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A FACA EM SEU PESCOÇO

Link: https://brooklynrail.org/2022/10/field-notes/The-Knife-At-Your-Throat
The Knife At Your Throat – The Brooklyn Rail, Outubro/2022 ▪ por Phil A. Neel. ○
Tradução R. d' Arêde
Em Espanhol: https://hacialavida.noblogs.org/files/2022/12/El-cuchillo-en-tu-
garganta.pdf?fbclid=IwAR27UhmitjjIcZUjCDuDlrMYKamNO7ObLRBlT-
Tp9VPoo3VSZoo5dSQ7k9E [Ricardo, você pode comparar aqui como os colegas
traduziram alguns termos do inglês para o espanhol]

PREÇOS
Deslize por qualquer feed de notícia e histórias aterrorizantes se arrastarão pela
tela: preços que, como mortos-vivos, erguem-se das profundezas de uma cova chamada
globalização, contracheques que queimam até às cinzas, predadores emergindo das
florestas periféricas para sifonarem ouro negro das perfurações que abrem em tanques
de combustível. O pesadelo da inflação está de volta. E, como em toda história de terror,
é preciso que haja um monstro. Mas qual é, exatamente, a causa do aumento dos
preços? A mensagem política frequentemente é tão clara aqui quanto nos pequenos
adesivos de humor boomer com Joe Biden que aparecem nas bombas de combustível de
todo o país. Os entendidos agitam suas tochas e seguem seu monstro favorito até um
covil cheio de ossos. Quando o monstro é exposto, não há, de fato, surpresa alguma:
altos salários, descontrole no estímulo econômico via transferência de renda, excessiva
quantidade de dinheiro gasto em programas sociais - formas diferentes de dizer que há
dinheiro demais nas mãos daqueles que nasceram para ter [dinheiro] de menos. Novas
despesas devem ser reduzidas, a menor manifestação de interesse da juventude pela
sindicalização, por sua vez, revertida, e todo esse é-muito-dinheiro circulando por aí,
novamente desviado para as já habituais mãos de muito poucos. O Banco Central dos
EUA, que abrigava tais monstros, deve agora assumir a responsabilidade e, enfim,
empunhar a lâmina afiada da taxa de juros, como Paul Volcker, santo padroeiro dos
tecnocratas brutais e das surras que não marcam na pele.
A “esquerda” mira um monstro diferente, mas ainda assim um monstro. A
inflação não é provocada por altos salários, mas pela manipulação de preços[price-
gouging] e por aqueles que lucram com a guerra. Quando muito, o aumento de preços
justifica a demanda por salários mais altos, invertendo [o dilema] do ovo e da galinha.
Esse entendimento é geralmente ornamentado por algum reconhecimento do estado de
emergência na cadeia de abastecimento, juntando a manipulação de preços e os choques
na produção em uma narrativa que, no mais sério de seus esforços, conclui que a única
forma de matar o monstro é por meio de um pacote pragmático de controle de preços
semelhante àqueles que foram instituídos durante a guerra1. Mas também aqui o
protagonismo permanece com os “decisores políticos”[policy makers], mais
proeminentemente os tecnocratas no Banco Central dos EUA. Na verdade, tanto as
narrativas de direita quanto as de esquerda têm a mesma tendência de retratar a
turbulência econômica dos últimos dez anos como um prestigiado drama centrado nas
intrigas de financistas e de banqueiros centrais 2. Stephanie Kelton, ex-chefe de
economia da Comissão de Orçamento do Senado e consultor político da campanha de
Bernie Sanders, faz algo parecido em seu recente sucesso de vendas popularizando a
“Teoria Monetária Moderna” (TMM), cujo essencial é que já existem todos os pré-
requisitos legais e teóricos para que as autoridades fiscais e financeiras despejem
dinheiro em programas sociais se, ao menos assim, escolhessem fazê-lo 3. O resultado é
que até mesmo muitos "socialistas" passaram a ver como única saída para a crise - de

1
Meg Jacobs and Isabella M. Weber, “The way to fight inflation without rising interest rates and a
recession”, The Washington Post, 9 August 2022.
https://www.washingtonpost.com/made-by-history/2022/08/09/way-fight-inflation-without-rising-
interest-rates-recession; Richard D. Wolff, “There are Better Ways for Societies to Address Inflation
Than by Hiking Interest Rates”, Richard D. Wolff, 8 June 2022.
https://www.rdwolff.com/there_are_better_ways_for_societies_to_address_inflation_than_by_hiking_int
erest_rates.
2
A esse respeito, provavelmente não há figura mais importante do que Adam Tooze, um historiador da
economia cujos registros jornalísticos sobre o processo de tomada de decisões dos barões financeiros e
dos banqueiros centrais contrastam fortemente com as teorias de "boom e bolha", aparentemente frias e
impessoais, oferecidas por historiadores da economia marxistas como Robert Brenner, que forneceu um
dos mais conhecidos e sistemáticos relatos da crise de 2008 nos anos que antecederam a sua eclosão. No
que se seguiu, o trabalho de Brenner tornou-se uma espécie de pedra de toque para muitos envolvidos no
renascimento da teoria comunista ao longo da década de 2010. Tooze, pelo contrário, representa uma
reescrita liberal tardia dos relatos incisivos de críticos marxistas como Brenner, reconhecendo todas as
mesmas características principais e acrescentando detalhes esclarecedores, ecléticos e empíricos
amarrados entre si através de uma criativa contação de história. Mas o ecletismo de Tooze, embora
admirável em sua amplitude polímata, é também o sinal de uma fraqueza mais profunda: a incapacidade
de oferecer (ou, talvez de modo mais justo, [fazer] oposição teórica à) qualquer explicação sistemática e
estrutural das "leis do movimento" da economia mundial que seja capaz de prestar contas de mais do que
a história está contando no momento. Esta fraqueza é por si só tratada como um distintivo de honra à
moda clássica dos filósofos liberais - pragmáticos ou pós-modernistas - que rejeitam narrativas
"totalizantes" como perigosamente redutoras e inerentemente autoritárias. Mas a manobra fundamental
aqui é política. A história econômica recente é recontada de uma forma que obscurece o funcionamento
do capitalismo enquanto sistema social, reduzindo os pormenores da economia global à (invariavelmente
complexa) interatividade entre as várias personalidades que lideram as instituições que (a história contada
quereria nos fazer acreditar) dirigem a economia.
3
Stephanie Kelton, The Deficit Myth: Modern Monetary Theory and the Birth of the People’s Economy,
New York: Public Affairs, 2020.
inflação, certamente, mas também crises mais generalizadas como a estagnação
econômica e a catástrofe ecológica - a mobilização do Banco Central e do Tesouro para
"Financiar uma Revolução Climática do Povo”4 ou programas semelhantes, e
aparentemente plausíveis, conduzidos no interior do ambiente institucional existente. A
estratégia consiste em se aproximar da utopia por meio de um compromisso político.
Contudo, remova os ornamentos e chegaremos a uma lógica bem mais direta: a única
coisa capaz de parar uma pessoa má com um banco é uma boa pessoa com um banco.
Não é particularmente difícil traçar a mecânica real da inflação em qualquer
momento dado. Ainda que ganhos mais altos e despesas sociais crescentes possam ter
contribuído para a onda estagflacionária dos anos 1970 (acompanhando o alto custo da
energia decorrente da crise petrolífera), a ideia de que altos salários, ou outras formas de
"demanda excessiva", sejam sempre o principal motor da inflação e do desemprego no
conjunto da economia, há muito tem sido desmentido5. Está bem claro que as causas
mais próximas e importantes da atual onda inflacionária são a escassez na cadeia de
abastecimento, ainda reflexo da pandemia, e o choque no fornecimento global de
energia causada pela guerra na Ucrânia - fatos reconhecidos pelas convencionais think-
tanks de macroeconomia6. Ambos têm desencadeado o aumento dos preços que se
manifestam, inicialmente, como lucros em acelerada ascensão. O "apertado mercado de
trabalho" tem sido muito mais um bicho-papão do que uma realidade. Antes da
pandemia a taxa de crescimento dos salários reais era modesta, com os salários subindo
mais lentamente do que o já baixo crescimento do PIB e da inflação ao longo dos
mesmos anos. Assim, embora os ganhos médios tenham aumentado ligeiramente no
final da década de 2010 (antes do súbito pico em 2020, acompanhando o incentivo), o
crescimento dos lucros nesse mesmo período excedeu em muito o crescimento dos
salários. Por um lado, os miseráveis ganhos que os trabalhadores obtêm através do
aumento salarial tendem, com o tempo, a lhes ser arrancados pela inflação, e isso cria a
impressão de que lucros forjados por preços inflacionados não são lucros normais, e sim
4
Este é o título de um documento de estratégia real apresentado no âmbito do jornal teórico interno do
DSA [Socialistas Democráticos da América]: Neil Taylor, "How to Fund a People's Climate Revolution",
Fórum Socialista, Inverno de 2019. https://socialistforum.dsausa.org/issues/winter-2019/how-to-fund-a-
peoples-climate-revolution/
5
Joseph Politano, “The Life, Death and Zombification of the Phillips Curve”, Apricitas Economics, 16 de
Outubro de 2021. https://www.apricitas.io/p/the-life-death-and-zombification?s=r; Ekaterina V. Peneva
and Jeremy B. Rudd, “The Passthrough of Labor Costs to Price Inflation”, Journal of Money, Credit and
Banking, Volume 49, Issue 8, 16 de Novembro de 2017. pp. 1777-1802.
6
Alan FitzGerald, Krzysztof Kwiatkowski, Vivien Singer and Sven Smit, “Global Economics
Intelligence executive summary, April 2022”, McKinsey & Company, 9 de Maio de 2022.
https://www.mckinsey.com/business-functions/strategy-and-corporate-finance/our-insights/global-
economics-intelligence-executive-summary-april-2022
um tipo especial de "extorsão lucrativa"[profit gouging]. A princípio essa hipótese
parece resistir até mesmo à evidência. Após um pico nos ganhos reais em 2020, um
segundo pico, igualmente repentino (e ainda em ascensão), é observado nos lucros
brutos das corporações não-financeiras (ver Figura 1). Embora os ganhos reais dos
trabalhadores tenham crescido discretamente de 2014 em diante, os lucros totais no
setor não-financeiro têm sido mais ou menos constantes de 2012 a 2020, quando a
pandemia provocou uma pequena queda. Logo após, no entanto, os lucros dispararam,
crescendo em um único ano o mesmo que tinham crescido em toda meia década que
precedeu a Grande Recessão. Em seu conjunto, e por si só, o aumento dos lucros totais
das corporações pode responder por talvez metade do recente aumento dos custos, em
média7.

