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O drama “Ela” conta história curiosa de um homem que se apaixona por uma máquina.

Soa
estranho ou bobo, mas felizmente, o filme não se limita a este elemento criativo. “Ela” retrata
as novas formas do amor de maneira geral, e consegue transformar o relacionamento entre o
escritor Theodore e o sistema operacional Samantha em um dos mais belos romances que o
cinema construiu no século XXI.

Spike Jonze apresenta seu protagonista com um olhar afetuoso, mas também o coloca em
praticamente todos os conflitos afetivos, éticos e morais que uma história de amor deste tipo
poderia provocar. O roteiro explora o ciúme, a possessão, o sexo, a distância e a noção de
pertencimento nos relacionamentos atuais, sem jamais parecer um “filme-tese”. Pelo
contrário, com seu tom leve e trilha sonora agridoce, a narrativa constrói uma viagem linear,
agradável e hilária em diversos momentos, sem a necessidade de plot twists e reviravoltas
para despertar o interesse do espectador.

O futuro imaginado por Jonze é triste, individualista, melancólico, onde a tecnologia fornece
apenas meios de encontrar o amor pela Internet, fazer sexo virtual, pagar para terceiros
escreverem cartas pessoais, divertir-se sozinho com videogames realistas. O diretor não aposta
em um conflito entre humanos e máquinas, e sim numa fusão tão completa entre os dois que
não se consegue mais imaginar uma interação humana sem a intermediação de um sistema
virtual. Para os personagens, o virtual é visto como um ideal a alcançar, um modelo de
perfeição para o real.

As atuações correspondem à atmosfera suave de toda a experiência: Joaquin Phoenix faz de


Theodore um homem inteligente e solitário, mas longe da imagem deprimente do “loser”
típico dos filmes indie. Ele é, acima de tudo, um homem qualquer, com quem todos poderiam
se identificar. Phoenix merece aplausos por, mesmo constantemente sozinho em cena,
convencer o espectador de estar sempre acompanhado pela namorada invisível.

Já Samantha, o sistema operacional, é vivida com intensidade por Scarlett Johansson,


lembrando que a voz é uma parte indispensável da atuação (uma versão dublada de Ela
destruiria o filme), e que um personagem complexo e interessante pode ser criado sem
nenhuma corporeidade além da tela de um smartphone. Johansson permite que Samantha
evolua aos poucos, torne-se cada vez mais humana e mais concreta, mas sem o sonho
fantástico de um dia se tornar real.

A voz do sistema operacional é capaz de demonstrar dor, confusão, ansiedade e carinho.


Parece compreender as frustrações e os desejos e pensamentos de Theodore com uma
sensibilidade que se torna possível graças à sua capacidade de vasculhar os arquivos de seu
computador e decifrar sua personalidade. Mais do que isso: ela exibe empatia. Suspira. Sofre –
ou emite sons que sugerem sofrimento e que, por isso, tocam o protagonista. Ao suspirar,
Samantha não está exibindo um traço biológico, mas um comportamento. E mesmo possuindo
um intelecto muito superior ao do namorado, ela jamais o julga por suas limitações, exibindo
um traço claramente humano: aquele que dita que o sentimento sempre acaba vencendo a
razão. Com isso, ela se torna tão real que nem mesmo os amigos de Theodore parecem
questionar seu relacionamento.

E por que questionar? Amamos livros. Amamos personagens da ficção, brinquedos e canções.
Amamos ideias e seus criadores. Amamos alguém com quem conversamos no Facebook ou no
Whatsapp e com quem vivemos relações que começam, se desenvolvem e mesmo terminam
através dos balõezinhos impessoais e artificiais de um aplicativo de telefone – o que não torna
estes sentimentos menos dolorosos ou reais. Os avatares que vemos nas redes sociais se
tornam eventualmente tão autênticos quanto os indivíduos que representam – e, em maior ou
menor grau, podemos dizer que amamos não aquelas pessoas com as quais nos envolvemos,
mas sim a ideia que construímos delas. Uma representação concebida através de suas ações e
de nossa percepção e interpretação destas.

Por fim, quando o espectador tem certeza de que esta será apenas uma linda história de amor
que celebra as paixões virtuais e defende a inclusão cada vez maior de máquinas em nossas
vidas, Spike Jonze reserva um final surpreendente, amargo e extremamente inteligente. Não,
este filme não é uma ingênua celebração da tecnologia, e sim uma reflexão profunda sobre
todos os aspectos que ligam os homens à máquina, e à projeção que fazemos dos nossos
amores na invisibilidade do meio virtual.

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