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Terrorismo em Paris e a Guerra Mundial

Original: https://brooklynrail.org/2015/12/field-notes/editors-note-dec15

Tradução R. d’Arêde

Cresci em torno de adultos que sobreviveram à 2ª Guerra Mundial – deixando a Europa


a tempo, escapando da ou recusando a conscrição nos Estados Unidos ou estando entre
aqueles que tiveram a sorte de sobreviver a um período em um campo de concentração.
Muitos destes esperavam uma nova guerra mundial na década de 1950, tendo em vista a
ferocidade da rivalidade entre os EUA e a URSS, e estavam particularmente
apreensivos com a iminência de um holocausto nuclear. Mais tarde, conheci pessoas que
tinham trocado a Europa pela América do Sul para se protegerem da precipitação
radioativa quando a guerra começasse; e, pela mesma razão, outras que pensaram em se
mudar – ou realmente emigraram – para a Austrália.
Como se viu, o esperado conflito nuclear entre as grandes potências não aconteceu. Em
vez disso, tivemos – desenvolvendo-se a partir das guerras anticoloniais de libertação
nacional que se seguiram à 2ª Guerra Mundial – uma série de guerras por procuração
assassinas na Ásia, África e América Central, onde conflitos locais foram provocados
ou ampliados pelo envolvimento das grandes potências. O colapso da União Soviética,
em 1989, levou a uma aparente diminuição da ameaça [do princípio] de destruição
mútua assegurada pelas grandes potências, embora tanto a Rússia quanto os Estados
Unidos continuassem a manter frotas de aviões, navios e mísseis equipados com
armamento nuclear, enquanto o número de potências nucleares aumentava. A guerra
continuou na periferia das áreas economicamente desenvolvidas, conforme as forças
etnicamente orientadas que lutavam para reorganizar o controle dos Bálcãs, África
Central e vários países asiáticos, enquanto o que equivalia a gangues do tamanho de um
exército lutavam pelo controle de recursos naturais – diamantes e outros minerais,
petróleo, pastagens – na África e nas rotas de drogas na América Central e do Sul.
Ao mesmo tempo, é claro, as nações “avançadas” não haviam desistido de seu interesse
na guerra. Na última década da Guerra Fria, os EUA, além de seus persistentes e
gigantescos gastos militares, investiram bilhões na criação de um exército de islâmicos
a fim de expulsar os russos do Afeganistão. Os interesses dos jihadistas eram mais
abrangentes do que os interesses americanos e envolviam a destruição dos governos da
Arábia Saudita (apesar do apoio saudita à jihad) e do Egito, juntamente com Israel –
todos estes aliados dos EUA. Com a ajuda da “força aérea dos pobres” – carros e
caminhões bombas – os combatentes islâmicos expulsaram os americanos do Líbano e
destruíram bases militares e embaixadas na Arábia Saudita e na África, assim como um
navio de guerra e outras instalações militares. Em 11 de setembro de 2001, os
americanos não podiam mais fingir que esta luta não os envolvia diretamente. Quando a
administração Bush aproveitou a situação para demonstrar o poderio americano
atacando o Iraque, o resultado foi um completo desastre: a remoção do regime de
Saddam Hussein levou diretamente a uma renovada luta sectária entre os grupos xiitas e
sunitas do Islã que, em combinação com as complexas rivalidades nacionais e étnicas da
região, transformou o Oriente Médio em um inferno vivo para seus habitantes, levando
milhões deles ao exílio.
Com as reviravoltas mais recentes desses eventos – o surgimento do Estado Islâmico, do
ramo mesopotâmico da Al Qaeda, e, nas últimas semanas, o redirecionamento das
[ações] terroristas do EI/ISIS para o exterior – por que não admitir que a 3º Guerra
Mundial chegou? (Provavelmente não sou o primeiro a pensar isso – além do sempre
presente Papa, por exemplo, o ministro das Relações Exteriores do Iraque, al-Jaafari,
chamou os ataques em Paris de uma nova etapa em uma guerra mundial em curso). Ela
não começou, como as duas primeiras, com declarações formais das principais forças
mundiais. Em vez disso, emergiu gradualmente, no contexto da rivalidade entre grandes
potências e num sistema mundial que carece dos meios alternativos para a resolução de
conflitos em torno de questões tão básicas como o controle de recursos. Ela é fomentada
pela disponibilidade mundial de armas, desde a onipresente AK-47 até os sofisticados
caminhões de mísseis que inundaram o mundo para atender às necessidades de várias
guerras por procuração (e não podemos esquecer da considerável contribuição da
indústria de armas para o PIB americano, russo, chinês, francês e israelense), além dos
bilhões de carros e das toneladas de fertilizantes disponibilizados a fabricantes de
bombas cada vez mais ambiciosos em todo o mundo. Ao contrário das primeiras guerras
mundiais, os lados não estão claramente definidos: para exemplificar, na Síria, a
Turquia (oficialmente aliada do Ocidente) está mais preocupada em evitar o surgimento
de um Estado curdo do que em apoiar a guerra contra o Estado Islâmico, agora
combatido com mais sucesso [exatamente] pelos curdos; os ricos sauditas financiam a
