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A CRISE DE 29: UMA TEORIA ALTERNATIVA

Lucas Moreira Barbosa1

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma teoria alternativa sobre que processos
estariam por trás da Crise 29, interpretada em muitos contextos como um xeque-mate no
paradigma liberal. Desde então, o Liberalismo tem carregado a responsabilidade por essa
crise, e governos têm se baseado nisso para repelir seus princípios de não intervenção na
Economia por parte do Estado. Reconhecendo as limitações de certas escolas do
Liberalismo, este artigo se vale da Teoria dos Ciclos Econômicos, postulada pela Escola
Austríaca de Economia (única escola econômica com uma teoria formal sobre as crises
econômicas) para questionar essa tese. O objetivo é apresentar essa teoria de maneira
breve.

Palavras-Chave: Crise de 29. Escola Austríaca. Ciclos Econômicos.

Introdução

Não raro, a proposta liberal de que o Estado não deveria intervir no mercado
(aqui entendido como qualquer sistema de trocas entre indivíduos ou instituições,
legal ou não, conforme a Escola Austríaca propõe), pois este se regularia sozinho, é
rechaçada como perigosa e destrutiva. O principal ícone dessa declaração tem sido,
desde longa data, a crise que se abateu sobre os E.U.A. no final da década de 20, e
que se perpetuou por muito tempo, afetando também outros países. Supostamente,
essa crise teria sido causada pelos valores liberais aplicados na economia
estadunidense por um bom tempo. Será?
A narrativa tradicional tende a enfatizar que a Crise de 29 foi provocada pelo
desequilíbrio do mercado americano após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918),
uma vez que este, até então principal fornecedor dos países beligerantes, que
estavam impossibilitados de produzirem os bens de consumo necessários, não
regulou-se com a progressiva restauração do mercado europeu após o fim do
conflito, reestruturando sua produção para a decrescente demanda europeia. A crise
de superprodução levou à queda brusca dos preços, que encontrou falta de poder
de compra. O prejuízo leva a fechamento de fábricas, demissões, desvalorização da

1
Aluno do curso de História Licenciatura – UNILA. E-mail: lucasmoreira020316@gmail.com
1
moeda, e então o processo reverso ocorre, pois a quebra do sistema de produção
leva ao encarecimento da mercadoria, que não pdoe ser comprada pela população,
que passa a ter pouco poder de compra. E prosseguindo a narrativa, a salvação da
economia teria sido o Plano New Deal, uma série de programas implementados nos
Estados Unidos entre 1933 e 1937, sob o governo do Presidente Franklin Delano
Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia norte-americana, e
assistir os prejudicados pela Grande Depressão. Essa medida protecionista
inspirada nas medidas intervencionistas Theodore Roosevelt (estranho, já que
teoricamente a economia teria seguido ideais liberais que causaram a Crise...) teria
então servido para demonstrar que o Liberalismo não poderia mais ser aplicado
como paradigma econômico.
Em dias em que levantar a bandeira do Liberalismo na academia é
virtualmente tão ofensivo quanto saudar a suástica, este breve texto propõe desafiar
essa explicação Keynesiana, e propor que na verdade, foi justamente a intervenção
econômica do Estado no sistema de crédito bancário que causou a Crise de 29,
contrariando a tese de que os E.U.A. possuía uma economia liberal, e que esta teria
gerado a Grande Depressão.

Marco Teórico

Para a realização deste trabalho, adotou-se a perspectiva austríaca sobre o


funcionamento do mercado.
A Escola Austríaca de Economia2 trabalha com o conceito básico de
Praxeologia, ou seja, o estudo das ações humanas em situações de indeterminação,
a partir do que constroi sua visão sobre o sistema de trocas entre partes distintas (o
mercado). Partindo da premissa de que a lei natural (i.e., as normas e regras
derivadas logicamente da natureza dos seres, sejam eles quais forem; e.g., seres
humanos precisam comer para sobreviver, do que se infere a lei de que o ser
humano precisa alimentar-se para se manter) impõe ao homem a necessidade de
transformar os recursos externos para se desenvolver, a Escola Austríaca deriva

