Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
das novas formas que fazem parte da trama social. Também nos fazem duvidar se
roupagens que vestem antigas estruturas, mas que nos impõem uma reflexão continua
sobre o tema. Será que os casais terão mudado? Ou será que persistem antigas
aos momentos atuais? Além de como enxerguemos o lugar e a conformação dos casais
casais, assim como qualquer outra formação social, também carregam as configurações
de todos os tempos.
clínica nos desafia a pensar e tentar dar conta das questões que aparecem nela.
Começarei por definir o conceito de vínculo do qual parto, para depois focar no
serem discutidas.
O termo vínculo descreve uma relação de dois sujeitos ou mais e um laço que
conscientes e inconscientes dos sujeitos estão presentes, permeando a ligação entre eles,
1
conformando uma representação vincular inconsciente. Os sujeitos que formam parte do
vínculo têm uma presença que faz confronto um com o outro, o efeito dessa presença
“Um vínculo é construído por uma ligação duradoura entre duas ou mais
vincular desenha um fazer entre dois, a partir do qual esses dois se instituem como
novos sujeitos desse vínculo. O relacionamento inclui uma diferença, já que cada um é
“ajeno”1, alteridade, diferente radical para o outro. O vínculo determina esses dois
sujeitos com base no que acontece entre eles”. (WEISSMANN, L. 2008, p.33)
inconsciente que, ligando dois ou mais sujeitos, os determina em base a uma relação de
se escolhem para se constituir como esse dado casal. Dessa forma constituiriam um
vínculo em que um se reconhece frente ao outro como aquele outro privilegiado que
constitui esse par. Remetemo-nos a uma escolha especifica em que um sujeito escolhe
1
O conceito de ajeno é usado em espanhol, por não ter achado nenhum sinônimo que o traduza
com seu sentido próprio. O termo abarca a tradução de:estranho, estranhamento, alteridade,
diferença radical. “Em uma relação significativa, a ajenidad é todo o registro do outro que não
conseguimos inscrever como próprio”. (BERENSTEIN, 2004, P.35) Esse conceito é central no
presente trabalho.
2
outro sujeito, para constituir-se respectivamente naquele outro privilegiado. Poderíamos
muito melhor do que a ciência consegue. Assim se fala de: a meia laranja, a cara
imaginário social, um lugar para cada um dos sujeitos que conformam o casal, como
aqueles que fazem parte desse determinado vínculo. A antropologia designa o casal
como uma estrutura marcada pela cultura em que esses dois sujeitos constituem uma
configuração que se sustenta como a base da futura família. Essas inscrições da cultura
diferentes, isto é, uma relação intersubjetiva estável entre um sujeito e outro sujeito, no
qual cabe o mundo intra-subjetivo de cada um, constituindo o vínculo uma área
“Seria o caso de nos perguntar quando falamos de outro como objeto externo e
quando falamos do outro como objeto da pulsão. Aqui nos defrontamos com a fronteira
inclui o espaço intersubjetivo. Assim, Isidoro Berenstein enfatiza que “o outro e sua
trabalho vincular como tarefa a ser construída. A tarefa vincular poderia ser descrita
outro é que cada sujeito consegue se vincular realmente. Estar vinculados significa
aceitar que esses dois sujeitos são dois outros respectivamente. Assim nos aproximamos
da difícil e laboriosa tarefa que propõe o outro como “ajeno”, diferente radical,
vincular posterior. No namoro cada sujeito cobre o outro sujeito do vínculo com suas
projeções internas, para conseguir enxergar o outro como alguém que reproduz aquilo
4
Para tentar desvendar o que é o momento de namoro vou recorrer aos poetas,
pois eles sempre foram os que estiveram mais perto de conseguir descrever, ou abraçar
com palavras, aquilo que por momentos resulta tão inapreensível e inatingível, quanto o
namoro.
Nelson Rodrigues diz: “Eu sou um romântico num sentido quase caricatural.
Acho que todo amor é eterno e, se acaba, não era amor. Para mim, o amor continua
além da vida e além da morte. Digo isso e sinto que se insinua nas minhas palavras um
ridículo irresistível, mas vivo a confessar que o ridículo é uma das minhas dimensões
Amar o próximo como a si mesmo e a Deus sobre todas as coisas”. (ibidem, p. 35)
p.74).