Figura 1

O restante só pode ser explicado em função das causas imediatas originais, que
são, essencialmente, limites à produção. Contudo, mesmo considerando que metade da
atual onda inflacionária seja impulsionada pelo aumento dos lucros corporativos,
7
Esta estimativa se baseia numa síntese de vários estudos que examinam a contribuição de vários fatores
para a recente onda inflacionária. Por exemplo: Josh Bivens, “Corporate profits have contributed
disproportionately to inflation. How should policymakers respond?”, Economic Policy Institute, 21 de
abril de 2022; https://www.epi.org/blog/corporate-profits-have-contributed-disproportionately-to-
inflation-how-should-policymakers-respond/; Celasun Oya, Niels-Jakob H Hansen, Aiko Mineshima,
Mariano Spector and Jing Zhou, “Supply Bottlenecks: Where, Why, How Much, and What Next?”,
International Monetary Fund, 17 de Fevereiro de 2022.
https://www.imf.org/en/Publications/WP/Issues/2022/02/15/Supply-Bottlenecks-Where-Why-How-
Much-and-What-Next-513188?cid=em-COM-123-44313
arrisca-se dizer que este aumento de lucros é um desdobramento da capacidade não
controlada dos monopólios manipularem os preços de uma forma que é, por assim dizer,
menos "justa" do que os métodos habituais de fazer dinheiro. No entanto, e no fim das
contas, o pico dos lucros não tem sido simplesmente resultado de empresas gananciosas,
mesmo em setores extremamente monopolizados como o petróleo, que se recusam a
expandir a produção, apesar de sua capacidade para fazê-lo, reduzindo "artificialmente"
a oferta para aumentar os preços. Em muitos casos, há setores que têm sido incapazes
de expandir a produção de forma lucrativa, exatamente em função desses problemas de
oferta. Para mencionar o mais proeminente exemplo, a indústria petrolífera tem, até
hoje, optado por aumentar os preços frente à redução do abastecimento, ao invés de
fazer apostas cada vez mais incertas na capacidade das cadeias de abastecimento dos
setores de insumos necessários (como o aço e a areia) realizarem a entrega em tempo e a
preços adequados para a garantia de que os investimentos na produção expandida sejam
revertidos em lucros8. Superestimando o papel dos lucros monopolistas, então, recorre-
se a uma desproporção real na [esfera da] circulação para ocultar a fonte desta
desproporção na [esfera da] produção. Em outras palavras, detectar a mecânica por
detrás da onda inflacionária acaba por nos levar de volta à esfera da produção, onde o
impacto da epidemia e da guerra simplesmente acelerou as tendências estruturais de
longo prazo que atravessam a economia global.
Por um lado, como sublinha o historiador da economia Robert Brenner, há muito
que o crescimento se baseia em ciclos de expansão e recessão [de boom e estouro de
bolhas econômicas] nos quais o investimento flui para determinadas classes de ativos -
pense nas hipotecas subprime, ações de tecnologia ou criptomoedas - inflacionando o
preço desses ativos e, consequentemente, tornando mais provável novas rodadas de
investimento em uma bolha que se autoreforça até, por fim, terminar em uma crise.
Esses ciclos especulativos se tornaram tão importantes para o crescimento que todo um
ecossistema institucional foi desenvolvido para dar conta deles, remodelando a gestão
macroeconômica como uma espécie de “keynesianismo de preços de ativos” 9. Embora
isso possa parecer não estar relacionado a limitações no momento da produção, o
fenômeno tem sido impulsionado pela queda da lucratividade 10 nos setores não-