2
Para uma apresentação histórica da Escola Austríaca, ver o artigo “O que é Economia Austríaca?”,
disponível em: <<https://mises.org.br/Article.aspx?id=35>>.
2
uma teoria interacionista, que se acha sintetizada de maneira mais completa pelo
Libertarianismo3.
A partir dessas premissas, toda uma teoria econômica é derivada, e uma das
principais realizações da Escola Austríaca foi a elaboração de um Teoria dos Ciclos
Econômicos (que será exposta mais à frente), graças à contribuição de Ludwig von
Mises, um dos principais teóricos da Escola Austríaca.
Este texto se funda, espeificamente, na discussão de Murray N. Rothbard no
livro “A Grande Depressão” (1971)4, onde ele discute o processo histórico em si,
bem como os antecedentes e os acontecimentos que se seguiram à Crise. Também
foram consultadas, seja para citação, ou ocasionalmente, as obras “Ação Humana”5,
de Ludwig von Mises, e “Dez Lições da Economia Austríaca”, de Ubiratan Jorge
Iorio6.

Apresentação dos Resultados

Antes de mais nada, nos cumpre responder, afinal, o que dia a Teoria dos
Ciclos Econômicos da Escola Austríaca.
Conforme Iorio (2013), a ideia central da Teoria Austríaca dos Ciclos
Econômicos (TACE) é que, quando ocorre um aumento da oferta de crédito bancário,
por intervenção estatal, supondo que as expectativas quanto à inflação (aqui
entendida não como o aumento dos preços, mas sim o aumento da quantidade de
moeda em circulação, o que leva à sua desvalorização, e só então há o aumento
dos preços) futura não existam, as taxas de juros (de maneira simples, o que se
cobra pelo empréstimo de um valor quando a preferência temporal não justifica a
ação em termos de benefício), inicialmente, caem, mantendo-se abaixo dos níveis
que alcançariam se o crédito não tivesse aumentado. Ou seja, sem levar em
consideração que com mais crédito, mais dinheiro vai circular, o que a médio e longo
prazo irá desvalorizar a moeda, o banco não cobra taxas de juro altas, no início. O
efeito disso é que, necessariamente, os padrões de gastos sofrerão alterações: os
gastos de investimentos subirão relativamente aos gastos de consumo corrente e às
3
Para um livro de referência sobre o Libertarianismo, consultar “Por Uma Nova Liberdade - O
Manifesto Libertário”, de Murray N. Rothbard, disponível gratuitamente em:
<<https://mises.org.br/Ebook.aspx?id=94>>.
4
Disponível em: <<https://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=76>>.
5
Disponível em: <<https://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=44>>.
6
Disponível em: <<https://www.mises.org.br/Ebook.aspx?id=103>>.
3
poupanças, já que o crédito oferecido é dado justamente para promover o
investimento quando não existe capital para isso. Portanto, a expansão monetária,
necessariamente, provoca uma ausência de coordenação entre os planos de
poupança e de investimento do setor privado. Esse impacto descoordenador da
política monetária é essencial na visão austríaca, mas não é levado em conta pela
teoria macroeconômica convencional.
Nosso autor continua explicando que a política monetária, ao alterar os preços,
modifica os sinais emitidos pelos preços. Os preços funcionam como termômetros,
como placas, que indicam demandas, ofertas, e em suma, possibilidades de
investimento. No caso de uma expansão monetária, estes sinais apontam para a
redução dos lucros das empresas que produzem para consumo corrente e para o
aumento dos lucros da produção de bens para consumo futuro. Ou seja, investir na
produção se torna mais lucrativo que vender diretamente ao consumidor. Alteram-se,
portanto, as taxas de retorno sobre as várias combinações de capital. Os retornos
nos estágios de produção mais próximos do consumo caem, enquanto crescem os
retornos nos estágios de produção mais afastados do consumo; recursos não
específicos deslocam-se dos primeiros para os segundos; vai diminuindo a produção
de bens de consumo, ao mesmo tempo em que os padrões de produção de bens de
capital vão sofrendo alterações, passando-se a produzir bens que se adaptem a
estruturas de produção que abarquem mais estágios do que anteriormente. Para
que esses investimentos se completem até o estágio dos bens de consumo final,
deverão ser subtraídos mais recursos do consumo, o que significa que a produção
de bens de ordens mais baixas deverá manter-se em queda, até que a nova
estrutura de produção se complete.
O processo descrito se reverte por ele mesmo: na medida em que as rendas
dos donos dos fatores de produção aumentam (em decorrência da expansão
monetária), cresce a demanda por bens de consumo, o que faz com que os preços
desses bens, relativamente aos preços dos bens mais afastados do consumo,
aumentem. Reverte-se, desta forma, o processo: caem os retornos nos estágios
mais afastados do consumo final, enquanto sobem os retornos nos estágios mais
próximos do consumo final; recursos não específicos fazem o caminho de volta; os
bens de capital, que haviam sido dimensionados para a estrutura de produção
anterior, têm agora que ser redimensionados para uma estrutura menos intensiva

