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Um conto exagerado sobre a falta de escrúpulos, um filme sobre a ganância e enriquecimento

ilícito, um diretor dando vazão a insanidades por puro entretenimento. O Lobo de Wall Street,
de Martin Scorsese, indicado a cinco Oscar, é tudo isso, mas é algo ainda mais importante: um
filme sem nenhuma ótica moralista, o que está cada vez mais difícil de encontrar na Hollywood
atual, cada mais conservadora e pouco disposta a melindrar sua audiência.

Aos 71 anos de idade Martin Scorsese parece um garoto talentoso e rebelde – sob efeito de
pílulas de ácido, evidentemente – comandando o trabalho de sua vida, tamanho o vigor do
fascinante “O Lobo de Wall Street”. Diferente de contemporâneos que vêm regredindo
artisticamente à medida que envelhecem e indo rumo ao conservadorismo (ouviu, Spielberg?),
Scorsese não procurou domar a personalidade controvertida do anti-herói Jordan Belfort, mas
deixou-a livre para que, a partir da característica que melhor o define - a ganância -
escancarasse a porta de entrada do mundo de excessos dos milionários de Wall Street e
encenasse seu tema favorito: a ascensão e queda de uma personalidade forte.

Escrito por Terence Winter a partir da autobiografia de Jordan Belfort, O Lobo de Wall Street
adota o ponto de vista do protagonista e emprega o flashback para contar a trajetória de
Belfort, do cargo de analista financeiro ao de dono de uma corretora multimilionária junto ao
amigo Donnie (Jonah Hill) e ainda alvo do incorruptível agente do FBI Patrick Denham (Kyle
Chandler). Também acompanhamos seu casamento sinuoso com Naomi (Margot Robbie), a
manobra para lavar dinheiro no paraíso fiscal suíço com o ardiloso banqueiro Saurel (Jean
Dujardin) e os vários – e hilários – eventos provocados por excesso de drogas.

Scorsese emprega narrações em off na sua obra que não apenas servem para guiar o
espectador através daquele mundo, mas também para comentar a própria narrativa. O Belfort
de Leonardo DiCaprio mal consegue ocultar o desprezo que sente pela própria plateia,
frequentemente comentando, de forma condescendente e ofensiva, não acreditar em nossa
capacidade de compreender os esquemas financeiros que comandava. Já em outros
momentos, o diretor usa o off para revelar o que um personagem realmente está pensando
sobre o outro, como nos hilários diálogos entrecortados entre o especulador e o banqueiro
suíço.

Já em outros instantes, o cineasta utiliza manipulações claras de narrativa ao criar situações de


humor, como ao transformar uma pequena escada em outra que parece ter dezenas de
degraus enquanto um personagem despenca por estes, ou ao encenar aquela que
provavelmente é uma das brigas mais lentas da história do Cinema, e durante a qual a música-
tema de “Popeye” é empregada de maneira surpreendente.

Sem efetuar o menor juízo moral do protagonista – a decisão mais sensata e que quase
ninguém tomaria -, Scorsese diverte-se com o circo de horrores regrado a álcool, drogas,
pílulas, sexo e dinheiro, mas não se deixa seduzir por isso. Enquanto um diretor menos
experiente provavelmente buscaria retratar a história do protagonista de maneira direta e
objetiva para estabelecer sua falta de escrúpulos, o cineasta opta por, em vez de ressaltar o
óbvio, exagerar e mostrar as ações de Belfort com o tom de ridículo que estas inspiram,
enfatizando os absurdos do cotidiano dele e levando o espectador ao riso – mas com o cuidado
de garantir que, de modo geral, estejamos rindo dos personagens, não com estes.