5
E finalmente Clarisse pergunta para Chico Buarque: “O que é o amor?” E ele
onipotente e omnissapiênte, que tudo pode e tudo sabe, condensado nas palavras: Deus,
abranger o fenômeno, nas palavras “não sei,” “não consegui”. Isso parece nos descrever
Chico Buarque oferece um ato de amor no dialogo que estabelece com Clarisse
Lispector. Primeiro fala que o amor não é possível de ser enquadrado e fixado em uma
não pode ser definido nem apriori nem aposteriori, mas inclui uma situação que impõe
aos sujeitos a necessidade de dar uma resposta. Mas quando Chico pergunta a
entrevistadora “E você?”, ai estaria nos apresentando com o maior ato de amor que
inclui dar a palavra ao outro e depois reconhecer que o sujeito não sabe. A partir desse
não saber é que o sujeito precisa do outro para executar esse ato extremo de entrega no
amor, que também inclui a aceitação de uma carência pessoal “Eu não sei”. Percebemos
também que no amor aparece um intercambio possível de dois sujeitos que se entregam
um ao outro, sem saber bem a que, mas com vontades e possibilidades de estabelecer
trocas.
Por último gostaria de citar Machado de Assis que em 1872, em seu livro
6
“O amor... não nasce de uma circunstancia fortuita, nem de uma longa intimidade, é
O poeta descreve dois sujeitos que por momentos se perdem neles mesmos e por
integrantes do casal.
características que envolvem o outro com sua presença. O ditado popular diz que: está
incluso no pacote.
7
Como poderia acontecer toda essa evolução do namoro ao amor, sem que o
vínculo fique detido nas cobranças que não conseguem restaurar a ferida imposta pela
presença do outro?
princípio de prazer. O namoro é movido pela tendência passional e pelo ideal, emquanto
O amor poderia ser definido como uma cena que sustenta as diferenças, e
conseguem ir além deles mesmos. Quando Fernando Sabino ao definir o amor nomeia a
Deus, estaria nos revelando uma figura que vai alem de si mesmo. Essa seria a essência
de viver a experiência do amor, conseguir dar uma bem-vinda ao outro indo alem de nos
mesmos.
convicções. Isso faz parte da experiência de estar com outro (GOTTLIEB, 2007)2
2
“El encuentro con el otro implica, a veces, un descoloque, una descentralización de nuestras ideas,
convicciones. Esto como parte de la experiencia de estar con otro”. (GOTTLIEB, 2007).
8
predomínio do funcionamento de terceiridade. No funcionamento de dualidade o
sujeito considera o outro de forma muito próxima à representação intrapsíquica que ele
tem, porém o outro ficaria representado na fantasia e nos objetos internos daquele que o
acesso a ter registro das diferenças do outro, constituindo- se esse outro, como
2008, p. 53)
Vemos como os autores vão tentando construir uma teoria que dê conta dos
sujeitos do vínculo: das diferenças,das presenças dos dois egos que fazem parte do
vínculo, o que implicaria que se reconheçam como dois outros como “ajenos”.
9
O dicionário Aurélio determina que o conceito de alteridade deriva do latim “alter”que
(FERREIRA, 2004).
A questão que se impoe, e que esse texto se propõe a pensar é porque resulta tão
dolorido e difícil que isso aconteça nos casais? Por que o vínculo escolhido para ser o
terapêuticas? Porque resulta tão pouco tolerado a aqueles dois sujeitos que fazem parte
inicio do trabalho analítico Pedro diz: “Eu já sei como Ana pensa, eu a conheço faz
tanto tempo, faz 10 anos que estamos casados. Ela também sabe como eu penso. Porem
eu não sei por que é tão difícil de nos entendermos, e temos que vir à consulta com
você.”
enxergar Ana como alguém “ajeno” a ele, com uma “ajenidad” que lhe habilite a pensar
por si só, não só a pensar de forma diferente a Pedro, mas sim a pensar como sujeito
alter, diferente do outro. Mas quando Ana tem o espaço para pensar por si só, não
consegue fazê-lo, e recorre a Pedro, ela o chama incansavelmente para tomar decisões.
Ana sente seu mundo desabar quando Pedro não atende o telefone celular; nesse
3
Partimos do conceito de psiquismo com uma tripla espacialidade o espaço intrasubjetivo no qual se
inclui o eu e seus objetos internos, o espaço intersubjetivo constituído pelo eu e seus vínculos e o espaço
transubjetivo do eu com suas marcas do social e da cultura.
10
momento parece que a sua sustentação narcísica cai e se sente inundada pela angústia;
Pedro diz: “Você acha que se eu não atendo o telefone ela tem que insistir 23 vezes! Eu
tinha 23 chamadas perdidas dela no celular. Ela não poderia imaginar que deixei o
Ana contesta: “Se você não responde o celular eu tenho medo de que alguma coisa
Alguns autores nomeiam esse momento como de “dês namoro”, perda da etapa de
que os habilite a serem dois sujeitos, outros entre si, com uma alteridade possível.
Atravessar a etapa das cobranças que são proporcionais a ferida narciscica sofrida, traria
depois, no advento do amor a possibilidade de aceitar que o outro existe para alem de si
mesmo.
um lugar para partilhar a dor da perda do namoro. Momento que será preenchido com
cobranças, que deverão dar conta da ferida narcísica que esse processo acarreta.
transpor as barreiras da dor, e assim construir juntos, outras possibilidades com que dois
11
sujeitos podem se relacionar em um vínculo, com espaço para o amor, amor ao outro,
Mas por que a dor é tão grande quando a alteridade não pode ser aceita no
vínculo de casal?
