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O mundo nunca

mais foi o mesmo

Há acontecimentos tão únicos e assombrosos que passam a sinalizar as


grandes viradas da história. Os ataques
Acesso rápido
terroristas contra Nova York e Washington em 11
de setembro do ano passado tiveram um efeito Capas de VEJA
2000 | 2001 | 2002
tão devastador sobre as vidas, as propriedades e
o orgulho americanos que não admira – escreveu
Veja também
o historiador inglês Paul Johnson – que os
Estados Unidos tenham recorrido imediatamente Nesta edição
à história para dar sentido ao que estavam O dono do mundo
presenciando. A analogia mais imediata foi com A história de quem
Pearl Harbor, o traiçoeiro ataque japonês à frota sobreviveu
americana no Pacífico, em 1941. Motivados à A tragédia em números
época por sua imensurável superioridade moral e
Por que o Islã não sente
material, os Estados Unidos foram à guerra e remorso
varreram do mapa o militarismo japonês e o
Na internet
nazismo alemão. Um dos resultados da II Guerra
A cobertura completa
foi o surgimento, em boa parte do planeta, de um realizada por VEJA
ambiente de liberdade e prosperidade como
nunca antes existira. Passados doze meses do atentado terrorista de 11 de
setembro, ainda é imprudência afirmar que a queda das torres gêmeas do
World Trade Center terá para as próximas gerações o profundo significado
histórico que se chegou a entrever um ano atrás. Também é incerto se a    
guerra americana contra o terrorismo produzirá outra vez uma realidade
melhor para se viver. O certo é que, a exemplo do que ocorreu após Pearl
Harbor, o mundo está tremendamente diferente desde que as torres ruíram
em Nova York.

A mudança representada pelo 11 de setembro pode ser mais percebida em


três campos: a economia, a descoberta de que o universo muçulmano é
muito mais complexo do que se imaginava e, por fim, a atual postura dos
americanos em relação a países que consideram adversários. Na quinta-feira
passada, caças americanos desfecharam sobre o oeste do Iraque o maior
ataque presenciado na região desde a Operação Tempestade no Deserto, em
1991. Forças aéreas dos Estados Unidos e da Inglaterra fazem
periodicamente ataques desse tipo, mas nunca com tal intensidade. Desde o
começo do século XX e, com maior vigor, depois da I Guerra, os Estados
Unidos são a maior potência do planeta. Após a queda do Muro de Berlim,
em 1989, tornaram-se a única superpotência. Embora abrigue apenas um
vigésimo da população, o país é responsável por quase um terço da produção
mundial. Como absorve um quarto de todas as exportações, é a única nação
com potencial para puxar o crescimento global. Do ponto de vista militar, é
imbatível. O orçamento do Pentágono corresponde à soma combinada dos
gastos de defesa das nove principais potências militares do planeta. Nunca
houve tamanha desproporção, mesmo se retrocedermos aos tempos do
império romano.

 
Fotos AP

UM CENÁRIO DIFERENTE
Na foto à esquerda, o avião seqüestrado se aproxima da Torre Sul.
A visão atual de Manhattan, sem as torres características do
World Trade Center (à dir.)
A supremacia também é visível na produção científica e na cultura. Por meio
da música e dos filmes de Hollywood, a língua, o modo de vida e até a
culinária dos americanos tornaram-se a expressão da globalização no
cotidiano dos outros povos. Nos anos 90, metade do planeta convenceu-se
de que os Estados Unidos tinham a receita da felicidade material. A lapidação
do modelo de crescimento chegou a um ponto que, quando o receituário não
funcionava em outro país, os dirigentes locais eram acusados de não tê-lo
seguido estritamente ou, então, de demonstrarem excessiva subserviência ao
padrão de Washington. Não é mais assim. Os ataques de 11 de setembro não
foram a causa, mas eles serviram para dramatizar um fenômeno já
existente, o do desencanto em relação ao modelo americano como a solução
de todos os problemas ligados ao desenvolvimento das nações.

