saúde, educação,
etc, enquanto que o liberalismo clássico interpreta que a falta de
liberdade está na compulsão e na coação nas relações entre os
indivíduos em sociedade. Para o novo liberalismo, ou liberalismo
moderno, a falta daqueles direitos básicos pode ser tão prejudicial quanto
a inexistência de meios para aplacar a compulsão e a coação. Um grupo
de intelectuais, na Inglaterra, na virada do século XVIII e início do século
XX, com destaque para T. H. Green (1836-1882) e L. T. Hobhouse
(1864-1929), apontaram que a liberdade individual e a sua defesa
deveriam estar acompanhadas da existência de um Estado social,
intervindo no que concerne as questões de ordem social, propiciando
assim a livre iniciativa. Na década de 1930, em especial, o social
liberalismo avança no formato de um novo interlocutor, John Maynard
Keynes (1883-1946), economista britânico cujas ideias tiveram grande
popularidade em países de capitalismo avançado, principalmente, nas
décadas de 1950 e 1960, constituindo Estados de Bem-estar Social.

Com a crise do pós-guerra de 1975, o pensamento keynesiano perderá


espaço para o chamado ultraliberalismo, tradicionalmente denominado
de neoliberalismo. No seu balanço do neoliberalismo, Perry Anderson
apontará que as origens do pensamento “ultaliberal” data do pós-guerra.
Os primeiros fundamentos nasceram na região da Europa e da América
do Norte. Tem como texto de origem a obra “O Caminho da Servidão”, de
Friedrich Hayek, escrito já em 1944. No livro, Hayek ataca “qualquer
limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas
como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas
também política”. Três anos mais tarde, em 1947, Hayek convocou
aqueles que partilhavam dos seus ideais para uma reunião na pequena
estação de Mont Pèlerin, na Suíça. Nela estiveram nomes como Milton
Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter
Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador de Madariaga, entre
outros. Juntos formaram a Sociedade de Mont Pèlerin, a qual, de forma
dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos,
estabeleceu como propósitos combater o avanço do socialismo e o New
Deal norte-americano e o Estado de bem-estar europeu, além de
qualquer solidarismo reinante e keynesianista (ANDERSON, 1995, p.
09.).
Fica popularmente conhecido como “neoliberalismo” esse arcabouçou
programático e teórico político-econômico que se formou para combater
o Estado de bem-estar social, a partir da ressignificação das ideias
derivadas do capitalismo laissez-faire[iii], expressão símbolo do
liberalismo, segundo o qual o mercado deve funcionar livremente sob a
égide da mão-invisível. Mas, como dito anteriormente, no presente
trabalho reivindicamos a categoria de “ultraliberalismo”, pois a
consideramos mais precisa.
O entendimento aqui é de que a Sociedade de Mont Pelerin teve o papel
de dar maior organicidade e propagação a um conjunto de princípios
teóricos, ideológicos, político-econômicos, que já vinham muito antes
sendo forjados, constituindo correntes teóricas que, em seu conjunto,
denominamos de ultraliberais.

A noção de ultraliberalismo seria uma espécie de subcategoria,


reivindicada em uma análise que busca a reflexão da totalidade das
transformações capitalistas. O método da totalidade busca abarcar as
transformações e características do que se dá no âmbito da estrutura e
da superestrutura. Vemos isso em análises como a de Vladimir Ilich
Ulianov Lênin (1870-1924), que fundamentou a categoria de imperialismo
e capital monopolista. Vemos isso, mais recentemente, em marxistas
como a historiadora Virgínia Fontes que, a partir de Lênin e outros
pensadores, fundamentou a categoria de capital-imperialismo.
Ultraliberalismo, neste sentido, seria uma subcategoria, abarcando o
conjunto de preceitos ideológicos e formas de ver o mundo fermentados
por intelectuais a serviço do capital. Temos conhecimento que, não raro,
a adoção de subcategorias no que concerne ao pensamento de direita
pode mais dificultar e confundir a análise, do que de fato propiciar um
entendimento aprofundado, lúcido e fundamentado. Tendo em vista isto,
no presente subtópico iremos abordar, rapidamente, um conjunto de
correntes e ideias que compõe o ultraliberalismo.
Tais correntes se diferenciam a partir, dentre outros critérios, dos
princípios epistemológicos e metodológicos de interpretação da realidade
histórico-social e proposição ideológica de programas político-
econômicos – o que dificulta realizarmos uma espécie de “arqueologia”
ou genealogia do pensamento liberal e ultraliberal, pois exigiria a leitura
de uma série de autores, principalmente, do século XVIII ao XX. Tal
análise comparativa (e comparar autores de diferentes épocas é sempre
um procedimento metodológico arriscado) se daria, assim, entre
pensadores do chamado liberalismo clássico, do século XVI ao XIX, e
pensadores do que aqui denominamos de ultraliberalismo, do século XX.
Além do estudo crítico e comparativo, para tal fundamentação da
hipótese no sentido de constituição de tese seria necessária uma análise
dos próprios autores, de suas trajetórias, abarcando o contexto em que
pensaram o que pensaram.

Em suma, entendemos que o ultraliberalismo se trata de uma ofensiva da


classe burguesa e seus aliados, fermentada e propagada pelos seus
intelectuais orgânicos, contra a classe trabalhadora, em reação ao
avanço do socialismo na URSS e também em reação ao avanço do
modelo fordista-keynesiano, de constituição de Estados de Bem-estar
Social nos países centrais. O ultraliberalismo, diante da crise estrutural,
passa a ser implementado sistematicamente em vários países do globo,
pelos Estados, sob pressão e ação dos mercados e dos organismos
multilaterais do capital, com destaque para o Banco Mundial, o FMI e a
ONU; e sob a pressão de uma série de aparelhos privados de hegemonia
criados diretamente ou não pela burguesia. Para lograr êxito na
afirmação e aplicação enquanto programas político-econômicos nos
governos, a agenda ultraliberal foi implementada pela burguesia através
de ferramentas de formação de consenso, com destaque para a mídia
corporativa e, não raro, através da coerção, por meio do terrorismo de
Estado, criminalização das organizações da classe trabalhadora
(partidos, sindicatos, movimentos sociais), xenofobia, racismo, dentre
outros meios de dominação e coerção. Vale ressaltar, ainda, que a
falência da contrarreforma ultraliberal abre o terreno para a saída
fascista, que significa, em primazia, o aprofundamento e radicalização do
que já é terrivelmente radical e violenta para nós – os de baixo.

Apesar das dificuldades epistemológicas, identificamos que as maiores


influências literárias do liberalismo clássico incluem autores tais como:
John Locke, Frédéric Bastiat, David Hume, Alexis de Tocqueville, Adam
Smith, David Ricardo. Enquanto que do ultraliberalismo poderíamos citar
os seguintes: Rose Wilder Lane, Lysander Spooner, Milton Friedman,
David Friedman, Ayn Rand, James McGill Buchana Jr., Friedrich Von
Hayek, Ludwig Von Mises, Hans-Hermann Hoppe, Murray Rothbard e
Walter Block. No que concerne as escolas e correntes ultraliberais,
formaram-se no século XX, dentre outras, as seguintes: Escola
Austríaca, Ordoliberalismo alemão, Escola de Chicago, Nova Escola
Institucional, Economia Novo Clássico, Social Liberalismo e
Libertarianismo.

Existem outras correntes, mas, consideramos que estas são as mais


importantes por conta da capacidade de propagação de suas ideias nos
meios intelectuais, assim como nos programas político-econômicos dos
governos, especialmente aqueles formados a partir da crise estrutural do
capital, a qual abordaremos a seguir. No fluxograma abaixo, procuramos
evidenciar parte da série de correntes ultraliberais que se formam no
século XX.

Fluxograma
Elaboração própria.

Como dito anteriormente, a partir do liberalismo clássico uma série de


autores formaram novas correntes, no sentido de radicalização do
mesmo. Essas escolas possuem, algumas mais, outras menos,
interconexões. Exemplo disso é Milton Friedman, considerado o principal
nome da Escola de Chicago, foi profundamente influenciado por Hayek,
da Escola Austríaca. Friedman disse, sobre Hayek, que “sua influência
tem sido tremenda”. O fluxograma acima não evidencia as interconexões
entre as correntes.

Elementos em comum entre as correntes ultraliberais


Vale ressaltar que as diferentes correntes abordadas apontam que o
ultraliberalismo indica uma ofensiva burguesa que toma a forma de um
projeto histórico-social que não se limita ao campo econômico, apesar de
estar sob o imperativo da reprodução ampliada do capitalismo – e que é
disseminado em larga escala especialmente após a crise estrutural do
capital. Ultraliberalismo é, por isso, um termo mais preciso para designar
um conjunto amplo de propostas político-econômicas, a partir de um
liberalismo acentuado, radicalizado, implementado diante da crise
estrutural do capital, na era da globalização financeira, com implicações
em todos os setores da vida humana. Trata-se, ainda, de um conjunto de
princípios epistemológicos, com desdobramentos ideológicos, que são
forjados em reação ao avanço da implementação do keynesianismo e
dos Estados de Bem-estar Sociais, apesar dessa implementação se dar
a partir de uma das correntes ultraliberais, o Social-liberalismo, nos
países de capitalismo avançado, assim como uma reação ao avanço da
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Apesar de haver diferentes correntes no ultraliberalismo, identificamos


que todas partem de princípios epistemológicos comuns, com
desdobramentos político-econômicos e ideólogos. No que concerne aos
desdobramentos político-econômicos, poderíamos citar os seguintes, a
partir de Francisco Fonseca:

[…] precedência da esfera privada (o indivíduo livre no mercado) sobre a


esfera pública; máxima desestatização da economia, privatizando-se
todas as empresas sob controle do Estado; desproteção aos capitais
nacionais, que deveriam competir livremente com seus congêneres
estrangeiros; desmontagem do Estado de Bem-Estar Social, pois
concebido (e estigmatizado) como ineficaz, ineficiente, perdulário,
injusto/autoritário (por transferir aos mais pobres parcelas de renda dos
mais ricos ou bem-sucedidos, que assim o seriam, estes, por seus
próprios méritos), e indutor de comportamentos que não valorizariam o
mérito e o esforço pessoais; forte pressão pela quebra do pacto
corporativo entre Capital e Trabalho, em nome da liberdade de escolha
individual e da soberania do consumidor; desregulamentação e
desregulação da produção, da circulação dos bens e serviços, do
mercado financeiro e das relações de trabalho; ênfase nas virtudes
do livre-mercado, em dois sentidos: como instrumento prodigioso, por
aumentar a riqueza, gerando em consequência uma natural distribuição
de renda, em razão do aumento da produtividade; e como único
mecanismo possível de refletir os preços reais dos produtos e serviços,
possibilitando aos indivíduos o exercício de cálculos em relação à
atividade econômica; concepção de liberdade como liberdade de
mercado, isto é, ausência de empecilhos à relação Capital/Trabalho e
à livre realização dos fatores produtivos; concepção negativa da
liberdade, isto é, caracterizada como ausência de constrangimentos (que
não apenas os imprescindíveis à vida em sociedade) e interferências da
esfera pública em relação à esfera privada; aceitação da democracia
apenas e tão-somente se possibilitadora do mercado livre e da liberdade
individual; concepção de que a sociedade deve oferecer a cada indivíduo
(nos aspecto fiscal e quanto a eventuais equipamentos públicos) apenas
e tão-somente o quanto este contribuíra para ela. Trata-se da inversão
do lema socialista, pois valoriza-se a desigualdade,  que, dessa forma,
deve refletir méritos distintos; hipervalorização do sistema jurídico
(nomocracia), estruturante e avalista de uma sociedade (contratual)
composta por indivíduos autônomos em suas ações em virtude de seus
interesses; crença de que o Estado interventor
é, intrinsecamente, produtor de muitas crises: fiscal, burocrática, de
produtividade, entre outras; daí as demandas pelas ‘reformas do Estado
orientadas para o mercado’ e pela defesa da diminuição de impostos e
dos gastos governamentais; ênfase nas mínimas, porém importantes,
funções do Estado, que deveria ter os seguintes papéis: garantir a ordem
e a paz; garantir a propriedade privada; garantir os contratos livremente
elaborados entre os indivíduos; garantir o ‘livre-mercado”, por meio da
proibição de práticas anticoncorrenciais e da elaboração de ‘normas
gerais e abstratas’; desregulamentar, desregular e flexibilizar os
mercados (financeiro, produtivo e de trabalho) (FONSENCA, 2005, p. 60-
61).
Em resumo, então, poderíamos destacar que as ideias-chave
desenvolvidas pelos intelectuais ultraliberais são: defesa do ideário do
livre-mercado, da livre-iniciativa e a crença no laissez-faire (auto
regulação do mercado), gestão empresarial do Estado (ou defesa da
inexistência do Estado), flexibilização das leis trabalhistas, privatizações,
desregulamentação financeira, defesa maximizada da propriedade
privada. E acrescentar que também são esferas da pauta da agenda
ultraliberal o aumento do encarceramento como política penal e o
pagamento religioso da dívida pública, dentre outras proposições. São,
em resumo, a agenda ultraliberal, ou, ainda, a agenda de
contrarreformas da ofensiva burguesa.
A principal origem desses desdobramentos político-econômicos está nos
princípios epistemológicos, isto é, no procedimento teórico-metodológico
de abordagem, estudo e reflexão da realidade, dos quais partem as
correntes ultraliberais. Identificamos que esse conjunto de correntes
partem do pressuposto de que a sociedade é uma “associação ou
agregado de indivíduos” cujo único conectivo é o mercado. Pressuposto
este que não é novidade dos ultraliberais, mas é herdado do liberalismo
clássico, mais especificamente, de sua ética individualista e naturalista.
Contudo, o desdobramento desse pressuposto é a primazia do mercado
e está o âmago da radicalização ultraliberal.

O desdobramento disto é, por exemplo, de que um determinado bem ou


serviço só tem valor para seu consumidor direto. Neste sentido, somente
este consumidor direto é quem deve assumir os custos do uso deste bem
ou serviço. Tendo em vista que o Estado, no caso do Brasil, por exemplo,
tem como primazia na constituição federal oferecer educação pública
para toda a sociedade brasileira, aquela ou aquele que opta por não
usufruir diretamente dela, buscando a educação oferecida pelos setores
privados, deve, na linha do pensamento ultraliberal, ser ressarcido pela
fração de seus impostos que vai para aquele serviço. Como o Estado
não realiza este “reembolso”, entendem que o mesmo é incapaz de
reunir e processar informação dispersa com eficiência, sendo o único
instrumento capaz disso o mercado, que o faz, supostamente, de forma
espontânea, através de uma ordem que emerge da competividade.

O mercado é um termo que carece de uma maior precisão conceitual,


mas, concordando com o assistente social Rodrigo Castelo, o mercado
não seria, na óptica ultraliberal, o espaço de troca e alocação de
recursos, mas sim uma instituição social e econômica de alocação de
recursos que se caracteriza pela ausência de um mecanismo
centralizador e planificador da produção, da distribuição e do consumo
das mercadorias. “De acordo com a anarquia da produção, a
concorrência adquiriria um papel central e acabaria por exercer, por vias
não-convencionais, o papel de uma instância permissivamente
reguladora” (CASTELO, 2011, p. 15).

 A competividade, assim, é o telos da relação entre indivíduos na


perspectiva ultraliberal. Interpretam isto como uma condição a priori da
condição não só humana, mas como de ser vivo. Disto emerge o
chamado “darwinismo social”, o qual aponta que são os mais fortes na
sociedade que sobrevivem – e que devem sobreviver. O mercado, assim,
comportaria um equilíbrio “que aliaria eficiência e bem-estar social,
respeitada a condição de que a mão invisível do mercado operasse
livremente”. No curto prazo, haveria desigualdades sociais, mas, “a mão
invisível do mercado geraria o bem-estar geral a partir do casamento do
interesse individual egoísta com o interesse coletivo” (CASTELO, 2011,
p. 15). Por isso, a ação Estatal, no sentido de reparar os antagonismos
sociais não tem importância, sequer a menor a relevância. É na ação
individual, competitiva, que deve emergir a ordem. E esta ação se dá no
mercado. Algumas correntes chegam a apontar a ação estatal, mas
sempre no sentido de permitir esta competividade.
Para esta abordagem, então, a única coisa que importa é de que os
agentes econômicos possam (ou seja, tenham a liberdade para tal)
oferecer um determinado serviço ou bem ao menor valor possível. Para
tanto, precisam guerrear entre si, e aquele que sobreviver a isso é quem
estará mais apto para oferecer o melhor serviço ou bem. Para esta
abordagem, o consumidor direto deve poder (ou seja, deve ter a
liberdade para tanto) de escolher entre este ou aquele serviço ou bem.

 Este princípio epistemológico comum às correntes ultraliberais impede


que os intelectuais que o fomenta e o propaga compreendam que na
sociedade possa haver efeitos sociais complexos. Ao partirem do
pressuposto de que a única complexidade é o mercado, simplesmente,
estão impedidos de compreenderem a complexidade inerente a inter-
relação e conexão a qual estamos submetidos enquanto sociedade. Por
estarmos conectados, o que fazemos têm consequências reais e
imediatas a quem está a nossa volta, assim como indiretas em todo o
restante da sociedade, do planeta. Diante disso, é um benefício para
toda a sociedade que as pessoas recebam do Estado, por exemplo,
educação pública de qualidade. Contudo, entender a sociedade como um
agregado de indivíduos gera um ponto-cego, impedindo que os
intelectuais ultraliberais percebam os efeitos indiretos e as vantagens
coletivas advindas de uma grande quantidade de pessoas terem direito
ao acesso a um determinado bem ou serviço financiado, via Estado, pelo
conjunto do todo da sociedade.

Talvez isto tenha ficado bastante evidente em meio a pandemia causada


pelo novo corona vírus em 2020. Numa situação gravíssima como a que
estamos na atualidade submetidos, os intelectuais ultraliberais, como
Paulo Guedes, são incapazes de compreenderem que a quarentena só
tem resultado efetivo se for suficientemente grande. Ao invés disso, fica
esbaforindo o direito individual de ir e vir, em detrimento do interesse
comum de aplacar o avanço da contaminação. Enquanto milhares de
pessoas caem sob a progressão da hecatombe, defensores caninos do
capital como Guedes e Jair Bolsonaro, no Brasil, seguem colocando os
interesses individuais do grande capital acima do interesse coletivo da
sociedade brasileira de não morrer.  
Além dessa consequência imediata, as análises ultraliberais têm,
historicamente, como desdobramentos preceitos político-econômicos,
apontados anteriormente, em que o mercado é o espaço de realização
da liberdade, sendo necessário, para tanto, a reconfiguração do Estado,
através de privatizações, por exemplo. O que, por sua vez, não significa
a redução do Estado (para a maioria das correntes), mas sim a
reconfiguração do mesmo a partir desses preceitos de defesa do
indivíduo, de seus predicados supostos, da concorrência, de sua
propriedade privada dos meios de produção e de sua liberdade a
priori de escolher, ou, noutras palavras, concorrer (liberdade esta
conquistada através da não intervenção estatal na economia, propiciando
a auto regulação do mercado, auto regulação esta que emerge,
espontaneamente, através da concorrência).
A auto regulação do mercado, na perspectiva ultraliberal, advém da
própria característica da sociedade pensada enquanto associação de
indivíduos. Ao entender a sociedade dessa maneira, o todo é o resultado
da soma das partes orientadas por uma ordem que se dá
espontaneamente no mercado. As normas e regras devem, a priori,
resultar do conjunto de ações individuais no interior do mercado. E o
Estado não deve, por isso, interferir nessa ordem sus generis. A
interferência do Estado através, por exemplo, da regulação do mercado,
é interpretada como uma gaiola de aço rígido, limitadora, aplacadora,
que desrespeita e impede tal condição humana. Uma ordem social só
deve se efetivar, portanto, espontaneamente, ao passo que quaisquer
medidas ou pretensões de planificação ou pacto social, qualquer forma
de decisão coletiva, não teriam espaço, sequer a menor importância. O
papel do Estado assume diferentes proporções de acordo com a
corrente. Pode assumir um papel maior, através, por exemplo, da justiça
e da polícia, assim como determinadas correntes podem definir a
completa inexistência do Estado, como é o caso dos anarcocapitalistas.
Além da resultante político-econômica, essa velha razão do mundo que
optamos no presente trabalho subcategorizar como ultraliberal, tem como
consequência a constituição de procedimentos teórico-metodológicos
que têm como ponto em comum o pressuposto de que a sociedade é um
agregado de indivíduos, e que se desdobram em análises que a tudo
particularizam e a tudo podem entender como “verdade”. Refiro-me a um
conjunto de correntes que chegam com a aparência de novidade, mas
que não passam de novas roupagens para velhas ideias, que eliminam o
racionalismo, o marxismo, a verdade – e que, assim, podem não
promover abertamente uma apologia do capitalismo, mas que,
sutilmente, constituem uma série de concepções e teses sobre o mundo
que não o incomoda.

Considerações finais
Diante do fato de os preceitos epistemológicos ultraliberais
impossibilitarem que os seus formuladores compreendam fenômenos
complexos, constituindo uma cegueira intelectual, tais preceitos podem
até ser considerados epistemológicos enquanto abordagem do real, mas
não ontológicos enquanto reflexão do real em si. Ainda assim, para os
ultraliberais, o ultraliberalismo é um pensamento da complexidade social,
ao passo que noções como “justiça social” são resultado de análises
primitivas incapazes conceberem ordens que emergem
espontaneamente através do mercado.

O conjunto de políticas ultraliberais, advogando em favor de políticas de


liberalização econômica extensas, como as privatizações, austeridade
fiscal, desregulamentação, livre-comércio, corte de despesas
governamentais a fim de reforçar o papel do setor privado, foram,
implementadas de forma sistemática e desigual em vários países após a
crise do pós-guerra, em 1975. Esse momento de inflexão, que o filósofo
húngaro István Mészáros identifica como uma crise estrutural, é
considerada a primeira grande recessão econômica desde a Segunda
Guerra Mundial, quando o mundo capitalista caiu numa profunda e longa
recessão, combinado com altas taxas de inflação e baixas taxas de
crescimento (CASTELO, 2011).
Podemos demarcar que é com Pinochet (1973) no Chile, Thatcher (1979)
na Inglaterra e Reagan (1980) nos Estados Unidos que é iniciado a
aplicação da agenda ultraliberal de forma sistemática. Foram estes os
primeiros governos que promoveram um profundo e sistemático processo
de implementação da agenda ultraliberal, promovendo a retirada de
direitos históricos e arduamente conquistados pelo conjunto da classe
trabalhadora. Através disso, promovem a intensificação da flexibilização
e da precarização das condições de trabalho, estabelecendo relações
pautadas pela subcontratação, emprego temporário e parcial, atividades
autônomas etc. Atendem, assim, a agenda ultraliberal (HARVEY, 2014).