8
Dan Eberhart, “Supply Chain Woes, Inflation Crimp U.S. Producers’ Growth Potential”, Forbes, 2 de
Abril de 2022. https://www.forbes.com/sites/daneberhart/2022/04/02/supply-chain-woes-inflation-crimp-
us-producers-growth-potential/?sh=6ba4b7d0505d
9
Brenner, The Economics of Global Turbulence: The Advanced Capitalist.
10
A lucratividade é medida como uma taxa, geralmente a taxa de lucro ou taxa de retorno, que não deve
ser confundida com a massa de lucros brutos discutida acima. É perfeitamente possível (na verdade bem
financeiros dos países de alta renda, particularmente na indústria
manufatureira[manufacturing]11. Quando a lucratividade cai, a taxa de investimento
(especialmente o investimento "fixo" em coisas como instalações e equipamentos)
também tende a cair e o capital, em contrapartida, a desaguar em qualquer outro canal
que pareça capaz de garantir maiores retornos. Ao longo das últimas décadas, estes
setores têm sido cada vez mais aqueles em que os retornos estão ligados à inflação dos
preços dos ativos, o que também tem criado pressão para que uma quantidade crescente
de ativos sejam "financeirizados", permitindo que sejam mais facilmente negociados e
alavancados (aumentando sua "liquidez") a fim de que possam funcionar como formas
alternativas de dinheiro, mas com retornos ainda maiores.
Embora a argumentação que relaciona a queda da lucratividade industrial à
crescente financeirização seja frequentemente associado com (espantalhos) marxistas
fazendo alegações apocalípticas sobre o iminente colapso econômico, a tendência básica
é, de fato, uma característica tão amplamente reconhecida em nosso atual cenário
econômico que geralmente não merece qualquer menção explícita. O ponto central do
argumento - os retornos geralmente decrescentes sobre o investimento, em média, por
todas as linhas da indústria manufatureira - não só escapa à alguma imaginada
"heterodoxia" como é, essencialmente, lugar comum em toda a literatura econômica
convencional, utilizada para dar conta de tudo, da globalização e [modelos de]
offshoring ao crescimento do setor de serviços. Michael J. Howell, um doutor em
economia que trabalha como diretor de uma grande firma de consultoria de
investimentos, ilustra bem a relação elementar: "a queda da lucratividade industrial e a
respectiva escassez estrutural de ativos seguros são fatores chaves por detrás da longa
trajetória de queda nas taxas de juros mundiais"12. As baixas taxas de juros têm
estimulado picos inflacionários em setores de alta liquidez, o que vem impedindo que as
taxas de crescimento econômico dos países de alta renda caiam ainda mais. Mas os
setores financeiros não são [reduzidos a] atividades meramente especulativas
divorciadas da produção, uma vez que a construção e a manutenção das cadeias de
abastecimento globais "são atividades de altíssima intensidade financeira, com
exigências pesadas tanto para o capital de giro[working capital] das empresas quanto
para o crédito bancário de curto prazo"13. Em outras palavras, a queda da lucratividade
normal) que os lucros totais aumentem mesmo quando a taxa de retorno dos investimentos diminui.
11
Robert Brenner, The Boom and the Bubble: The US in the World Economy, New York: Verso, 2003.
12
Michael J. Howell, Capital Wars: The Rise of Global Liquidity, New York: Palgrave Macmillan, 2020.
p. 46.
13
ibid, p. 146.
industrial não só impulsiona o investimento na especulação de ativos financeiros, como
também leva a uma crescente complexificação das características técnicas da produção
em si - incluindo uma mais rigorosa divisão e mecanização do trabalho dentro das
empresas, como também uma mais refinada e espacialmente dispersa divisão do
trabalho entre elas - o que exige a mediação de mecanismos financeiros ainda mais
complexos.
Por outro lado, a intensificação da concorrência industrial somada a
desacelerações econômicas mais substanciais - ambas anteriores à pandemia, mas
amplificadas por ela - nos poucos países que balizaram o crescimento da economia
global ao longo das últimas duas décadas (destacadamente a China), têm conduzido a
uma retração geral na estrutura das cadeias de abastecimento e à estagnação do
crescimento do comércio mundial. Ao “grande colapso comercial”14 desencadeado pela
crise de 2008, seguiu-se a gradual “regionalização” das cadeias de abastecimento,
anteriormente “globalizadas”. Estes são, contudo, termos ligeiramente mal empregados.
A mudança mais crucial tem sido o crescimento da demanda consumidora nos países
mais pobres, gerado tanto pela bolha (agora deflacionada) de commodities quanto pelo
processo global de “proletarização do campesinato”[depeasantization]15, através do qual
o restante dos agricultores e pastores de subsistência no mundo têm sido amplamente
forçados à dependência do mercado (não importando se a empregabilidade industrial
urbana é capaz de sustentá-los)16. Em conjunto com o repentino colapso da demanda nos
países ricos, as cadeias de abastecimento, que outrora se concentravam quase que
exclusivamente em torno das exportações para a América do Norte e Europa (durante o
auge da “globalização”), foram sutilmente redirecionadas e diversificadas ao longo da
década de 2010, a fim de abranger a proliferação de mercados finais nas "economias
emergentes", conferindo à própria produção um carácter cada vez mais regional 17.
Sendo bem claro, a tendência se mostra como uma interrupção geral no crescimento do
comércio mundial. (ver Figura 2)
14
Richard Baldwin, “The great trade collapse: What caused it and what does it mean?”, in Richard
Baldwin (Ed.), The Great Trade Collapse: Causes, Consequences and Prospects, London: Center for
Economic Policy Research. pp. 1-14. https://cepr.org/voxeu/columns/great-trade-collapse-what-caused-it-
and-what-does-it-mean.
15
Farshad Araghi, “Global Depeasantization, 1945-1990”, The Sociological Quarterly, 36(2), 1995. pp.
337–368.
16
Para mais detalhes sobre as consequências do processo e as suas ligações com mudanças em larga
escala na produção alimentar planetária, ver: Nathan Eisenberg, “Hunger Regime”, Cosmonaut, 2 de
Janeiro de 2022. https://cosmonautmag.com/2022/01/hunger-regime/#easy-footnote-bottom-158-5445
17
Gary Gereffi, “Global Value Chains in a Post-Washington Consensus World”, Global Value Chains
and Development: Redefining the Contours of 21st Century Capitalism. Cambridge: Cambridge
University Press, 2018. pp. 400-428.
Figura 2

Entretanto, a intensificação da concorrência provocou uma ulterior e


generalizada consolidação das empresas, incluindo a crescente monopolização dos
setores (de capital intensivo ou de ativos pesados) que já estavam fortemente
consolidados e uma nova onda de monopolização dentro dos setores de mão de obra
intensiva. Isto começou a mudar fundamentalmente a natureza de muitas, e
anteriormente dispersas, indústrias "sweatshop" [i.e., que possuem condições de
trabalho desumanas], com monopólios emergentes localizados em países mais pobres,
que agora mecanizam e racionalizam mais de suas linhas de produção a fim de
desafiarem os monopsônios já estabelecidos (grandes marcas e varejistas que controlam
mercados particulares devido à escala das suas compras) e reterem uma parte maior dos
lucros finais inferiores na cadeia de valor[RETAIN MORE OF THE ULTIMATE
PROFITS LOWER IN THE VALUE CHAIN]18. Estes lucros retidos são então
reaplicados em novas aquisições e expansões, frequentemente nas zonas industriais
emergentes de países ainda mais abaixo na hierarquia imperial 19. O processo é também
fractal, com a consolidação ocorrendo não apenas entre os grandes fabricantes
terceirizados[contract manufactures] (por exemplo, a empresa taiwanesa Foxconn, que
monta iPhones), mas também entre os subcontratantes (por exemplo, a empresa chinesa
18
Ashok Kumar, Monopsony Capitalism: Power and Production in the Twilight of the Sweatshop Age,
Cambridge: Cambridge University Press, 2020.
19
Documento alguns dos desdobramentos políticos destas tendências em: Phil A. Neel, “Swoosh”, Ultra,
8 de Novembro de 2015. http://www.ultra-com.org/project/swoosh/
continental Lens Technology, que fornece as telas de vidro para a produção de iPhone),
estreitando as margens de lucro e intensificando a concorrência em cada elo da cadeia.
A nível internacional, isso foi acompanhado pelo aumento da concorrência geopolítica e
comercial entre os países, com a desaceleração do crescimento da produção e do
comércio global tornando o sucesso e o fracasso uma crescente questão de soma-zero.
Embora esteja na moda culpar Trump pela chamada "guerra comercial" com a China, a
realidade é que as mesmas tensões já vinham se acumulado ao longo de toda a
administração Obama, e continuaram a se intensificar sob [o governo] Biden.
Paralelamente, de forma alguma elas são exclusividade dos EUA. Tanto o Japão como a
União Europeia, por exemplo, também têm procurado posicionamentos cada vez mais
agressivos em relação à China como parte de uma ampliação generalizada de medidas
protecionistas vistas em todo o mundo.
Isso não quer dizer, contudo, que o comércio global ou a integração econômica
tem declinado. A produção ainda é planetária. Logo, a inflação não é apenas um
problema de política interna que pode ser resolvido ou perpetuado pelos bancos
centrais. Na verdade, não apenas a eclosão da inflação do dólar estadunidense está
conectada à situação das cadeias de abastecimentos mundiais, como também as
tentativas de contê-la reverberam através do sistema financeiro global. Uma vez que o
dólar serve como moeda global de facto, os ajustes nas taxas de juros reavaliam
efetivamente o custo da dívida em toda a economia mundial, com impacto tanto no
estreitamento quanto na intensificação do que se obtém do Banco Central dos EUA. Em
outras palavras, [o dólar] marca o padrão de um açoite estalando[IT ETCHES OUT
THE PATTERN OF A LASHING WHIP]. O menor movimento do pulso - lentamente
avançado a taxa de juros em poucas frações de um percentual - propaga ondulações até
as margens mais estreitas do mercado de capitais, onde seu impacto irrompe com força
total contra a vida de dezenas de milhões de pessoas que tiveram o azar de nascer nos
confins do mundo. Se os burocratas acreditam, ou não, que são os principais
responsáveis pela gestão da oferta monetária numa economia nacional em particular,
isso é irrelevante. As consequências de suas ações sempre açoitam para além de suas
fronteiras, primeiro desestabilizando os países mais pobres e precários, onde o “boom”
de crescimento tinha sido apenas fraco. Da noite para o dia, o custo de manutenção da
dívida aumenta. O mesmo acontece com o custo de investimento de entrada (que é
usualmente denominado em dólar20). A redução mais ampla no crescimento global
significa também que o investimento decrescente em outros lugares suprime a demanda
pelas poucas commodities (nominalmente matérias primas) que compõem a maior parte
da produção dos países mais pobres.
O registro histórico aqui é relevante: em resposta à última crise inflacionária,
Paul Volcker, presidente do Banco Central dos EUA, provocou uma drástica elevação
das taxas de juros, iniciando em 1979 e culminando em 1981 (o "Choque Volcker"),
deliberadamente marcando o custo do capital e desencadeando uma recessão. Isso é
amplamente considerado o eixo decisivo que sinaliza o movimento [de abandono] das
formas de gestão macroeconômica vagamente "keynesianas", que frequentemente
incluíam estímulos fiscais e tomavam o pleno emprego (ou algo que se aproximasse
disto) como meta, em direção ao atual consenso monetarista que, ao contrário, mobiliza
o banco central na administração da oferta monetária, concentrando-se principalmente
na contenção da inflação. Mas, embora o Choque Volcker inicial tenha sido elaborado
principalmente para enfrentar a forma como a estagflação devorou os ativos dos ricos de
países de alta renda, também acabou por precipitar 21 a Crise da Dívida do Terceiro
Mundo - um colapso econômico tão grave que muitos países da África Subsaariana, por
exemplo, ainda não recuperaram os níveis de industrialização que tinham alcançado às
vésperas da crise, com rendas per capita que hoje ainda estão abaixo do pico atingido na
década de 197022. Nos EUA (e no Reino Unido, logo depois), o reajuste das taxas de
juros também acelerou as demissões em massa e o fechamento de fábricas, impactando
os setores sindicalizados da pior forma23. Em outras palavras, a última grande
intervenção na taxa de juros, feita em nome da redução da inflação, foi uma investida
nua e crua do poder de classe, sublinhando a centralidade dos interesses dos EUA na
hierarquia econômica global e forçando os trabalhadores dos países de alta renda a
assumirem os custos da reestruturação econômica - oferecendo a estes apenas um
limitado paliativo na forma de consumo e [aquisição] da casa própria financiados pela
dívida - enquanto os ricos facilmente se voltavam para novas linhas de negócios.