A queda das torres gêmeas, que simbolizavam o vigor do capitalismo


americano, foi precedida do fim do sonho de fortuna fácil das empresas
pontocom. Em dois anos, a Nasdaq, na qual são cotizadas as ações das
companhias de alta tecnologia, e a bolsa de Wall Street torraram juntas 7
trilhões de dólares em investimentos, mais de dez vezes toda a riqueza
produzida no Brasil durante um ano. A economia americana está em marcha
lenta, após uma década de expansão invejável. Não bastassem os atentados,
que afetaram duramente a maior indústria mundial, a do turismo, e
representaram um duro golpe na aviação comercial, a confiança dos
americanos viu-se abalada pela revelação de fraudes escandalosas em
empresas gigantescas, como a Enron. Todos esses fatores se combinaram na
produção de baixo índice de investimentos, e vários setores da economia
americana estão hoje na UTI.

 
A GUERRA SEM FIM
Destroços do carro-bomba que matou trinta pessoas
em Cabul, na semana passada: prioridade
americana é depor Saddam Hussein, ditador do
Iraque
Quando a principal economia adoece, o contágio é inevitável. A Europa não
consegue repetir a boa performance da década passada. O Japão encontra-se
em recessão há dez anos. Na América Latina, o que se vê é um clima
generalizado de desesperança em relação ao desenvolvimento. Uma das
novidades é a maior relativização da receita americana de abertura
econômica, privatizações e redução do Estado, o conjunto batizado de
Consenso de Washington. Outros modelos de desenvolvimento, antes
considerados de segunda linha, voltaram à ordem do dia. O europeu, por
exemplo. Apresenta índices de desemprego altos, mas não existe miséria e a
rede de proteção social é espetacular. Essa percepção ocorre sobretudo nos
países pobres ou em desenvolvimento, que não viram a recompensa a seus
esforços na perseguição das metas econômicas preconizadas pelos
defensores de um estrito modelo liberal. O processo de globalização não se
reverteu, mas as novas medidas de segurança jogaram areia nas
engrenagens, cuja lógica depende de fronteiras abertas e da livre
movimentação de bens e pessoas.

Mais chocante foi a descoberta de um dos limites da globalização, até então


despercebido, o Islã. O mundo islâmico vem sendo rotineiramente devassado
nos meios acadêmicos há muito tempo. As multidões nos países ocidentais
não sabiam, no entanto, que o universo dos turbantes era muito mais
complexo do que parecia. Depois do fim do comunismo, os Estados Unidos e
seus aliados, os países industrializados da Ásia e da Europa, convenceram-se
de que a modernidade, a democracia e a economia de mercado são
desejadas em todo o mundo. Devido a outra escala de valores, tais
novidades não são bem-vindas para um número significativo do contingente
de 1,3 bilhão de muçulmanos. Após o choque resultante da carnificina
cometida em nome de Alá, o mundo islâmico foi repentinamente iluminado
por um holofote. A opinião pública mundial descobriu que esse universo era
menos administrável do que se imaginava. Percebeu-se também a existência
da Al Qaeda, a organização fundamentalista responsável pelos ataques de 11
de setembro.

Há dez anos, o pensador americano Francis Fukuyama escreveu que o


mundo tinha chegado ao fim da história com a vitória da democracia liberal e
do capitalismo de mercado. Agora, em texto escrito a pedido de VEJA, ele
admite surpresa com a resistência de certos povos em embarcar no trem da
modernidade. É interessante que não se trata de desconhecimento do mundo
moderno, mas de sua rejeição em nome da pureza religiosa. Mohamed Atta e
vários dos outros seqüestradores de 11 de setembro eram homens
instruídos, que moravam e estudavam no Ocidente. A desconexão cultural
existente no caso de Osama bin Laden e seus
fundamentalistas islâmicos tem ares de ser Reuters
absoluta. "Será que só nossa miopia nos faz
imaginar que os valores ocidentais sejam
potencialmente valores universais?",
questiona Fukuyama. Para o homem do
Ocidente, acostumado à separação entre
Igreja e Estado, a motivação do terrorismo
islâmico parece tão fora do tempo quanto a
discussão do sexo dos anjos – mas a
matança em Nova York e Washington mostra
que a ameaça islâmica é concreta. O Islã é
multifacetado por várias nações, mas tem
uma característica curiosa: não produziu um
só país democrático ou desenvolvido. O
contraste entre a pobreza dos fiéis e a
riqueza do Ocidente fomentou rancor. A
resposta às dificuldades materiais e à falta de
liberdade, levantada nas mesquitas, é a de
que a identidade religiosa supera todos os
NEGÓCIOS INACABADOS
valores políticos. A questão tornou-se A base do terrorismo foi dizimaers
urgente depois do 11 de setembro, mas até
agora não se encontrou uma resposta: como
desarmar a bomba-relógio do radicalismo
islâmico?

