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Durante a crise estrutural que abalou os alicerces da economia mundial no período 1914-
1945, ocorreram três importantes mudanças econômico-políticas em nível internacional:
Estava mais do que evidente que o capitalismo não poderia continuar funcionando à
moda antiga. E foi assim que, para poder sobreviver e viver um novo período de prospe-
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de, teve que submeter-se a uma profunda transformação: passou a recorrer, crescen-
ente, ao papel do Estado na economia.
O Estado, quer produzindo ou distribuindo rendas, quer regulando ou protegendo as
omias nacionais, foi o principal impulsionador do desenvolvimento dessa nova fase
capitalismo.
Foi a era de ouro do keynesianismo,' que, com sua proposta de intervenção do Esta-
na economia - aplicação no capitalismo da ação consciente e coletiva, evidentemente
- ~ . o que seria possível, em se tratando de uma economia fundada na propriedade pri-
- e no lucro -, havia triunfado sobre os dogmas liberais de que o mercado pode tudo,
até então, predominavam na ideologia dominante.
Esses dogmas atribuíam ao mercado um papel que já não podia cumprir numa época
que os trustes e cartéis haviam forjado uma nova estrutura econômica que deixara
trás a época da livre concorrência.
John Maynard Keynes havia se formado na Escola Neoclássica,? que, desenvolvida
a década de 1870 e o começo do século XX, professava o pensamento liberal na
mia.
ianisrno refere-se a John Maynard Keynes, economista inglês da primeira metade do século xx. Sua
obra: Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro.
seus principais formuladores, encontram-se Menger, Leon Walras, Alfred Marshall, J. B. Clark, Irving
.Jevons, Wicksell.
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chegado a uma formulação mais acabada na obra econômica de Karl Marx. Entre o final
do século XIX e começo do XX, ocorrera um intenso debate sobre o tema, no qual inter-
vieram Karl Kautski, Otto Bauer, Rosa Luxemburgo, RudolfHilferding, Tugan-Baranovski,
Vladimir r. Lênin, Joseph Schumpeter, entre outros.
Além disso, na busca de sair da crise, vários governos haviam começado a promover
a ação estatal na economia. Nos EUA, o presidente eleito em novembro de 1932, Franklin
Delano Roosevelt, estava implementando o New Deal ("Novo Acordo"), que se concentra-
va na realização de fortes investimentos estatais em infraestrutura (sobretudo no devas-
tado Vale do Tenessee) e em ações que visavam a uma melhor distribuição de renda. Ao
mesmo tempo, por meio de leis antitruste e de regionalização do sistema financeiro, o
governo Roosevelt procurava limitar a ação das corporações monopolistas.
No Brasil, o governo que assumira em 1930, presidido por Getúlio Vargas, adotava
ações destinadas a manter e ampliar a demanda efetiva," bem como a favorecer o proces-
so de industrialização do país.
Essas medidas deram certo e os dois países começaram a sair da crise. O Brasil foi o
primeiro país a começar a sair da crise.
A União Soviética, que, desde os anos de 1920, tinha o Estado como principal instru-
mento de regulação econômica, nem chegara a entrar em crise.
Foi nesse contexto que Keynes formulou sua teoria, que expôs em sua principal obra,
Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro, publicada em 1936. Chegou a uma
conclusão oposta à do pensamento neoclássico. Para ele, se se deixasse a economia
"andar por si só", isto é, ser regulada unicamente pelas forças de mercado, ela tende-
ria ao desequilíbrio, à crise, sendo, portanto, necessária uma "força externa" (leia-se:
Estado) para tirá-Ia da crise.
Concluiu Keynes (1970) que, quanto mais cresce o nível de renda da economia, tam-
bém cresce o consumo total, mas a um ritmo inferior, isto é, os acréscimos de consumo
derivados dos acréscimos de renda tendem a ser cada vez menores, devendo parar de
crescer em determinado nível de renda. Com isso, a propensão a consumir diminui com
o crescimento da renda. Entendendo a renda nacional como igual ao produto nacional, o
consumo tenderia, portanto, a crescer menos do que a produção.
3 Como a melhoria do poder de compra dos salários, a realização de investimentos públicos e a compra e
destruição dos excedentes do café - esta última destinada a manter a renda e consequentemente a demanda do
núcleo central da economia brasileira na época. Ao mesmo tempo em que o governo promovia a mudança de
uma economia primário-exportadora para uma de base urbano-industrial, procurava manter e mesmo aumen-
tar a demanda efetiva.
