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Nos diferentes caminhos que Sócrates (469 a.C.-399 a.C.) e Descartes (1596-1650) trilham em
busca do conhecimento verdadeiro sobre a realidade, notamos um procedimento comum: ambos
desconfiam não só das opiniões e crenças de seu tempo, mas também das suas próprias ideias e
opiniões. Desconfiam, enfim, do dogmatismo. O que é dogmatismo?
Dogmatismo é uma atitude natural e espontânea que temos desde crianças. É nossa crença de
que o mundo existe e que é exatamente tal qual o percebemos. A realidade natural, social,
política e cultural forma uma espécie de moldura de um quadro: é no interior dela que nos
instalamos e existimos. Temos essa crença porque nos relacionamos com a realidade como se ela
fosse um conjunto de coisas, fatos e pessoas úteis ou inúteis para nossa sobrevivência.
Rompemos com o dogmatismo quando adotamos uma atitude de estranhamento diante das
coisas que nos pareciam familiares. Para ilustrar essa experiência, vejamos um trecho da crônica
“Nada mais que um inseto”, da escritora Clarice Lispector (1920-1977):
Custei um pouco a compreender o que estava vendo, de tão inesperado e sutil que era: estava
vendo um inseto pousado, verde-claro, de pernas altas. Era uma esperança, o que sempre me
disseram que é de bom augúrio. Depois a esperança começou a andar bem de leve sobre o
colchão. Era verde transparente, com per- nas que mantinham seu corpo, plano alto e por assim
dizer solto, um plano tão frágil quanto as próprias per- nas que eram feitas apenas da cor da
casca. Dentro do fiapo das pernas não havia nada dentro: o lado de dentro de uma superfície tão
rasa já é a própria superfície. Parecia um raso desenho que tivesse saído do papel, verde, e
andasse... E andava com uma determinação de quem copiasse um traço que era invisível para
mim... Mas onde estariam nele as glândulas de seu destino e as adrenalinas de seu seco verde
interior? Pois era um ser oco, um enxerto de gravetos, simples atração eletiva de linhas verdes.
LISPECTOR, Clarice. Nada mais que um inseto. In: . A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Rocco, 2008.
À primeira vista, o que há de mais banal ou familiar do que um inseto? No entanto, Clarice
Lispector nos faz sentir admiração e estranhamento, como se jamais tivéssemos visto um. Na
descrição maravilhada, a esperança (inseto aparentado aos grilos e gafanhotos) tem a
peculiaridade de ser uma superfície da qual não conseguimos distinguir ou separar o exterior e o
interior.
No entanto, nesse ser sem profundidade, há um abismo misterioso: o inseto esperança é um oco
(como alguma coisa pode ser apenas um oco?), um vazio colo- rido (como um vazio pode ter
cor?) ou uma cor sem corpo (como uma cor pode existir sem um corpo colorido?).
A perspicácia (1936), pintura de René Magritte (1898-1967). A atitude de estranhamento nos
permite conquistar um novo saber sobre os objetos. Observe o objeto que serve de modelo ao
pintor e a figura na tela pintada por ele. O que Magritte quer dizer com isso?
EXERCÍCIO 1
EXERCÍCIO 2
Pergunta 1: Qual é a relação entre a atitude dogmática e o conservadorismo, e como essa
relação pode levar ao preconceito?
Resposta 1: Uma atitude dogmática é caracterizada pela resistência a novidades e pelo
protecionismo das crenças já toleradas. Isso pode resultar em conservadorismo, que por sua vez
pode transformar-se em preconceito, ou seja, em ideias preconcebidas que impedem o contato
com o desconhecido e ameaçam as crenças existentes.
Pergunta 2: De acordo com o texto, qual é a preocupação filosófica decorrente do conflito entre
verdades reveladas e verdades alcançadas pela razão? Como esse conflito levanta
questionamentos sobre a culpabilidade das pessoas em relação ao conhecimento divino?
Resposta 2: O conflito entre verdades reveladas (baseadas em fontes sagradas ou divinas) e
verdades alcançadas pela razão é uma preocupação filosófica destacada no texto. Ele levanta
questões sobre a possibilidade de conhecer as verdades divinas e se as pessoas podem ser
consideradas culpadas por não conhecer algo que está além do alcance da capacidade da razão
humana em relação à planejada.