Na América Latina, a agenda ultraliberal, foi aplicada na década de 1980


com maior força na Argentina, Bolívia, México e Venezuela. No Brasil,
diante da resistência da classe trabalhadora em um complexo quadro
nacional de lutas, “formou-se um bloco de resistência relativamente
eficiente”, de modo que a aplicação da agenda ultraliberal no país sofreu
retardo, só conseguindo “se estabelecer tardiamente no país nos anos
1990 com a cooptação de setores da social-democracia (PSDB),
auxiliados por conservadores (o então PFL, hoje DEM) e até mesmo ex-
comunistas (PPS, ex-PCB)” (CASTELO, 2011, p. 246).

Ainda se perpetuará no Brasil a partir de diferentes abordagens. No que


concerne ao Estado em sentido ampliado, foram constituídas desde o
processo de redemocratização uma série de aparelhos privados de
hegemonia, os quais terão o papel de não só propagar a agenda e os
preceitos ultraliberais, como também reconfigurar o Estado a partir do
mesmo. Exemplo de correntes seriam o Instituto Liberal, Instituto de
Estudos Empresariais, dentre outros. No que concerne ao Estado em
sentido restrito, a partir do segundo mandato do governo de Fernando
Henrique Cardoso, o ultraliberalismo paulatinamente assumirá a
configuração Social Liberal, porém, será nos governos petistas que essa
corrente ultraliberal vai atingir uma qualidade superior em governos
autodeclarados de esquerda. A hegemonia ultraliberal atingiu qualidade
superior nos governos petistas, para Maciel, através da combinação “de
uma política favorável ao grande capital com políticas sociais
compensatórias que conferem ao governo enorme apoio popular”, o que
se deu, concomitantemente, com a cooptação de “grande parte dos
movimentos socais e suas organizações”, acompanhada da
fragmentação e do isolamento político da esquerda socialista (MACIEL,
2010, p. 121). Após o golpe de 2016, a partir do governo Temer, cuja
política econômica foi não só continuada, como também intensificada no
governo Bolsonaro, se vê uma retomada do ultraliberalismo a partir de
outras configurações, no sentido ainda mais “puro” do mesmo,
distanciando-se, assim, do ultraliberalismo em sua configuração social
liberal.

Portanto, diante da crise estrutural, o avanço e o alargamento do capital


não deixam de ocorrer, sustentando-se no agravamento das
contradições entre a relação de domínio do capital sobre o trabalho,
tendo a agenda ultraliberal um grande papel fundamental enquanto
política econômica regressiva de retirada de direitos históricos e
arduamente conquistados pela classe trabalhadora. E o conjunto de
correntes ultraliberais serão a velha razão burguesa sob nova roupagem,
implementada de diferentes maneiras diante da crise para a manutenção
de sua hegemonia e margens de lucro.

Referências
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GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o
Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, pp. 09-23, 1995.
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para a “questão social” no século XXI. Rio de Janeiro. 2011. Tese de
doutorado (Doutorado em Serviço Social). Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
COELHO NETO, Eurelino Teixeira. Uma esquerda para o capital: o
transformismo dos grupos dirigentes do PT (1979-1998). Feira de
Santana, BA: UEFS Editora; São Paulo, SP: Xamã, 2012.
FIGUEIRÊDO, Lízia de. O papel do Estado para Adam Smith. 1 ed,
Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas gerais, 1997.
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imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo:
Editora Hicitec, 2005.
FONTES, Virgínia. Reflexões im-pertinentes: história e capitalismo
contemporâneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005.
________. O Brasil e o capital imperialismo. Teoria e história. Rio de
Janeiro: EPSJV/UFRJ, 2010.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as
origens da mudança cultural. 25. ed. São Paulo: Loyola, 2014.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século X: 1914-
1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MACIEL, David. Melhor impossível: a nova etapa da hegemonia
neoliberal sob o governo Lula. In: Universidade e Sociedade, nº 46,
Brasília – DF: Andes-SN, p. 120-133, junho de 2010.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3ª Edição. São Paulo: Nova Cultural,
1988.
OLIVEIRA, Francisco de. Oração a São Paulo: a tarefa da crítica.
In: Francisco de Oliveira: a tarefa da crítica. Cibele Rizek e Wagner
Romão (orgs.). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006.
SALAMA, Pierre. A trama do neoliberalismo: mercado, crise e exclusão
social. In: Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado
democrático. Emir Sader e Pablo Gentili (orgs.). 5ª edição. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2000.
FONTES, V. O Brasil e o capital imperialismo. Teoria e história. Rio
de Janeiro: EPSJV/UFRJ, 2010.

[i] Denominado por Hobsbawm (1995) como “Era de Ouro”, esse período


anterior sobre o qual Fontes se refere também é conhecido como “trinta
anos gloriosos”. Trata-se de um fenômeno que ficou restrito, em grande
medida, a países da América do Norte e do oeste europeu,
principalmente entre 1945 e 1975, em que o avanço dos processos de
controle sócio metabólico das contradições que permeiam as relações de
produção enseja no boom dos investimentos nos países de “capitalismo
avançado”, promovendo reformas sociais, constituindo o Estado de Bem-
estar Social em um grupo pequeno de países – em especial, da Europa
Ocidental –, durante aquele determinado período de tempo. Portanto,
esse boom permitiu a implementação do chamado Estado de bem-estar
social, que estabelece que todo o indivíduo deve ter acesso a um
conjunto de bens e serviços, oferecidos diretamente pelo Estado, ou
garantido indiretamente por meio do seu poder de regulação e
organização social, política, econômica e sociocultural. Tais promoções
se dão não só no que tange à economia, como também na formação de
uma cultura histórica que leve as pessoas a apoiarem e a defenderem
esse sistema. Assim, quaisquer rebeliões, greves, manifestações, são
imediatamente absorvidas pelo Estado burguês através de projetos de
intervenções progressistas que, supostamente, atenderiam às pautas
reivindicadas, mas que, na realidade, promovem a manutenção do status
quo. A incontestável crise estrutural do capital da década de 1970 faz
cair por terra o modelo fordista-keynesiano de desenvolvimento
capitalista implementado em larga escala nos países ricos entre as
décadas de 1940 e 1960, em que se viu aspectos do ideário ultraliberal
do Social Liberalismo constituírem Estados de Bem-estar Social. Acima
de tudo, essa crise estrutural faz emergir uma nova temporalidade
histórica do processo civilizatório, permeada por um conjunto de
processos que configuram a fenomenologia do sistema capitalista global
em seus “trinta anos perversos” (1980-2010).
[ii] Aliás, o discurso no sentido de convencer e conquistar as
consciências para a tese de que vivemos uma nova era é, concordando
com Coelho, “um dos campos de construção permanente da hegemonia
burguesa contemporânea. Dependendo do contexto, o nome da era nova
pode variar significativamente, desde a ‘sociedade pós-industrial de
Daniel Bell até a ‘modernidade’ de Fernando Collor, no Brasil, ou
globalização” COELHO NETO, 2012, p. 280).
[iii] A expressão laissez-faire advém do francês e simboliza o chamado
liberalismo econômico, a qual entende que o capitalismo deve funcionar
de acordo com o mercado, livremente, sem os subsídios do Estado,
muito menos outros tipos de interferências. O Estado deve, nessa
concepção, limitar-se a estabelecer regulamentos que protegem a
propriedade privada dos meios de produção, a qual está nas mãos da
burguesia. Literalmente, a expressão em língua francesa laissez faire,
laissez aller, laissez passer, significa “deixai fazer, deixai ir, deixai
passar”. Os fundamentos do laissez-faire baseiam-se na liberdade do
indivíduo, entendendo-o como uma unidade básica da sociedade e esta,
por sua vez, entendida como a associação dos indivíduos. Adam Smith
aponta que a natureza é permeada pelo cosmos, uma ordem física
naturalmente harmoniosa e autorregulada. As corporações, que compõe
o Estado, devem por isso serem constantemente vigiadas de forma
minuciosa devido à tendência de elas romperem com essa tal ordem
espontânea inerente à natureza (FIGUEIRÊDO, 1997).

Fanon via Lacan: Aportes


teóricos para uma leitura
contemporânea
 LavraPalavra
 dezembro 3, 2020
 Sem Comentários
Por Cian S. Barbosa Whately
Este artigo tem como propósito abordar a atualidade da teoria fanoniana,
investigando a abordagem exposta em seu livro “Pele negra, máscaras
brancas”, enquanto uma crítica ao essencialismo identitário e, não
menos importante, enquanto uma contribuição à crítica da ideologia em
geral. Essa contribuição, como pretende-se demonstrar, será
evidenciada também quando lida junto ao contexto do debate francês no
século XX acerca do conceito de sujeito e, em especial, a formulação
lacaniana acerca deste, oriunda de seu retorno à Freud, retomando-o
pelo avesso através do estruturalismo linguístico e antropológico,
assumindo o significante enquanto modelo metodológico.
Compartilhamos aqui do espírito interdisciplinar do qual tanto Fanon é
partidário, assim como da convicção de que há ainda muitas
possibilidades para a teoria marxista quando essa se aproximar
devidamente da obra de Lacan. Demonstraremos também que, em
Fanon, já podemos ver em sua sociogenia algo como uma abordagem
da ordem de um marxismo psicanalítico (que difere do freudo-marxismo),
articulando também a filosofia hegeliana, onde se articulam elementos
para uma crítica da ideologia com fundamentos que aproximam-se da
problemática apresentada pela escola eslovena contemporânea, tendo
como referência de maior destaque o filósofo Slavoj Žižek (e a subversão
que o mesmo opera com o conceito de ideologia, lido através da teoria
lacaniana, e diferenciado-se, por exemplo, da referência principal do
estruturalismo sobre o tema, a saber, Althusser.
Introdução

Este artigo tem como propósito abordar a atualidade da teoria fanoniana,


investigando a abordagem exposta em seu livro “Pele negra, máscaras
brancas” (2008), publicado originalmente em 1952, enquanto uma crítica
ao essencialismo identitário e, não menos importante, enquanto uma
contribuição à crítica da ideologia em geral. Essa contribuição, como
pretende-se demonstrar, será evidenciada também quando lida junto ao
contexto do debate francês no século XX acerca do conceito de sujeito e,
em especial, a formulação lacaniana acerca deste, oriunda de seu
retorno à Freud, retomando-o pelo avesso através do estruturalismo
linguístico e antropológico, assumindo o significante enquanto modelo
metodológico. Demonstraremos também que, em Fanon, já podemos ver
em sua sociogenia algo como uma abordagem da ordem de um
marxismo psicanalítico (que se difere do freudo-marxismo), articulando
também a filosofia hegeliana, onde se articulam elementos para uma
crítica da ideologia com fundamentos que aproximam-se da problemática
apresentada pela escola eslovena contemporânea, tendo como
referência de maior destaque o filósofo Slavoj Žižek e a subversão que o
mesmo opera com o conceito de ideologia, lido através da teoria
lacaniana, e diferenciado-se, por exemplo, da referência principal do
estruturalismo sobre o tema, a saber, Althusser.
Apesar das poucas citações diretas a Lacan em ‘Pele negra, máscaras
brancas’ (cinco apenas), Fanon demonstra estar em um diálogo frutífero
que por vezes se vale de proposições acerca da teoria lacaniana da
psicose (2008, p. 67), por outras difere sua abordagem pelo conceito
de estrutura em relação ao de constituição – como trabalhado por Lacan
em sua “crítica virulenta à noção de constituição” de 1932 (ib., p. 81).
Também para debater a questão da neurose e do complexo de Édipo em
relação à organização familiar no continente europeu (ib., p. 127), e as
diferenças estruturais com o continente africano, diferenças demarcadas
com ímpeto crítico à projeção de etnólogos europeus, onde mobiliza
inclusive Hegel “contra” Lacan (ib., p. 135). 
Sabemos também que Fanon vem a falecer antes de Lacan apresentar
sua teoria dos discursos, um ponto de virada importante em sua obra.
Poderíamos dizer que Fanon veio a conhecer apenas o primeiro Lacan.
Também por isso pretende-se demonstrar as possibilidades de diálogo
entre a sociogenia crítica que parte da dialética entre
colonizador/colonizado (a que Fanon apresenta em Pele negra,
Máscaras Brancas), a teoria dos discursos (que Lacan formaliza no livro
XVII de seus seminários, chamado O Avesso da Psicanálise) e,
fundamentalmente, a utilização da teoria dos discursos para a crítica da
ideologia (como elaborada por Žižek em várias de suas obras).
Carregamos aqui a consciência de que tanto a psicanálise, como sabia
Fanon, quanto, em especial, a teoria de Lacan, muito tem a contribuir
para a teoria social marxista – como insiste Badiou, Žižek e tantos outros.
Partiremos assim de uma retomada geral do debate através do conceito
de sujeito na filosofia francesa do século XX, até chegarmos na definição
lacaniana e sua formulação pelo modelo do significante, apropriando-se
e subvertendo este modelo da própria linguística de Saussure.
Avançaremos para a crítica da ideologia tal qual apresentada por Žižek e,
por fim, as possíveis relações destas com leituras contemporâneas de
Fanon e suas contribuições fundamentais à crítica da ideologia – seja a
ideologia racialista, seja à ideologia em um sentido geral.
A questão do sujeito na abordagem lacaniana 

Para apresentarmos um mapeamento sucinto da questão, recorreremos


ao filósofo franco-argelino Alain Badiou, que nos apresenta, enquanto
testemunha viva e um dos herdeiros eméritos desse momento, as
questões elaboradas pelos aventureiros do pensamento desenvolvido na
França do século XX. Para compreendermos genealogicamente tal
pensamento precisamos situar dois momentos no início do século XX: as
conferências de Bergson em Oxford, que ocorreram em 1911, publicadas
em O pensamento e o movente, e o livro Etapas da filosofia matemática,
de Brunschvicg. Badiou nos diz que, ao menos na aparência, tais pontos
“fixam orientações inteiramente opostas para o pensamento” e fundam
duas correntes diferentes na filosofia francesa (BADIOU; 2012/2015).
Podemos compreender cada uma delas a partir do seguinte:
Bergson propõe uma filosofia da interioridade vital, que subsume a tese
ontológica de uma identidade do ser e da mudança apoiada na biologia
moderna. […] Brunschvicg propõe uma filosofia do conceito, ou mais
exatamente da intuição conceitual (oxímoro fecundo desde Descartes),
apoiada nas matemáticas, que descreve a constituição histórica dos
simbolismos nos quais as intuições conceituais fundamentais são, de
alguma forma, recolhidas. (BADIOU, Alain. A aventura da filosofia
francesa no século XX, 2015, p. 9-10)
Sendo assim, teremos essa dualidade demarcada na filosofia francesa
do século XX. Essa observação é fundamental para compreendermos as
contribuições desse evento filosófico, tanto para a teoria de modo geral
(o legado do estruturalismo e do pós-estruturalismo), quanto para o
conceito de sujeito em específico. Essa elaboração parte do diálogo de
tais influências que retornam ao conceito de sujeito desde Descartes a
partir de uma compreensão das influências externas. O sujeito passa a
ser abordado, pelos autores desse movimento, a partir de múltiplas
perspectivas.
Como nos ensina Badiou, a questão do sujeito se torna profundamente
renovada, sendo abordada pelas perspectivas do conceito e
da vitalidade em um debate em que Descartes é evocado como ponto de
conflito. Para pensadores desse movimento a questão do sujeito é
importante pela necessidade de ser suplementada com o seguinte
problema: o que fazer com a herança cartesiana? Esse é um verdadeiro
campo de batalha nesse momento. Temos então uma problemática que
é a da abordagem da questão do sujeito enquanto interrogado por sua
vida subjetiva, animal, orgânica, e também por outro viés; enquanto
criador de conceitos, pensador, capaz de abstração.
o sujeito como consciência intencional é uma noção crucial para Sartre e
para Merleau-Ponty. Althusser, ao contrário, define a história como um
processo sem sujeito e define o sujeito como uma categoria ideológica.
Derrida, na descendência de Heidegger, considera o sujeito como uma
categoria metafísica; Lacan cria um novo conceito de sujeito, cuja
constituição é a divisão original, a clivagem; para Lyotard, o sujeito é o
sujeito da enunciação, de tal modo que em última instância ele deve
responder por ela diante da Lei. Para Lardreau, o sujeito é isso acerca de
que, ou de quem, pode ocorrer o afeto da piedade; para mim, não há
sujeito senão de um processo de verdade etc. (Idem, Ibidem, p. 10).
Badiou nos lembra que Lacan chegou a lançar uma palavra de ordem
para um retorno a Descartes. Sartre trata, em um de seus famosos
textos, da liberdade em Descarte. É conhecida também a hostilidade de
Deleuze contra o mesmo. Enfim, há “uma batalha em torno da noção de
sujeito, que frequentemente toma a forma de uma controvérsia quanto a
herança cartesiana” (BADIOU, 2015).
Também nos ensina Badiou que a filosofia francesa no século XX foi
buscar na Alemanha uma nova relação entre conceito e existência, onde
encontramos um verdadeiro debate sobre a herança do pensamento
alemão, de Kant a Heidegger. Essa busca se dá enquanto a primeira de
duas operações intelectuais, de buscas metodológicas. A segunda, não
menos importante, é em relação à ciência. Os franceses quiseram
“arrancar a ciência do domínio estrito da filosofia do conhecimento”
(BADIOU, 2015, p. 12). Daí poderemos começar a compreender o estilo
metodológico na tradição do estruturalismo, e também a complexa e mal
compreendida abordagem de Lacan que será fundamental para
compreendermos a questão do sujeito enquanto descentrado; questão
que será cara à formulação teórica da psicanálise e à filosofia que se
engajou com as questões que o inconsciente trouxe, em especial para a
temática da liberdade. Sobre isso, precisaremos então abordar o que
define Lacan acerca da questão do sujeito.
Em seu famoso retorno a Freud, Lacan retoma seu projeto pelo avesso,
articulando-se junto ao movimento de Saussure e Lévi-Strauss no
estruturalismo linguístico e antropológico. Também será influenciado por
Hegel, via Kojève. Além disso irá, ao longo do desenvolvimento de seus
seminários, incorporar ferramentas da lógica matemática e da topologia
para reelaborar a metodologia da formulação teórica e, uma de suas
principais preocupações, da transmissão da psicanálise. Podemos dizer
que a teoria lacaniana se funda por redefinir preceitos éticos e reformular
a posição da psicanálise em relação às ciências e à filosofia. Lacan
aborda a psicanálise a partir de uma ética. Seu objetivo também é o de
combater mal-entendidos sobre o inconsciente freudiano, formalizando
com os meios de sua época (da linguística estrutural, da antropologia,
dos matemas, da topologia etc.), uma nova abordagem em psicanálise.
Como nos disse Badiou, o conceito lacaniano do sujeito é baseado na
clivagem, na cisão constitutiva. É dessa divisão que precisamos tratar.
Sendo assim, Lacan nos traz a concepção do estádio do espelho para
compreendermos basicamente como, na espécie humana, o infante já
consegue reconhecer sua imagem mesmo antes de superar um
chimpanzé em termos de inteligência instrumental. A partir dos 6 meses
de idade o bebê já demonstra indícios de simbolização com sua imagem
refletida e, a partir disso, começa a relacionar-se com essa imagem
duplicada, estabelecendo uma concepção do próprio corpo enquanto
totalidade simbolicamente fechada. O estádio do espelho opera uma
identificação, no sentido analítico próprio estabelecido por Lacan: da
transformação do sujeito quando este assume uma imagem (LACAN,
1966/2010):
A assunção jubilatória de sua imagem especular, por esse ser ainda
mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação
que é o filho do homem no estágio de infans, parece-nos pois manifestar,
numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o Eu se precipita
numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação
com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua
função de sujeito. (LACAN, J. “O Estádio do Espelho como formador da
função do eu” in: Um mapa da ideologia, 2010, p. 98).
O Eu (com maiúscula) designa aqui o sujeito do inconsciente,
desenvolvido por Lacan dos ensinamentos de Freud. Lacan denomina
sua retomada, ou seu retorno [retourner], a Freud enquanto
uma retomada pelo avesso. Não é à toa. Lacan não cessa de enfatizar
sua crítica à noção freudiana de Eu [Ich] que fundamenta a sua própria
[Je]. Podemos encontrar essa crítica desde as primeiras páginas do
seminário II (1978, p. 20) até o seminário XXVII, onde Lacan dirá com
todas as palavras que os seus três são o real, o simbólico e o imaginário,
diferindo-se assim da segunda tópica freudiana, do Eu, Supereu e Isso.
Não quer dizer que Lacan os descarte, obviamente. Mas que sua leitura
se dará situando-os em uma topologia (de objetos não orientáveis, no
caso a do nó chamado borromeu, algo do qual não trataremos no texto
presente, mas que se faz necessário e útil mencionar). Lacan elabora
sobre o Eu que se constrói em uma determinada matriz, a matriz do
Outro, logo, do simbólico. Essa matriz simbólica se dá pela relação
especular e, portanto, invertida, onde o espaço do sujeito se precipita a
manifestar-se mesmo antes de ser propriamente articulado na
linguagem. Neste ensaio tudo já está aí, apesar de “simulado”: a dialética
de identificação com o pequeno outro (que é apenas ele mesmo refletido,
mas já propicia um efeito de troca que significa a totalidade do corpo) e a
representação simbólica do Eu [Je]:
Mas o ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde
antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre
irredutível para o indivíduo isolado – ou melhor, que só se unirá
assintoticamente ao devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das
sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição
de Eu, sua discordância de sua própria realidade. (Idem, ibidem.)
Aqui podemos perceber uma das características do descentramento
subjetivo que Lacan caracteriza e conceitua, a não coincidência
entre Je e moi. Em seu segundo seminário já o vemos tratar da questão,
situando-a desde Freud, na seguinte metáfora tópica: “o sujeito está
descentrado com relação ao indivíduo. É o que [Eu] é um outro quer
dizer.” (LACAN, 1978, p. 16)  Para elaborarmos melhor esse ponto,
lembremos o que Lacan propõe em relação ao algoritmo saussuriano, a
subversão em que Lacan sustentará a primazia do significante sobre o
significado. Será em seu Escritos, não à toa, que Lacan definirá seu
próprio algoritmo e formulará o princípio de sua virada teórica pelo
modelo do significante até a teorização dos quatro discursos. Reflete
também um dos traços do estruturalismo e sua abordagem: a
formalização conceitual onde o escrito ganha estatuto de fórmula,
matema, estatuto que equivale ao registro do Real, onde o Real é o
escrito, diferido da palavra que se encontra na ordem do Simbólico
(como nos diz no seminário XVIII). 
Em que pode ser útil a teoria lacaniana dos discursos para
compreendermos a ideologia e sua função, seu lugar, na estruturação da
realidade? Para início de reflexão, precisamos compreender que a teoria
dos discursos desenvolvida por Lacan se apoia tanto no estruturalismo
linguístico e antropológico quanto nas subversões produzidas pela sua
intervenção, a partir do que Freud descobre sobre o inconsciente.
Comecemos pela apropriação e subversão do conceito de significante
operado por Lacan.
É importante considerar, sobre a linguística estrutural, que ela estabelece
preceitos fundamentais para o estruturalismo ao tratar da linguagem e
seus signos como algo da ordem da diferença pura, aproximando-se
assim da fundamentação axiomática característica, por exemplo, da
matemática. Sabemos que Saussure, em seu Cours de Linguistique
Générale, define o signo linguístico como união entre conceito e imagem
acústica, ou seja, entre significado e significante. A imagem acústica não
se refere ao som material, mas sua impressão psíquica. Além disso,
Saussure determinará tanto a arbitrariedade do signo, quanto o caráter
linear do significante. Temos assim a proposição saussuriana de
Significado sobre o Significante:
 