4
em capital; surgirão perdas e desemprego, que serão mais fortes nos setores que
anteriormente haviam se expandido mais e que, agora, se defrontam com
superproduções. As perdas e o desemprego gerados nada mais são do que a
contrapartida das alocações de recursos geradas pela expansão monetária.
Segundo Rothbard (1971), o mecanismo que desencadeou a Crise teria sido
um boom inflacionário que se iniciou em 1921, e estendeu-se até 1929. Não houve,
de fato, uma mudança significativa de preços durante esse período, e é justamente
por causa disso que essa inflação não é percebida. Mas por que? A razão é que
havia duas grandes forças agindo sobre os preços durante a década de 1920 – a
inflação monetária, que levou os preços para cima, e o aumento de produtividade,
que diminuiu custos e preços. Numa sociedade em que há um livre mercado puro
(qualquer um que não aceite um livre mercado puro não é liberal, em sentido algum
do termo), o crescimento da produtividade aumentará a oferta de bens e reduzirá os
preços e os custos, disseminando os frutos de um padrão de vida mais elevado a
todos os consumidores. mas essa tendência foi contrabalançada pela inflação
monetária, que serviu para estabilizar os preços. essa estabilização era e é um
objetivo desejado por muitos, mas ela (a) impediu que os frutos de um padrão de
vida mais elevado fossem disseminados tão amplamente quanto seriam num
mercado livre; e (b) geraram o boom e a depressão do ciclo de negócios. Afinal, um
traço distintivo do boom inflacionário é que os preços são mais altos do que seriam
num mercado livre e desimpedido. mais uma vez, as estatísticas não conseguem
descobrir os processos causais em funcionamento.
Murray (1971) afirma que o grande boom da década de 1920 começou por
volta de julho de 1921, após um ano ou mais de forte recessão, e terminou por volta
de julho de 1929. A produção e a atividade econômica começaram a cair em julho
de 1929, ainda que o famoso crash da bolsa tenha acontecido em outubro daquele
ano. Ao longo do período inteiro do boom, a oferta monetária cresceu em US$ 28
bilhões, um aumento de 61,8% ao longo de um período de oito anos. Isso equivale a
um aumento médio anual de 7,7%, um grau de inflação bastante considerável. Os
depósitos bancários totais aumentaram 51,1%, as cotas das associações de
poupança e empréstimos 224,3%, e as reservas líquidas de apólices de seguro de
vida, 113,8%. Os principais aumentos aconteceram em 1922–1923, no fim de 1924,
no fim de 1925 e no fim de 1927. A abrupta estabilização aconteceu precisamente

5
no momento em que esperaríamos – na primeira metade de 1929, quando os
depósitos bancários diminuíram e a oferta monetária total permaneceu quase
constante. Para gerar o ciclo econômico, a inflação precisa acontecer por meio de
empréstimos às empresas, e a década de 1920 está em conformidade com as
especificações. Não houve qualquer expansão no papel-moeda em circulação, que
no início do período totalizava US$ 3,68 bilhões e, no final, US$ 3,64 bilhões. Toda a
expansão monetária se deu por meio de substitutos da moeda, que são produtos da
expansão monetária. Somente uma quantidade desprezível dessa expansão veio da
compra de títulos do governo: a vasta maioria representava empréstimos e
investimentos privados (um “investimento” no título de uma empresa é,
economicamente, um empréstimo à empresa no mesmo sentido em que os créditos
de prazo mais curto denominados “empréstimos” nos extratos bancários). Os títulos
do governo americano em poder dos bancos subiram de USS$ 4,33 bilhões para
US$ 5,50 bilhões ao longo do período, enquanto o total de títulos do governo em
poder das companhias de seguros de vida na verdade caiu de US$ 1,39 bilhão para
US$ 1,36 bilhão. Os empréstimos das associações de poupança-e-empréstimos
estão quase todos em imóveis privados, e não em obrigações do governo. Assim,
apenas US$ 1 bilhão do novo dinheiro não contribuía para gerar o ciclo, e
representava investimentos em títulos do governo; quase todo esse crescimento
desprezível aconteceu nos primeiros anos, entre 1921 e 1923. Não pode-se atribuir
esse aumento de moeda ao aumento do ouro do Federal Reserve, já que o aumento
das reservas foi de apenas US$ 1,16 bilhão de 1921 a 1929.
Onde entra o estado nessa intrincada equação? Bem, a partir de 1924, o
Federal Reserve assumiu uma postura de apoio aos bancos:

“Os bancos do Federal Reserve são a... fonte que os bancos membros buscam
quando as demandas da comunidade empresarial superam seus próprios recursos
desprovidos de auxílio. o Federal reserve oferta o crédito adicional necessário em
épocas de expansão do crédito, e compensa a falta de atividade em épocas de
recessão econômica” ( Federal reserve, Annual Report, 1923, p. 10; citado em ibid.,
p. 109).

Conforme declara Rothbard (1971), assim que o Fed foi estabelecido, William
G. McAdoo, secretário do Tesouro, trombeteou a política que o Federal reserve
manteria ao longo da década de 1920 e durante a grande depressão:
6
“O propósito primário do Federal reserve Act foi alterar e fortalecer nossos sistema
bancário, de modo que os maiores recursos de crédito demandados pelas
necessidades das empresas e da agricultura passem a existir quase
automaticamente e a taxas de juros baixas o suficiente para estimular, proteger e
fazer prosperar toda espécie de empresas legítimas” (Harris, Twenty Years, p. 91.)

Assim embarcaram os estados unidos no século XX em sua desastrosa


política inflacionária e em sua depressão subsequente – por meio de um estímulo à
falsificação legalizada para privilégios especiais conferidos pelo governo às
empresas e aos grupos agrícolas de sua preferência.
Rothbard menciona alguns exemplos. Já em 1915 e em 1916, diversos
governadores do conselho instaram os bancos a descontar do Federal reserve e a
ampliar o crédito, e o controlador John Skelton Williams instou os fazendeiros a fazer
empréstimos e a segurar suas colheitas para conseguir um preço mais alto. Essa
política continuou em plena força após a guerra. A inflação da década de 1920
começou, de fato, com o anúncio por parte do conselho do Federal reserve, em
1921, de que seria ofertado ainda mais crédito para a colheita e para a venda em
quaisquer quantidades legitimamente exigidas. E, no começo de 1921, Andrew
Mellon, secretário do Tesouro, estava instando o Fed em privado a estimular a
economia e a reduzir as taxas de desconto; os registros mostram que seus
conselhos foram plenamente seguidos. O governador James, do conselho do
Federal reserve, declarou em 1926 a seus colegas que “o propósito mesmo” do
Federal Reserve System “era estar a serviço da agricultura, da indústria e do
comércio da nação”, e aparentemente ninguém estava disposto a contradizê-lo.
Movido por seu desejo geral de oferecer crédito barato e abundante à indústria, e
também por sua política de ajudar a Inglaterra a evitar as consequências de suas
próprias políticas monetárias, o Federal reserve constantemente se esforçou para
evitar subir as taxas de desconto. No fim de 1928 e em 1929, quando essa
necessidade era bastante evidente, o conselho do Federal reserve refugiou-se na
perigosa doutrina qualitativa de “persuasão moral”. A persuasão moral era uma
tentativa de manter o crédito abundante para as indústrias “legítimas”, ao mesmo
tempo em que o negava aos especuladores “ilegítimos” do mercado de ações. Eram
as primeiras manifestações do colapso dessa política.

7
Por hora, esses resultados bastam como amostra.

Considerações finais

Sem dúvida, o texto demonstrou de maneira assaz sintética que a Crise de


1929 pode ser explicada por meios de outros mecanismos que não os princípios
liberais, e que a discussão não está encerrada. É dado ao Comunista o direito de
esquivar-se do fiasco que foi o projeto político da URSS. Não teria o Liberalismo
(pelo menos, em sua vertente austríaca) direito à mesma chance de defesa e
contestação de uma explicação acadêmica com força de decreto que marginaliza
qualquer bandeira do laissez-faire? Espera-se que este breve texto tenha servido
como um estranhamento inicial, estranhamento que leve à uma “equilibração”, para
tomar emprestada a expressão piagetiana.

Referências

IORIO, Ubiratan Jorge. Dez Lições Fundamentais de Economia Austríaca. São


Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013.

ROTBHARD, Murray N. A Grande Depressão Americana. Tradução de Pedro


Sette-Câmara. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2012.

VON MISES, Ludwig. Ação Humana. Tradução de Donald Stewart Jr. São Paulo:
Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.

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