EXERCÍCIO 2
Pergunta 1: Qual é a relação entre a atitude dogmática e o conservadorismo, e como essa
relação pode levar ao preconceito?
Pergunta 2: De acordo com o texto, qual é a preocupação filosófica decorrente do conflito entre
verdades reveladas e verdades alcançadas pela razão? Como esse conflito levanta
questionamentos sobre a culpabilidade das pessoas em relação ao conhecimento divino?
1. AS CONCEPÇÕES DA VERDADE
Nossa ideia da verdade foi construída ao longo dos séculos com base em três concepções
diferentes.
Em grego, verdade se diz alétheia, palavra composta do prefixo a (‘negação’) e de léthe
(‘esquecimento’). Alétheia significa ‘o não esquecido’. Platão (427 a.C.-347 a.C.) fala da verdade
como “o que é lembrado ou não esquecido”. Por extensão do sentido, alétheia também significa ‘o
não escondido’, aquilo que se manifesta ou se mostra aos olhos do corpo e do espírito. O
verdadeiro se opõe ao falso, pseudos, que é o encoberto, o dissimulado, o que não é como
parece. O ver- dadeiro é o plenamente visível para a razão ou o evidente (pois a palavra evidência
significa ‘visão completa e total de alguma coisa’).
Assim, a verdade é uma automanifestação da realidade. O verdadeiro está nas próprias coisas
quando o que elas manifestam é sua realidade própria, sua essência, conheci- da pelos olhos do
espírito ou pelo pensamento. Por isso, na concepção grega, o verdadeiro é o ser (o que algo
realmente é) e o falso é o parecer (o que algo aparenta ser e não é).
Em latim, verdade se diz Veritas e se refere à precisão e ao rigor de um relato. Verdadeiro se
refere, portanto, à linguagem como narrativa de fatos reais. A verdade de- pende, de um lado, da
memória e da capacidade mental de quem fala e, de outro, de que o enunciado corresponda aos
fatos. A verdade não se refere às próprias coisas (como na alétheia), mas à veracidade de um
relato e ao enunciado de um fato, referindo-se à linguagem. Seu oposto, portanto, não é a
aparência, e sim a mentira ou a falsificação. As coisas e os fatos são reais ou imaginários; já os
relatos e enunciados sobre eles são verdadeiros ou falsos (mentirosos).
Em hebraico, verdade se diz emunah, que significa ‘assim seja’ ou ‘confiança’. Agora são as
pessoas e Deus quem são verdadeiros e, para isso, devem ser fiéis à pa- lavra dada. A verdade se
refere às relações entre as pessoas e entre elas e Deus quando firmam um pacto ou fazem uma
promessa que deve ser cumprido. Por isso, a verdade refere-se ao futuro – à promessa que se
cumprirá. Sua forma mais elevada é a revelação divina que promete felicidade ao seu povo –, e
sua expressão mais perfeita é a profecia – na qual Deus diz aos humanos qual será a sua vontade
ou a sua decisão sobre alguma coisa que acontecerá. Essas ideias estão presentes na palavra
amém, com a qual um fiel aceita a vontade divina, dizendo “assim seja”.
A nossa concepção de verdade é uma síntese dessas três concepções, e por isso se refere à
percepção das coisas reais (como na alétheia), à linguagem que relata fatos passados (como na
veritas) e à expectativa de coisas futuras (como na emunah). Ou seja, nossa concepção de
verdade abrange o que é (a realidade), o que foi (os acontecimentos passados) e o que será
(previsões corretas sobre ações futuras). De maneira geral, esses três aspectos também estão
presentes naquilo que a filosofia define como uma ideia verdadeira.
EXERCICIO 1:
Pergunta 1: Quais são as três concepções diferentes da verdade personalizadas no texto e como
são representadas nas línguas grega, latina e hebraica?
Pergunta 2: De acordo com a concepção grega da verdade, qual é a relação entre o verdadeiro e
o falso? Como é expressar a natureza do verdadeiro nessa concepção?
Pergunta 3: Como a concepção hebraica da verdade difere das concepções grega e latina? Qual
é a ênfase principal da verdade nessa concepção hebraica?
EXERCICIO 2
Pergunta 1: Como a teoria da correspondência se relaciona com a concepção da alétheia e como
define o conhecimento verdadeiro?
Pergunta 2: Qual é a característica central da teoria da supervisão e como ela se relaciona com a
concepção da veritas? Como essa teoria define as ideias verdadeiras?