Lacan, entretanto, subverterá o algoritmo saussuriano, removendo tanto


as flechas quanto o círculo em que se inscreve, e estabelecendo a
primazia do significante sobre o significado. Encontramos essa definição
já em 1957, quando de seu texto A instância da letra no inconsciente, ou
a razão desde Freud, onde Lacan definirá que podemos escrever sua
proposição algorítmica como
 

sendo o algoritmo pura função do significante, revela também


uma estrutura de significante. Assim, determinará o significante em
relação direta não mais ao significado, mas a outro significante. Sobre a
estrutura do significante, dirá Lacan que está em que ele seja articulado,
significando que suas unidades “são submetidas à dupla condição de se
reduzirem a elementos diferenciais últimos e de os comporem de acordo
com as leis de uma ordem fechada” (LACAN, 1978, p. 232). Sobre essa
segunda propriedade, Lacan enfatiza o termo cadeia significante para
ilustrar-nos com a imagem de “anéis formando um colar que se enlaça no
anel de um outro colar feito de anéis” e afirmar que “é na cadeia do
significante que o sentido insiste; mas que nenhum dos elementos da
cadeia consiste na significação que ele é capaz no momento mesmo”
(LACAN, 1978, p. 232-233). Daí veremos sua justificativa acerca da
primazia do significante, e também sua crítica a Saussure que considera
a linearidade “como constituinte da cadeia do discurso, conformemente a
sua emissão por uma única voz e na horizontal” quando, na escrita da
teoria psicanalítica apresentada por Lacan, “é necessária, mas não
suficiente”, devido sua dimensão retroativa. Lacan também indicará as
duas vertentes do campo efetivo que o significante constitui para se dar
aí o sentido: metonímia (quando dizemos que há no mar trinta velas,
onde sabemos que a palavra barco se esconde nessa relação) e
metáfora (onde se troca uma palavra por outra, como quando “amor é
fogo que arde sem se ver”, e grande é o crédito dado por Lacan tanto
aos poetas quanto ao movimento surrealista, no que diz respeito nosso
conhecimento dos usos da metáfora). Lacan finalmente chegará à
questão do sujeito cartesiano, o cogito ergo sum, e à possível relação
subversiva entre este e a finalidade proposta pela descoberta de
Freud: Wo Es war, soll Ich werden. Podemos resumir brevemente a
questão com a seguinte citação de Lacan:
O lugar que eu ocupo como sujeito de significante será, em relação
àquele que eu ocupo como sujeito do significado, concêntrico ou
excêntrico? Eis a questão. Não se trata de saber se eu falo de mim
conformemente ao que eu sou, mas se, quando eu o falo de mim, sou o
mesmo que aquele de quem eu falo. (LACAN, J. A instância da letra no
inconsciente, ou a razão desde Freud. Escritos, 1978, p. 247)
Daí emerge o sujeito, “em virtude do significante que funciona como
representando esse sujeito junto a um outro significante” (LACAN, 1994,
p. 11). Lacan, mais para frente, desenvolverá sua teoria dos quatro
discursos, dos quais não precisamos abordar todos, senão o primeiro: o
discurso do mestre. Começa por ele e não é à toa. O discurso do mestre
é aquele que, da posição de agente, endereça um significante mestre
(S1) em uma bateria de significantes ordenados (S2) que, por sua vez,
se encontra no lugar do Outro, no lugar (como nos diz Lacan) daquilo
que se convencionou chamar de um saber. O discurso do mestre não
precisa ser sustentado necessariamente por uma figura direta de um
mestre, podendo operar simplesmente pela legitimidade que evoca, seja
pelo motivo que for. O significante mestre, por sua vez,  opera uma
função de estofo, comanda um ordenamento discursivo. Sendo o
inconsciente discurso do Outro, nele opera também um ordenamento do
significante mestre sobre sua estrutura. É importante ressaltar que Lacan
se refere ao S1 como puro imperativo: “O Eu transcendental é aquele
que qualquer pessoa que de uma certa maneira enunciou um saber
contém como verdade, é o S1, o Eu do mestre.” (LACAN, 1994, p. 59), o
Eu idêntico a si mesmo, Eu ideal. O significante-mestre garante assim
uma fixação do sentido, que poderia (e pode) sempre deslizar
infinitamente sobre os significantes referidos a outros significantes. Ele
propicia tal demarcação não por ter algo essencial, mas por um gesto
vazio de referir-se a si mesmo. O “é assim porque eu disse” da
autoridade paterna é um exemplo dessa demarcação gestual
performática, mas no discurso político poderíamos pensar no significante
mestre como o significante que existe em diferentes discursos político-
ideológicos, mas que opera de forma distinta na lógica interna desses
discursos: liberdade, por exemplo, é um significante mestre comum a
qualquer discurso político, mas seu sentido é completamente diferente no
discurso neoliberal (liberdade suprema das empresas, do mercado), no
discurso nazista (liberdade de suprimir uma identidade étnica em
detrimento de outra, inclusive pelo genocídio industrializado), ou no
discurso marxista (liberdade de autodeterminação contra a exploração
estrutural, sistêmica). 
Vemos então que esse discurso diz também algo da ordem da política,
do poder e do ordenamento (ou coesão) de um laço social, seja
individual ou coletivo. Žižek articulará o conceito de significante mestre
junto à crítica da ideologia. Gunkel define o conceito žižekiano de crítica
da ideologia como aquilo que busca expor a dimensão ideológica
“implícita” que fundamenta um significante mestre:
não se contesta o anti-semitismo exibindo a realidade empírica
verdadeira dos indivíduos judeus e demonstrando como eles nada se
parecem com o que foi (des)representado no discurso anti-semita. Ao
contrário, se contesta o antissemitismo mirando a construção antissemita
do “Judeu” [Jew] enquanto um significante-mestre. (GUNKEL, D. The
Žižek Dictionary, 2014, p. 193)
Aqui se faz necessário que passemos por Althusser e,
consequentemente, a crítica feita por Žižek à sua teoria da Ideologia.
Lembremos então o que já mencionamos brevemente, via Badiou, sobre
a concepção de sujeito em Althusser. Para ele, como vimos, o sujeito é
uma categoria ideológica. O que isso quer dizer? Veremos a seguir a
dimensão em que Althusser se afasta de Lacan, a proposição žižekiana
em relação à ideologia e sua possibilidade de articulação com a crítica
feita por Fanon em Pele negra, máscaras brancas.
Ideologia: Althusser, Žižek, Fanon

Althusser desenvolve sua ideia partindo das formulações acerca dos


AIEs (Aparelhos Ideológicos de Estado, relacionando-os também aos
Aparelhos Repressivos do Estado, os AREs) e define a constituição
subjetiva através da interpelação ideológica: quando um policial interpela
(convoca, adverte, demanda) um indivíduo, este é interpelado enquanto
sujeito por instâncias que cumprem uma função ideológica de
reprodução das relações de produção (ALTHUSSER, 1978/2010). É
importante demarcar que a relação entre AIEs e AREs não são de
autoexclusão, de modo que apesar de uns definirem-se mais pela
característica repressiva e outros pela ideológica, ambos são tanto um
quanto outro (de tal modo que a polícia militar é um aparelho repressor,
mas internamente possui seus próprios aparelhos ideológicos, ao passo
que redes televisivas são aparelhos ideológicos que internamente
possuem seus próprios aparelhos repressores, por exemplo).
Althusser vai definir então suas teses acerca da ideologia, conceituando-
a como a-histórica no sentido específico que Freud dá para o
inconsciente enquanto atemporal, de tal modo que “a eternidade do
inconsciente guarda alguma relação com a eternidade da ideologia em
geral” (ALTHUSSER, L. 1978/2010, p. 125). Em um segundo momento,
Althusser definirá também a ideologia enquanto uma “representação” da
relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de
existência e possuidora de uma existência material. Por fim, Althusser
afirma que não existe prática que não seja através e dentro de uma
determinada ideologia, ao passo de que não existe ideologia exceto pelo
sujeito e para sujeitos. Daí teremos sua tese central no texto Ideologia e
aparelhos ideológicos de Estado: a ideologia interpela o indivíduos como
sujeitos.
Žižek retomará a formulação de Althusser, fazendo reformulações via
Lacan e Hegel: na sua teoria da ideologia, Žižek pontua a importância
da Jouissance enquanto fator político-ideológico, ao passo que situa a
ideologia como uma dimensão constituinte da própria produção da
realidade. Žižek aponta, sobre Althusser, que “o ponto fraco de sua teoria
é que ele ou sua escola nunca conseguiram discernir o vínculo entre os
Aparelhos Ideológicos de Estado e a interpelação ideológica” (ŽIŽEK,
1992/2010).
A resposta a isso, como vimos, é que essa “máquina” externa dos
Aparelhos de Estado só exerce sua força na medida em que é
vivenciada, na economia inconsciente do sujeito, como uma injunção
traumática e sem sentido. Althusser fala apenas do processo de
interpelação ideológica mediante o qual a máquina simbólica da ideologia
é “internalizada”, na experiência ideológica do Sentido e da Verdade:
mas podemos aprender com Pascal que essa “internalização”, por uma
necessidade estrutural, nunca tem pleno sucesso, que há sempre um
resíduo, um resto, uma mancha de irracionalidade e absurdo traumáticos
que se agarra a ela, e que esse resto, longe de prejudicar a plena
submissão do sujeito à ordem ideológica, é a própria condição dela: é
precisamente esse excedente não integrado de trauma sem sentido que
confere à Lei sua autoridade incondicional; em outras palavras, é ele que
— na medida em que escapa ao sentido ideológico — sustenta o que
poderíamos chamar de jouis-sens ideológico, o gozo-no-sentido (enjoy-
meant) que é próprio da ideologia. (ŽIŽEK, S. Como Marx inventou o
sintoma? in 1992/2010, p. 321).
Chegamos então em uma de nossas hipóteses centrais, onde
abordaremos a obra de Fanon enquanto uma crítica da ideologia que já
contém a dimensão do gozo-do-sentido enquanto fator político. Para
isso, façamos um preâmbulo sobre nossas relações com a memória, a
falta, a saudade e o (in)sucesso de nos reencontrarmos com o objeto
perdido.
Um ponto contundente que nos apresenta a psicanálise é sobre como
experimentamos a falta enquanto em uma fantasia retroativa, uma
projeção que significa o vazio de determinada experiência de perda. A
questão aqui é que esse tipo de experiência não é apenas casual, porém
diz algo sobre como o sujeito se relaciona com a perda e a falta não
apenas no nível das relações interpessoais. Na dinâmica abordada pela
psicanálise entre o sujeito e o objeto (perdido) de desejo, que se articula
na fantasia, encontramos implicações políticas de fato. Fanon é um dos
maiores pensadores dessas fantasias retroativas que distribuem o campo
da “geometria” do poder nas relações coloniais racializadas. Sua análise
parte da relação colonizador/colonizado pela perspectiva racializada do
branco e do negro, o francês e o martinicano. No movimento de seu
pensamento, Fanon fundamenta a tese de que tais lugares se fundam
pela posição colonial frente à diferença e vão estruturar tais relações,
desde suas condições de simbolização à organização material da vida,
passando evidentemente pelas expressões da cultura. Mas para
compreendermos a posição de Fanon, devemos entender sua
compreensão de sujeito.
Em uma fantástica passagem no seu clássico Pele Negra, Máscaras
Brancas, Fanon nos diz que “há uma zona de não-ser, uma região
extraordinariamente estéril e árida, uma rampa essencialmente
despojada, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer. A maioria
dos negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos
verdadeiros Infernos.” (FANON, 2008, p. 26). Essa zona de não-ser, de
negatividade radical, é dimensão fundamental para o advento do sujeito:
pode ser entendida como a lacuna constitutiva do descentramento que
torna possível o advento do sujeito. O que Fanon sabia muito bem por
sua orientação psicanalítica é que, justamente, a própria concepção da
identidade negra é condicionada e cerceada em sua condição colonial.
Doravante, o colonialismo não é simplesmente uma praga, natural e
intrínseca ao branco – o que seria tomar como pressuposto que exista
algo que preceda a experiência, algo da própria essência do branco,
pressuposto que Fanon nega e combate em sentido geral: sua obra
explicita justamente que não há essência racial. Fanon sabia muito bem
também, pela sua orientação marxista, que o colonialismo surge da
lógica do capital, e todas as suas relações serão replicadas, deslocadas,
reformuladas e, enquanto a economia política que subjaz à lógica do
colonialismo não for ela mesma implodida, o colonialismo e o racismo
retornarão tanto em dimensão geopolítica quanto no discurso político-
ideológico para cooptação do afeto do medo enquanto medo do Próximo
(nesses dois sentidos, respectivamente, podemos pensar na situação
contemporânea do Estado de Israel e as plataformas de partidos da
extrema-direita estadunidenses e europeias contra imigrantes).
O racismo, sabemos, é presente em nossa sociedade, sendo questão
fundamental para compreendermos da saúde à segurança pública,
passando por inúmeras esferas da vida. Dizer isso somente não é
suficiente. Precisamos conceituar como o racismo é definido enquanto
fenômeno histórico, político e social para que a questão não se perca em
uma compreensão psicologizante. A concepção estrutural do racismo
implica compreendermos que este fenômeno é parte fundante de nossa
sociedade, e está na própria forma “normal” das relações políticas,
econômicas, jurídicas e familiares (ALMEIDA, 2018). Silvio Luiz de
Almeida nos apresenta uma leitura sobre a formação do Estado,
enquanto instituição política principal do contemporâneo, pela
compreensão do racismo enquanto interligado à sua estrutura,
alimentando e sendo alimentado pela mesma. Também acrescenta que é
“por meio do Estado que a classificação de pessoas e a divisão dos
indivíduos em classes e grupos se torna possível” e que a
“especificidade da dinâmica estrutural do racismo está ligada às
peculiaridades de cada formação social” (ALMEIDA, 2018, p. 84), sendo
a observação das respectivas experiências históricas fator crucial para a
compreensão de suas particularidades sociais, tanto que as
características biológicas e culturais relacionados são suportes materiais
para a significação da ideia raça, enquanto construída socialmente
(ALMEIDA, 2018, p. 85).
A formação dos Estados nacionais com o advento do capitalismo se dá
de tal modo que é preciso uma alteração na organização da vida social
em múltiplos âmbitos, das dimensões estruturais às identidades, esse
fator sendo fundamental para a construção da nacionalidade enquanto
narrativa acerca dos laços sociais de determinado povo em determinado
território e governado por um poder centralizado (ALMEIDA, 2018, p.85).
Se por um lado o significante nacional gera pertencimento identitário, por
outro cria regras de exclusão.
Mas como sabemos, a identidade não é algo fixo, essencial e imutável,
não é estanque e muito menos não relacional. A identidade é um
processo simbólico que estrutura o ego e, por sua limitação estrutural, é
sempre implicada pela sua falta, já que toda identidade necessita de uma
constituição junto ao Outro (da alteridade radical, da linguagem, etc.) e
esse Outro é, por definição, faltoso, furado. Voltaremos a esse ponto
mais adiante, por hora basta dizermos que a identidade se dá a partir de
um processo de estruturação simbólica do imaginário, mas vai além da
simples nomeação. De acordo com Žižek, já em Hegel encontramos a
percepção de que há algo de violento na própria simbolização: quando
nomeamos uma coisa, o próprio ato de nomeação reduz tal coisa a um
traço e implica sua inserção em uma rede de significações exterior à
própria coisa. Mas, não podemos esquecer, essa violência pode se dar
também em uma dimensão libertadora. Não seria a diferenciação entre
trabalhador (ou a categoria força de trabalho, como apresentada n’O
Capital) e proletário um grande exemplo de violência simbólica
emancipadora? Žižek, enquanto bom hegeliano, percebe o deslizes de
Lacan ao analisar as categorias marxistas de exército industrial de
reserva e população excedente
A “população excedente” e o “exército industrial de reserva” não
designam precisamente uma posição subjetiva – são categorias sociais
empíricas. De uma maneira implícita, sutil (não muito diferente da
distinção implícita de Freud, desenterrada por Lacan, entre o ideal de
ego e o superego), Marx distingue sim entre o proletariado (uma posição
subjetiva) e a classe trabalhadora (uma categoria social objetiva).
(ŽIŽEK, Slavoj. A Política de Alienação e Separação: de Hegel a Marx…
e de Volta, 2017, p. 7)
O que devemos perceber aqui é a dimensão específica que a
categoria proletariado carrega enquanto uma passagem da
identidade em si do trabalhador ao para si que é perceber-se enquanto
parte de uma universalidade determinada por uma negatividade
potencialmente emancipatória. Essa é justamente uma das fronteiras
entre sociologia e filosofia no pensamento marxista: ao tratarmos da
classe trabalhadora enquanto categoria social objetiva, empiricamente
observável, podemos pensar na metodologia científica sociológica de
análises categoriais. Quando o termo proletariado aparece, devemos (ou
ao menos deveríamos) saber que a questão da qual tratamos agora é de
cunho filosófico e político, partimos para o horizonte crítico da
emancipação e assumimos uma postura subjetiva. Não à toa o advento
do “fim da história” como anunciado por Fukuyama significa, na verdade,
o advento da pós-política. Mas, devemos lembrar, um ato político
propriamente dito se diferencia da administração das questões sociais
justamente por mudar a própria estrutura que determina como as coisas
funcionam (ŽIŽEK, 1999/2016, p. 220) e, nesse sentido, o movimento de
construção da identidade proletária pela classe trabalhadora é um ato
político em si e para si. Perceber-se proletário implica incluir-se em uma
categoria universal e isso, essa nomeação, muda a própria realidade, a
própria forma como o sujeito interpreta e age em sua vida. 
É impossível aqui não mencionarmos os ensinamentos de Fanon. Ele
nos traz a importância da dimensão histórica e política na formação
dessa “álgebra” dos espaços simbólicos onde se constitui a
subjetividade. Se “falar é existir absolutamente para o outro” e “é estar
em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal
ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de
uma civilização” (FANON, 2008, p. 33), poderíamos reconhecer aqui a
materialidade da fala e a dimensão superegóica do simbólico, ambas
enquanto consequências (da ética) da psicanálise para o pensamento
político? Žižek parece apostar que sim e segue o movimento de Fanon,
afirmando que “por conseguinte, em vez de procurar desesperadamente
por nossas raízes autênticas, a tarefa é perder nossas raízes de maneira
autêntica – essa perda é o nascimento da subjetividade emancipatória”
(ŽIŽEK, 2017, p. 09) ou, em termo mais específicos, o nascimento da
subjetividade com potenciais emancipatórios.
Mas o que significa essa maneira autêntica na qual precisamos ser
destituídos de nossas “raízes” para que essa subjetividade, que
demanda e depende de ação emancipatória, possa surgir? Podemos
encontrar uma pista na passagem de Pele Negra, Máscaras brancas,
onde Fanon apresenta sua crítica ao culto da inteligência:
Quando um outro tenta obstinadamente me provar que os negros são tão
inteligentes quanto os brancos, digo: a inteligência também nunca salvou
ninguém, pois se é em nome da inteligência e da filosofia que se
proclama a igualdade dos homens, também é em seu nome que muitas
vezes se decide seu extermínio. (FANON, Pele negra, máscaras
brancas, 2008, p. 43).
Nesse sentido a obra fanoniana produz um movimento crítico
violentamente emancipatório contra a ideia de raça enquanto significante
mestre da própria ideologia racial (e em última análise, racista): defender
uma “essência da raça”, seja referindo-se ao significante “branco” ou
“negro”, é recair na própria lógica colonial de demarcação dos espaços,
tal qual Fanon já nos evidenciava. Se “aquilo que se chama de alma
negra é frequentemente uma construção do branco” (FANON, 2008, p.
30), descobrimos que a própria alma está implicada no desvio existencial
produzido pela violência colonial. Sendo assim, por Fanon compreender
a subjetividade pela sua radicalidade, por entender a política e o
colonialismo pela sua operação ideológica de dominação, toda sua obra
é perpassada pelo efeito da compreensão prática do descentramento do
sujeito, sua não coincidência com a identidade e os significantes que o
traçam. Longe de ser um humanismo ingênuo que afirma sermos todos
iguais bastando que “abandonemos os rótulos”, sua postura é de
radicalizar a nossa própria compreensão de como se constrói a
identidade do colonizado em relação ao colonizador, do preto em relação
ao branco, etc. Fanon ainda busca ir além. Seu objetivo é emancipar o
sujeito de suas determinações históricas:
Não se deve tentar fixar o homem, pois o seu destino é ser solto. A
densidade da História não determina nenhum de meus atos. Eu sou meu
próprio fundamento. É superando o dado histórico, instrumental, que
introduzo o ciclo de minha liberdade. (FANON, Pele negra, máscaras
brancas, 2008, p. 190)
Ao se produzir a raça como tecnologia de poder para controle dos corpos
— dos que são livres ou escravos, humanos ou não humanos, nativos ou
civilizados, etc. — desenvolve-se uma condição ideológica que toma os
corpos como suporte material desse universo simbólico. Ora, não era
justamente essa a pretensão do racismo científico, como nos mostra a
frenologia?! Antes, o próprio espaço simbólico que constitui a formação
de nossa consciência, subjetividade e identidade é onde se desenvolve a
ideia de raça para que esta torne-se uma abstração real, no sentido
marxista que Douglas Rodrigues Barros toma emprestado em seu
livro Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma crítica da
metafísica racial, e o utiliza no mesmo sentido — enquanto algo que não
possui fundamento substancial mas produz realidade, organiza a vida em
seus efeitos materiais.
Essa abstração real da raça—que ao mesmo tempo que fundamenta a
relação social funda sua forma categorial—é um processo no qual a
justificativa excludente se dá no plano sociossimbólico. Isso passa a
governar os destinos individuais guiando-os para uma submissão frente
àquilo que aparece como o “bom”. É essa estruturação da subjetividade
colonizada que interessa a Fanon. (BARROS, D. R. Lugar de negro,
lugar de branco?, 2019, p. 49)
Douglas trará as armas da crítica fanoniana para nos lembrar que os dois
movimentos comuns são já inscritos na lógica simbólica da colonização:
1) a super-identificação com o mundo colonial, seu estilo, linguagem,
símbolos; a caracterização do poder nos termos da branquitude, e 2) a
negação que busca um retorno a si, às origens, ao mundo perdido e a
um mito originário que é, necessariamente, inexistente. Ambas as
posições são coniventes com a lógica colonial, apesar de aparentemente
distintas — até opostas. Se a primeira é mais fácil de imaginarmos, a
segunda hoje pode ser ouvida por qualquer neonazista europeu ou
supremacista branco norte-americano: a ideia de retorno é justamente o
que eles querem impor aos árabes, mexicanos, chineses, sírios, líbios…
Qualquer pessoa não-branca é “convidada” a regressar para sua
“origem”— às vezes mesmo que essa pessoa tenha nascido no território
do respectivo país ao qual “não pertence”. De certa forma, a violência
terrorista do Estado de Israel contra o legítimo território palestino não se
fundamenta justamente nesse mito originário da terra sagrada? Um povo
que foi vítima de uma das mais traumáticas e rememoradas atrocidades
racistas e genocidas do séc. XX, que foram subjugados à perseguição e
extermínio em escala industrial por conta de um discurso paranoide
orientado pela abstração real da ideia de raça, hoje protagoniza uma das
maiores atrocidades em curso no contemporâneo. Hoje para um judeu
afirmar-se antirracista, seguindo a máxima de que não basta não ser
racista, ele categoricamente precisa se afirmar anti-sionista, ou seja,
contra o Estado de Israel, que invade território palestino.
Isso nos traz a um imbróglio tão pertinente quanto espinhoso,
fundamental para abordarmos a política no contemporâneo: a questão
das identidades se torna central para a manutenção dos (des)governos
neoliberais, de tal forma que a própria extrema-direita protofascista
estadunidense e europeia já se define enquanto identitária. Enquanto
isso, o debate da esquerda rendida aos limites neoliberais se dá na
reafirmação da identidade enquanto sua bandeira de luta. Não seria o
momento de nos questionarmos sobre a identidade enquanto categoria
central para a política emancipatória? Mas, melhor dizendo, não se trata
de negligenciar ou abandonar a categoria da identidade, até porque isso
não faz o menor sentido. Porém, para aqueles que pensam ser esse o
horizonte do embate político e não o de superação dessa camisa de
força imposta objetivamente para nós, tanto pela violência da linguagem
quanto pelo preço de sangue da violência sistêmica, nosso
questionamento já não é mais uma questão de “se devemos”, mas de
como faremos essa crítica à categoria da identidade que vise uma
superação qualitativa do sujeito frente às suas determinações simbólicas.
Uma dimensão fundamental é defendermos e retomarmos o legado de
Fanon e seus ensinamentos acerca da nossa relação com o gozo de
nossas identidades e raízes perdidas. Acerca disso, Fanon afirma um
rigoroso olhar para o futuro, contra o retorno às raízes que se revelam,
em última instância, uma fantasia no pior sentido (ou no menos
emancipador possível).
Não quero, acima de tudo, ser mal compreendido. Estou convencido de
que há grande interesse em entrar em contato com uma literatura ou
uma arquitetura negras do século III a.C.. Ficaríamos muito felizes em
saber que existe uma correspondência entre tal filósofo preto e Platão.
Mas não vemos, absolutamente, em que este fato poderia mudar a
situação dos meninos de oito anos que trabalham nas plantações de
cana da Martinica ou de Guadalupe. (Idem, Ibidem.)
Para livrarmo-nos dessas fantasias, precisamos nos livrar também dos
gozos do sentido que ainda nos amarram ao pensamento identitário. É
necessário aqui atentarmos que a crítica da ideologia se revela não
apenas como uma crítica da economia política, mas uma crítica da
economia libidinal. Para essa crítica, precisamos nos aprofundar no
materialismo simbólico que é constitutivo do sujeito. Sabemos do diálogo
e influência que o pensamento de Fanon teve em relação à filosofia
francesa do século XX, em especial com Sartre e Lacan, que aparece em
algumas citações de Pele negra, máscaras brancas, tanto enquanto
referência como objeto de elaboração crítica acerca da teoria
psicanalítica, por exemplo quando Fanon sugere uma problemática
acerca do estágio do espelho, como formulado por Lacan, quanto a
função simbólica do Outro em relação ao branco e ao negro, como
quando diz “que é, tomando como referência a essência do branco, que
o antilhano é percebido pelo seu semelhante” (FANON, F. Pele negra,
máscaras brancas, 2008, p. 142). Aqui vemos surgir a dimensão do
Outro enquanto constitutivo da relação com o semelhante, um Outro
branco que se revela mediando a relação mesmo entre colonizados. Não
é à toa que quando lemos esta obra fica evidente que Fanon já
premeditava uma recepção ríspida de suas críticas e posicionamentos,
vindas de todos os lados (fosse dos movimentos negros, fosse de
marxistas brancos europeus, etc.). Fanon convoca a uma verdadeira
travessia da fantasia: para um lugar onde um “autêntico ressurgimento
pode acontecer”. Vale retomar essa passagem citada: “A maioria dos
negros não desfruta do benefício de realizar esta descida aos
verdadeiros Infernos.” (FANON, 2008, p. 26) Mas o que são esses
verdadeiros Infernos? Fanon está ciente tanto da necessidade quanto da
violência implicada nesse corte, nessa simultaneidade entre emergir e
separar-se desse Outro imposto social e historicamente, intocado e
protegido pela pseudo-atividade autômata e acrítica que o permite  seguir
nos vampirizando.
Conclusão
Das conclusões que podemos tirar desse percurso, ressaltemos três: a
primeira é a importância de retornarmos a Fanon, com o mesmo rigor
teórico que ele nos presenteia. É importante que o leiamos à luz do que
fora elaborado após sua produção, da teoria contemporânea, junto
também dos desdobramentos de autores com os quais ele dialogava
entusiasticamente. Sua obra ainda tem muitas possibilidades de
articulação a serem exploradas junto aos seus interlocutores, em
específico o que ressaltamos aqui (Lacan), e essa atualização e diálogo
é obrigação a todos que pretendem disseminar seu legado ainda
profícuo. Em segundo lugar, vale dizer que ler Fanon com Lacan ressalta
uma dimensão política do segundo que normalmente não percebemos,
ou que alguns ignoram. Ou seja, Lacan é fundamental para a política
contemporânea caso o leiamos com as lentes forjadas e polidas por
Fanon. Por último, podemos reconhecer em Fanon uma crítica voraz ao
apego ideológico ao passado enquanto uma realidade mítica perdida e,
como espera-se ter sido evidenciado, fundamentalmente um apego
paralisante, um apego que corresponde ao que hoje podemos
compreender como dimensão ideológica constitutiva da realidade: algo
que nos forma, mas não deve ser admitida, aceita, como horizonte eterno
ou final. Fanon nos ensina que aquilo ao qual nos apegamos enquanto
passado originário, mítico, é, via de regra, construção determinada pela
dimensão imaginária e simbólica que nos impossibilita qualquer saída
emancipatória. É importante ressaltar que isso não significa uma
desvalorização da história, mas a necessidade de que, para nos
emanciparmos, é necessário superar suas determinações, ou seja, para
finalizarmos em seus termos: que conheçamos o passado para que nada
dele nos determine, que conheçamos o passado para podermos elencar
o que dele nos emancipa e o que não nos serve para sermos livres.
Referências