20
Segundo Howell (2020, p.142), cerca de 70-80% do comércio nas "economias de mercado emergentes"
é faturado em dólares estadunidenses, apesar de apenas 10-15% deste comércio ser com os EUA.
21
Walden Bello, “The capitalist conjuncture: over-accumulation, financial crises, and the retreat from
globalization”, Third World Quarterly, Volume 27, Número 8, 2006. pp. 1345-1367.
22
Pádraig Carmody, Peter Kragelund and Ricardo Reboredo, Africa’s Shadow Rise: China and the
Mirage of African Economic Development, London: ZED, 2020.
23
Samir Sonti, “The World Paul Volcker Made”, Jacobin, 20 de Dezembro de 2018.
https://jacobin.com/2018/12/paul-volcker-federal-reserve-central-bank
LUCROS
Mas se os efeitos dos ajustes na taxa de lucro não se limitam a um país,
tampouco são as causas da onda inflacionária em si. Embora as causas imediatas da
presente inflação pareçam24 incidentais e imprevisíveis - o surto de uma praga, seguido
por uma guerra -, esses fatores apenas aceleram as tendências que já estão em
movimento. Na verdade, depois de quase uma década de taxas de juros próximas a zero,
subsequentes à Grande Recessão [2008], o Banco Central dos EUA fez uma primeira
tentativa de elevar as taxas de juros, no final de 2018, como medida preventiva para
impedir a eventual inflação de um mercado de trabalho em contração e evitar o
potencial surgimento de novas bolhas econômicas. Mas a decisão foi revertida quando
os preços do mercado de ações despencaram, ameaçando aniquilar a modesta
"recuperação" em relação à Grande Recessão, meticulosamente construída sobre um
especulativo “boom” tecnológico e o autofágico ilusionismo financeiro da recompra de
ações. Em resposta, o Banco Central dos EUA fez uma igualmente decisiva correção,
reduzindo novamente as taxas de juros para quase zero, onde permaneceriam até os
primeiros meses de 2022. Foi este ciclo 2018-19 que despertou o interesse popular na
Teoria Monetária Moderna e deu início à atual série de debate sobre as atribuições do
Banco Central e a perspectiva de se "democratizar das finanças". Ainda mais
importante, a tentativa de elevar as taxas já em 2018 sinaliza que o oposto de nosso
momento inflacionário atual - quase uma década de taxas de juros extremamente baixas,
que deflacionaram o custo do capital e aceleraram o crescimento de novas bolhas de
ativos - também tem se provado cada vez mais insustentável. Estranhamente, por assim
dizer, a atual crise inflacionária é, na realidade, a expressão de uma tendência
deflacionária muito mais profunda, inerente às próprias leis de movimento do
capitalismo.
Essa tendência deflacionária é facilmente observada em uma das características
mais elementares da produção capitalista: a tendência à mecanização. A concorrência
conduz à substituição do trabalho humano por maquinários, permitindo que uma
quantidade maior de determinada mercadoria seja produzida com menor quantidade de
trabalho. Isso também estratifica o mercado de trabalho desqualificando o trabalho
realizado pela maioria dos trabalhadores, muito embora aumente a complexidade do
24
É claro que não são nada do tipo. A guerra é uma forma extrema de conflito de mercado estruturada por
desigualdades imperiais globais, e a intensificação de pandemias é um resultado da devastação
agroecológica da produção capitalista, tal como documentado em: Chuang, “Social Contagion:
Microbiological Class War in China”, Social Contagion, Chicago: Charles Kerr, 2021.
https://chuangcn.org/books/social-contagion/ch1/
trabalho qualificado. Isto permite que a administração possa não apenas tirar proveito de
reservas de mão de obra mais baratas, como também explorar toda uma nova série de
divisões sociais25. Embora os primeiros a adotarem novas tecnologias possam obter
lucros inesperados[windfall profits] ao vender um volume maior de mercadorias pelo
preço corrente pagando bem menos trabalhadores por unidade [produzida], o preço
desses produtos tende a cair à medida que as novas tecnologias vão sendo adotadas de
forma mais ampla por outros produtores. Como esse processo ocorre com facilidade
tanto nos setores de bens de consumo quanto nos setores de bens de capital, isso
também significa que o preço efetivo da mão de obra pode ser barateado ainda mais,
uma vez que os trabalhadores podem comprar uma quantidade maior de bens essenciais,
tais como alimentos, roupas e vários produtos domésticos, sem um correspondente
aumento do salário. Embora certos setores (comumente agrupados e classificados como
“serviços”) possam ser mais resistentes à transformação técnica, a tendência de longo
prazo para praticamente todas as commodities deve ser a queda dos preços se a
produção estiver avançando em ritmo acelerado. Essencialmente, é isso o que tem
ocorrido em todo o setor de bens de consumo com o surgimento da produção em massa
e, mais recentemente, a revolução logística, que tem possibilitado o barateamento de
roupas, carros, aparelhos e muitos outros produtos através da globalização, tornando a
estagnação salarial nos países de alta renda mais suportável, embora também amplifique
os ganhos salariais nos novos centros industriais pelo abafamento da inflação de preço
local que geralmente acompanha o rápido crescimento das indústrias.
Isso significa que quando a inflação ocorre fora de um contexto de rápido
crescimento industrial, ela geralmente sinaliza alguma desproporção a nível de
circulação ou algum tipo de problema na esfera da produção, limitando, antes de mais
nada, a oferta de valor. Se confinada à esfera da circulação, a inflação se concentra
tipicamente em poucos setores e assume a forma clássica de uma bolha de ativos,
geralmente centralizada em alguma combinação de bens imobiliários[real state], ações
da bolsa ou outros investimentos de capital privado[private equities]. Embora possa soar
contraintuitivo, este tipo de inflação no preço dos ativos só pode realmente surgir de
forma dimensionada em condições deflacionárias (e tende a reforçar estas mesmas
condições), uma vez que as bolhas de ativos exigem altos níveis de dívida e baixas taxas
de juros. Às vezes, a inflação confinada à circulação também pode assumir a forma