Pergunta 3: Qual é o fundamento da teoria do consenso e como ela se relaciona com a
concepção da emunah? O que define o conhecimento verdadeiro nessa teoria?
3. VERDADE E FALSIDADE
Segundo a concepção grega da verdade, aquilo que manifesta sua existência para nossa
percepção (ou seja, a realidade) é o verdadeiro ou a verdade. Por esse motivo, os filósofos gregos
perguntam: como o erro, o falso e a mentira são possíveis? Em outras palavras, como podemos
pensar naquilo que não é, no não ser?
A resposta dos filósofos chamados racionalistas (tanto gregos como modernos) é dupla:
1. O erro, o falso e a mentira se referem à aparência superficial e ilusória das coisas e surgem
quando não conseguimos alcançar a essência das realidades; são um defeito ou uma falha de
nossa percepção sensorial ou intelectual.
Quando os filósofos afirmam que a verdade é a conformidade ou a correspondência entre uma
ideia e a coisa ideada, não estão dizendo que uma ideia verdadeira é uma “cópia” da coisa
verdadeira. Como disse Espinosa (1632-1677), a ideia de cão não late e a de açúcar não é doce.
O que afirmam é que a ideia corresponde à coisa conhecida porque é o conhecimento daquilo que
a coisa é. Ou seja, a ideia é o conhecimento dos componentes necessários da coisa, ou das
relações internas necessárias que constituem a essência da coisa, bem como das relações e nexos
necessários que ela mantém com outras. Da mesma maneira, uma ideia não é a “cópia” de um
fato, e sim a explicação racional das causas, consequências e significação dele.
2. O erro, o falso e a mentira surgem quando dizemos de algum ser aquilo que ele não é,
quando lhe atribuímos qualidades ou propriedades que ele não possui ou quando lhe negamos
qualidades ou propriedades que ele possui. Nesse caso, o erro, o falso e a mentira se alojam na
linguagem e acontecem no momento em que fazemos afirmações ou negações que não
correspondem à essência de alguma coisa. Eles são um acontecimento do juízo ou do enunciado.
O que é um juízo? É um ato mental pelo qual atribuímos a alguma coisa certas propriedades e lhe
recusamos outras. O juízo estabelece uma relação entre dois termos (um sujeito e um predicado)
por meio de uma proposição, cuja forma mais simples é “S é P” ou “S não é P”. Um juízo é
verdadeiro quando aquilo que o predicado afirma ou nega do sujeito corresponde ao que a coisa
é; caso contrário, é falso.
Há, porém, uma diferença entre o erro e a mentira. O erro é um engano do juízo e ocorre quando
desconhecemos a essência de um ser. A mentira, porém, é um juízo deliberadamente errado:
ocorre quando emitimos propositalmente um juízo errado sobre uma coisa, embora conheçamos
sua essência.
O que é a verdade? É a conformidade entre nosso pensamento e nosso juízo e as coisas pensadas
ou formuladas. Qual é a condição para o conhecimento ver- dadeiro? A evidência, isto é, a visão
intelectual da essência de um ser. Para formular um juízo verdadeiro precisamos, portanto,
primeiro conhecer a essência, e a conhecemos ou por intuição, ou por dedução, ou por indução.
A verdade exige que nos libertemos das aparências das coisas para ver intelectualmente a
essência delas; exige, portanto, que nos libertemos das opiniões estabelecidas e das ilusões de
nossos órgãos dos sentidos. Em outras palavras, a verdade é sempre universal e necessária,
enquanto as opiniões variam de lugar para lugar, de época para época, de sociedade para
sociedade, de pessoa para pessoa.
Do mesmo modo, nossas sensações ou impressões sensoriais variam conforme o estado do nosso
corpo, as disposições de nosso espírito e as condições em que as coisas nos aparecem. Por isso,
devemos ou abandonar as ideias base sensorial que são necessários e universais e, por isso,
capazes de perceber em parte algo da essência das coisas (como diz, por exemplo, Aristóteles).
No primeiro caso, somente o intelecto (espírito) vê o ser verdadeiro. No segundo caso, o intelecto
purifica o testemunho sensorial das nas nossas sensações (como dizem Sócrates, Platão,
Descartes), ou encontrar aqueles aspectos da experiência
A mentira (1650), pintura de Salvator Rosa (1615-1673). Quando conhecemos realmente alguma
coisa, mas intencionalmente fazemos um juízo errado sobre ela, estamos mentindo ou dizendo o
falso.