ALMEIDA, Sílvio Luís. 2018. “Estado e direito: a construção da raça”. in:


Silva, M. L.; Farias, M.; Ocariz, M.C.; Stiel Neto, A. (orgs). Violência e
Sociedade: o racismo como estruturante da sociedade e da
subjetividade do povo brasileiro. São Paulo: Escuta.
ALTHUSSER, Louis. 2010. “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de
Estado” in: Žižek, S. (org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro:
Contraponto.
BADIOU, Alain. 2015. A aventura da filosofia francesa no século XX.
São Paulo: Autêntica. 
BARROS, Douglas Rodrigues. 2019. Lugar de negro, lugar de branco?
Esboço para uma crítica da metafísica racial. São Paulo: Hedra.
FANON, Frantz. 2008. Pele negra, máscaras brancas. Salvador:
EDUFBA. 
LACAN, Jacques. 2010. “O estádio do espelho como formador da função
do eu”. in: Žižek, S. (org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro:
Contraponto.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 2: O eu na teoria de Freud e na
técnica da psicanálise. 1985. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, Jacques. 2005. O Seminário, Livro 10: A angústia. Rio de
Janeiro: Zahar.
LACAN, Jacques. 1992. O Seminário, Livro 17: O Avesso da
Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, Jacques. 2007. O Seminário, Livro 18: De um discurso que
não seja do semblante. Rio de Janeiro: Zahar.
LACAN, Jacques. 1978. Escritos. São Paulo: Perspectiva.
GUNKEL, D. 2014. in: The Žižek Dictionary. New York: Routledge.
SAUSSURE, F. 2013. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix.
ŽIŽEK, Slavoj. 2017. “A Política de Alienação e Separação: de Hegel a
Marx… e de Volta”. Crise e Crítica. volume I, número 1. (Disponível
em: http://criseecritica.org/ Acesso em 04/04/2020). 
ŽIŽEK, Slavoj. 2016. O Sujeito Incômodo: o Centro Ausente da
Ontologia Política. (1999). São Paulo: Boitempo.
ŽIŽEK, Slavoj. Violência. 2014. São Paulo: Boitempo.
ŽIŽEK, Slavoj. 2010. “Como Marx inventou o sintoma?”in: Žižek, S.
(org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto.

O imperialismo ainda é um
conceito relevante?
 LavraPalavra
 setembro 20, 2021
 Sem Comentários
Por David Harvey, transcrito e traduzido por Gabriel Oliveira
Transcrição das intervenções de David Harvey no debate “Imperialism: Is
it still a relevant concept?”, realizado na New School for Social Research
em 1 de Maio de 2017 quando do lançamento do livro A Theory of
Imperialism, de Utsa Patnaik e Prabhat Patnaik. O debate também
contou com a participação de Duncan Foley, Nancy Fraser e Prabhat
Patnaik, além de ter sido mediado por Sanjay Reddy. O debate está
disponível no youtube.
Não deixe de ver também o livro Introdução ao Imperialismo Tardio.
Minhas discordâncias com o livro de Utsa Patnaik e Prabhat Patnaik
decorrem em parte do fato de que sou um geografo e, enquanto
geógrafo, eu me interesso por onde as coisas acontecem, para onde as
coisas vão, e os fluxos e movimentos intrincados do capital no e ao redor
do mundo. Quando eu ministrava um curso de geografia para
graduandos, costumava iniciar as aulas com a pergunta “De onde vem o
seu café da manhã?”. Depois de uns três dias fazendo isso os
estudantes se aborreciam e respondiam: “Eu não tomei café da manhã
hoje!”. E este era precisamente meu ponto. Eles iriam passar fome sem a
rede de todos os tipos de fluxos vindos do mundo inteiro, milhões de
pessoas envolvidas somente em colocar algo como um café da manhã
na sua mesa. Portanto, de onde vem e para onde vai são perguntas
extremamente importantes, e considero que o livro dos Patnaik é muito
impreciso em respondê-las. Seu conteúdo é muito vago, muito geral, e
não faz, a meu ver, as perguntas específicas sobre onde as coisas
acontecem. Só para dar um exemplo, um dos maiores produtores e
exportadores de grãos no mundo são os Estados Unidos, onde o
agronegócio é fortemente subsidiado. Os principais exportadores de
algodão do mundo são os Estados Unidos, e tudo bem enfatizar a
importância de regiões tropicais e subtropicais para a produção de certos
bens, uma parte dos Estados Unidos está na região subtropical, tanto
que o país exporta suco de laranja. Frente a isso, me parece que não se
pode tomar uma determinada atividade como a produção de grãos, isolá-
la de todo o resto e dizer que é só em torno dela que o imperialismo se
processa. Claro que existem diferentes tipos de grãos. Não sei se soja é
um grão, mas a maior parte da América Latina foi transformada, em mais
ou menos quinze anos, numa vasta plantação de soja. Mas para quem
ela está sendo produzida? Não para os Estados Unidos, já que os
Estados Unidos exportam soja. Quem está ficando com ela? A China. A
China é o seu maior mercado consumidor. Podemos por isso dizer que a
China é uma potência imperialista, já que está consumindo este tipo de
mercadorias?
Penso que são essas as questões que imediatamente vêm à cabeça ao
olharmos a geografia de onde algo é produzido e para onde ele vai. E é
claro que as coisas se tornaram muito mais complicadas, e creio que
devemos levar em conta essas complicações. E nisso eu também penso
enquanto geógrafo. Se você ler a carta maravilhosa que Marx escreveu
para Annenkov, acho que em 1847, verá que enquanto ele está
comentando o livro de Proudhon ele demonstra, basicamente, que nós
devemos sempre ajustar nossas categorias de acordo com as
transformações históricas que estão se passando. Conforme muda a
divisão do trabalho, conforme mudam as forças produtivas, as relações
sociais e todo o restante, então temos de estar preparados para mudar o
quê nós falamos. E um dos problemas que tenho com muitas pessoas na
esquerda é que elas são muito relutantes para acompanhar de verdade
essas mudanças.
Claro que o imperialismo era, obviamente, um termo relevante para
apreender o que estava ocorrendo no século XIX. Ele persistiu
posteriormente em uma forma diferente, mediado por legalidades e
estruturas que começaram a emergir no final do século XIX. Depois de
1945 tivemos o período da descolonização, e na década de 1970,
conforme muitas pessoas apontam, todas as coisas voltaram a se
transformar novamente. Uma das grandes mudanças que ocorreram nos
anos 1970 foi que você poderia construir um carro global, você poderia
manufaturar o motor de um carro no Brasil, as calotas viriam do México e
tudo poderia ser montado em Detroit. E atualmente vários processos
produtivos funcionam exatamente assim. Além disso, se tornou cada vez
mais evidente para mim que onde o valor é produzido não é
necessariamente o mesmo lugar em que ele é realizado. Por exemplo,
eu li no Financial Times que a taxa de lucro da Foxconn em Shenzhen é
de 3% e a taxa de lucro da Apple pela venda de computadores é 28%.
Esses computadores da Apple são vendidos nos EUA, portanto o valor
produzido na China está sendo realizado nos EUA. Agora, claro que a
Apple vai afirmar que ela atua no design e em outras funções, então de
fato não é plenamente verdadeiro que todo o valor é produzido na China.
Inclusive, se você olhar todos os microchips que estão no computador da
Apple, verá que eles também não são produzidos em Shenzhen.
Podemos perceber todo um conjunto de questões aqui, tais
como onde e como o valor está sendo criado e onde ele está sendo
apropriado. Essas são questões bastante complexas, e principalmente
desde os anos 1970 se tornou cada vez mais difícil dar-lhes uma
resposta precisa. Justamente por esse motivo eu me tornei cada vez
mais inclinado à ideia de que não fazia mais sentido tentar enfiar tudo
isso em algum conceito universal de imperialismo.
Não há dúvida de que o tempo todo ocorrem redistribuições do valor
entre as diferentes regiões, mas elas são complicadas, demasiadamente
complicadas. Nós devemos, portanto, elaborar uma nova forma de olhar
para esses fluxos, e se simplesmente os enquadramos na camisa de
força do conceito de imperialismo com certeza perdemos algo. Eu fui
parcialmente convencido disso quando por volta de 1974 Giovanni Arrighi
escreveu um livro chamado The geometry of imperialism. Seu título me
fazia crer que era sobre imperialismo, e como eu sou um geógrafo, e
geografia e geometria meio que caminham juntas, eu estava procurando
por um grande esclarecimento sobre a questão, mas na verdade é
basicamente um livro que diz que o conceito de imperialismo não
funciona. Na verdade, o que precisa ser feito é olhar para as hegemonias
mutáveis [shifiting hegemonies] do poder político e econômico, que são
instáveis e que estão sempre se transformando. Elas estão em
movimento constante, e enquadrá-las como algum tipo de barreira
estrutural fixa é, na verdade, um equívoco. O que Giovanni diz é que
devemos observar essas hegemonias mutáveis, e assim olhar para quem
é o poder hegemônico corrente. Ele não negou na época que os Estados
Unidos podiam fazer a reivindicação de sê-lo com bastante justiça, mas
será que eles continuam hegemônicos? Deixe-me lhes contar uma coisa
que li outro dia e que me surpreendeu bastante. Descobri que, em 2008,
quando o Lemon Brothers entrou em falência e pegou de surpresa os
Estados Unidos, e de novo minha fonte é o Financial Times, ótimo jornal,
o único que do meu ponto de vista vale a pena ler, eu descobri que os
Estados Unidos estavam extremamente relutantes em deixar o AIG, o
Fannie Mae e o Fraddie Mac entrarem em bancarrota porque isso
acabaria destruindo todo o investimento chinês nos EUA, e os chineses
ficariam no mínimo furiosos, e isso seria um tremendo desastre para os
EUA naquele momento. Está se tornando cada vez mais evidente a partir
dos vazamentos de informações que estão vindo de todos os lugares que
naquela época a Rússia propôs à China que eles fizessem uma venda
rápida de todos os seus ativos que estavam nessas instituições e
quebrassem todo o sistema financeiro global. E, sem dúvidas, era isso
mesmo que teria acontecido. China e Rússia possuíam 50% do capital
dessas instituições. Se incluirmos o Japão, vai para 60 ou 70¨%. Mas
enquanto a Rússia estava negociando, os chineses recusaram. Bem,
esse é um momento que você se pergunta se o conceito de imperialismo
ajuda a entender esse episódio. E ele não ajuda. Mas o conceito de
disputas hegemônicas, aí sim, é disto que se trata.
Quem é hegemônico, o que é o dinheiro mundial nos dias de hoje? Essa
é uma questão central. Nos parece que o dólar continua a ocupar esse
papel, mas outros tipos de elementos como as cestas de moedas e o
problema do endividamento global estão se tornando cada vez mais
interessantes. O FMI um dia desses fez as contas sobre a dívida global e
descobriu que ela se encontra em torno de 225% do PIB global. 225%.
Se você dissesse isso quarenta anos atrás, a maioria das pessoas iria
dizer “Meu Deus do Céu, é o fim do mundo!”. Mas hoje o FMI publica
essa informação e todo mundo pensa “bem, é 225% do PIB global, fazer
o quê?”. Se vinte anos atrás alguma nação tivesse chegado nessa
situação, o FMI iria lá e imediatamente a obrigaria a fazer um programa
de ajuste estrutural, e mesmo se você protestasse contra, eles
responderiam que era a única coisa que poderia ser feita. Me parece
fundamental analisar e tentar responder questões tão importantes como
essas e outras tipo quem está pegando emprestado de quem, quem está
carregando a dívida, onde estão os seus detentores e o que eles estão
fazendo. E eu não acho que o conceito de imperialismo particularmente
útil para essas situações, e a partir dos anos 1970 eu comecei a
trabalhar com outros conceitos.

Marx nunca, até onde eu sei, usou o conceito de imperialismo. Ele


certamente falou sobre colonialismo, mas imperialismo foi
essencialmente a grande contribuição teórica de Lênin. Entretanto, Marx
tinha coisas muito interessantes a dizer sobre as relações entre os
diferentes espaços e as redistribuições que poderiam ocorrer. Uma
dessas coisas interessantes que Marx disse sobre redistribuição é que a
equalização da taxa de lucro redistribui valor de setores intensivos em
trabalho para setores intensivos em capital, levando a cabo, portanto,
transferências de valor. Em certo momento Marx também reconhece que
isso seria verdade para as relações entre as diferentes nações. Assim,
uma nação com uma estrutura produtiva altamente intensiva em trabalho
iria na verdade favorecer ou subsidiar uma nação com uma estrutura
intensiva em capital. A lei de tendência à nivelação da taxa de lucro é
chamada no terceiro volume de O capital de “o comunismo do sistema
capitalista”, onde vale “de cada capitalista de acordo com o trabalho que
emprega e para cada capitalista de acordo com o capital que ele
investe”. Penso que isso também se aplica internacionalmente. Marx
analisou isso em algumas passagens e nas Teorias da mais-valia, onde
ele afirma que essas redistribuições estão ocorrendo, mas adverte que
“não se engane de que se trata de um fenômeno entre nações. É a
classe capitalista que se apropria de tudo, portanto as redistribuições se
direcionam para a classe capitalista e não para os povos. Quando Trump
retirou os EUA da Parceria Transpacífica, você poderia dizer que isso foi
o correto a se fazer, que aquele acordo não necessariamente interessava
à classe trabalhadora desse país. Mas o acordo certamente interessava
aos capitalistas. O fundamento do NAFTA é o mesmo. Não foi por
acidente que quando o NAFTA foi firmado não tinham representantes da
classe trabalhadora na sala de negociação, justamente porque todos os
benefícios do NAFTA iriam para a classe capitalista. A classe
trabalhadora foi lesada, e nós estamos vendo hoje algumas das
consequências disso.
Essas transferências ocorrem a todo tempo, e nelas encontramos uma
configuração muito interessante, que está aparecendo em todo o mundo.
Por exemplo, na Alemanha a matriz de uma companhia pode estar em
Munique, enquanto a produção se localiza na Polônia. Nos EUA, a
companhia pode estar baseada em Atlanta ou Dallas, e a produção
ocorre no México, em Monterrey. Hoje, temos a tecnologia que nos
permite controlar a partir de Dallas ou Munique uma linha de produção
em Monterrey. Essas são revoluções tecnológicas, o tipo de coisa para o
qual Marx chamou atenção em 1847, e que segundo ele promove
mudanças reais significativas, e que não permite a utilização eterna das
mesmas velhas categoriais. Essas são as novas formas da produção, e
hoje grande parte da organização do capitalismo é transfronteiras. O
NAFTA é um exemplo muito bom disso, e podemos daí nos perguntar
sobre a formação da União Europeia, quem se beneficiou dela?
Claramente foi a Alemanha, você responderia. Mas não, a classe
trabalhadora alemã não se beneficiou em nada, já as corporações
alemãs sim. E este é o ponto. Essas mudanças funcionam em favor de
uma classe específica. E se olhamos para essa dinâmica e seu
funcionamento interno, eu simplesmente não acho a categoria
imperialismo tão convincente. Isso pode parecer estranho porque eu
escrevi um livro em 2003 intitulado O Novo Imperialismo. A questão na
época era que os neoconservadores estavam afirmando que
“precisávamos ser imperialistas”, ou seja, existia uma tentativa ideológica
de defender o imperialismo como o papel adequado dos Estados Unidos.
Demorou todo o desastre que aconteceu no Iraque para que pensassem
“bem, talvez seja melhor voltar atrás”. Mas na época, era exatamente
sobre essa apologia do imperialismo que o livro tratava, e, tal como
quando Arrighi escreveu seu livro sobre a geometria do imperialismo, não
era em favor do conceito de imperialismo mas uma crítica dessa
ideologia. Portanto, o Novo Imperialismo foi uma tentativa de dizer que a
ideologia do imperialismo se tornou muito poderosa e potente nos
Estados Unidos, e que precisámos de outra coisa.
Um último ponto. Eu penso que todo o tipo de coisas estão acontecendo
nos diferentes lugares do mundo. Voltando para as regiões tropicais, por
exemplo. Não acho que seja acidente que por volta de 80% das Zonas
Econômicas Especiais estejam nos trópicos. Os trópicos são uma
reserva de força de trabalho, e isso se aproxima de algumas das coisas
sobre as quais Nancy Fraser está falando, que nessas regiões o custo da
reprodução social e tudo o mais é menor e pode ser reprimido, que o
valor da força de trabalho é menor, e que essas relações articulam
atividades produtivas em várias partes do mundo. Os trópicos funcionam
como uma reserva de quase tudo, inclusive reserva de força de trabalho,
e como tal está eles estão sendo explorados. Somente faço um apelo
para a utilização de instrumentos de análise mais sofisticados sobre
como funcionam essas geografias, como e quando os países exportam
seus capitais excedentes, e que tipo de coisa esses capitais fazem. E
podemos rastrear cada país. O Japão produziu capitais excedentes nos
anos 1960, e começou a exportá-los para o redor do mundo. Eles
compraram o Rockefeller Center, além de fazerem outras coisas burras,
e perderam nisso um dinheiro pesado. No fim dos anos 1970, de repente
o mundo foi inundado por capitais sul-coreanos. Taiwan em 1982
começa a fazer a mesma coisa. Olhei outro dia para o mapa do destino
do investimento externo chinês em 2002. O mundo estava quase vazio,
com uns poucos pontos aqui e ali. Olhando para onde vai o investimento
externo hoje, você vê bolhas imensas por todo o lado. Há um fluxo
enorme de capitais chineses. A China é por isso uma potência
imperialista? Não! Ela está simplesmente se engajando no que chamo de
ajustes espaciais [spatial fix] – é um problema de sobreacumulação de
capital. Ela está com capacidade ociosa na produção de aço. O que
fazer, então? Ela resolve propondo a nova rota da seda, ela fabrica o aço
e com ele constrói novas ferrovias que saem da China, passam por
Istambul e chegam na Europa. A China está construindo linhas de trem
no leste da África. Está construindo grandes projetos na América Latina.
Ela acumulou excedentes de dinheiro e capacidade ociosa na produção
de aço, e o que ela faz? Ela empresta dinheiro para o Equador, que o
Equador usa para comprar o aço e construir plantas hidroelétricas. É isso
que ela faz. Essas são práticas antigas e que ainda persistem, mas
devemos encontrar uma nova linguagem para falar sobre elas. Ou, se
mantivermos o conceito de imperialismo, devemos pelo menos
reconhecer que ele é mais uma metáfora do que algo real. Muito
obrigado.
***