E é admirável que, em vez de se encarregar de condenar o personagem para o espectador,


Scorsese permita que constatemos sozinhos a natureza de Belfort. Ele está ali para
documentar um personagem que é vaidoso ao extremo e adora ser o centro dos holofotes.
Assim, para registrar apropriadamente tudo o que Wall Street tem a oferecer, Scorsese deixa
palavrões correrem solto, as orgias desenrolarem-se sem pudor e a personalidade de Belfort e
seus associados transformarem, inclusive, o arremesso de anões em um espetáculo dentro da
firma.

Mesmo nos momentos de humor mais escrachado, O Lobo de Wall Street deixa claro estar
enfocando personagens desprezíveis: “Não criamos nem construímos nada”, diz o corretor de
McConaughey, por exemplo, enquanto em outro instante Belfort tenta provar sua boa
natureza ao contar que deu dinheiro para uma colega, entregando que seu sentimentalismo é
mensurado em dólares.

Mas não tem como falar de O Lobo de Wall Street e não mencionar o elenco que Scorsese
escalou. O diretor Rob Reiner, que retornando as origens como ator surge no longa como o
explosivo pai de Belfort, que se destaca pelo carinho com que reprime as piores atitudes do
filho, ainda que paradoxalmente as aceite e usufrua delas.

Temos também Jonah Hill, novamente indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante. Scorsese
foi sábio ao escalar um comediante como Jonah para formar dupla com DiCaprio – e é
impressionante como o ator consegue ao mesmo tempo trazer seu timing cômico para o papel
enquanto retrata também as inseguranças, a ganância, o descontrole e a arrogância de
Donnie, numa composição surpreendentemente complexa.

E Matthew McConaughey, favorito no Oscar por Clube de Compras Dallas, quase rouba o filme
inteiro com sua única cena. Ele aparece em uma participação pequena, mas inesquecível,
intensa e hipnotizante. Sua ausência é sentida durante todo o filme.

Entretanto, este é um show de Leonardo DiCaprio, tanto pela extensão – ele está em quase
todas as cenas do filme – quanto pelo empenho. O ator exibe uma segurança invejável ao
carregar a narrativa. Apresentando-se inicialmente como um jovem inseguro, Jordan Belfort
eventualmente se torna uma figura desprezível, mas – e isto é fundamental para o sucesso do
filme – sempre fascinante e divertida. O personagem é incapaz de sentir remorso ou de
perceber as consequências de seus atos – e quando diz se “sentir horrível” em função do que
ocorreu com um conhecido, o sentimento dura apenas alguns segundos, como se tivesse sido
verbalizado apenas como estratégia para se humanizar diante do espectador.

Brilhante tanto nas sequências que exigem humor físico quanto nas cenas em que precisa
descartar qualquer sombra de dignidade, DiCaprio ainda consegue conferir suavidade às ações
de Belfort – o que leva a uma das melhores cenas do filme: a conversa a bordo de um iate com
o agente federal vivido com talento por Kyle Chandler. Partindo da tentativa por parte de
Belfort de criar intimidade com o agente Denham, quando exibe de forma sutil sua riqueza
para estabelecer seu poder, e sendo gradualmente substituída por esforços consecutivos de
soar humilde e condescendente até culminar numa sugestão de suborno que dá lugar à
frustração, à raiva e ao descontrole absoluto.

O Lobo de Wall Street é diferente. É um longa que foge da armadilha de lançar uma opinião
formada sobre um homem e sua trajetória. Não é uma exaltação ao excesso, como muitos se
apressaram em julgar, mas um olhar sobre as consequências de alguém que decidiu ligar o
foda-se. Assim como Scorsese. Ao nos impor a perspectiva do personagem sem meios termos -
a ponto de o filme abrir não com a vinheta da Paramount e sim com a da empresa de Belfort –
o diretor desafia o espectador a questionar não só o que vê mas também o que sente.

O melhor filme da temporada de premiações, O Lobo de Wall Street é Martin Scorsese


dopado, lúcido e hipnótico. Paradoxos a parte, é mais uma prova de que a arte rejuvenesce
com o tempo.

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