jihad enquanto a força aérea saudita bombardeia os jihadistas na Síria (e os anti-
jihadistas no Iémen); os EUA e o Irã encontram-se do mesmo lado em relação aos
talibãs afegãos e ao Estado Islâmico, enquanto de resto são ferozes inimigos; a França e
a Rússia, em conflito na Ucrânia, coordenam bombardeios na Síria. Mas é precisamente
essa confusão de “lados” que constitui o novo globalismo da guerra, que já não pode ser
localizada, sendo tão suscetível de eclodir em Nova Iorque, ou em Londres, quanto em
Mali ou nas Filipinas.
Outro novo aspecto desta guerra mundial é a dificuldade de imaginar um fim para ela.
Mesmo na Síria, considerada em si mesma, a fragmentação das forças contrárias ao
governo e as relações incoerentes entre as forças externas envolvidas tornam
improvável que o regime de Assad, ainda que este fosse mais forte do que é e mesmo
contando com considerável auxílio estrangeiro, possa derrotá-las mais do que os russos
puderam derrotar as forças conflitantes que se opunham a eles no Afeganistão 1. E as
débeis perspectivas de “solucionar” o “problema” se estendem para além da situação
síria. Pode-se ter uma noção da indefinição apocalíptica do conflito mundial lendo a
opinião de especialistas: a linha mais dura em um recente exemplo do pensamento
estratégico sobre o que fazer em relação ao Estado Islâmico veio de Shabtai Shavit, ex-
chefe da Mossad, que declarou na rádio israelita que “temos que deixar de lado as
considerações sobre a lei, a moralidade e as comparações entre segurança e direitos
individuais”. Em vez disso, temos que fazer “o que eles fizeram na 2ª Guerra Mundial a
Dresden. Eles a apagaram do mapa”. Mas, como comentou um especialista em matéria
de Oriente Médio no Brookings Institution, isso geraria apenas “uma onda de terrorismo
que o mundo jamais viu”. Talvez este dilema pudesse ser resolvido com a invenção de
uma versão alternativa e “construtiva” do Islã, capaz de afastar o domínio do jihadismo
dos corações e mentes de um grande número de jovens muçulmanos. Para além da
reforma religiosa, é necessário, tal como o The New York Times resumiu as opiniões de
vários especialistas de think tanks, “uma maior responsabilização” dos governos do
Oriente Médio, conjuntamente à “justiça imparcial, escolas melhores [e] mais
oportunidades de emprego2”.
Um pedido muito exigente, pode-se dizer. (E já que tocamos nesse ponto, por que não
proporcionar empregos e condições de vida decentes, juntamente com o fim da
intimidação policial, para a vasta população muçulmana amontoada nas favelas que
circundam as cidades francesas?) Ao menos tais opiniões passam pelo reconhecimento
1
Para uma análise informativa da situação síria considere o artigo Understanding Syria: From Pre-Civil
War to Post-Assad, de William Polk’s, The Atlantic, 10/12/2013.
2
Todas as citações em “Envisioning How the Global Powers Can Smash a Brutal Enemy”, de Tim
Arango, New York Times, 18/11/2015.
de que o atual jihadismo – que não é um reavivamento da tradição, mas um produto
contemporâneo, amplamente inspirado nos escritos de Sayyid Qutb, o ativista da
Irmandade Muçulmana executado por Nasser em 1966 – é uma resposta ao fracasso do
crescimento capitalista no pós-guerra em se estender às áreas anteriormente colonizadas
de África, Ásia Central, e Médio Oriente. É este fracasso, igualado ao fracasso do
socialismo árabe e do nacionalismo secular na promoção de responsabilidade
governamental, justiça imparcial, melhores escolas e boas perspectivas de emprego, que
levou à rejeição, de caráter religioso, da modernização “ocidental” e facilitou o
recrutamento de dezenas de milhares de muçulmanos em todo o mundo, prontos para
matar e morrer no esforço para construir uma existência socialmente significativa dentro
do nosso estagnado sistema social e econômico. A ideia de que uma versão “moderada”
do Islã preparada por imãs receptivos ao Ocidente pudesse afastar a verdadeira reforma
islâmica, o Islã para o nosso tempo, desenvolvida por Qutb e aprimorada por Bin Laden,
al-Zarqawi e al-Baghdadi apenas comprova a falência da imaginação política e cultural
oficial.
O fracasso da onda revolucionária que se seguiu à 1º Guerra Mundial deu mais uma
chance ao capitalismo; a depressão e a nova guerra mundial a que conduziu abriram
caminho para um novo período de prosperidade, a “Era de Ouro” do pós-guerra, que
terminou em meados dos anos 70. O recuo da maré do crescimento econômico, que
havia possibilitado o acúmulo de riquezas em poucas mãos e lugares enquanto deixava
para a grande maioria da população mundial uma parcela decrescente da riqueza que ela
produz, arruinou a esperança de progresso que outrora ajudara as pessoas a tolerar a
vida sob o capitalismo. Com um futuro tão sombrio, não é de surpreender o surgimento
de todo tipo de postura apocalíptica retrógrada, das várias formas de fundamentalismo
cristão em cena nos Estados Unidos à ultra-ortodoxia judaica e ao Estado islâmico. O
que estamos testemunhando não é um “choque de civilizações”, mas a autodestruição de
uma civilização, aquela que outrora se autodenominara “modernidade”. Como observa
Adam Schatz em um penetrante artigo:

Os ataques em Paris não refletem um choque de civilizações, mas sim o fato de que
vivemos efetivamente em um só mundo, ainda que desigual, onde os flagelos em
uma região inevitavelmente transbordam sobre outra, onde tudo se conecta, às
vezes com consequências letais. Com toda sua atmosfera medieval, o califado
ergue um espelho para o mundo que fabricamos, não apenas em Raqqa e Mosul,
mas em Paris, Moscou e Washington3.

3
A. Schatz, “Magical Thinking About ISIS”, London Review of Books 37:23 (3/12/2015).
O apocalipse que [nos] ameaça não é, portanto, aquele prometido pelos vários deuses
invocados pelos cultos do mundo, mas aquele produzido pela incapacidade do
capitalismo de administrar as forças que ele próprio desencadeou. A título de exemplo,
os líderes mundiais parecem finalmente ter compreendido que as mudanças climáticas
são um problema real, no entanto, e de modo geral, supõe-se que a próxima rodada de
negociações sobre o clima em Paris [COP-21] realizará muito pouco das mudanças
necessárias para que o agravamento da catástrofe em curso seja evitado. Os interesses
econômicos (logo, políticos) que precisariam ser deixados de lado são simplesmente
muito poderosos por serem elementares demais para a forma como o mundo funciona.
Do mesmo modo, enquanto as limitações da economia capitalista tornam impossível a
resolução dos problemas sociais que causam a miséria por detrás da jihad mundial, as
nações líderes se veem estruturalmente inibidas de abordar a situação por quaisquer
outros meios que não o militar. Os meios militares tornaram-se fundamentais para o
próprio funcionamento da principal potência econômica: como Gabriel Kolko assinalou
em seu valoroso livro, Century of War, após a 2ª Guerra Mundial o orçamento militar
dos EUA “tornou-se um substituto muito bruto para obras públicas ou ações sociais e,
por si só, possibilitou déficits governamentais [...], sustentando assim o conjunto da
economia [...] A própria existência de preparativos militares carregava consigo uma
predisposição intrínseca ao ativismo, com todos os riscos que isso implicava 4". Mas
mesmo os Estados que não dependem tanto do keynesianismo militar quanto os EUA
têm investimentos econômicos e políticos no militarismo. Enfim, o que mais eles devem
fazer?
Como resultado, os principais Estados estão tentando se portar como “grandes
potências” num momento em que já não existem grandes potências no sentido do século
XIX; um momento em que as forças que estrangulam o sistema mundial excedem a
capacidade de resistência até mesmo de seus mais resistentes elos. O resultado é a
barbárie, que Rosa Luxemburgo alertou ser a alternativa ao socialismo. A 3ª Guerra
Mundial pode muito bem revelar-se a mais terrível de todas se a população mundial não
lhe der fim, rompendo, de uma vez por todas, com as condições que a estão produzindo.

4
G. Kolko, Century of War: Politics, Conflicts, and Society Since 1914 (New York: The New Press,
1994), 475.

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