Se você começa a se perguntar quem está fazendo o quê e onde, por


exemplo, se você está interessado em extrativismo na América Latina,
você logo descobre que os canadenses estão metidos nisso. Se você
pesquisar quem são os principais operadores no cinturão do cobre da
Zâmbia, das duas maiores corporações, uma é indiana, a outra é
chinesa. Daí podemos falar em imperialismo indiano e imperialismo
chinês, em imperialismo de Luxemburgo e tudo o mais? É por isso que o
conceito de imperialismo usado desta maneira não faz sentido algum
para mim. Claro que podemos aprender muito de várias práticas que
foram descritas na análise do imperialismo do século XIX e XX e que
ainda ocorrem, como por exemplo quando a Grã-Bretanha emprestou
dinheiro para Argentina para a construção de ferrovias, que dinamizaram
a demanda pelo aço britânico. A China está fazendo o mesmo com o
Equador. Equador acabou ficando sem dinheiro e pegou emprestado, e
com ele está construindo grandes plantas hidroelétricas com aço chinês,
geradores chineses e tudo mais. Esse tipo de prática já ocorre há muito
tempo, e pode-se dizer que ela é bem tradicional, mas de novo voltamos
para o problema de quem possui os capitais excedentes e o que faz com
eles. Imperialismo envolve, em geral, as relações entre Estados-nação,
mas dificilmente se apreende as múltiplas redistribuições que ocorrem.
Em outras palavras, devo dizer que estou também interessado no
desenvolvimento geográfico desigual no interior dos Estados Unidos, por
exemplo, ou na União Europeia e o desenvolvimento geográfico desigual
entre a Grécia e a Alemanha, e as importantes transferências de valor
implícitas. Iremos dizer que este é um arranjo imperialista? Não. É
transferência de valor, e penso que transferências de valor entre
diferentes regiões devem ser analisadas em termos de sua quantidade e
sua escala. O ponto sobre a questão chinesa é sua escala massiva,
interna e externamente. A China consome metade da produção mundial
de cimento, metade da produção mundial de aço, mais da metade da
produção mundial de cobre, quase metade da produção de todas as
fontes minerais do mundo desde 2008. Você não consegue entender
muita coisa do que está acontecendo no mundo sem olhar para essa
demanda imensa, e já mencionei a demanda por soja e toda a revolução
produtiva que lá está ocorrendo. Entre 2011 e 2013, a China consumiu
45% mais cimento que os Estados Unidos consumiram em cem anos.
Este é o tipo de transformação extraordinária que está ocorrendo, e não
considero que podemos simplesmente tentar enquadrá-la numa caixinha
chamada imperialismo. Este é um tipo de transformação radical. A
urbanização está se expandindo a uma taxa altíssima, tal como os fluxos
de investimento entre as principais capitais.

Toda a cidade do mundo que vou tem amplos investimentos, mas em


geral são em condomínios de luxo e carros espetaculares. Podemos nos
perguntar o que está acontecendo, porque no mundo inteiro estamos
construindo cidades para as pessoas investirem e não para as pessoas
viverem. Nesta cidade que estamos [Nova Iorque], temos uma crise de
habitações populares e a construção de vários condomínios de luxo.
Tudo isso acontece ao mesmo tempo. Um ponto que você [Prabhat
Patnaik] mencionou, que penso ser muito importante mas que, se
permite, acho que você analisou de forma equivocada, é a destruição da
base material da vida camponesa, que está acontecendo não só na
Índia, como no Brasil, em todo o continente Africano, em todo o mundo.
É um processo fundamental, e se você tivesse escrito só sobre ele, tudo
bem, sem problema algum. O problema aparece quando você aprisiona
praticamente tudo neste conceito de imperialismo, é isso que não
funciona para mim.

Não deixe de ver também o livro Introdução ao Imperialismo Tardio.

No Bosses by Michael Albert:


review by Bridget Meehan
Published by Bridget Meehan on 18 hours ago  

This compact guide to an economy without bosses presents Parecon, a genuine


alternative to the current broken and toxic economic system. Written in Michael
Albert’s usual poetic and compassionate style, the book envisions a better world free of
the ills of capitalism and starts us on the path for getting there.

He doesn’t dwell on existing problems. Enough has been written about those and we’re
all too aware of them. Navel-gazing about them doesn’t take us out of our predicament;
it only tells us how clever we are at analysing our predicament. In No Bosses, there’s no
navel-gazing, no retreading of the predictable, no doomism. This book is optimistically
and exclusively future-orientated and solution-focused. But in abiding in the realm of
solutions for the future, Albert goes further than simply announcing the aims of his
proposed alternative economy. His model is fleshed out with detail, starting with values
and arriving at the defined features of institutions within the economy. And this is really
what makes his work stand out from pretty much everyone else who inhabits this arena.

In the earlier chapters, the book proposes a model for a new kind of workplace, with not
a boss in sight, going far beyond what today’s co-operatives offer their worker-owners.
It puts forward a framework that, if applied, has the potential to create a truly equal and
just workplace and economy: non-ownership rather than ownership; self-management in
decision-making rather than authoritarianism; pay based on effort and sacrifice rather
than reward for property or power; solidarity rather than cut-throat competition;
diversity rather than uniformity and conformity; ecological sustainability rather than
extraction and exploitation; collective ownership through consumer and worker councils
rather than private ownership; internationalism rather than war-mongering; balanced
jobs which have a fair mix of the rote and empowering work rather than jobs with the
typical division of labour we’ve come to accept.

And when it comes to the thorny subject of allocation, a central component of any
economy, No Bosses goes straight for the jugular, rejecting outright the market and
central planning, and calling out their inherent flaws. Often, models for an alternative
economy stop short of doing this. They don’t envisage a future without markets,
believing that we’re stuck with them, and instead propose ways the current market
model can be tweaked or altered to make it less rapacious, less callous, a little bit kinder
to the huddled masses and the planet and giving us some crumbs from the table. There’s
no such resignation from Albert. He snaps us out of the myth that we have no
alternative to markets or central planning, and provides us with a radically different
other way: participatory planning, a hands-on approach which requires negotiation
between councils of consumers and workers. This is fresh thinking that’s worth serious
consideration, especially in the face of climate and ecological crises.

The penultimate chapter of the book does something rare. It gives an analysis not of the
present but of the future, specifically of the Parecon vision for the future. It gives
practical advice to those of us who want fundamental change, discussing how we can
win reforms while not being reformist; how we can organise to achieve those reforms
and plant the seeds of the future in the present; and how we can to go beyond the
sentiment of “fighting the good fight” that so often dampens our belief that we can
realise progressive change. In this chapter, Albert manages to instil in his reader a
confidence that we can and will win.

By the end of the book, we come to understand that Parecon is just one part of a wider
vision for an entirely participatory society called Parsoc, which brings the same
egalitarian principles into our political systems, into our gender, sexual and familial
functions, into our culture and communities, into our ecology and environment.
Read No Bosses and you will be changed. Read it and you will have hope. Read it and
you will want to live in a Parsoc world. Read it and you will ask yourself, why aren’t
we doing this already?

Featured Image by Tumisu from Pixabay.

Note:  Feasta is a forum for exchanging ideas. By posting on its site Feasta agrees that
the ideas expressed by authors are worthy of consideration. However, there is no one
‘Feasta line’. The views of the article do not necessarily represent the views of all
Feasta members. 

Bridget Meehan
Bridget Meehan is a left activist and writer, and is co-founder of the Northern Mutual
campaign for a mutual bank in the north of Ireland and of Collaboration for Change.
She is a member of the Collective20 group of writers. She gave a presentation on her
mutual bank project at the Feasta/CEF event Banking on the Community, in April
2021. 

Providing hope and direction to sustain commitment on the path to change, No


Bosses is about winning a new world.

Life under capitalism. Rampant debilitating denial for the many next to vile enrichment of
the few. Material deprivation, denial, and denigration. Dignity defiled. Michael Albert's book
No Bosses advocates for the conception and then organization of a new economy. The
vision offered is called participatory economics. It elevates self-management, equity,
solidarity, diversity, and sustainability. It eliminates elitist, arrogant, dismissive,
authoritarian, exploitation, competition, and homogenization. No Bosses proposes a built
and natural productive commons, self-management by all who work, income for how long,
how hard, and the onerousness of conditions of socially valued work, jobs that give all
economic actors comparable means and inclination to participate in decisions that affect
them, and a process called participatory planning in which caring behavior and solidarity
are the currency of collective and individual success.
Can Xi Jinping defeat
three stubborn modern
inequalities?
by Branko Milanovic on 18th October 2021

Branko Milanovic argues that ‘socialism with Chinese


characteristics’ is replicating United States inequalities.

Xi Jinping—the ultimate powerholder faces intractable


obstacles (Naresh777/shutterstock.com)

Recent domestic policy changes by the Chinese government have


attracted worldwide attention. ‘Common prosperity’ has rejoined ‘the
great rejuvenations’ as the key Communist Party directing motto.

Many explanations have been advanced for these changes: from


controlling finance and Big Tech politically to avoiding a financial
meltdown akin to that in the United States in 2008; from the desire of
the party general secretary, Xi Jinping, to alter China’s course—prior to
his, perhaps formal, re-election as head of the party—to profound
readjustment towards a more equitable society.

‘Common prosperity’ indeed highlights the importance of inequality and


the desire to control it. (Incidentally, it replicates the World Bank
slogan, adopted some ten years ago, of ‘shared prosperity’.) High
inequality has been considered for at least the past two decades a
serious problem in China.
Gini coefficient
Measured by the Gini coefficient (from zero for an equal society to 1 for
an infinitely unequal one), China’s overall income inequality, with an
official Gini of .47, is significantly greater than that for the US (around .
41) or the average across the Organisation for Economic Co-operation
and Development (around .35). Moreover, if one looks at any aspect of
inequality in China—the rural-urban gap, wage gaps between private-
and state-sector workers or the gender gap—inequality is higher than
several decades ago.

Some of this inequality can, at least in principle, be reduced and the


Chinese government has been doing this. Inter-provincial inequality—
more exactly, that between the prosperous maritime provinces and the
central and western regions—was reduced thanks to massive
government investments in less-developed provinces, including the
impressive express-train network which now connects practically the
whole country.

The rural-urban gap is going to be lowered through the recent


relaxation of the hukou (urban residence permit) system. Provinces are
now empowered to decide whether to implement it or not. It will
legalise millions of de facto urban residents and bring more rural
people into the cities.

Systemic inequalities
But there are three types of inequality—very similar to those faced by
the US—which are systemic to all modern capitalist societies and
much more difficult to control. They are the concentration of ownership
of private assets (capital), creation of an elite rich in capital and labour
incomes, and inter-generational transmission of advantage.

The share of capital in gross domestic product has been rising in all


advanced economies for several decades but also more recently in the
emerging economies, including China. This increases
disproportionately the incomes of the rich, who tend to hold much more
property than the middle class and the poor.

This is obvious in the US, where the top 10 per cent of the
population received in 2019 60 per cent of the income from capital.
The situation is similar in China: the latest available, 2013 data show
that the top income decile received 45 per cent of all capital income.
That percentage has probably increased since.

This is unlikely to be overturned, as automation and robotics further


displace labour and increase the share accruing to capital. The only
solution is a much more equal distribution of private capital, perhaps
through high taxation or worker shareholding—but there is no
perceptible move in that direction in China or the west.

The second systemic inequality is ‘homoploutia’. This was first


‘diagnosed’ in the US, where up to one third of those in the top income
decile are at the same time rich capitalists and very well paid workers.
They may be highly-paid chief executives, financial analysts or doctors
who have built sufficient capital out of savings from their high salaries,
or people who inherited lots of assets, went to the best schools and
secured high-paying jobs—or both.

They are different from the old-fashioned capitalists, whose sole, albeit
high, income stemmed from assets. They do represent a new elite,
invulnerable to crises, as they have plenty of ‘human’ as well as
financial capital. And they are observable, for the first time, in China:
the elite at the top is hard-working but also capital-rich. As in the US,
one third of those in the top income decile are also among the richest
capitalists and richest workers.

Sifting the rich


Such an elite is able, and tends, to transmit its numerous advantages
—of wealth, education and social connections—to its offspring. A
recent paper finds that individual social mobility in China is thus almost
as low as in the US. The enabling environment for such elite projection
over time is the expensive and ultra-competitive educational system.

In the US, the high cost of education—beginning with private nursery


schools and ending with $70,000 yearly tuitions—successfully sifts out
all but the children of the rich. In China, university education is often
similarly expensive, relative to the average wage. And costs are further
increased by expensive tutoring schools which prepare students to do
well in their examinations—to succeed one needs to have enough
money to hire multiple tutors.
The Chinese government’s recent ban on for-profit tutoring aims to
eliminate that inequality. But it is doubtful how successful it will be.
Rich parents will move to private, individualised tutoring and
inequalities may even be exacerbated.

The issue in China is the highly rivalrous education system, linked with
parental wealth, which decides the (very young) child’s future 50 years
ahead, via their comparative performance in rote tests. It perpetuates
inequality and squanders talent as it breeds indifference and
resignation among the less successful—since decisions made years
earlier determine their entire life.

This type of inequality is at the origin of the urban malaise of young


people in China, and elsewhere.

This is a joint publication by Social Europe and IPS-Journal

Facebook Papers: rede social fortaleceu postagens da extrema direita


Embora a rede social tenha culpado Trump pela disseminação de
notícias falsas, vários funcionários acreditam que poderia ter sido feito
mais para evitar a proliferação de fake news
24 de outubro de 2021, 06:33 h Atualizado em 24 de outubro de 2021, 06:40
   

 2
Rede Brasil Atual - Consórcio de veículos de comunicação chamado
“The Facebook Papers” publicou neste sábado (23) denúncias de que a
rede social de Mark Zuckerberg vem contribuindo há anos para a
disseminação de fake news. Reportagens exibidas em veículos como
The New York Times, CNN e Washington Post mostram, inclusive,
que o Facebook amplificou a mobilização de grupos de extrema-
direita que culminou na invasão ao Capitólio em 6 de janeiro e deixou
cinco mortos. O consórcio é formado por um total de 17 organizações
jornalísticas norte-americanas.

As reportagens se espalharam pelo território americano desde as


primeiras horas da manhã de sábado (23). O “The New York Times”,
por exemplo, mostrou que funcionários do Facebook alertaram por
anos sobre a desinformação e potencial risco de radicalizar os usuários
da plataforma. E que apesar de sempre terem solicitado ações para
frear o fenômeno, a empresa falhou e não resoveu os problemas.

Embora a rede social tenha culpado Trump pela disseminação de


notícias falsas, vários funcionários acreditam que poderia ter sido feito
mais para evitar a proliferação de fake news. O alerta veio, inclusive,
através de um estudo interno, intitulado “Jornada de Carol para
QAnon”.
Algoritmo

Em julho de 2019, uma funcionária do departamento de pesquisas do


Facebook criou uma conta-teste se passando por uma “mãe
conservadora” da Carolina do Norte. Uma semana depois, sua página
começou a receber recomendações de conteúdo de teorias da
conspiração.

Entre as sugestões recebidas, ela optou por seguir páginas, como as


das Fox News e da Sinclair Broadcasting, impérios de mídia que
controlam 294 estações de televisão e chega a cerca de 40% dos lares
americanos com conteúdo de tom conservador. Poucos dias, vieram
sugestões para a pesquisadora seguir páginas e grupos relacionados ao
QAnon. Até mesmo uma fake news de que Trump estaria enfrentando
uma conspiração obscura feita por pedófilos democratas foi enviada
pelos algoritmos do Facebook.
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Algum tempo depois, segundo a reportagem a mesma funcionária


criou outra conta-teste, desta vez simulando perfil esquerdista. Notou
então que os mesmos algoritmos do Facebook alimentavam o novo
perfil com memes de “baixa qualidade” e desinformação política. Ela
deixou a empresa em agosto de 2020.

Facebook exposto

Em seu pedido de demissão, divulgado pelo BuzzFeed News, a


pesquisadora disse que o Facebook estava “conscientemente expondo
os usuários a riscos de danos à integridade” e citou a lentidão da
empresa em agir contra o QAnon como um dos motivos para sua
saída. “Já sabemos há mais de um ano que nossos sistemas de
recomendação podem levar os usuários rapidamente ao caminho de
grupos e teorias de conspiração. Nesse meio tempo, o grupo
extremista QAnon ganhou proeminência nacional, com candidatos ao
Congresso”, escreveu.

Os documentos expostos agora pelo “The Facebook Papers” reforçam


as revelações feitas no mês passado por Frances Haugen, ex-gerente
de produtos da plataforma. Segundo ela, a rede de Zuckerberg mentiu
sobre ações da empresa para combater o discurso de ódio, violência e
fake news. Frances disse que o Facebook desmontou sua equipe de
“integridade cívica” logo após a eleição de 2020, assim que Joe Biden
foi declarado vencedor.

"Custo Bolsonaro explica boa parte da inflação brasileira", diz José Luís Oreiro
O economista culpou o governo Bolsonaro pela depreciação do real e
pela consequente inflação. Os ataques contra a China e contra a
democracia geram incerteza, o que, somado à crise hídrica, tornou o
Brasil um caso à parte. Assista na TV 247
22 de outubro de 2021, 19:55 h Atualizado em 22 de outubro de 2021, 20:34
   

 5

José Luís Oreiro e Jair Bolsonaro (Foto: Marcos


Oliveira/Agência Senado | REUTERS/Ueslei

247 - O economista José Luís Oreiro, em entrevista à TV 247,


analisou as causas da crescente inflação brasileira, que, levando em
consideração os últimos 12 meses, supera 10,05%. A alta registrada
está bem acima das médias para os países emergentes e o restante do
mundo, aponta a FGV.

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O economista ressaltou que especialmente os países emergentes, como


Turquia e Argentina, sofreram depreciação cambial durante a
pandemia da Covid-19, o que gera pressão sobre os preços no
mercado interno. Nessa condição, é “natural” que o real seja
desvalorizado, avaliou Oreiro.

“O Brasil não foi o único em desenvolvimento que passou por uma


desvalorização no câmbio. A Turquia também teve, a Argentina, etc.
Basicamente, porque quando começou a pandemia, há aumento da
percepção de incerteza no mundo e os capitais fluem dos países em
desenvolvimento para os Estados Unidos e para Europa”, disse. 
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Contudo, o caso brasileiro chama a atenção pela magnitude das


alterações. De acordo com o economista, a crise do real se deve a
ações diretas do governo Jair Bolsonaro, como a destruição da
Amazônia e os ataques xenofóbicos contra a China, maior parceiro
comercial do Brasil.

“Mas a nossa [depreciação cambial] aqui foi muito forte. E por quê?
Não precisa ser nenhum gênio para perceber que o Brasil é hoje uma
pária internacional, seja por conta da questão da preservação da
floresta amazônica, seja por conta dos ataques que o governo fazia, e
ainda faz de vez em quando, ao nosso maior parceiro comercial, que é
a China, seja por conta dos ataques que o presidente faz, dia sim e
outro também, ao Estado democrático de direito. Tudo isso vai
criando ruído e aumenta a percepção de incerteza. E como nossa
moeda não é uma moeda de reserva internacional, quanto maior a
incerteza, maior a preferência dos agentes pela liquidez expressa em
dólares americanos, em euros ou yuans”, ponderou Oreiro.
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Questionado sobre o impacto da incerteza e da desvalorização cambial


na inflação, o economista afirmou que este é certo, pois torna mais
favorável exportar que abastecer o mercado interno. “Levou algum
tempo. A inflação começa a se acelerar a partir do início deste ano”,
afirmou. 