25
O estudo clássico desse fenômeno é: Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital: The
Degradation of Work in the Twentieth Century, New York: Monthly Review Press, 1974.
clássica de preços de monopólio[Monopoly pricing], onde grandes produtores
cartelizados atuam para manipular os preços que afetam diretamente apenas as
commodities que eles produzem, mas que afetam também, frequente e indiretamente, os
setores a elas relacionados; um exemplo é o pico nos preços do petróleo na década de
1970, impulsionado pelo embargo petrolífero da OPEP. No entanto, como assinalado
acima, os lucros inesperados podem assumir esta forma por razões puramente
estruturais, quando os estoques são vendidos mas a produção está restringida.
Ao longo dos últimos trinta anos, esse tipo de inflação no preço dos ativos tem
se tornado cada vez mais dominante, impulsionando o rápido aumento no fluxo
transfronteiriço[cross-border] de liquidez e mudando precisamente a forma da economia
global a fim de priorizar [operações de] "carry trades", onde (de forma simplificada)
uma dívida é contraída em moedas com baixas taxas de juros e utilizada para investir
em outras moedas ou ativos que remuneram a juros mais altos[HIGHER-YIELDING].
Também é crucial aqui o fato de que, segundo Brenner, a relativa competitividade das
diferentes moedas - com uma moeda "mais fraca" barateando efetivamente os custos de
produção e, consequentemente, tornando as indústrias manufatureiras de um país mais
competitivas no mercado global - também estrutura a hierarquia global da produção.
Áreas com acelerado crescimento industrial observam, por conseguinte, uma pressão
inflacionária (que possibilita o aumento dos salários) atraindo, simultaneamente,
investimentos no crescente setor produtivo e investimentos em portfólios puramente
especulativos que exploram o diferencial de rentabilidade - com a massa de capital que
flui para ativos especulativos frequentemente ultrapassando aquela que flui para o
tradicional IDE [Investimento Direto Estrangeiro], suprimindo ainda mais a
competitividade da indústria manufatureira e inflacionando uma bolha de ativos acima
dos lucros industriais em queda. O exemplo clássico é o desenvolvimento japonês da
segunda metade do século XX26. O fenômeno, novamente, não é nada estranho à
economia convencional. A narrativa básica de Brenner, sobre as dinâmicas de "boom e
bolha", é repetida por Tim Lee, Jamie Lee e Kevin Coldiron - todos gestores, atuais ou
antigos, de fundos de cobertura [ou multimercado][hedge funds] e outras empresas de
capital privado[private equity]. Eles afirmam que, no fim das contas, estas dinâmicas
dão origem à uma [estruturação do mercado financeiro que recompensa, ao longo do
tempo e de forma desproporcional, aqueles que adotam estratégias de investimento
26
O caso japonês é um dos vários explorados em Brenner 2003. Para uma investigação detalhada do caso
japonês, ver: Makoto Itoh, The World Economic Crisis and Japanese Capitalism, London: The
MacMillan Press, 1990.
baseadas em operações de “carry trade”, configurando um paradigmático “regime”
econômico de apoio à estas operações chamado] "carry regime" global, em sintonia com
a manutenção dos altos preços dos ativos e caracterizado por um "padrão de retorno
serrilhado" segundo o qual o crescimento relativamente suave nos retornos dos ativos
inflacionados é periodicamente intercalado por "curtos períodos de retornos
drasticamente negativos - quebras e correções [de] ‘carry’"27. Da mesma forma, os/as
cientistas sociais Lisa Adkins, Melinda Cooper e Martijn Konings descrevem o mesmo
panorama como sendo a criação de uma "economia de ativos", definida pelo fato de que
os ativos valorizam em um ritmo mais rápido do que o crescimento ou os salários,
criando um quadro inteiramente novo de desigualdade, menos vinculado aos salários ou
retornos sobre o investimento produtivo e mais ao acesso a fluxos de renda28.
O surgimento deste regime de "carry"[carry regime] ou "economia de ativos" é
frequentemente narrado como sendo uma mudança desencadeada por uma constelação
de políticas estatais "neoliberais", elaboradas para favorecer os interesses dos ricos à
custa dos trabalhadores e que podem ser sintetizadas pelos regimes Reagan, nos EUA, e
Thatcher, no Reino Unido. Visto que o Choque Volcker é frequentemente considerado o
marco inicial da ofensiva neoliberal (sendo seguido por usos semelhantes das altas taxas
de juros como forma de disciplinar o trabalho em outros lugares), o contraste entre um
período "keynesiano" de altos gastos públicos, altos salários e alta inflação, e um
período "neoliberal" em que todas as três características são invertidas pode parecer ser
óbvio, à primeira vista. De modo similar, é evidente a maior centralidade atribuída às
finanças na economia internacional durante o mesmo período, produzindo uma forte
elevação na liquidez global assim como a proliferação de uma miríade de instrumentos
financeiros. Com a lucratividade estagnada nos países centrais em "desindustrialização",
as finanças, os seguros e os bens imobiliários (juntamente com as bolhas em ações de
tecnologia e o boom inusitado do petróleo) se tornaram os únicos setores capazes de dar
sustentação às já modestas taxas de crescimento. Em tais relatos, as dinâmicas
estruturais são frequentemente reconhecidas como restrições ou forças inerciais, mas a
responsabilidade final recai novamente sobre os "decisores políticos" que estão,
essencialmente, escolhendo entre dois mundos possíveis: a) o mundo keynesiano da