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Mas, completa Keynes, a crise só se instaura quando há um colapso do que ele cha-
mava de eficiência marginal do capital (EMC), que seria a expectativa de rendimento
que poderia ser obtido pelo investimento da última unidade de capital. É a maneira
keynesiana de ver o comportamento da taxa de lucro. Vários fatores poderiam levar
ao colapso da EMC, dentre eles a percepção, pelos empresários, de que estaria haven-
do uma queda 'da propensão a consumir.
Keynes agrega em seu raciocínio o que chamou de "preferência pela liquidez", que,
segundo ele, cresce com a queda da EMC, à medida que os empresários, para fugirem da
__eda da EMC, aumentam sua demanda por recursos líquidos, dinheiro, para especular.
Esse aumento da demanda por moeda pressionaria a taxa de juros para cima. Com a
_::!edada EMC, ao lado da subida dos juros, caem os investimentos, reduz-se a demanda
-; meios de produção, demitem-se trabalhadores, cai a massa salarial, cai o consumo e
ura-se a crise.
o raciocínio de Keynes se parece muito com o de Marx, elaborado seis décadas antes.
este, a crise era deflagrada pela queda da taxa de lucro, ao atuar sobre a despropor-
- entre produção e consumo e entre os setores da produção. A diferença é que Marx
:::2balhava com a queda efetiva da taxa de lucro, e não com sua expectativa de queda,
o faz Keynes.
Mas essa não é uma diferença substancial, na medida em que, no fundamental, a
tativa keynesiana de queda do rendimento futuro é baseada no comportamento
- . o observado na taxa de lucro e, por outro lado, para Marx, não é necessário esperar
eolapso efetivo da taxa de lucro para os empresários cortarem seus investimentos; ao
berem que a tendência à queda está se verificando, passam a esperar que ela vai
.:: . ocorrendo (expectativa) e, em face disso, antecipam o corte dos investimentos.
3avendo concluído que, deixada ao livre jogo das forças de mercado, a economia ca-
~sta tenderia ao "desequilíbrio", Keynes formulou a tese de que, com a interven-
- do Estado na economia, as crises poderiam ser evitadas ou amenizadas; o Estado
bém poderia atuar para retirar a economia da crise. Isso porque o Estado, por
- ão pautar seu comportamento pela busca do lucro, poderia realizar investimentos,
-esmo com a EMC em queda; além disso, através do gasto público e de políticas de
redistribuição de renda, poderia estimular o consumo, compensando a tendência à
eda da propensão a consumir.
o maior mérito de Keynes foi haver sistematizado melhor o que já havia de elabora-
- sobre o papel do Estado na economia capitalista, desde as formulações de Malthus,
do pelas de Alexander Hamilton e Friedrich List, até as de Karl Manhein.
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Ele pode ser criticado por haver atribuído ao Estado mais do que ele poderia dar,
mas percebeu que, na época em que predominam estruturas monopolistas, torna-se im-
possível a saída automática das crises, fazendo-se obrigatória a ação do Estado, ou seja,
seria impossível pensar o funcionamento da economia capitalista contemporânea sem
o papel do Estado, a despeito das teorizações dos que consideram o mercado um "Deus
ex machina" .
.'
o peso econômico do Estado cresceu desde então, a ponto de ter passado a represen-
tar, na década de 1960, mais de um terço do PIE nos principais países capitalistas,
sendo que em muitos países europeus chegou a superar os 50%. Nos EUA, a partici-
pação dos gastos públicos no PIE aumentou de 8,1% em 1929 para 33,2% em 1970;
na Alemanha, essa participação cresceu de 27% em 1928 (já crescera durante a Re-
pública de Weimar na década de 1920) para 42,5% em 1969.
4 Evidentemente, esse recurso a um método socialista no capitalismo tinha seus limites: (a) em primeiro lugar,
porque não podia ser tão consciente assim, já que, mergulhados na disputa diária pela busca do maior lucro, os
capitalistas não conseguem ter consciência do conjunto da realidade econômica para planejá-Ia globalmente,
ao mesmo tempo em que seus representantes no interior do Estado, ainda que possam ter uma visão aparente-
mente mais abrangente, têm sua consciência limitada pelos interesses particulares - dos capitalistas - que têm
de defender; (b) em segundo lugar, porque uma economia fundada na propriedade privada e na busca do lucro
limita, naturalmente, o alcance da ação do Estado. A ação do Estado só se realiza se conseguir garantir esse
lucro e esses interesses privados.
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assim que, por ocasião da realização dos ''Acordos de Bretton Woods", em 1944,
--'"",,'m-se instituições multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI),
co Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), conhecido como
Mundial, e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt), que, em 1994,
- origem à Organização Mundial do Comércio (OMC).
acordo inicial previa que o FMI, que começou suas operações em 1947, deveria
os países membros de um código de conduta internacional, zelar pelo seu cum-
::=::e;;;:rro e prover de liquidez os países que entrassem em dificuldade em suas contas
~;:;;.25 (BAUMANNet al., 2004:374-375).