Ele citou, ainda, a crise hídrica, a pior dos últimos 100 anos, que
reflete no preço dos alimentos. “Óbvio que isso se reflete direto no
preço dos alimentos, porque quanto menos chuvas nós temos, o pasto
dos bois cresce menos, portanto, leva mais tempo para o boi engordar
e o preço da carne sobe”, explicou ele.

Imposto sobre commodities

Oreiro defendeu a criação de um imposto sobre a exportação de


commodities, que atuaria para frear o incentivo a exportar: “Mataria
dois problemas de uma vez só: primeiro, você redirecionaria a oferta
de carne para o mercado interno, o que abaixaria o preço; segundo,
ainda dava para o governo arrecadar alguma coisa com o imposto e,
com isso, ajudava na situação fiscal”. 

Constance Markievicz
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Constance Markievicz

Constance Markievicz

Member of Parliament

In office

December 1918 – November 1922

Preceded by William Field

Succeeded by Constituency abolished

Constituency Dublin St Patrick's

Teachta Dála

In office

August 1923 – 15 July 1927

In office

May 1921 – June 1922

Constituency Dublin South

In office
December 1918 – May 1921

Constituency Dublin St Patrick's

Minister for Labour

In office

April 1919 – January 1922

Preceded by New office

Succeeded by Joseph McGrath

Personal details

Born Constance Georgine Gore-Booth

4 February 1868

Buckingham Gate,

London, England

Died 15 July 1927 (aged 59)

Sir Patrick Dun's Hospital, Dublin, Ireland

Resting place Glasnevin Cemetery,

Dublin, Ireland

Fianna Fáil (1926–1927)
Political party
Sinn Féin (1908–1926)

Spouse(s) Casimir Markievicz (m. 1900)

Relations Eva Gore-Booth (Sister)

Children Maeve Markievicz (1901–1962)

Parents Sir Henry Gore-Booth

Georgina Hill

Military service
Allegiance Irish Republican Brotherhood

Irish Citizen Army

Irish Republican Army

Cumann na mBan

Years of service 1913–1923

Rank Lieutenant[1]

Battles/wars Dublin Lockout

Easter Rising

Irish War of Independence

Irish Civil War

Part of a series on

Socialism

 History
 Outline

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Development

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 t
 e

Constance Georgine Markievicz (Polish: Markiewicz [marˈkʲɛvitʂ]; née Gore-


Booth; 4 February 1868 – 15 July 1927), known as Countess Markievicz, was
an Irish politician, revolutionary, nationalist, suffragist, socialist, and the first
woman elected to the Westminster Parliament, and was elected Minister for
Labour in the First Dáil, becoming the first female cabinet minister in Europe.
She served as a Teachta Dála for the Dublin South constituency from 1921 to
1922 and 1923 to 1927. She was a Member of Parliament (MP) for Dublin St
Patrick's from 1918 to 1922.
A founding member of Fianna Éireann, Cumann na mBan and the Irish Citizen
Army, she took part in the Easter Rising in 1916, when Irish
republicans attempted to end British rule and establish an Irish Republic. She
was sentenced to death, commuted to life imprisonment [2] on the grounds of her
sex. On 28 December 1918, she was the first woman elected to the UK House
of Commons,[3] though, being in Holloway Prison at the time and in accordance
with party policy, she did not take her seat. Instead, she and the other Sinn
Féin MPs (as TDs) formed the first Dáil Éireann. She was also one of the first
women in the world to hold a cabinet position, as Minister for Labour, from 1919
to 1922.[a]
Markievicz supported the anti-Treaty side in the Irish Civil War. She continued
as (abstentionist) Dáil member for Sinn Féin until 1926, when she became a
founding member of Fianna Fáil. She died in 1927.
Contents

 1Early life
 2Marriage and early politics
 3Easter Rising
 4First Dáil
 5Civil War and Fianna Fáil
 6Death
 7Tributes
 8Notes
 9References
 10Further reading
 11External links

Early life[edit]
Constance Georgine Gore-Booth was born at Buckingham Gate in London in
1868, the elder daughter of the Arctic explorer and adventurer Sir Henry Gore-
Booth, 5th Baronet, an Anglo-Irish landlord who administered a
100 km2 (39 sq mi) estate, and Georgina, Lady Gore-Booth, née Hill. During
the famine of 1879–80, Sir Henry provided free food for the tenants on his
estate at Lissadell House in the north of County Sligo in the north-west of
Ireland. Their father's example inspired in Gore-Booth and her younger
sister, Eva Gore-Booth, a deep concern for working people and the poor. The
sisters were childhood friends of the poet W. B. Yeats, who frequently visited
the family home Lissadell House, and were influenced by his artistic and
political ideas. Yeats wrote a poem, "In Memory of Eva Gore-Booth and Con
Markiewicz", in which he described the sisters as "two girls in silk kimono, both
beautiful, one a gazelle" (the gazelle being Constance). [4] Eva later became
involved in the labour movement and women's suffrage in Great Britain,
although initially Constance did not share her sister's ideals.

Marriage and early politics[edit]


Gore-Booth wished to train as a painter, to her family's dismay; in 1892, she
went to study at the Slade School of Art in London,[5] where she lived at the
Alexandra House for Art Pupils, Kensington Gore, founded five years before
by Sir Francis Cook, a wealthy great-uncle of Maud Gonne. One of her
contemporaries there was Blanche Georgiana Vulliamy.[6] It was at this time that
Gore-Booth first became politically active and joined the National Union of
Women's Suffrage Societies (NUWSS). Later she moved to Paris and enrolled
at the prestigious Académie Julian where she met her future husband, Casimir
Markievicz, an artist from a wealthy Polish family from Ukraine.[7] Markievicz was
known in Paris as Count Markievicz, a title that was the norm for large
landowners in Poland at this time. When the Gore-Booth family enquired as to
the validity of the title, they were informed through Pyotr Rachkovsky of the
Russian Secret Police that he had taken the title "without right", and that there
had never been a "Count Markievicz" in Poland. [8] However, the Department of
Genealogy in Saint Petersburg said that he was entitled to claim to be a
member of the nobility.[9] Markievicz was married, though separated, at the time;
his wife died in 1899 and he and Gore-Booth married in London on 29
September 1900.[10] She gave birth to their daughter, Maeve, at Lissadell in
November 1901.[10] The child was mainly raised by her Gore-Booth
grandparents. Stanislas, Casimir's son from his first marriage, accompanied the
couple to Ireland after their honeymoon visit to his homeland.
The Markieviczes settled in Dublin in 1903 and moved in artistic and literary
circles, with Constance gaining a reputation as a landscape painter. [11] In 1905,
along with artists Sarah Purser, Nathaniel Hone, Walter Osborne and John
Butler Yeats, she was instrumental in founding the United Arts Club, which was
an attempt to bring together all those in Dublin with an artistic and literary bent.
This group included the leading figures of the Gaelic League founded by the
future first President of Ireland, Douglas Hyde. Although formally concerned
only with the preservation of the Irish language and culture, the league brought
together many patriots and future political leaders. Sarah Purser, whom the
young Gore-Booth sisters first met in 1882, when she was commissioned to
paint their portrait, hosted a regular salon where artists, writers and intellectuals
on both sides of the nationalist divide gathered. At Purser's house, Markievicz
met revolutionary patriots Michael Davitt, John O'Leary and Maud Gonne. In
1907, Markievicz rented a cottage in the countryside near Dublin. The previous
tenant, the poet Padraic Colum, had left behind copies of The
Peasant and Sinn Féin. These revolutionary journals promoted independence
from British rule. Markievicz read them and was propelled into action. [12]

Sculpture of Markievicz and her cocker spaniel, Poppet, on Townsend Street, Dublin

Sketch of Markievicz by John Butler Yeats


Markievicz with her daughter and stepson

In 1908, Markievicz became actively involved in nationalist politics in Ireland.


She joined Sinn Féin and Inghinidhe na hÉireann ('Daughters of Ireland'), a
revolutionary women's movement founded by the actress and activist Maud
Gonne, muse of WB Yeats. Markievicz came directly to her first meeting from a
function at Dublin Castle, the seat of British rule in Ireland, wearing a satin ball-
gown and a diamond tiara. Naturally, the members looked upon her with some
hostility. This refreshing change from being "kowtowed"-to as a countess only
made her more eager to join, she told her friend Helena Molony. She performed
with Maud Gonne in several plays at the newly established Abbey Theatre, an
institution that played an important part in the rise of cultural nationalism. In the
same year, Markievicz played a dramatic role in the women's suffrage
campaigners' tactic of opposing Winston Churchill's election
to Parliament during the Manchester North West by-election, flamboyantly
appearing in the constituency driving an old-fashioned carriage drawn by four
white horses to promote the suffragist cause. A male heckler asked her if she
could cook a dinner, to which she responded, "Yes. Can you drive a coach and
four?" Her sister Eva had moved to Manchester to live with fellow
suffragette Esther Roper and they both campaigned against the anti-suffragist
Churchill with her. Churchill lost the election to Conservative candidate William
Joynson-Hicks, in part as a result of the suffragists' dedicated opposition. [13]
In 1909 Markievicz founded Fianna Éireann, a nationalist scouting organisation
that instructed teenage boys in scouting, in the style of Robert Baden-Powell's
then-paramilitary Boy Scouts. At the Fianna's first meeting in Camden Street,
Dublin, on 16 August 1909, she was almost expelled on the basis that women
did not belong in a physical force movement. She had drawn in Bulmer Hobson,
who had earlier founded a less successful boy scout group in Belfast. He
supported her, and she was elected to the committee. [14] She was jailed for the
first time in 1911 for speaking at an Irish Republican Brotherhood demonstration
attended by 30,000 people, organised to protest against George V's visit to
Ireland. During this protest Markievicz handed out leaflets, erected great
banners emblazoned Dear land thou art not conquered yet, participated in
stone-throwing at pictures of the King and Queen and attempted to burn the
giant British flag taken from Leinster House, eventually succeeding, but then
seeing James McArdle imprisoned for one month for the incident, despite
Markievicz testifying in court that she was responsible. [15] Her friend Helena
Molony was arrested for her part in the stone-throwing and became the first
woman in Ireland to be tried and imprisoned for a political act since the time of
the Ladies Land League.[15]
Markievicz joined James Connolly's socialist Irish Citizen Army (ICA), a
volunteer force formed in response to the lock-out of 1913 to defend the
demonstrating workers from the police. Markievicz recruited volunteers to peel
potatoes in the basement of Liberty Hall while she and others worked on
distributing the food. As all the food was paid out of her own pocket, [citation
needed]
 Markievicz was forced to take out loans and to sell her jewellery. That year,
with Inghinidhe na hÉireann, she ran a soup kitchen to feed poor children and
enable them to attend school.
In 1913 Casimir Markievicz moved back to Ukraine, and never returned to live
in Ireland. However, they did correspond and he was by her side when she died
in 1927.
In the Inghininidhe na h-Éireann magazine Bean na h-Éireann, Markievicz's
advice to women was: "Dress suitably in short skirts and strong boots, leave
your jewels in the bank and buy a revolver." [16]

Easter Rising[edit]

Markievicz in uniform examining a Colt New Service Model 1909 revolver, posed c.1915

As a member of the Citizen Army, Markievicz took part in the 1916 Easter


Rising. She was deeply inspired by the founder of the ICA, James Connolly.
Markievicz designed the Citizen Army uniform and composed its anthem, based
on the tune of a Polish song.[17]
Markievicz fought in St Stephen's Green, where on the first morning —
according to the only two pages surviving of the diary of an alleged witness —
she shot a member of the Dublin Metropolitan Police, Constable Lahiff, who
subsequently died of his injuries.[18][19] Other accounts place her at City Hall when
the policeman was shot, only arriving at Stephen's Green later. [20] It was long
thought that she was second in command to Michael Mallin,[21] but in fact it
was Christopher "Kit" Poole who held that position.[22] Markievicz supervised the
setting-up of barricades on Easter Monday and was in the middle of the fighting
all around Stephen's Green, wounding a British army sniper.[23] Trenches were
dug in the Green, sheltered by the front gate; however, after British machine
gun and rifle fire from the rooftops of tall buildings on the north side of the
Green including the Shelbourne Hotel, the Citizen Army troops withdrew to
the Royal College of Surgeons on the west side of the Green.
The Stephen's Green garrison held out for six days, ending the engagement
when the British brought them Pearse's surrender order. The British officer,
Captain (later Major) de Courcy Wheeler, who accepted their surrender was
married to Markievicz's first cousin, Selina Maude Beresford Knox. [24][25]
They were taken to Dublin Castle and then to Kilmainham Gaol through what
Matt Connolly described as "several groups of hostile people". [26] There, she was
the only one of 70 women prisoners who was put into solitary confinement. At
her court martial on 4 May 1916, Markievicz pleaded not guilty to "taking part in
an armed rebellion...for the purpose of assisting the enemy," but pleaded guilty
to having attempted "to cause disaffection among the civil population of His
Majesty".[27] Markievicz told the court, "I went out to fight for Ireland's freedom
and it does not matter what happens to me. I did what I thought was right and I
stand by it."[27][28] She was sentenced to death, but the court recommended mercy
"solely and only on account of her sex".[27] The sentence was commuted to life in
prison. When told of this, she said to her captors, "I do wish your lot had the
decency to shoot me".[b][30] However, when the records of the courts martial were
released, Wylie's memory proved to have been faulty.
Markievicz was transferred to Mountjoy Prison, Holloway Prison and then
to Aylesbury Prison in England in July 1916. She was released from prison in
1917, along with others involved in the Rising, as the government in London
granted a general amnesty for those who had participated in it. It was around
this time that Markievicz, born into the Church of Ireland, converted
to Catholicism.

First Dáil[edit]

Election victory procession led by Markievicz in County Clare

In 1918, she was jailed again for her part in anti-conscription activities. At
the 1918 general election, Markievicz was elected for the constituency of Dublin
St Patrick's, beating her opponent William Field with 66% of the vote, as one of
73 Sinn Féin MPs. The results were called on 28 December 1918.[3] This made
her the first woman elected to the United Kingdom House of Commons.
However, in line with Sinn Féin abstentionist policy, she did not take her seat in
the House of Commons.[31]
Markievicz was in Holloway prison, when her colleagues assembled in Dublin at
the first meeting of the First Dáil, the Parliament of the revolutionary Irish
Republic. When her name was called, she was described, like many of those
elected, as being "imprisoned by the foreign enemy" (fé ghlas ag Gallaibh).
[32]
 She was re-elected to the Second Dáil in the elections of 1921.[33]
Markievicz served as Minister for Labour from April 1919 to January 1922, in
the Second Ministry and the Third Ministry of the Dáil. Holding cabinet rank from
April to August 1919, she became both the first Irish female Cabinet
Minister and at the same time, only the second female government minister in
Europe.[a][34] She was the only female cabinet minister in Irish history until 1979
when Máire Geoghegan-Quinn was appointed to the cabinet post of Minister for
the Gaeltacht for Fianna Fáil. Her Labour department was concerned with
setting up Conciliation Boards, arbitrating labour disputes, surveying areas and
establishing guidelines for wages and food prices. [35]

Civil War and Fianna Fáil[edit]

The bust of Constance Markievicz in St Stephen's Green in Dublin.

Markievicz left government in January 1922 along with Éamon de Valera and


others in opposition to the Anglo-Irish Treaty. She worked actively for
the Republican cause in the Irish Civil War, including directing the Citizen Army
in the occupation of Moran's Hotel in Dublin.[36] After the civil war she toured the
United States. She was not elected in the 1922 Irish general election but was
returned in 1923 for the Dublin South constituency. In common with
other Republican candidates, she did not take her Dáil seat. She was arrested
again in November 1923. In prison, she went on hunger strike, and within a
month, she and other prisoners were released. [37]
She left Sinn Féin and joined the Fianna Fáil party on its foundation in 1926,
chairing the inaugural meeting of the new party in La Scala Theatre. In the June
1927 general election, she was re-elected to the 5th Dáil as a candidate for
Fianna Fáil, which was pledged to return to Dáil Éireann, but died only five
weeks later, before she could take her seat.[38] Her fellow Fianna Fáil TDs signed
the controversial Oath of Allegiance and took their seats in the Dáil on 12
August 1927, less than a month after her death.[39] The party leader Éamon de
Valera described the Oath as "an empty political formula". [40]

Death[edit]
Markievicz died at the age of 59 on 15 July 1927, of complications after
two appendicitis operations, a deadly surgery in those days before antibiotics.
She had given away the last of her wealth, and died in a public ward "among
the poor where she wanted to be". [41][42] One of the doctors attending her was her
revolutionary colleague Kathleen Lynn.[43] Also at her bedside were Casimir and
Stanislas Markievicz, Éamon de Valera and Hanna Sheehy Skeffington.
[43]
 Refused a state funeral by the Free State government, she was laid out in the
Rotunda, where she had spoken at so many political meetings. Thousands of
the Dubliners who loved her lined O'Connell Street and Parnell Square to pass
by her body and pay their respects to 'Madame'. It took four hours for the
beginning of the funeral, starting from the Rotunda, to reach the gates
of Glasnevin Cemetery. Eamon de Valera gave the funeral oration, while Free
State soldiers stood on guard to prevent the rifle salute that Michael Collins had
called “the only speech which it is proper to make above the grave of a dead
Fenian”.[41][44]
Her former Citizen Army colleague the playwright Seán O'Casey said of her:
"One thing she had in abundance—physical courage; with that she was clothed
as with a garment."[45]

A Dublin City Council 1916 Commemorative plaque, unveiled on 15 July 2019, to commemorate
Constance Markievicz and the house she lived in from 1912 to 1916

Tributes[edit]
In 2018 a portrait of Markievicz was donated by the Irish parliament to the
British House of Commons to commemorate the 1918 Representation of the
People Act, under which, some women were allowed the right to vote for the
first time in the United Kingdom.[46]
In 2019 a Dublin City Council Commemorative Plaque was unveiled at
Markievicz's former home in Dublin, Surrey House on Leinster Road
in Rathmines.[47]

Notes
The Essential Joseph Schumpeter: An Easy
and Accessible Introduction to an Important
and Complex Thinker
Art Carden 
– July 14, 2020

The Fraser Institute in Vancouver, British Columbia, has put


together a series of very useful introductions to the key ideas of
some great thinkers in their Essential Thinkers series. They started
with The Essential Hayek (by Donald J. Boudreaux) and then
moved on to The Essential Adam Smith (James Otteson), The
Essential John Locke (Eric Mack), and The Essential Milton
Friedman  (Steven Landsburg). Their most recent contribution to
the series comes from Russell A. Sobel and Jason Clemens. They
introduce us to The Essential Joseph Schumpeter in yet another
volume that can be downloaded for $0 and, at just a few dozen
pages, read very quickly.

Schumpeter (1883-1950) was a brilliant economist and,


apparently, quite a character. He is said to have boasted that his
goal in life was to become the world’s greatest economist, the
world’s greatest lover, and the world’s greatest horseman. When
someone asked him how things were going, he said that things
weren’t going so well with the horses. Between that kind of sly
wit, his brilliant mind, and his disciplined work ethic, you can see
how Schumpeter became one of the twentieth century’s most
interesting economists. Fortunately, his ideas (and not just his
quick wit) warranted it.

Schumpeter was very prolific, but four key works stand out: The
Theory of Economic Development (German edition 1911, English
edition 1934), Business Cycles (1939), Capitalism, Socialism, and
Democracy  (1942), and the posthumously published, incomplete
but still very important History of Economic Analysis  (1954).
Schumpeter was the complete scholar, asking and answering very
big questions while appreciating and understanding their
intellectual history and context.

This has some important implications for cottage industries about


what this or that thinker really meant or the nature of social
processes very generally. Understanding all this stuff at a very
deep level requires more than just knowledge of what has been
published in the American Economic Review in the last year.
Schumpeter argued that to really understand Karl Marx one must
read all three volumes of Capital, the entirety of Theories of Surplus
Value, and have a strong working knowledge of British political
economy, French socialism, and the German philosophical
tradition. That’s a tall order, but the Bible exhorts us to “get
understanding.” I think it’s worth it (I admit my view is
idiosyncratic).

One of Schumpeter’s most important contributions is a rethinking


of how we understand competition. As Sobel and Clemens point
out, Schumpeter’s main criterion for whether or not a market was
competitive concerned its contestability. The relevant question
was not “how many firms are in this industry” but “what are the
barriers to entry that are preventing firms from coming up with
substitutes?” The workhorse models of perfect competition that
economists use to understand so many things are of great value as
models; however, if Schumpeter is right, then they are limited in
their ability to tell us how the world should be.

Sobel and Clemens explain Schumpeter’s argument in the context


of an interesting example: Hawaiian pizza, which, it turns out, is
actually Canadian–”The creation of Hawaiian pizza is often
credited to Sam Panopoulos, who first cooked one at the Satellite
Restaurant in Ontario, Canada in 1962”–and is now the most
popular pizza in Australia (p. 9). My wife and I have an inside
joke referring to “feta cheese and spinach pizza” because early in
our relationship I apparently told her repeatedly about the
amazingness of the feta cheese and spinach pizza at Tut’s on the
strip in Tuscaloosa, Alabama. The point Sobel and Clemens make
is that there are many thousands of possible combinations of
pizza toppings. Economic progress happens when we stand back
and let innovators like Sam Panopoulos try something new and
see if it works, where “works” is judged by the difference
between consumers’ willingness to pay for dough, sauce, cheese,
ham, and pineapple combined into a pizza and their willingness
to pay for dough, sauce, cheese, ham, and pineapple used for
literally anything else. Karl Marx and Friedrich Engels were
right: 

“The bourgeoisie cannot exist without constantly revolutionising


the instruments of production, and thereby the relations of
production, and with them the whole relations of society.
Conservation of the old modes of production in unaltered form,
was, on the contrary, the first condition of existence for all earlier
industrial classes. Constant revolutionising of production,
uninterrupted disturbance of all social conditions, everlasting
uncertainty and agitation distinguish the bourgeois epoch from
all earlier ones. All fixed, fast-frozen relations, with their train of
ancient and venerable prejudices and opinions, are swept away,
all new-formed ones become antiquated before they can ossify.
All that is solid melts into air, all that is holy is profaned, and man
is at last compelled to face with sober senses his real conditions of
life, and his relations with his kind.”

One would definitely get the impression from online debates


about the propriety of pineapple as a pizza topping that
Panopoulos has in fact “profaned” something that is “holy.”
Fortunately, he didn’t have to ask anyone’s permission–and as
measured by market tests, he has improved his fellows’ “real
conditions of life.”