27
Tim Lee, Jamie Lee and Kevin Coldiron, The Rise of Carry: The Dangerous Consequences of Volatility
Suppression and the New Financial Order of Decaying Growth and Recurring Crises, New York:
McGraw-Hill, 2020. p. 4.
28
Lisa Adkins, Melinda Cooper, and Martijn Konings, The Asset Economy, Cambridge: Polity, 2020.
"inflação deflacionária"29 onde os preços dos ativos desvalorizam, mas (assim se espera)
o crescimento salarial e o gasto público aceleram em ritmo acelerado, permitindo que se
aproxime do pleno emprego à custa dos ganhos do capital; ou b) o mundo neoliberal de
deflação inflacionária, onde os preços dos ativos valorizam mais rápido do que os
salários, ou o crescimento econômico e os gastos públicos são suprimidos, permitindo
que os ganhos de capital disparem à custa da renda do trabalho.
Neste esquema, a tendência de inflação em toda a economia acompanha a
passagem entre os dois mundos. Se o sucesso deflacionista do Choque Volcker abriu
violentamente um portal político que leva do universo keynesiano ao neoliberal, então
algum tipo de choque inflacionário deve ser necessário para abrir uma porta para o
futuro "socialista democrático" de pleno emprego e "finanças públicas para o povo".
Isso implicaria necessariamente o fim da economia de ativos e a inversão do regime de
“carry”. Mas com o que exatamente isso se pareceria? De acordo com os gestores de
fundos multimercado, "é provável que o fim absoluto do regime de ‘carry’ seja marcado
ou por um colapso sistêmico que encerre o papel dominante dos bancos centrais, ou pela
inflação galopante, ou por ambos”30. As duas opções também estão interligadas aqui, já
que a própria tentativa de se evitar o colapso sistêmico - talvez marcada por um choque
"exógeno" como uma pandemia, uma guerra, um grande levante popular ou uma série
de catástrofes ecológicas - muito possivelmente causaria inflação devido ao aumento de
gastos em meio a paralisações econômicas, com os efeitos se propagando através das
cadeias de abastecimento mesmo depois que a crise imediata tenha acabado. Por
exemplo, para evitar um colapso deflacionário, "uma medida extrema seria,
provavelmente, a monetização direta dos gastos do governo: enviar recursos financeiros
diretamente a cada família ou indivíduo [...]"31. Não apenas foi exatamente isso o que
aconteceu nos anos da pandemia, como também expõe o teor geral dos planos de Renda
Básica Universal propostos por muitos progressistas e socialistas democráticos hoje32.
Em último caso, os gestores de fundos multimercado concluem que uma série de
intervenções do Banco Central e do Tesouro dos EUA seria capaz de evitar o colapso
sistêmico. Isso nos deixa com a outra alternativa, na qual "o regime de ‘carry’ será
29
Este termo vem da descrição de Paul Mattick da teoria keynesiana e da crise estagflacionária da década
de 1970, em: “Deflationary Inflation,” Economics and the Age of Inflation, New York: M. E. Sharpe,
1978.
30
Lee, Lee e Coldiron, 2020. p. 210.
31
Ibid, p. 213.
32
Para uma apresentação crítica destes planos que documenta a sua crescente popularidade, ver: Alyssa
Battistoni, “The False Promise of Universal Basic Income”, Dissent, primavera de 2017.
https://www.dissentmagazine.org/article/false-promise-universal-basic-income-andy-stern-ruger-bregman
finalmente encerrado pela alta inflação", de modo que, “a partir de uma perspectiva
macro [...] um importante sinal de que o regime de ‘carry’ está chegando ao fim seria o
surgimento da própria inflação.33" O mais comum é que a inflação surja gradualmente,
acompanhada pelo aumento da volatilidade financeira. Contudo, "uma vez que a alta
inflação esteja firmemente estabelecida"34 e já não responda à política do Banco Central,
fica difícil visualizar como o regime de “carry” poderia continuar se sustentando.
Enquanto isso, as linhas gerais de um hipotético regime "anti-carry” que poderia
vir a reboque são também um tanto previsíveis, uma vez que são justamente o oposto do
regime atualmente praticado: alta inflação geral, desvalorização dos ativos, "redução da
importância dos mercados financeiros"35, acentuado crescimento da oferta monetária
real36 (impulsionado pelo estímulo, e mesmo pela impressão direta de moeda, mas
também pela expansão da demanda por crédito bancário, já que os encargos da dívida
seriam barateados ao longo do tempo), crises marcadas por uma espiral inflacionária
fora de controle (ao invés de uma deflação rápida que registra o “padrão serrilhado” de
uma quebra de “carry”[carry crash]) e um colapso na demanda por ativos semelhantes a
dinheiro, ou mesmo por dinheiro de verdade, apesar do crescimento da oferta monetária
(uma vez que a inflação assegura que reter dinheiro resultará em perdas no longo
prazo). A nível internacional, tal regime provavelmente seria marcado pelo declínio da
liquidez global, a fragmentação do comércio mundial, o crescente conflito entre os
blocos monetários competindo pelo espaço deixado por um dólar em declínio, e novas
crises inflacionárias florescendo em todo o mundo, muito provavelmente consumindo as
economias mais fracas primeiro.
No fim, a alternativa inflacionária ao presente mundo pode aparentar ser um
pouco melhor. Isso porque os dois não são, na verdade, mundos separados, mas
meramente dois hemisférios de um só planeta em rotação. Enquanto o sol pode
gradualmente se pôr em um e nascer no outro, o império do capital está sempre banhado
em luz. Assim, as discussões acadêmicas da moda sobre a "morte do neoliberalismo"
33
ibid, p. 214.
34
34.
35
ibid, p. 165.
36
A oferta monetária é dividida em vários agregados monetários, distintos e aninhados. O agregado
monetário mais básico é o M0, que inclui dinheiro físico e reservas do Banco Central. A impressão de
dinheiro pelo Tesouro e certas formas de estímulo do Banco Central podem aumentar o M0. Mas um
agregado monetário mais amplo e mais comummente utilizado é o M1, que inclui o M0 mais depósitos à
vista (dinheiro mantido em contas bancárias que pode ser sacado à vontade) e cheques de viagem. O M1 é
significativo não só porque a maior parte do dinheiro hoje em dia é mantida em contas bancárias e não em
dinheiro vivo, mas também porque os bancos efetivamente criam dinheiro através do empréstimo de
excedentes de reservas. Assim, o M1 pode crescer não só através da impressão de dinheiro e outras
formas de estímulo fiscal, mas também através da expansão do crédito bancário.
pouco acrescentam, se é que acrescentam algo, além da observação banal de que o sol
às vezes se põe. Enquanto isso, parece provável que um mundo inflacionário combine
as piores características da atualidade com as mais sombrias projeções no horizonte: alta
inflação ao lado de alta desigualdade, crescimento estagnado ao lado de salários
estagnados, guerras comerciais e guerras permanentes lado a lado. Como seria de se
esperar, os gestores de fundos multimercados pelo menos oferecem um diagnóstico
direto, sublinhando a realidade do poder de classe independentemente de qual porta
quereríamos que os "decisores políticos" abrissem à força: "do ponto de vista da
sociedade como um todo, e não apenas dos especuladores financeiros, tanto o regime de
‘carry’ quanto o hipotético regime ‘anti-carry’ terão a característica de que aqueles com
os maiores recursos vencerão"37.

PODER
Em última análise, porém, a questão não é esquadrinhar colinas escuras em
busca de monstros desconhecidos. Não há uma causa "verdadeira" da inflação à espreita
na teoria da pressão salarial ou no apelo à ganância corporativa. Inflação e deflação são
tendências de preço epifenomenais que, em maior ou menor escala, assemelham-se a
marés e ondas propagadas pela superfície do imenso mar que é o nosso poder produtivo
total em nível planetário, e que Marx chamou de valor, uma vez que é, de fato,
organizado pelas relações sociais que abrangem toda a espécie humana. O que
pensamos como "política" deve, em última análise, estar de acordo com as demandas da
produção planetária. Política é, portanto, uma discussão sobre as condições, os termos
da situação com reféns que caracteriza a economia, não uma forma de dar fim a ela. Em
outras palavras, todo o processo de fazer política ocorre dentro dos limites de um jogo
fraudulento, com espirais inflacionárias e deflacionárias - ou simplesmente a "crise
econômica" em geral - sinalizando os momentos em que a relação básica de poder,
intrínseca ao jogo, deve ser reafirmada. Trata-se de um constante rearranjo, no qual as
"contratendências", que atrasam a queda [tendencial] da lucratividade, possibilitam a
reprodução das mesmas relações básicas [de poder] que estruturam a sociedade
capitalista, através da reinvenção contínua dessas relações. Embora esse processo pareça
gerar constantemente novas "variedades de capitalismo" (sejam elas divididas por
década ou fronteiras nacionais), na verdade, pouco muda38. Só existe uma, e jamais
37
ibid, p. 173.
38
A ideia de "variedades do capitalismo" tem sido central para o recente reavivamento da
(autodenominada) pesquisa em "economia política" no âmbito das ciências sociais. O conceito foi
existiu outra, sociedade capitalista. A longo prazo, a expansão e o desenvolvimento
desta sociedade mudam as condições nas quais ela deve sobreviver, mas não mudam
suas leis gerais de movimento. Novos arranjos institucionais, novos centros geográficos,
o surgimento de novas tecnologias - tudo isso, no fim das contas, são reiterações
adaptativas daquelas mesmas leis. A variação incidental deve ser distinguida das
mudanças mais fundamentais provocadas pelo movimento dessas leis constantes no
tempo e no espaço. Mudanças que só são identificáveis nas tendências seculares
observadas a longo prazo: o constante crescimento de escala, complexidade e extensão
geográfica da produção (acompanhadas por intervenções estatais mais intrincadas,
monopólios maiores, cadeias de abastecimento mais complexas que exigem uma
coordenação mais detalhada, a intensificação do impacto geomorfológico da produção,
a penetração da lógica de mercado em novas esferas da vida, etc.); a crescente
capacidade de produzir mais bens com menos trabalho e a subsequente tendência de
excluir maiores parcelas da população humana da atividade produtiva (Marx entendeu a
primeira condição como a principal forma de expandir a mais-valia relativa, da qual a
segunda é uma consequência, constituindo a "lei geral da acumulação capitalista" que
hoje aparece no aumento da "informalidade", da "precariedade" e da "economia de
serviços"); e a ruptura cada vez maior entre as requisitos materiais e energéticos do
complexo de produção planetário e os ciclos da matéria e da energia que compõem o
sistema terrestre (bem evidente hoje na forma de mudanças climáticas, mas melhor
entendido como uma catástrofe ecológica generalizada que engloba a extinção em
massa, o desmatamento, o esgotamento gradativo dos sistemas solo, etc.). Essas
tendências seculares também moldam e remodelam a característica mais constante da
sociedade capitalista - o conflito de classes - recalibrando constantemente as
perspectivas de mudança revolucionária.
Colapsos do sistema de preços, sejam inflacionários ou deflacionários, implicam
em duas consequências aparentemente opostas. Do ponto de vista da reprodução do
sistema, eles são ao mesmo tempo métodos de reafirmar a estabilidade como momentos
em que todas as compulsões silenciosas que estruturam a sociedade capitalista se
tornam temporariamente audíveis. A despeito de todos os debates técnicos sobre a
mecânica da inflação e dos juros, ou das escassas esperanças de que a política venha a
ser usada para "o povo", a gestão macroeconômica é (e nunca será nada além de) uma