EXERCICIO 3.
Pergunta 1: Como os filósofos racionalistas explicam a ocorrência do erro, do falso e da mentira
de acordo com a concepção grega da verdade?
Pergunta 2: Qual é a relação entre a teoria da correspondência e a explicação dada pelos
filósofos sobre o erro, o falso e a mentira?
Pergunta 3: Qual é a diferença fundamental entre o erro e a mentira de acordo com o texto?
Como a teoria da verdade se relaciona com a necessidade de conhecer a essência das coisas?
EXERCICIO 4
Pergunta 1: Como o texto ilustra a relação entre os enganos dos sentidos e a percepção das
qualidades das coisas? Qual é a implicação desses enganosos para a concepção da verdade?
Pergunta 2: Como a ideia latina da verdade como veracidade de um relato muda o foco do
problema da verdade e da falsidade? Como a pergunta filosófica sobre a possibilidade da verdade
é reformulada nesse contexto?
6. VERDADE OU HÁBITO?
No século XVIII, o filósofo escocês David Hume (1711-1776) criticou a pretensão de filósofos e
cientistas de conhecer a verdade da própria realidade. Para ele, o que chamamos de razão é
simplesmente o hábito que adquirimos de associar sensações, percepções e lembranças. As ideias
são essas associações, e não a explicação de como as coisas são em si mesmas. Por acreditar que
adquirimos todas as ideias pela experiência (em grego, empiria), Hume é considerado um filósofo
empirista.
O exemplo mais importante oferecido por Hume é o da origem do princípio da causalidade, tido
como fundamento das verdades científicas.
Nesta experiência de dilatação térmica, vejo que a esfera fria atravessa o aro, mas depois
constato que a mesma esfera, após ser aquecida, não mais o atravessa por causa da expansão de
seu volume. Para Hume, à medida que repetimos uma experiência e observamos o mesmo
resultado, criamos o hábito de associar os fatos em relações de causa e efeito.
A experiência me mostra, o tempo todo, que, se eu puser um objeto sólido (um pedaço de vela,
um pedaço de ferro) no calor do fogo, não só ele derreterá como também passará a ocupar um
espaço muito maior no interior do recipiente.
Séries de experiências desse tipo vão criando em mim o hábito de associar o calor a fatos iguais
ou semelhantes que já percebi inúmeras vezes. E isso me leva a dizer que o calor é a causa
desses fatos. Como os fatos são de aumento do volume ou da dimensão dos corpos submetidos
ao calor, concluo que “o calor é a causa da dilatação dos corpos” e também que “a dilatação dos
corpos é o efeito do calor”. É assim, diz Hume, que surge a ideia de causalidade e nascem as
ciências. Ora, ao mostrar como se forma o princípio da causalidade, Hume afirma que não apenas
as ideias se originam da experiência, mas também os próprios princípios da racionalidade são
empíricos. Mais do que isso: vimos que, na busca da verdade, a razão pretende conhecer a
realidade tal como ela é em si mesma, considerando que o que conhece é verdadeiro para todos
os tempos e lugares (universalidade) e indica como as coisas são e como não poderiam ser de
uma outra maneira (necessidade).
Ora, com Hume já não se pode admitir que o conhecimento racional seja dotado de universalidade
e necessidade, pois estas não são propriedades inerentes às próprias coisas e às ideias com que
as conhecemos. O universal é apenas uma palavra geral que usamos para nos referir à repetição
de semelhanças percebidas e associadas. O necessário é apenas uma palavra geral que usamos
para nos referir à repetição das percepções sucessivas no tempo. O universal, o necessário e a
causalidade são meros hábitos psíquicos. E o mesmo de- vemos dizer da verdade.
EXERCICIO 6
Pergunta 1: Como David Hume critica a noção de verdade baseada na razão e no conhecimento
racional? Como ele relaciona a ideia de hábito às associações de sensações e ocorrências?
Pergunta 2: Qual é o exemplo fornecido por Hume para ilustrar como o princípio da causalidade
é formado? Como ele argumenta que os princípios da racionalidade são empíricos?
Pergunta 3: Como Hume desafia a noção de universalidade e necessidade no conhecimento
racional? Qual é o papel do hábito psíquico na concepção de verdade de acordo com Hume?