Innovation, according to Schumpeter–his famous “perennial gales


of creative destruction”–drive both economic development and
business cycles. His arguments have been formalized and
extended by Philippe Aghion and Peter Howitt, and economic
historians like Joel Mokyr and Deirdre McCloskey have
highlighted the importance of innovation and, importantly, a
culture that embraces innovation. Economic progress doesn’t
come about from there being an infinite number of price-taking
buyers and sellers of products identical to the original iPhone. It
comes from the fact that Apple introduces a newer, better iPhone
every year. Competition, for Schumpeter, is not entry and exit or
expansion or contraction of output in perfectly competitive
markets. It’s the introduction of new products and new ways of
doing things.

Barriers to entry are of utmost importance. Sobel and Clemens


point out that about 700,000 American businesses succeed every
year and another 600,000 fail. There is constant churn. Both, I
suspect, are too low, and I think Schumpeter would agree. A lot of
businesses don’t get a chance to succeed or fail because they are
crushed by taxation and regulation very early on–or because the
aspiring innovator looks at the regulatory burden she will be
expected to bear and decides it simply isn’t worth it. 

Schumpeter makes an argument that will strike a lot of lay


readers as counterintuitive. We should welcome (or at least
tolerate) business failures because they free up resources that are
being wasted and that, importantly, will continue to be wasted if
the businesses don’t fail. I’m reminded of something I recall H.
Ross Perot saying during his ill-fated Presidential campaigns in
1992 and 1996, that we wanted big American companies to
be growing. That’s only the case if those companies are creating
value, on net, as measured by market tests of profits and losses.
Losses tell firms that they are wasting resources and provide a
stern warning: turn from your wicked and wasteful ways, and
start producing goods and services that people are willing to
“vote” for with the fruit of their labor and the sweat of their brow.
Or else.

This, of course, depends on the institutional context, and alas,


there are a lot of businesses that “succeed” that shouldn’t. Their
“success” comes from bailouts (airlines after 9/11, banks during
the Great Recession, airlines and hotels during COVID-19),
protectionism (sugar cane farmers in Louisiana and Florida, sugar
beet farmers in North Dakota), subsidies (in their introductory
textbook, Tyler Cowen and Alex Tabarrok point to farmers in
California who spray subsidized water on subsidized crops
growing on subsidized land), or some combination of these.
Schumpeter’s story begins in earnest in 1901 at the University of
Vienna, which was at the time one of the world’s great
universities–”comparable to Oxford and Cambridge,” in the
words of Sobel and Clemens. He was a classmate of Ludwig von
Mises and a student of Eugen von Boehm-Bawerk–a couple of
decades later, he would take Boehm-Bawerk’s old post as
Austrian Minister of Finance. If I recall correctly, Boehm-Bawerk
taught a seminar on Marx that included as students Schumpeter,
Mises, Rudolf Hilferding, and Otto Bauer. To digress, to have
been a (German-speaking) fly on the wall for that seminar would
have been amazing. He started his graduate training in 1908 and,
having already made some important scholarly contributions, he
was certified to teach. Unable to remain at Vienna, he started at
the University of Czernowitz (in modern Ukraine), where he
wrote the first version of The Theory of Economic Development. He
moved to the University of Graz in 1911. After a split from his
first wife, he became Austrian Minister of Finance in 1919.
Schumpeter left academia in 1921 to pursue a financial career. He
became very rich but lost everything when the market crashed.
He returned in 1925, taking an appointment at the University of
Bonn, and spent a considerable amount of time for the rest of his
life repaying debts he had incurred as a result of his ill-fated
financial adventures.

In 1926, he was struck by a triple tragedy. First, his mother died.


Not long after, his new wife Anna Josefina Reisinger and their
newborn daughter both died during childbirth. The losses
devastated him. As Thomas McCraw put it in his 2007 biography
of Schumpeter titled Prophet of Innovation, pp. 151-152, 

“In order to function at all, he looked for some way to keep


drawing on the support of Johanna [his deceased mother] and
Annie [his deceased wife]. In his diary, he began to refer to them
as his Hasen, a German pet name for dear ones (its literal meaning
is ‘rabbits’). Week after week, he would write ‘O Mother and
Mistress, help me,’ and ask for the strength to do his research and
writing….His salvation came from work and still more work, all
sustained by these ritualistic appeals to his wife and mother.”
In 1932, Schumpeter crossed the Atlantic to join the faculty at
Harvard, where he excelled both in his writing and in his
teaching. His external gregariousness masked his inner darkness.
As McCraw writes (p. 212),

“Light-hearted at chipper in public, Schumpeter lived an


altogether different life in private–a continuing, desperate internal
struggle with melancholy. His weekly diary entries still began
with thanks and appeals to the Hasen, then lapsed into something
like self-flagellation over the slow progress of his research.”

Schumpeter’s dark nights of the soul, I think, might be a welcome


balm for graduate students and other scholars frustrated by the
(lack of) progress of their own work. If even Schumpeter struggled
to get his work done, then maybe the rest of us should lighten up
on ourselves a little.

Sobel and Clemens take us through brief and easy analyses of


Schumpeter’s theory of economic development (driven by
innovation) and his theory of business cycles (where major
innovations draw capital into the newly innovative sector with
the cycle happening as the economy adjusts to the new
technological and commercial possibilities. In Schumpeter’s most
famous book, Capitalism, Socialism, and Democracy, he makes a lot
of arguments about the democratic process that would later be
carried forward by the public choice school of economics. Indeed,
as Sobel and Clemens note, Anthony Downs explicitly
acknowledges his intellectual debt to Schumpeter in his 1957 The
Economic Theory of Democracy. There is not, Schumpeter argued, a
single “common good,” and likely drawing on his experience as
Austrian Minister of Finance he explained, as James M. Buchanan
and Gordon Tullock would some two decades later, that we
cannot assume political actors have the “public interest” in mind–
or if they do, that their conception of the public interest is
accurate. To Schumpeter, and as the philosopher Jason Brennan
would argue in his 2016 book Against Democracy, “politics makes
us mean and dumb.”

Schumpeter also argued that capitalism sowed the seeds of its


own demise, but with a twist. Where Karl Marx saw capitalism
falling because of an uprising by the proletariat, Schumpeter saw
it falling because the intellectuals and the bourgeoisie would turn
against it. They both agreed that socialism would replace
capitalism. For Marx, this was inevitable and a good thing. For
Schumpeter, it was inevitable and a bad thing. In a sense,
Schumpeter was right: communism and socialism have never
happened because of revolutions from below. They have always
been revolutions led by intellectuals.

Joseph Alois Schumpeter made enduring and important


contributions that have stood and will continue to stand the test
of time. The specific institutional and historical context in which
he wrote–the Keynesian Revolution that started in earnest shortly
before the publication of his Business Cycles, and the enthusiasm
for central planning within the political arena and the economics
profession that provides a backdrop against which we can think
about various editions of Capitalism, Socialism, and Democracy–
makes him an important and illuminating figure in intellectual
history per se. The Essential Schumpeter is a useful introduction to
the man and his ideas, and both the text and the accompanying
videos will serve students, instructors, and interested lay people
very well.

Art Carden is a Senior Fellow at the American Institute for


Economic Research. He is also an Associate Professor of
Economics at Samford University in Birmingham, Alabama and a
Research Fellow at the Independent Institute.

Lucas Bitencourt Fortes

Mestrando em Educação pela Universidade Luterana do Brasil. Autor


do livro Sankara: o herói esquecido
34 anos da morte de Thomas Sankara: o líder que ousou inventar o futuro
Sankara viveu e morreu almejando que seu país, mas também o continente africano, se

tornasse independente econômica e politicamente. Sankara sonhou com uma África

unida e autossuficiente, e possivelmente é por conta disto que teve seu sangue

derramado

26 de outubro de 2021, 17:51 h Atualizado em 26 de outubro de 2021, 18:14


   

 1

Thomas Sankara (Foto: Reprodução/Twitter)

Lucas Bitencourt Fortes

Em 15 de outubro deste ano completou 34 anos do covarde assassinato de Thomas

Isidore Noël Sankara, panafricanista e ex-presidente de Burkina Faso, e de mais doze de

seus companheiros. Alguns dias antes desta data, confirmou-se, finalmente, o

julgamento dos acusados por este crime. Dentre os réus encontra-se o ex-presidente
Blaise Compaoré, este o melhor amigo de Sankara, que após o assassinato em 1987

tomou o poder, permanecendo até 2014.

Estes dois acontecimentos, o aniversário de 34 anos do brutal crime e o andamento do

julgamento, representam a oportunidade de recordar a história deste herói pouco

lembrado, lançando um olhar sobre suas conquistas e sonhos. Sankara viveu e morreu

almejando que seu país, mas também o continente africano, se tornasse independente

econômica e politicamente. Sankara sonhou com uma África unida e autossuficiente, e

possivelmente é por conta disto que teve seu sangue derramado. 


Em meio ao aumento da desigualdade social, decorrente da má gestão governamental e

das consequências da pandemia da Covid-19, e em vista dos escândalos e falta de

conscientização social e política de nossos governantes e militares, recordar a história e

aos ensinamentos de Sankara pode ser visto como uma fonte de inspiração e esperança.

Líder este que lutou por justiça social e defendeu a formação e conscientização de seu

povo.

De modo geral, estes acontecimentos nos dão a oportunidade de voltar nosso olhar para

o continente africano e sua rica história, principalmente para os grandes heróis nascidos

naquela terra. Patrice Lumumba, Kwame Nkrumah, Nelson Mandela, Jerry Rawlings...

Thomas Sankara é mais um dentre os grandes homens que a África lançou ao mundo e

que merece, e deve, ser lembrado. 


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Olhar para o passado, para tudo que Sankara fez e desejou fazer, é pensar e refletir sobre

nosso presente, e consequente, ousar inventar o futuro.

Pourquoi je suis communiste


Essai sur l'objectivité du matérialisme dialectique et historique
Loïc Chaigneau

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Résumé
S’il y a bien eu et s’il y a, encore aujourd’hui, un capitalisme
de la séduction, il faut produire un communisme du sublime.

Parce qu’il faut comprendre que tout « je » est d’abord un


commun. Celui qui dit « je » est le résultat d’une langue,
d’une culture, d’un héritage et des pré-jugés (littéralement)
qui l’accompagnent.

L’enjeu est alors de révéler à soi ce commun qui me et nous


constitue, au lieu d’être dans la simple illusion d’un « je »,
purement subjectif et individuel.

Ce « je » communiste dans une nécessité sociale et vitale,


plus que dans une affinité idéologique, est réminiscence de
ce qui me fait être en tant que singularité.

Thème
Le matérialisme dialectique et historique (MDH) –
épistémologie et objectivité en sciences humaines et sociales
– critique du positivisme et du cognitivisme.

Thèse
Le MDH est l’outil pour saisir le mouvement réel, mais aussi
le reflet d’une compréhension du sujet comme trans-
individuel, pouvant aboutir au renversement du capitalisme
par la prise de conscience d’une classe révolutionnaire.
Questions concrètes
• Comment établir une objectivité en sciences humaines et
sociales ?
• Quels sont les obstacles à l’unification des sciences
humaines et sociales ?
• Quelles sont les limites du positivisme ?
• Qu’est-ce que le matérialisme dialectique et historique ?
• En quoi est-ce un enjeu de se le réapproprier ?

Résumé détaillé
La période de parution de l’ouvrage est caractérisée par une
crise globale provoquant un ressurgissement du marxisme,
mais dénaturé. Avec ce livre qui s’inscrit dans la continuité de
ses travaux, Loïc Chaigneau vient rétablir la méthode de
compréhension objective du réel développée par Marx : le
matérialisme dialectique et historique (MDH).

Aussi face au subjectivisme irrationaliste et à l’objectivisme


scientiste, l’auteur se propose d’esquisser une théorie de
l’objectivité en sciences humaines. Le fondement de cette
objectivité est le suivant : c’est un processus intersubjectif, un
passage d’un sujet individuel - je - à un sujet collectif - nous -
qui n’est pas une somme de « je(s) » mais une totalité.

Le problème de la connaissance du monde est


immédiatement posé. L’épistémologie héritée de Kant sépare
le sujet de la connaissance et le monde (l’objet de la
connaissance). Le sujet par son activité peut saisir seulement
l’apparence du monde, mais le monde en lui-même reste
inconnaissable.

L’avancée que produit Kant est un progrès réel. Cependant


ses limites ont permis la récupération de ces idées à des fins
réactionnaires. Hegel, constatant cette récupération, a
critiqué Kant en montrant que l’erreur fondamentale consiste
à prendre le sujet comme point de départ et non comme
résultat historique, produit par un sujet trans-individuel.

La connaissance n’est pas entre le monde et le sujet car ils


ne sont pas séparables, l’activité du sujet produit ce monde
qu’il peut ainsi connaître. Marx ensuite renverse la théorie de
Hegel en montrant que ce qui est premier n’est pas l’activité
de l’esprit, mais la pratique réelle, dont l’activité de l’esprit est
le reflet.

Cette pratique permet d’abstraire des principes du réel, de


produire des concepts qu’on doit ensuite vérifier par et dans
la pratique. C’est donc bien le « nous » qui est porteur
d’objectivité, une objectivité qui le détermine.

Mais ce déterminisme ne doit pas être confondu avec celui


des sciences de la nature. Il répond à un couple signe/sens
alors que le deuxième répond au couple cause/effet d’une
matière naturelle donnée et anhistorique.

Aussi, l’action humaine produit l’histoire qui détermine l’action


humaine : l’homme est un produit de l’homme.

Il s’agit d’établir l’unité dans la série


évènements/manifestations et la détermination des choses.
La vérité objective recherchée est ainsi symétrique à des
moments historiques et à l’intersubjectivité (qui est une
condition nécessaire mais pas suffisante).

Face à l’idéologie bourgeoise, le MDH se réapproprie le


couple signe/sens, ratifie la logique de la production, et peut
alors saisir la vérité objective du moment historique pour
proposer une théorie révolutionnaire.

Alors que le MDH part de la totalité, une autre approche des


sciences humaines s’est constituée sur le modèle des
sciences de la nature : le positivisme, et même par la suite le
néo-positivisme.

Le positivisme refuse la logique dialectique, qui est


dynamique, en lui préférant la logique formelle, qui est fixiste.
Il repose sur un atomisme logique, c’est-à-dire une étude des
faits en tant que tels, isolés les uns des autres.
La seule explication proposée est déductive et causale, alors
que la genèse et le dépérissement des faits, leur inscription
dans un tout est ignorée.

À partir de cela l’auteur nous montre en quoi cette approche


révèle un conservatisme qui sert les intérêts de la classe
dominante.

Plus récemment, c’est le courant des sciences cognitives qui


prétend avoir atteint la scientificité objective en sciences
humaines.

Cependant, la réduction de l’homme à une simple machine


cérébrale n’explique en rien les causes des actions, mais
plutôt ce qui permet à ces causes de produire des effets.
C’est une forme de néo-naturalisme ignorant que l’homme est
un animal politique et éliminant toute volonté dans les actions
humaines.

Malgré la diversité de ces sciences, leur point commun reste,


au contraire du MDH, une étude partielle du réel, et un refus
d’inscrire les faits humains dans une totalité en mouvement.

En opposition à ces sciences, le MDH réhabilite une lecture


de l’histoire, notre histoire, comme objet produit par les
hommes, par nos actions. Cette réhabilitation devient non
seulement un enjeu théorique mais également un enjeu
pratique.

En effet, le MDH permet de révéler la logique du réel : il n’est


pas la superstructure qui n’est que l’apparence des choses, le
reflet de l’infrastructure en mouvement.

Ainsi, l’enjeu fondamental où se situe l’antagonisme entre les


classes sociales, est la propriété des moyens de production
avec face à face celle qui les détient et celle qui en est
dépossédé et se fait exploiter par l’autre.

Les classes sociales sont alors définies comme unité d’un


sujet collectif acteur de l’histoire. Le prolétariat est l’unité de
la classe révolutionnaire du moment historique que nous
vivons.

C’est à dire la classe qui, du fait de son positionnement


objectif dans le processus de production/consommation, est
capable d’amener le progrès historique par la révolution, en
abolissant le mode de production capitaliste.
Mais pas une révolution entendue comme un grand soir
amenant d’abord et nécessairement à une prise de pouvoir
politique.

Le MDH nous montre que la révolution est un processus long,


un mouvement réel d’abolition de l’état des choses
existantes. Ainsi la prise du pouvoir politique est un résultat,
l’affirmation du passage de la domination formelle à la
domination réelle d’une classe révolutionnaire.

Ainsi, pour poursuivre le mouvement communiste français il


est nécessaire de produire une phénoménologie de la
conscience de classe et de faire émerger une conscience de
classe.
Or, il n’y a pas là de mécanisme car pour qu’une classe en
soi devienne une classe pour soi, il faut qu’elle puisse
ressaisir ses propres réalisations. Le MDH en tant que
restitution de cette pratique de classe se révèle alors
nécessaire.

La science historique que propose le MDH apporte une


nouvelle téléologie, mais non causale, non mécaniste de
l’histoire, sans toutefois prévoir avec exactitude les résultats
des luttes ni leur moment d’apparition.

Le MDH est une philosophie de la praxis se constituant


comme une théorie de la pratique et comme une pratique de
la théorie.

L’objectivité du monde humain réside dans sa production, et


notamment la production d’outils qui sont une objectivation
d’une accumulation de travail humain, mais aussi ce qui
permet de recommencer le processus de travail.

Cette transformation du monde permet un retour à soi du


sujet, la production étant un reflet de lui-même. En même
temps qu’il transforme le monde, l’homme se transforme lui-
même, car la praxis, en plus de faire advenir dans le monde
ce qui n’y était pas par nature, produit la psyché.

On voit ici à quel point l’extorsion de la plus-value capitaliste,


comme travail non payé, est une séparation du producteur
avec le fruit de sa production et une négation même de son
statut de producteur.

Parce que les sociétés humaines ne sont pas constituées


selon la loi de la nature, la persistance du rapport de forces
dans la société capitaliste, la naturalisation des rapports
sociaux apparaissent comme une négation du contrat social
qui fonde les sociétés humaines.

Mais du fait des contradictions internes du capitalisme, un


autre monde est possible, il nous revient de le faire émerger.

Pour cela, une organisation de la classe révolutionnaire est


plus que jamais nécessaire.

D’où l’importance d’une avant-garde révolutionnaire se


saisissant du MDH, qui est l’expression consciente de
phénomènes inconscients, pour produire une théorie
révolutionnaire sans laquelle aucune pratique révolutionnaire
n’est possible.

Cette pratique révolutionnaire ne saurait d’ailleurs se


désintéresser de l’esthétique. Si l’idéologie libérale-libertaire a
su conquérir l’hégémonie culturelle avec un capitalisme de la
séduction, il revient à la classe révolutionnaire de produire un
communisme du sublime.

L’esthétique permet alors de rendre accessible à la


conscience les pratiques intersubjectives.
Bastien C.

Jeremy Corbyn

Líder do Partido Trabalhista inglês

Os socialistas estão reconstruindo a Bolívia


"Temos muito a aprender com as conquistas da esquerda boliviana no poder", escreve o

deputado e ex-líder do Partido Trabalhista inglês Jeremy Corbyn

29 de outubro de 2021, 14:14 h Atualizado em 29 de outubro de 2021, 14:39


   

 ...

Presidente da Bolívia, Luis Arce (Foto:


Reprodução)
Apoie o 247  Clube de Economia
Por Jeremy Corbyn 

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(Publicado no site A Terra é Redonda)

No primeiro ano do novo governo de Luis Arce e do partido Movimento ao Socialismo

(MAS – Movimiento al Socialismo), a Bolívia protagonizou avanços significativos na

remediação dos danos infligidos ao país pelo regime golpista de direita liderado por

Jeanine Áñez, que o antecedeu.

O golpe de 2019, planejado com bastante antecedência por líderes opositores de direita

e por militares de alta patente, anteviu que o presidente de longa data e constantemente

reeleito, Evo Morales, venceria novamente as eleições presidenciais.

Prevendo que o resultado final daria a Morales uma vitória expressiva no primeiro

turno, conforme contavam-se os votos das regiões rurais, de populações indígenas e pró-

Morales, a direita promoveu manifestações violentas. Tais protestos ainda receberam

carta branca da polícia, que insurgiu – primeiro em Cochabamba, e depois pelo resto do

país.

Instalada inconstitucionalmente no lugar de Morales, depois deste resignar ao cargo

para evitar mais derramamentos de sangue, estava Áñez, até então uma senadora de

direita.
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Sob o regime golpista, o país foi atingido por uma onda de abusos aos direitos humanos.

Sindicalistas, ativistas indígenas e apoiadores do MAS foram alvo de amplas violações

de direitos, em ataques que levaram inclusive a vidas perdidas – por exemplo, no

massacre racista de manifestantes indígenas em Sacaba e Senkata por forças militares e

policiais.
Durante os seus onze meses no poder, o regime golpista caracterizou-se por pouco mais

do que repressão generalizada e uma abordagem neoliberal para as políticas econômicas

e sociais.

De maneira crítica, ele fracassou em desenvolver uma estratégia coerente para enfrentar

a pandemia de Covid-19 e mitigar a crise econômica que a acompanhou. Em vez disso,

os gastos com o setor público foram drasticamente reduzidos no último quartil de 2019.

Os salários do setor público foram severamente reduzidos e o valor nominal do salário

mínimo foi congelado pela primeira vez desde 2006.

Durante o ano de 2020, 400.000 bolivianos perderam seu emprego, as rendas oriundas

de remessas foram reduzidas quase pela metade, e a pobreza e a desigualdade

dispararam conforme medidas austeritárias brutais faziam efeito. A dívida externa foi

elevada a 11.2 bilhões de dólares, incluindo um empréstimo de 300 milhões de dólares

solicitado ao Fundo Monetário Internacional, enquanto as empresas estatais eram postas

à venda ou doadas aos apoiadores do golpe.

Mas, atravessando tudo isso, uma ampla coalizão de movimentos sindicais, camponeses

e indígenas, junto a organizações de bairro, sindicatos de trabalhadores informais e o

MAS, resistiu heroicamente à repressão e demandou a realização de novas eleições.

Quando elas finalmente aconteceram, em outubro de 2020, o candidato do MAS, Luis

Arce, conquistou uma vitória decisiva, recebendo 55% dos votos contra 29% de seu

oponente mais próximo, o ex-presidente Carlos Mesa. O MAS também obteve controle

de ambas as casas do Congresso. Quando dizemos, “não se lamente, organize-se”,

somos inspirados por essas conquistas da política popular boliviana.


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Como, então, o presidente Arce e o MAS enfrentaram o legado do regime golpista?


Para corrigir o impacto devastador na renda da população em uma das piores crises

econômicas enfrentadas pelo país na história recente, uma das primeiras ações de Arce

foi promulgar as leis que sustentariam a iniciativa Bônus Contra a Fome. Essa iniciativa

havia sido aprovada pela assembleia nacional majoritariamente composta pelo MAS,

para depois ser interrompida por Áñez.