originalmente exposto em: Peter A. Hall and David Soskice, Varieties of Capitalism: The Institutional
Foundations of Comparative Advantage, Oxford: Oxford University Press, 2001.
faca em seu pescoço. A taxa de juros sobe quase nada e a inflação devora o aumento em
seu salário. A taxa de juros desce só um pouco e os fervilhantes preços dos ativos
aumentam os aluguéis, mantendo a casa própria sempre fora do seu alcance. No
presente momento, estamos sendo abençoados com o pior dos dois mundos. Os altos
preços dos ativos têm permanecido elevado mesmo com o custo dos alimentos e do gás
subindo. Os efeitos são inegáveis, com os exemplos mais flagrantes visíveis nos limites
opostos da divisão de classes. Em 2021, os 10% mais ricos da população mundial
possuíam 76% de toda a riqueza, em comparação com os meros 2% que fica com a
outra metade da população39. A desigualdade de riqueza não só aumentou em ritmo
acelerado durante a pandemia, como também se observou uma mais rápida
concentração de riqueza precisamente no topo [da pirâmide]: no mesmo ano, algo de
11% de toda a riqueza era detida por apenas 0.01% da população, um aumento de um
[ponto] percentual cheio[a full percentage] em relação ao ano anterior 40, com os (cerca
de 2.775) bilionários41 no mundo vendo sua quota aumentar de 2% em 2020 para 3,5%
em 2021, e o crescimento total de sua riqueza acumular algo de 4,4 trilhões de dólares.
Enquanto isso, mais de 120 milhões de pessoas foram empurradas para a extrema
pobreza, destruindo praticamente uma década inteira de (modestos) ganhos de renda
entre os mais pobres do mundo42. Esse é o contexto no qual a atual explosão
inflacionária começou.
Embora essas tendências sejam, como sempre, mais extremas quando medidas a
nível global, isso não significa que pessoas em países mais ricos estejam imunes ao
impacto. A divisão de classe é uma linha de falha que se abre abaixo e para além de
cada fronteira. Às vésperas da pandemia, o único censo sistemático da população em
situação de rua dos EUA - a contagem anual "Point-in-Time" (PIT) do Departamento de
Habitação e Desenvolvimento Urbano, amplamente reconhecida por fazer uma
subestimativa43 do número real, e destinada a medir um espectro mínimo ao invés da
39
De acordo com o Relatório Mundial de Desigualdade de 2022, produzido pelo Laboratório Mundial de
Desigualdade: https://wir2022.wid.world/
40
Ibid.
41
Tal como medido pela Lista Forbes Billionaires para 2021.
42
Fracisco H. G. Ferreira, “Inequality in the time of COVID-19”, International Monetary Fund, Verão de
2021. https://www.imf.org/external/pubs/ft/fandd/2021/06/inequality-and-covid-19-ferreira.htm
43
Em muitos condados [estadounidenses], os governos locais realizam as suas próprias e mais rigorosas
estimativas da população sem-teto, quase sempre excedendo, muitas vezes substancialmente, as suas
contagens PIT determinadas pelo Departamente de Habitação e Desenvolvimento Urbano (HUD). Por
exemplo, em 2020, a contagem PIT realizada pela Autoridade Regional dos Sem-Teto no Condado de
King, WA, registrou apenas 13.368 sem-teto, enquanto um segundo e mais rigoroso inquérito da mesma
agência registou 40.800 sem-teto (quase 2% da população total do condado no mesmo ano). Ver: Greg
Kim, “How many homeless people are in King County? Depends on who you ask,” The Seattle Times, 4
de julho de 2022. https://www.seattletimes.com/seattle-news/homeless/how-many-homeless-people-are-
tendência central - contou um total de 580.466 pessoas em situação de rua em todo o
país, das quais cerca de 61% tinham acesso a abrigos, com as demais [permanecendo]
desabrigadas44. As maiores taxas per capita foram observadas em cidades com os
maiores preços imobiliários45. Esse vínculo entre a inflação de ativos e as pessoas em
situação de rua não deveria causar surpresa. De acordo com um estudo recente, em vinte
dos maiores centros urbanos do país “um aumento de cem dólares no preço médio do
aluguel estava associado com um aumento de cerca de 9% na taxa estimada de pessoas
em situação de rua”46. Contagens populacionais mais rigorosas47, conduzidas pelas
autoridades locais das regiões consideradas, indicam que 1-3% da população total não
tem onde morar, com muitos dos Estados48 observando parcelas substancialmente
maiores da população desabrigada, acompanhando maiores taxas de pessoas em
situação de rua nas áreas suburbanas e rurais. Após a eclosão da pandemia, contudo,
duas coisas aconteceram: primeiro, na tentativa de implementar medidas de
distanciamento social, muitos abrigos reduziram o número total de camas e buscaram
esquemas alternativos de assistência; segundo, em 2021, o Departamento de Habitação
e Desenvolvimento Urbano simplesmente cancelou toda a contagem a respeito da
população desabrigada. Essa decisão foi tomada a despeito de seus próprios dados, que
mostravam um crescimento mais rápido no número total de indivíduos desabrigados que
no total de abrigados, mesmo antes da pandemia49.