3anco Mundial também começou suas operações em 1947. Segundo Baumann et al.,
via nela o risco de perda de autonomia na definição de sua política de comércio exterior,
bastante protecionista.
Três anos depois da Conferência, chegou-se a um acordo: não seria criada uma ins-
tituição, mas apenas um foro para a discussão das questões relacionadas ao comércio
internacional. Instituiu-se, então, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt, na sigla
"
em inglês).
Outra importante decisão da Conferência consistiu na instituição de um novo padrão
monetário internacional. O sistema monetário internacional, que antes se baseava no
padrão-ouro, passou a ter o dólar como principal referência monetária internacional."
Inicialmente funcionando apenas em acordos bilaterais e ocupando a libra o segundo
lugar, esse novo padrão monetário, centrado no dólar, generalizou-se a partir de 1958.
Desde então, "não apenas as moedas dos diversos países tornaram-se conversíveis entre
si, via operações de mercado, como incluía a conversibilidade do dólar em ouro, à taxa
de US$ 35 por onça de ouro" (BAUMANNet al., 2004:373).
5 Vale registrar que, durante a Conferência, John Maynard Keynes, quê representava o governo inglês, propôs
que o novo padrão monetário internacional, em lugar de basear-se na moeda de um único país, se sustentasse
numa cesta de moedas dos principais países. Mas a delegação dos EUAimpôs o dólar como "dinheiro mundial".
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~ 1970, por exemplo, enquanto os salários por hora pagos nos EUAeram, em termos médios, de US$ 4,20,
.2:;lão eram de US$ 0,99 e na Alemanha de US$ 2,32 .
.êja Capítulo 6.
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.'
Dois fatores, porém, compensaram essa tendência no período:
Em primeiro lugar, como já vimos, o salário real, mesmo que crescendo no período,
o fazia a uma taxa inferior ao aumento da produtividade do trabalho. Portanto, o au-
mento da relação lucro-salário contrabalançava a tendência à queda da taxa de lucro.
Em segundo lugar, ocorreu, então, o barateamento relativo das matérias-primas pro-
duzidas nos países do Terceiro Mundo e adquiridas pelos países desenvolvidos. Isso
pode ser demonstrado através dos termos de intercâmbio? dos produtos manufatura-
dos dos países ricos em relação aos produtos primários oriundos dos países pobres.
A produtividade do trabalho na indústria, como é natural, se desenvolve mais rapi-
damente do que na agricultura. Por isso, o valor dos produtos industriais deveria,
em princípio, baixar mais rapidamente do que o valor dos produtos primários. Os
preços destes últimos deveriam, portanto, aumentar mais rapidamente do que os
dos primeiros, ou seja, a relação de troca (relação entre os preços) deveria variar a
seu favor. Entretanto, de 1953 a 1968, a relação variou de 170 para 187 a favor dos
produtos industriais. Isso significa transferência de renda produzida na agricultura e
mineração dos países pobres para os monopólios industriais dos países ricos.
Poder-se-ia pensar que esse impulso ao crescimento da economia dos países desen-
volvidos no período de pós-guerra poderia ser bloqueado por uma eventual limitação do
mercado. Não que o mercado mundial estivesse caindo, mas poderia crescer menos do que
a produção, devido exatamente aos fatores que estavam contribuindo para elevar a taxa
de lucro: a contenção salarial nos países ricos (crescimento salarial inferior ao aumento da
produtividade) e a drenagem de renda a partir dos países pobres. Acrescente-se a isso a
subtração de parte do mercado mundial capitalista decorrente do ingresso de novos países
no campo socialista.
Essa deficiência do mercado, no entanto, foi, em grande medida, compensada pela
deflagração da corrida armamentista, estimulada pelo clima de "guerra fria" e favore-
cida, inicialmente, pela guerra contra a Coreia. A indústria bélica, que experimentara
importante crescimento antes e durante a Segunda Guerra, passou, a partir de então, a
8 No capítulo anterior, demonstramos matematicamente a tendência da taxa de lucro a cair ao 'longo do pro-
cesso de expansão da economia capitalista.
9 Termo de intercâmbio é a relação de troca entre produtos exportados e produtos importados, ou, dito de
outra forma, é o poder de compra dos produtos exportados. Para calculá-lo, divide-se o índice de preço dos
produtos exportados pelo índice de preço dos produtos importados (ver Elementos de Economia Internacional no
sítio <www.EditoraAtlas.com.br».
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estionário
ências bibliográficas