Os pagamentos começaram a ser efetuados em dezembro, beneficiando mais de quatro

milhões de pessoas, reduzindo o impacto da pandemia nas famílias mais vulneráveis e

reativando a economia boliviana.

Aliada a outras medidas, como o aumento nas pensões e um imposto anual direcionado

aos muito ricos (aqueles cuja renda ultrapassa 4,3 milhões de dólares), esta iniciativa

ajudou a economia boliviana a crescer 5,3% nos primeiros quatro meses de 2021.

Para o longo prazo, o governo está desenvolvendo uma estratégia industrial sustentável

e, concomitantemente, criou um fundo de 214 milhões de dólares para financiar

iniciativas de governos municipais e comunidades indígenas, especialmente aquelas

focadas em projetos e infraestrutura produtiva.

Na saúde, o regime golpista de Áñez administrou mal o início da pandemia de Covid-

19, participando, inclusive, na aquisição corrupta de respiradores superfaturados e

inadequados para o uso em cuidados intensivos.

Terceirizações, privatizações e capitalismo clientelista caracterizaram a resposta de

muitos governos direitistas à pandemia – como aqui no Reino Unido -, mas a boa

notícia é que a Bolívia mostrou que tal abordagem pode ser revertida.

O governo Arce deu início a uma estratégia tripla de resposta à pandemia. Ela envolveu

a testagem em massa, realizada pelas municipalidades; a coordenação entre governos

departamentais e municipais; e a provisão nacional dos testes necessários, suprimentos e

equipe médica – e a compra de vacinas. Em outubro, mais de 60% da população do país


com mais de dezoito anos de idade já havia recebido a primeira dose da vacina,

enquanto 47% estava duplamente vacinada.

No palco internacional, a Bolívia começou a reconstruir laços com aliados e parceiros,

que haviam sido desfeitos pelo regime golpista. O governo renovou seu apoio à

integração regional da América Latina, retomando sua participação em três das mais

importantes organizações regionais de troca, diálogo e segurança: ALBA (Alianza

Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América), CELAC (Comunidad de Estados

Latinoamericanos y Caribeños) e UNASUR (Unión de Naciones Suramericanas).

Relações diplomáticas com a Venezuela e com Cuba foram restauradas, e um acordo

amplo foi assinado com o México.

A Bolívia foi impactada de forma injusta pelos efeitos das mudanças climáticas, e nas

discussões do COP26, que ocorrerão em breve em Glasgow, a Bolívia estará novamente

na vanguarda da defesa de ações reais e da cooperação internacional para enfrentar a

catástrofe climática.

Em casa, o novo governo está comprometido com a responsabilização daqueles

envolvidos em uma ampla gama de crimes e delitos cometidos sob o regime golpista.

Por seu papel no massacre de manifestantes em Sacaba e Senkata, o chefe da polícia

boliviana responde a acusações criminais – assim como Áñez, que responde a acusações

relativas à violação sistemática de direitos humanos, sedição e conspiração contra o

governo Morales, assim como a denúncias de corrupção.

Dada o grau do apoio militar ao golpe e ao regime golpista, o presidente Arce também

agiu rapidamente para realizar mudanças nos altos níveis das forças armadas com o

objetivo de reduzir as chances delas aliarem-se novamente a movimentos reacionários

contra o governo eleito.

Mas o governo e seus apoiadores internacionais ainda precisam continuar atentos às

tentativas de desestabilização por parte de elementos antidemocráticos da direita.


Organizações opositoras, lideradas por atores centrais do golpe de 2019, como Luis

Fernando Camacho e Carlos Mesa, recentemente chamaram uma “greve cívica” contra

o governo Arce.

Dentre suas demandas estavam a readmissão de policiais envolvidos no golpe e o

abandono das acusações contra a Resistência Juvenil Cochala (um grupo paramilitar

envolvido em atividades de desestabilização), enquanto Mesa e Camacho também

clamavam por liberdade para Áñez. No entanto, milhares de cidadãos de diversas partes

do país, em resposta, foram às ruas manifestar-se em defesa do governo.

Temos muito a aprender com as conquistas da esquerda boliviana no poder – da

proteção da natureza em sua constituição à inclusão do multiculturalismo e a

organização em comunidades e locais de trabalho em busca de mudanças reais.

Como internacionalistas, devemos continuar demonstrando nosso apoio ao MAS, aos

movimentos sociais e ao governo Arce contra quaisquer tentativas por parte de forças

reacionárias – dentro e fora do país – de voltar no tempo e destruir os esforços do MAS

em fazer avançar a democracia, os direitos humanos, a igualdade e o progresso social na

Bolívia.

Brain mapping: explained


How can researchers map something as complex as the human brain?

Credit: vectorfusionart / Adobe Stock


KEY TAKEAWAYS
 Brain mapping is an attempt to identify the location of everything
in the brain. 

 An accurate map of the brain would immeasurably enhance our


ability to understand how it works. 
 The project is massive, involving multiple fields of biomedical
research and expensive cutting-edge technology.

Robby Berman

Brain mapping is one of the hottest current areas of research.

The brain is nothing short of amazing. Billions of neurons are in there


— the current best guess is about 86 billion — and a roughly equal
number of non-neuronal cells. The number of interconnections, or
synapses, across which neurons communicate via chemical and
electrical signals is believed to be about 125 trillion. There’s a whole
universe in there, even though the average adult brain weighs merely
three pounds and measures just 140 mm x 167 mm x 93 mm.

Though we know a lot about the anatomy of the brain, its functions
remain largely enigmatic. For instance, what is the biological
mechanism that encodes memories? On a computer, files are encoded
digitally with a series of ones and zeroes, a type of discrete storage.
Cassette tapes are analog recordings, and information is stored
magnetically. How does the brain store information? We don’t know.
Where consciousness is located in the brain — that is, the parts and
functions that make us “us” — is likewise shrouded in mystery.

The challenge is described well by the journal Nature:

“Neuroscientists know frighteningly little about the brain’s complexity.


They have sketched out the broad anatomy of the brain, and realize that
individual functions… are mediated by circuitry that crosses
anatomical borders. They can examine the detailed electrical activity of
small numbers of neurons. They can wield imaging technologies that
show which brain areas are activated during defined tasks, such as
viewing pleasant or unpleasant pictures. But those tiny (in brain terms)
pieces of information have not led neuroscientists to the big picture:
what we mean by human consciousness, what makes us our individual
selves or why some people develop psychiatric disorders.
Neuroscientists need to be able to join the dots — and there are a lot of
dots.”

As intimidating as this is, neuroscience is making incremental progress.


We can correlate various actions and thoughts with brain activity.
Scientists at Berkeley, for example, can tell what part of your brain will
exhibit electrical activity when you read certain words and phrases.
Credit: Nature

Two types of “brain mapping”

Before we dive further into the field of brain mapping, let’s first define
what we’re talking about. There are actually two types of brain
mapping.

The first type, which is what we are concerned with, is described by


the Society for Brain Mapping & Therapeutics as “the study of the
anatomy and function of the brain and spinal cord through the use of
imaging, immunohistochemistry, molecular and optogenetics, stem cell
and cellular biology, engineering, neurophysiology, and
nanotechnology.” One might fairly add physics and quantum physics to
that list.

Credit: santiago silver / Adobe Stock / Big Think

The second type of brain mapping deals with identifying areas of the
brain using qEEG technology in order to strengthen or heal them
through neurofeedback training. Neurofeedback practitioners claim
some impressive therapeutic value for people with all sorts of conditions
relating to the brain, including ADHD, autism, depression, and anxiety.
Some experts have expressed skepticism about some such claims.
The jury’s still out on this type of brain mapping.
What kind of map could map the brain?

A brain map, therefore, could be something like an atlas — a collection


of maps that document various neural pathways. But, unlike a road map,
it can’t be two-dimensional. A brain map of the cortex alone would
have to be three-dimensional.

The number of interconnections, or synapses, across which neurons communicate via


chemical and electrical signals is believed to be about  125 trillion.

The cortex, or gray matter, which contains billions of neurons and


synapses is folded in such a way that sections that would be distant
from each other come into close proximity. This is useful because it
shortens the distance that signals have to cross from one part of the
brain to another. The folds also greatly increase the cortex’s surface
area, which means we can cram more gray matter inside our skulls.

Folding itself is implicated in some neural disorders, and scientists


wonder if we might one day be able to modify a brain’s folding.
Credit: PhD Comics

A need for unprecedented collaboration

Aside from the obvious scientific and technological difficulties, Martin


La Monica, writing for The Conversation, wonders if some human
barriers may also get in the way. He raises three concerns:

1. Maps have always betrayed the bias of their creators. Even


neural cartographers will inevitably develop maps that depict the
brain according to their understanding of its workings. At the
same time, it’s exciting to imagine breakthroughs that could
occur should a map unexpectedly not conform to its makers
expectations.
2. One size does not fit all. Scientists strongly suspect each brain is
at least somewhat unique. To construct brain maps that
encompass differences between us, researchers will have to
engage in some generalizing that will inevitably reduce their
accuracy as it enhances their universality.
3. Financial considerations make the requisite collaboration
between scientists and institutions difficult. The hardware and
expertise required mean that brain mapping will be costly.
However, for those who discover new medical treatments or
technologies along the way, the endeavor could prove profitable.
Thus, some will no doubt feel that they have financial incentives
not to share information.

Ultimately, La Monica’s third consideration touches upon what may be


the human brain mapping’s biggest underlying challenge. As UCLA
Health notes, the project is the polar opposite of “reductionistic
approaches in medical science.” Instead, “brain mapping integrates
many sources of information to produce a holistic view, the value of
which is greater than the sum of its parts.”

Credit: gerasimov174 / Adobe Stock

This will demand an unprecedented level of collaboration and


cooperation between organizations and scientists from a broad swath of
scientific disciplines.
Brain mapping for the win

There is almost nothing about mapping the human brain that will be
easy. From logistical issues (like the open exchange of information) to
scientific challenges (such as technological and theoretical advances),
much will be required to make sense of the human brain.

With the brain so central to our being, there’s a tremendous amount of


research relating to it. There’s a continual stream of new insights
regarding the way it functions and the ways it
sometimes doesn’t function so well.
For scientists seeking to understand the brain, and for doctors working
to help their patients enjoy life to its fullest, a comprehensive map that
brings all of the best, most recent information together is more than
worth the Herculean effort required to make it happen.

The New York Times Bestseller

“It’s no exaggeration to say that Behave is one of the best nonfiction books I’ve ever
read.” —David P. Barash, The Wall Street Journal

"It has my vote for science book of the year.” —Parul Sehgal, The New York Times

"Hands-down one of the best books I’ve read in years. I loved it." —Dina Temple-
Raston, The Washington Post

Named a Best Book of the Year by The Washington Post and The Wall


Street Journal 

From the celebrated neurobiologist and primatologist, a landmark, genre-defining


examination of human behavior, both good and bad, and an answer to the question: Why
do we do the things we do?

Sapolsky's storytelling concept is delightful but it also has a powerful intrinsic logic: he
starts by looking at the factors that bear on a person's reaction in the precise moment a
behavior occurs, and then hops back in time from there, in stages, ultimately ending up at
the deep history of our species and its evolutionary legacy.
 
And so the first category of explanation is the neurobiological one. A behavior occurs--
whether an example of humans at our best, worst, or somewhere in between. What went
on in a person's brain a second before the behavior happened? Then Sapolsky pulls out to
a slightly larger field of vision, a little earlier in time: What sight, sound, or smell caused the
nervous system to produce that behavior? And then, what hormones acted hours to days
earlier to change how responsive that individual is to the stimuli that triggered the nervous
system? By now he has increased our field of vision so that we are thinking about
neurobiology and the sensory world of our environment and endocrinology in trying to
explain what happened.

Sapolsky keeps going: How was that behavior influenced by structural changes in the
nervous system over the preceding months, by that person's adolescence, childhood, fetal
life, and then back to his or her genetic makeup? Finally, he expands the view to
encompass factors larger than one individual. How did culture shape that individual's
group, what ecological factors millennia old formed that culture? And on and on, back to
evolutionary factors millions of years old. 

The result is one of the most dazzling tours d'horizon of the science of human behavior
ever attempted, a majestic synthesis that harvests cutting-edge research across a range of
disciplines to provide a subtle and nuanced perspective on why we ultimately do the things
we do...for good and for ill. Sapolsky builds on this understanding to wrestle with some of
our deepest and thorniest questions relating to tribalism and xenophobia, hierarchy and
competition, morality and free will, and war and peace. Wise, humane, often very
funny, Behave is a towering achievement, powerfully humanizing, and downright heroic in
its own right.

Denis Villeneuve
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This article is about the Canadian film director. For the Filipino footballer, see Dennis
Villanueva.

Denis Villeneuve

OC CQ
Villeneuve at the 2018 Cannes Film Festival

Born October 3, 1967 (age 54)

Bécancour, Quebec, Canada

Alma mater Université du Québec à Montréal

Film director
Occupation
film producer

screenwriter

Years active 1990–present

Spouse(s) Tanya Lapointe

Children 3

Relatives Martin Villeneuve (brother)

Jacques Villeneuve (second-cousin)

Denis Villeneuve OC CQ (French: [dəni vilnœv]; born October 3, 1967) is a French


Canadian filmmaker. He is a four-time recipient of the Canadian Screen
Award (formerly Genie Award) for Best Direction, for Maelström in
2001, Polytechnique in 2009, Incendies in 2010 and Enemy in 2013.[1][2] The first
three of these films also won the Canadian Screen Award for Best Motion
Picture, while the latter was awarded the prize for best Canadian film of the year
by the Toronto Film Critics Association.
Internationally, he is known for directing several critically acclaimed films,
including the thrillers Prisoners (2013) and Sicario (2015), as well as
the science fiction films Arrival (2016) and Blade Runner 2049 (2017).[3][4] For his
work on Arrival, he received an Academy Award nomination for Best Director.
 He was awarded the prize of Director of the Decade by the Hollywood Critics
[5]

Association in December 2019.[6] His latest film, Dune, based on Frank


Herbert's novel of the same name, premiered on September 3, 2021, at
the Venice Film Festival.

Early life[edit]
Villeneuve was born on October 3, 1967, in the village of Gentilly in Bécancour,
Quebec, to Nicole Demers, a homemaker, and Jean Villeneuve, a notary. He is
the eldest of four siblings. His younger brother, Martin, also became a
filmmaker.[7][8]
Villeneuve attended the Séminaire Saint-Joseph de Trois-Rivières[7] and later
studied science at the Cégep de Trois-Rivières.[8] He studied cinema at
the Université du Québec à Montréal.[9]

Career[edit]
Villeneuve began his career making short films and won Radio-Canada's youth
film competition, La Course Europe-Asie, in 1991.[10]
August 32nd on Earth (1998), Villeneuve's feature film directorial debut,
premiered in the Un Certain Regard section at the 1998 Cannes Film Festival.
[11]
 Alexis Martin won the Prix Jutra for Best Actor. The film was selected as the
Canadian entry for the Best Foreign Language Film at the 71st Academy
Awards, but was not nominated.[12][13]
His second film, Maelström (2000), attracted further attention and screened at
festivals worldwide, ultimately winning eight Jutra Awards and the award for
Best Canadian Film from the Toronto International Film Festival. He followed
that up with the controversial, but critically acclaimed black and white
film Polytechnique (2009) about the shootings that occurred at the University of
Montreal in 1989. The film premiered at the Cannes Film Festival and received
numerous honours, including nine Genie Awards, becoming Villeneuve's first
film to win the Genie (now known as a Canadian Screen Award) for Best Motion
Picture.[14]

Villeneuve at the 2015 Cannes Film Festival


Villeneuve's fourth film Incendies (2010) garnered critical acclaim when it
premiered at the Venice and Toronto International Film Festivals in
2010. Incendies was subsequently chosen to represent Canada at the 83rd
Academy Awards in the category of Best Foreign Language Film[15] and was
eventually nominated for the award, though it did not win. [16] The film went on to
win eight awards at the 31st Genie Awards, including Best Motion Picture, Best
Direction, Best Actress (Lubna Azabal), Best Adapted
Screenplay, Cinematography, Editing, Overall Sound, and Sound Editing.
[17]
 Incendies was chosen by The New York Times as one of the top 10 best films
of that year.[18]
In January 2011, he was selected by Variety as one of the top ten filmmakers to
watch.[19] Also in 2011, Villeneuve won the National Arts Centre Award.[20]
Villeneuve followed Incendies with the crime thriller film Prisoners,
starring Hugh Jackman and Jake Gyllenhaal. The film screened at festivals
across the globe, won several awards, and was nominated for the Academy
Award for Best Cinematography in 2014.[21]
Following Incendies and Prisoners, Villeneuve won Best Director for his sixth
film, the psychological thriller Enemy (2014), at the 2nd Canadian Screen
Awards. The film was awarded the $100,000 cash prize for best Canadian film
of the year by the Toronto Film Critics Association in 2015.[22]
Later that year, Villeneuve directed the crime thriller film Sicario, scripted
by Taylor Sheridan,[23] and starring Emily Blunt, Benicio del Toro, Daniel
Kaluuya, and Josh Brolin.[24] The film competed for the Palme d'Or at the 2015
Cannes Film Festival, though it did not win.[25] It screened at the Toronto
International Film Festival in 2015 and went on to gross nearly $80 million
worldwide.[26]
Villeneuve subsequently directed his eighth film, Arrival (2016), based on the
short story Story of Your Life by author Ted Chiang, from an adapted script
by Eric Heisserer,[27] with Amy Adams and Jeremy Renner starring.[28] Principal
photography began on June 7, 2015 in Montreal, and the film was released in
2016.[29] Arrival grossed $203 million worldwide and received critical acclaim,
specifically for Adams's performance, Villeneuve's direction, and the film's
exploration of communicating with extraterrestrial intelligence. Arrival appeared
on numerous critics' best films of the year lists,[30] and was selected by
the American Film Institute as one of ten films of the year.[31] It received eight
nominations at the 89th Academy Awards, including Best Picture, Best Director,
and Best Adapted Screenplay, ultimately winning one award for Best Sound
Editing. It was also awarded the Ray Bradbury Award for Outstanding Dramatic
Presentation and the Hugo Award for Best Dramatic Presentation in 2017.[32][33]
In February 2015, it was announced that Villeneuve would direct Blade Runner
2049, the sequel to Ridley Scott's Blade Runner (1982).[34] Scott served as the
film's executive producer on behalf of Warner Bros.[35][36] It was released on
October 6, 2017 to critical acclaim and middling box office returns. [37] David
Ehrlich of IndieWire wrote, "Few filmmakers of the 21st century have risen to
prominence and prestige with the forcefulness of Blade Runner 2049 director
Denis Villeneuve, whose seemingly unstoppable career has been bolstered by
a steady balance of critical respect and commercial success. In
fact, Christopher Nolan is the only other person who comes to mind, and the
similarities between the two of them are hard to ignore." [38]
In December 2016, it was announced Villeneuve would direct Dune, a new
adaptation of the 1965 novel for Legendary Pictures with Villeneuve, Eric Roth,
and Jon Spaihts writing the screenplay.[39][40] Timothée Chalamet, Rebecca
Ferguson, Oscar Isaac and Zendaya will star in the film.[41][42][43][44] The film was
released on October 22, 2021, by Warner Bros. Pictures.[45] Additionally,
Villeneuve will serve as an executive producer and direct the first episode
of Dune: The Sisterhood, a spin-off television series focusing on the female
characters in the novel, for HBO Max.[46]
Villeneuve is set to direct the adaptation of Jo Nesbø's crime novel The Son,
[47]
 which will star Jake Gyllenhaal and will be an HBO limited series.[48]

Personal life[edit]
Villeneuve is married to Tanya Lapointe, a journalist and filmmaker,[49] and he
has three children from a previous relationship. [50] His younger brother, Martin
Villeneuve, is also a filmmaker.[51]

Filmography[edit]

Villeneuve with Josh Brolin, Emily Blunt, and Benicio del Toro at the 2015 Cannes Film
Festival premiere of Sicario

Feature films[edit]

Year Title Director Writer Producer

199 August 32nd on


Yes Yes No
8 Earth

200
Maelström Yes Yes No
0
200
Polytechnique Yes Yes No
9

201
Incendies Yes Yes No
0

Prisoners Yes No No
201
3
Enemy Yes No No

201
Sicario Yes No No
5

201
Arrival Yes No No
6

201
Blade Runner 2049 Yes No No
7

202
Dune Yes Yes Yes
1

202
Dune: Part Two Yes Yes Yes
3

Short films[edit]

Year Title Director Writer

199
La Course Destination Monde Yes No
0

199
REW FFWD[52] Yes Yes
4
199
Cosmos ("Le Technétium" segment)[53] Yes Yes
6

200
120 Seconds to Get Elected Yes Yes
6

200
Next Floor Yes No
8

201
Rated R for Nudity Yes Yes
1

201 Étude empirique sur l'influence du son sur la persistance


Yes Yes
1 rétinienne

Television[edit]

Yea Executive
Title Director Notes
r Producer

TBA Dune: The Sisterhood[54] Yes Yes Pilot episode

N/A The Son[48] Yes Yes Limited series

Reception[edit]
Critical, public and commercial reception of Villeneuve's directorial features.

Rotten Box
Metacritic[ BFCA[5 CinemaScor Budg
Film Tomatoes[ 56] 7] office[59]
55]
e[58] et [60]

$3.4 $0.3
Maelström 81% 66 71/100 N/A
million million

Polytechniq $6 $1.6
87% 63 N/A N/A
ue million million
Rotten Box
Metacritic[ BFCA[5 CinemaScor Budg
Film Tomatoes[ 56] 7] office[59]
55]
e[58] et [60]

$6.8 $16.1
Incendies 92% 80 87/100 N/A
million million

$46 $122.2
Prisoners 81% 70 85/100 B+
million million

$4.6
Enemy 71% 61 74/100 N/A N/A
million

$30 $84.9
Sicario 92% 82 89/100 A−
million million

$47 $203.4
Arrival 94% 81 88/100 B
million million

Blade
$185 $259.2
Runner 88% 81 87/100 A−
million million
2049

$165 $293.7
Dune 83% 75 TBD A−
million million

Accolades[edit]
Main article: List of awards and nominations received by Denis Villeneuve

Academy Awards BAFTA Awards Golden Globe Awards

Year Title

Nominations Wins Nominations Wins Nominations Wins

201
Incendies 1 1
0
201
Prisoners 1
3

201
Sicario 3 3
5

201
Arrival 8 1 9 1 2
6

201 Blade Runner


5 2 8 2
7 2049

Total 18 3 21 3 2 0

References

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