Uma característica do novo mundo é a


disposição americana de combater o terror
em qualquer país. Mas não dá para ganhar a
guerra sozinho, e o grande desafio do
presidente George W. Bush é convencer os
governantes dos países amigos do bom
senso de sua política de isolar o que chama
de "eixo do mal" – o Irã, a Coréia do Norte e
o Iraque. A cruzada antiterrorista americana
tem sido conduzida com modos imperiais, o
que desagrada aos aliados naturais, a NEGÓCIOS INACABADOS
França, a Inglaterra e a Alemanha. Bush A base do terrorismo foi dizimada
conseguiu apoio global para atacar o no Afeganistão, mas as dúvidas
Afeganistão, foco do terrorismo islâmico. Mas sobre o paradeiro de Osama bin
Laden preocupam os americanos:
a história é totalmente diferente no que diz onde será o próximo ataque?
respeito a usar a força para tirar do poder
Saddam Hussein, o ditador do Iraque. Com tudo isso, os Estados Unidos
passaram a ser vistos como uma potência que impõe sua vontade ao mundo.

Muitas transformações foram para melhor. O foco do terrorismo no


Afeganistão foi rapidamente dizimado pelo poderio militar dos EUA. Os
prognósticos sombrios sobre um novo Vietnã não se confirmaram. Mas as
dúvidas sobre o paradeiro dos principais líderes da Al Qaeda, especialmente o
saudita Osama bin Laden, continuam gerando ansiedade. Os americanos
estão surpresos com a descoberta de que não são amados nem admirados
como sempre acreditaram. É um conhecimento doloroso, sobretudo na hora
em que são vítimas e estão mais fragilizados. É também uma injustiça.
Nenhum ato oficial cometido pelos Estados Unidos poderia justificar o
ocorrido em 11 de setembro. De qualquer forma, o que enfurece os
fundamentalistas islâmicos não são os defeitos, e sim as qualidades da
sociedade americana, como a tolerância religiosa, os direitos da mulher e a
separação entre Igreja e Estado. "Mesmo arrogantes e unilateralistas, os
Estados Unidos são melhores que as alternativas", disse a VEJA o cientista
político Tom Donnelly, de Washington. "Quem gostaria de viver sob a
influência da ditadura chinesa?"

Um ano antes de pilotar um dos Boeing usados para colocar abaixo o World
Trade Center, o egípcio Mohamed Atta, que se supõe tenha sido o chefe da
conspiração terrorista, procurou uma agência de crédito do governo
americano e pediu dinheiro emprestado para abrir o próprio negócio. Não
recebeu ajuda, mas o episódio ilustra uma qualidade inigualável dos EUA, o
do país de fronteiras abertas, amigável com estrangeiros e terra de
oportunidades. Devido à agressão terrorista, o ambiente está um pouco
mudado. Hoje, um árabe é visto com alguma suspeição quando se
movimenta pelas calçadas americanas. As autoridades dos Estados Unidos se
aproveitaram de leis criadas para ser usadas em período de guerra para
manter incomunicáveis atrás das grades mais de 1.000 suspeitos de
terrorismo, entre eles grande quantidade de estrangeiros. Numa base militar
em Cuba, os militares guardam seis centenas de prisioneiros da campanha
no Afeganistão. Em um país cujos fundamentos repousam no direito
individual à defesa, tais medidas de exceção causam preocupação. Está claro
que a virulência dos ataques provocou não só respostas militares, mas
também um reexame de muitos aspectos do estilo de vida e das atitudes dos
americanos. Qualquer um que entre num aeroporto americano sentirá na
pele a obsessão das novas medidas de segurança. Ainda assim, não ocorreu
o surto de xenofobia que se chegou a temer. O multiculturalismo – como são
chamados a tolerância e o convívio com as diferenças culturais – fincou
raízes tão sólidas nos Estados Unidos que não se deixou abater pela retórica
patrioteira pós-atentado. A preservação desse espírito aberto é a maior
homenagem que se poderia fazer ao povo americano no aniversário da
grande tragédia.

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