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cultural.html
Certa vez o psicanalista alemão Wilhelm Reich afirmou que a grande questão para
a luta pela transformação social e criação de um novo mundo – livre da exploração e
alienação e baseado na igualdade e liberdade – é responder por qual motivo os
trabalhadores e oprimidos em geral não se rebelam e fazem uma revolução. Por qual
motivo uma pessoa faminta não rouba a comida que matará sua fome? Ou seja, a
questão, ao contrário da que é colocada normalmente em nossa sociedade, não é
explicar porque algumas pessoas famintas roubam e sim por qual motivo outras no
mesmo estado não fazem a mesma coisa.
Segundo ele:
“Se dois homens A e B têm fome, um pode resignar-se, não roubar, mendigar ou
ficar esfomeado; o outro pode procurar alimento pelos seus próprios meios. Uma vasta
camada do proletariado vive segundo os princípios de B. Chama-se
lumpemproletariado. Não partilhamos da admiração romântica pelo mundo dos
malfeitores mas é preciso esclarecer o assunto. Qual dos dois tipos de homens acima
citados tem mais elementos de consciência de classe? Roubar não é ainda um índice de
consciência de classe; mas uma breve análise mostra – mesmo se isto choca o nosso
sentido de moral – que o que não se adapta às leis e rouba quando tem fome,
exprimindo assim a sua vontade de viver, é possuidor de uma maior capacidade de
revolta do que o que se entrega docilmente ao matadouro do capitalismo. Mantemos a
tese de que o problema fundamental de uma boa psicologia não é saber porque rouba o
esfomeado mas, ao contrário, porque é que não rouba1”.
Reich acrescenta que roubar não é ainda consciência de classe mas coloca que é
um tijolo com a qual, junto com outros tijolos e elementos (vidros, janelas etc.) se
constrói uma casa, isto é, é um elemento que permite a formação da consciência de
classe. A questão fundamental seria, então, explicar por qual motivo os trabalhadores,
oprimidos, descontentes não realizam atos de negação da sociedade existente. Por qual
motivo o esfomeado não rouba? Os trabalhadores não tomam conta das fábricas? O
desabrigado não toma conta dos lotes baldios ou das grandes propriedades territoriais?
São questões que nos remetem ao motivo dos explorados, dominados, oprimidos etc.
não terem feito uma revolução, a transformação social radical abolindo a exploração,
dominação, opressão. Sem dúvida a resposta é complexa. Podemos falar do aparato
repressivo do Estado, o exército e a polícia como fator importante para a não realização
da revolução. No entanto, este aparato só entra em ação quando o confronto é aberto,
quando todos os outros meios que a classe dominante e o governo utilizam para manter
a passividade da população já não funcionam mais. Hoje, apenas uma minoria radical
entra em confronto direto com o aparato repressivo do estado capitalista e não por
propor a revolução social mas sim por questões pontuais (protestos, manifestações, lutas
pela moradia, luta pela terra, ou seja, tijolos que são elementos para construir a casa mas
ainda não é a casa).
Existe algo anterior à força repressiva que é um forte obstáculo ao processo
revolucionário. Aqui lembramos o filósofo Rousseau. Segundo ele, o que importa, para
explicar a origem das desigualdades, é indicar, “no progresso das coisas, o momento em
que, o direito sucedendo à violência, a natureza submeteu-se à lei; de explicar por que
encadeamento de prodígios pôde o forte decidir-se a servir ao fraco, e o povo a
comprar um repouso imaginário ao preço de uma felicidade real”2.
Portanto, Rousseau explica a origem das desigualdades a partir do momento em
que surgiu a supremacia do direito sobre a violência. Isto se encontra de acordo com o
que colocamos anteriormente: a força repressiva é sustentáculo da desigualdade, da
exploração, da dominação, da opressão, mas só é utilizada no momento em que falham
os outros sustentáculos destas relações. Rousseau assim coloca a origem da propriedade
privada e, por conseguinte, da desigualdade:
1 Reich, Wilhelm. O Que é a Consciência de Classe? Lisboa, Textos Exemplares, 1976, p. 23.
2 Rousseau, Jean-Jacques. Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens. Brasília/São Paulo, Edunb/Ática, 1989, p. 49.