in-king-county-depends-who-you-ask
44
Meghan Henry, Tanya de Sousa, Caroline Roddey, Swati Gayen, e Thomas Joe Bednar, “The 2020
Annual Homeless Assessment Report (HAR) to Congress”, The U.S. Department of Housing and Urban
Development, janeiro de 2021. https://www.huduser.gov/portal/sites/default/files/pdf/2020-AHAR-Part-
1.pdf
45
Gregg Colburn and Clayton Page Aldern, Homelessness is a Housing Problem: How Structural
Patterns Explain U.S. Patterns, Oakland: University of California Press, 2022.
46
GAO, “Homelessness: Better HUD Oversight of Data Collection Could Improve Estimates of
Homeless Population”, United States Government Accountability Office, julho de 2020.
https://www.gao.gov/assets/gao-20-433.pdf
47
Ver Kim 2022, acima, para uma comparação realizada em King County, WA. Para uma análise mais
detalhada do problema com a contagem PIT em New York, amplamente considerada como padrão de
excelência para o método, ver Ricci Dipshan, “How Many Street Homeless? NYC’s Tallies Leave the
Question Open”, CityLimits, 13 de outubro de 2015. https://citylimits.org/2015/10/13/how-many-street-
homeless-nycs-tallies-leave-the-question-open/
48
O [número] total de pessoas em situação de rua é maior nas zonas costeiras urbanas, que são mais caras,
elevando as taxas para todos os estados da costa oeste, bem como para os do corredor nordeste. O
[número de] sem-tetos que não tem acesso a abrigos é mais elevado sobretudo nos Estados do oeste, com
a Califórnia liderando em quase todas as medições. Em contraste, a cidade de Nova York continua a ter
um número total elevado de pessoas em situação de rua, mas os esforços agressivos para expandir os
abrigos ao longo da década de 2010 fizeram com que a população desabrigada fosse substancialmente
mais baixa do que nas cidades da costa oeste desde a última contagem pré-pandêmica. Mesmo em Nova
York, contudo, a pandemia parece ter claramente aumentado o número de pessoas que vivem nas ruas,
levando a uma nova série de agressivas varreduras no primeiro mandato do prefeito Eric Adams.
49
Meghan Henry, Tanya de Sousa, Colette Tano, Nathaniel Dick, Rhaia Hull, Meghan Shea, Tori Morris,
and Sean.
Essa crise habitacional, intrinsecamente ligada à inflação de ativos, é agora
acompanhada por uma crescente crise em outros bens de subsistências na medida em
que a inflação alcança os combustíveis e os alimentos. Assim, com a pandemia, e o
subsequente estouro inflacionário, também se observou um drástico aumento dos crimes
de sobrevivência - tais como furtos de alimento ou de fórmulas infantis - e uma
presumida maior difusão de comércio no mercado clandestino, tal como a revenda de
combustível desviado ou negociações com conversores catalíticos roubados. A imprensa
tradicional põe a culpa por todo este aumento de criminalidade nas pessoas em situação
de rua. Mas quando os custos, cada vez mais elevados, tornam as condições de vida
insustentáveis, mais e mais pessoas buscarão formas alternativas de obter os meios
necessários à sua sobrevivência. Essas alternativas não devem ser romantizadas,
tampouco vistas como uma forma de escapar aos limites do mundo capitalista. Elas são,
pelo contrário, as terríveis opções de um último socorro, geralmente submetidas a
relações predatórias de segunda mão, controladas por uma ordem diferente de
capitalistas do mercado clandestino. O resultado é, geralmente, a tragédia - o lento
suicídio reacionário dos despossuídos se precipitando sobre os ligeiramente menos
despossuídos, em um desdobramento fractal de traição. Mas essas crescentes rupturas
no status quo também revelam o potencial para o surgimento de novas formas de poder
proletário, se as diferentes batalhas por subsistência puderem ser sintetizadas e
suplantadas em uma luta mais ampla. Da mesma forma, o aspecto mais esperançoso de
qualquer colapso no sistema de preços é o retorno do espectro da expropriação, a mais
distintiva característica da prática política comunista.
Isoladamente, tanto a ilegalidade quanto as várias formas de organização política
autoconsciente - desde atividades “autônomas”, como a ajuda mútua, até os projetos
institucionais do sindicalismo formal e o ativismo político - tendem a permanecer
segregadas, entre si e da população em geral, romantizadas por alguma facção política
dentro da ampla, mas superficial, “esquerda”. Permanecendo separadas, essas atividades
não apenas são fracas como frequentemente prejudicam umas às outras de forma ativa.
De um ponto de vista mais amplo, contudo, o potencial para construir um poder
comunista é tão visível no crescente interesse popular pela sindicalização quanto na
semi-improvisada, semi-organizada rede de saques formada através da revolta [pela
morte] de George Floyd. No fim das contas, a luta de classes sempre renasce nas
batalhas pelos termos da subsistência. Mas também se extingue rapidamente quando
confinada à mera negociação das condições de sobrevivência. Ela só evolui para algo
maior quando os muros que dividem os vários acessos à subsistência são derrubados. Se
tivéssemos que escolher um único princípio segundo o qual os comunistas poderiam se
orientar e avaliar o sucesso ou o fracasso de seus muitos esforços, poderia ser algo
assim: pequenas expropriações devem evoluir para expropriações maiores. Em outras
palavras, verdadeiras juntas comunistas só podem surgir quando as formas rudimentares
de organização, gestadas nessas lutas isoladas de subsistência, evoluem para além de
seus limites iniciais, estilhaçando as separações que prevalecem entre os diferentes
caminhos políticos - ilegalidade versus legalidade, política versus autonomia - e, assim,
alcançando também as divisões entre os despossuídos. Claro, isso não é possível quando
a luta permanece exclusivamente subcultural, nem quando é buscada meramente dentro
das instituições existentes. Assim, o primeiro princípio implica um outro,
complementar: qualquer estratégia política que tente desviar, negar ou fugir da
necessidade de expropriação, não é propriamente comunista.
Com grande probabilidade, a atual explosão inflacionária irá retroceder. A
inflação não se consolidará de forma imediata e as atuais obstruções na cadeia de
abastecimento serão atenuadas. Nos EUA, o Índice de Preços ao Consumidor já
apresenta uma tendência levemente decrescente, e o Banco Central deu a entender que a
próxima rodada de aumento das taxas possivelmente será acompanhada de quedas em
2023. Embora seja provável que as áreas mais diretamente afetadas pelos atuais choques
[no fornecimento] de energia, decorrentes da guerra na Ucrânia, venham a ter maior
dificuldade em reverter a tendência - o que fica evidente no amplo declínio dos salários
reais em toda a Europa, por exemplo, e na perspectiva de um frio e escuro inverno por
lá - parece que ainda não há vontade política para esvaziar a bolha de ativos que
sustenta a (lento, mas não irrelevante) elevação das taxas dos países de alta renda.
Assim como o protecionismo, a regionalização das cadeias de abastecimento, o
crescimento do poder de monopólio dos fabricantes terceirizados e a ampliação das
sanções políticas continuam a restringir a expansão do comércio mundial e de outros
segmentos do mercado de capitais, enquanto isso, o risco de um novo estouro
inflacionário só aumenta. De modo semelhante, o desencadeamento das catástrofes
ecológicas e de outras perturbações aparentemente “exógenas” vêm se tornando
assuntos mensais. Assim como o Índice de Preços ao Consumidor começou a cair do
pico alcançado no verão, por exemplo, o Paquistão sofreu inundações devastadoras que
deixaram um terço do país debaixo d’água, deslocando milhões de pessoas e destruindo
milhões de acres de terras cultivadas - o que pode vir a impactar os preços mundiais do
trigo, algodão e, possivelmente, do arroz. Por um lado, o atual regime de “carry” já está
apresentando retornos menores, e os níveis extremos de desigualdade, observados tanto
nas cidades mais ricas do mundo como entre os países mais ricos e os mais pobres,
estão tornando sua manutenção cada vez mais intragável. Por outro lado, as quebras de
“carry” deflacionárias que marcaram os últimos trinta anos serão, agora, acompanhadas
por crises inflacionárias mais frequentes, ligadas à lenta fragmentação do comércio e da
produção.
No extremo, essa fragmentação assumirá o aspecto de políticas mercantilistas
agressivas que buscam catalisar a competitividade industrial (como aquelas que estão
sendo buscadas na Índia) ou até mesmo cartelizar os setores das commodities mais
cruciais (por um lado o petróleo, por outro o lítio), possivelmente de forma combinada
com a (sempre parcial) desvinculação política de economias nacionais inteiras (o
exemplo mais agudo é a Rússia, embora o Brexit ilustre um caso mais suave do mesma
trajeto básico). As circunstâncias das mudanças climáticas, entretanto, justificarão tais
políticas em termos de resiliência, com cada região [sendo] transformada numa fortaleza
verde que deve, para sua própria sobrevivência, erguer muros contra a onda crescente de
refugiados climáticos, assegurar as suas próprias fontes soberanas de energia e
alimentos e buscar o aumento das infraestruturas policiais e militares, consideradas
necessárias para a sobrevivência face à agitação interna e às ameaças estrangeiras. Estas
tendências só irão levar à uma maior sobrecapacidade das indústrias centrais,
pressionando para baixo o crescimento global mesmo que consigam elevar as taxas de
crescimento dos poucos vencedores em um jogo da soma-zero. Como no passado, o
renovado empurra-empurra geopolítico dentro da hierarquia imperial irá novamente
assumir a forma de uma luta justa nos países forçados a ocupar posições inferiores na
grande pirâmide de extração de mais-valia. Em nome do desenvolvimento, eles
utilizarão métodos supostamente "socialistas", tais como o planejamento estatal e a
subsidiação de indústrias chaves50, para assegurar a ascendência de suas classes
dominantes nacionais contra o imperium em decomposição. Em tais momentos, as

50
Todos os países da sociedade capitalista utilizam estes métodos em diferentes níveis e são, portanto,
"economias mistas" em termos de economia convencional. O planeamento industrial, a subsidiação
agressiva e o controle intenso sobre a concorrência comercial e os mercados de capitais têm sido sempre
[políticas] particularmente anunciadas em [países] de "desenvolvimento tardio" que tentam promover
rápidos booms industriais. Quando estes países utilizam tais políticas, é comum que sejam erroneamente
retratados como tendo adoptado uma forma de "capitalismo de estado" (ou mesmo de "socialismo") que é
distinta do "verdadeiro" capitalismo. Para uma boa visão histórica geral do fenômeno, ver: Ernest Ming-
tak Leung, “Developmentalisms: The forgotten ancestors of East Asian developmentalism”, Phenomenal
World, 18 de setembro de 2021. https://www.phenomenalworld.org/analysis/developmentalisms/
divisões entre os despossuídos se aprofundam em escala nacional e internacional. O
poder comunista é construído pela derrubada de tais divisões, pela recusa em
permanecer confinado às lutas de subsistência ou tomar partido quando um poder
imperial menor desafia um maior, preferindo a criação de infraestruturas subterrâneas
que integrem o legal e o ilegal, o autônomo e o institucional, e conectem as forças
proletárias “nacionais”, por todos os lados de cada fronteira em guerra, sob a bandeira
de expropriações cada vez maiores, suplantando todas essas categorias em uma
concepção mais ampla de poder político - e talvez, apenas talvez, arrancando a faca em
nosso pescoço para empunhá-la contra os bastardos sanguessugas que
parasitam[BLOOD-FATTENED BASTARDS WHO OWN] cada polegada deste
mundo em agonia.

Phil A. Neel é um geógrafo comunista radicado no Noroeste do Pacífico. É autor de


Hinterland: America's New Landscape of Class and Conflict (2018), um diário de
campo publicado pela Reaktion (Londres), agora em brochura.

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