“O primeiro que, tendo cercado um terreno, arriscou-se a dizer: “isso é meu’, e
encontrou pessoas bastantes simples para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil. Quantos crimes, guerras, mortes, misérias e horrores não teria
poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos,
tivesse gritado aos seus semelhantes: Fugi às palavras deste impostor; estareis
perdidos se esquecerdes que os frutos pertencem a todos, e que a terra não é de
ninguém. Entretanto parece que as coisas já haviam chegado ao ponto de não mais
poder continuar como estavam; pois essa idéia de propriedade, dependendo de muitas
ideias anteriores que não puderam nascer senão sucessivamente, não se formou
repentinamente no espírito humano. Foi preciso fazer muitos progressos, adquirir
muita indústria e saber transmiti-los e aumentá-los de geração em geração, antes de se
atingir esse último estágio do estado de natureza”3.
Rousseau, apesar de sua contextualização histórica-social deixar muito a desejar,
coloca um elemento fundamental para nossa discussão. A questão do consentimento. Ou
seja, a repressão estatal só atua quando se rompe o consentimento da população, a força
só entra em ação quando as palavras não funcionam mais. Aqui entramos na questão
cultural e no papel da cultura para a reprodução da exploração, da desigualdade, da
opressão. Por que os explorados, oprimidos, esfomeados, não se rebelam? Basta uma
rápida olhada no mundo contemporâneo para ver milhões de indivíduos passando fome
ou outros milhões em estado de miséria, milhões de trabalhadores explorados, milhões
de desempregados, milhões de indivíduos oprimidos devido à cor da pele, a religião, a
etnia etc. A grande questão reside no que foi colocado por Reich: por qual motivo não
se rebelam? E Rousseau nos afirma que a origem da desigualdade se encontra na
cultura, no consentimento. Sem dúvida, a cultura exerce um papel fundamental na
reprodução da sociedade existente e em todos os males gerados por ela. De que forma a
cultura contribui com a reprodução do capitalismo? O universo cultural na sociedade
capitalista é muito amplo e possui vários aspectos. Iremos destacar os principais:
A) A Axiologia
B) A Ideologia;
C) As Representações Cotidianas Ilusórias.
Iremos discutir cada um destes itens. A axiologia é uma determinada configuração
dos valores dominantes em determinada sociedade4. A axiologia na sociedade capitalista
9 Reich, W. Ob. cit.; Gramsci, A. Concepção Dialética da História. 7a edição, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1988.
só estes sobrevivem (tal como afirmou Darwin, o ideólogo da evolução) ou então que a
fome é produto do crescimento populacional, que cresce em proporção muito maior do
que a produção de alimentos (tese do economista Malthus, ideólogo do século 19 que
tem adeptos até hoje e inspirador de Darwin). Assim, as representações cotidianas
também são mobilizadoras, e as que são ilusórias mobilizam no sentido de conservação
da sociedade existente.
No entanto, até agora apenas observamos o papel conservador da cultura na luta
de classes. Isto é fundamental para percebermos a força das ideias no processo de
conservação da sociedade capitalista e da necessidade de buscar realizar uma intensa
luta cultural visando diminuir a eficácia política da cultura burguesa e aumentar a força
do projeto revolucionário. As classes exploradas e grupos oprimidos trazem em si um
conjunto de ideias, valores, representações que realizam uma crítica da sociedade
capitalista. É preciso, pois, reforçar isto. Os grupos políticos revolucionários também
produzem um amplo material crítico e revolucionário, bem como alguns intelectuais
dissidentes e movimentos sociais. Ora, o que é preciso é reforçar todo este processo de
constituição de uma cultura libertária, ampliando-a quantitativamente e
qualitativamente, bem como realizar uma articulação entre as diversas produções
culturais libertárias. A criação de meios de comunicação alternativos e de intervenção
nos meios de comunicação existentes é outra forma de encaminhar esta luta cultural,
pois além da produção de uma cultura libertária, é preciso sua divulgação, para
proporcionar sua ampliação, produzindo novos produtores.
Assim, a produção cultural libertária deve se expandir e articular e se realizar sob
os mais variados meios (jornais, revistas, livros, CDs, apresentações públicas etc.) e sob
as mais variadas formas (teatro, música, teoria etc.). Isto, ao lado da atuação militante
nos movimentos sociais e luta pela auto-organização das classes exploradas e grupos
oprimidos e da articulação dos movimentos revolucionários, abre espaço para se
contribuir com o processo de transformação social, que hoje vem sendo reforçado pela
tendência de crise e instabilidade do capitalismo, fornecendo condições sociais de
crescimento do descontentamento popular e adesão ao projeto de transformação social.
A luta cultural é um ponto fundamental para a luta pela transformação social. A cultura
libertária, assim como a cultura burguesa, também é mobilizadora e, portanto, deve ser
considerado elemento fundamental da luta revolucionária.