O casal se inicia com uma promessa de namoro “para toda a vida”, “felizes para
sempre”, “até que a morte os separe”, assim é considerado tanto pela lei quanto pela
religião, e essa seria uma fantasia difícil de abandonar. Por outro lado a hipótese que
dualidade, visualizados nos ditados populares que apresentam o casal como o espaço
contexto que os rodeia assim o casal pareceria estar eximido de aceitar o conflito como
parte do mesmo.
sustentar se for num eterno namoro. A dor da queda do namoro é tão grande que esses
compromisso, para não se defrontar com a ferida narcísica da perda do namoro, e sem
12
Maria sofre de ciúmes excessivos, e uma noite, em que João tinha chegado
para achar algum indicio que fundamente seus ciúmes, entretanto João dorme a seu
lado. Maria acha um email de uma mulher que convida João a alguma coisa que ela não
consegue terminar de ler, pois João acorda, tira o celular das mãos dela e apaga na hora
Na sessão, Maria chora desesperada, alegando que não pode confiar mais nele.
Contam que os dois passaram a noite em claro sem dormir chorando e jurando-se amor
eterno, mas que ela não consegue acreditar nele e que precisa de alguma comprobação
para se tranqüilizar.
Maria pede a João para olhar os emails dele no computador. João chora
amargamente, pois alega que fazer isso seria uma falta de respeito para com ele e que
ela tem que acreditar nas suas palavras e não pedir comprovações. Maria insiste e João
tem que se debruçar para cumprir com o desejo dela. Amparados na terapia, vão para
casa a verificar os emails e pedem uma sessão extra, nessa noite, para conversarmos
juntos sobre o que sentiram. Eles vêem os emails e não acham nada de mais, João
João: “Eu sinto que ter feito isso foi uma falta de respeito para comigo mesmo, mas se
Maria precisa disso para começar a acreditar em mim... È só por esta vez, outra vez não
vai se repetir”.
Depois de uns meses Maria volta a sentir ciúmes, João consegue limitá-la
13
João: “Maria, lembra que combinamos que essa seria a única vez em que você veria
meus emails, que daqui para frente você teria que acreditar em mim. Eu estou de seu
lado, acredite”.
Depois João diz: “A outra noite eu senti ela muito solitária e ciumenta. Eu estava
assistindo meus jogos de futebol, isso é tudo o que preciso fazer quando venho
estressado do trabalho, eu desligo minha cabeça assim. Perguntei para ela: Maria você
está carente? Você quer sentar por perto? Maria não gosta do futebol mas...”
Maria: “Eu decidi descer com meu laptop, em vez de trabalhar no andar de cima onde
minhas filhas dormem, eu fui para a sala para estar junto com João. Eu não gosto do
futebol, mas, juntos íamos, cada um na sua, fazer nossas coisas. Podíamos comentar
alguma que outra coisa, e me senti apoiada, meus ciúmes desapareceram. Decidi que
daqui para frente depois de por minhas filhas para dormir, vou descer e ficar por perto
Ato de amor
Vemos como a vinheta nos apresenta com um ato de amor, entrega ao outro com
a aceitação do “ajeno” do outro, outro carregador de alteridade que tem que ser aceita
para configurar um vínculo que habilite dois sujeitos a serem e conviverem no “entre”
que eles mesmos construíram. “Se tal como Badiou diz, no amor temos a experiência e
o pensamento da diferença, no amor está à resposta que hospeda ao outro e nos conduz
João contrapõe suas próprias convicções pessoais para tentar dar um conforto a
Maria em um ato de amor, ele consegue ir alem de si mesmo para se entregar a ela no
ato de amor. Maria também consegue aceitar estar junto, ainda sem partilhar aquilo que
14
João esta fazendo, mas no intuito de estar-se entregando ao vínculo que produz
aconchego. Estaríamos aqui nos defrontando com um ato de intercambio em que dois
sujeitos se reconhecem como diferentes e decidem partilhar o vínculo, ainda tendo que
Neste intercambio, que podemos chamar de ato de amor, eles parecem não ter
necessidade de confirmar o que cada um sabe, mas sim de deixar-se levar, um pelo
outro oferece.
próprio. O outro atrai o sujeito quando pode despertar nele a curiosidade por constituir-
diferença que o outro nos apresenta, já a partir de sua presença. Para conseguir chegar a
conhecer a esse outro, o sujeito tem que realizar um trabalho que inclui afastar-se de si
Poderíamos nomear esse ato como: desprender-se de si, olhar de outro ponto de vista.
No trabalho vincular com casais, nossa tarefa analítica pode ser pensada como uma
ajuda aos casais para não cair nas “ciladas do amor”, armadilhas que os deixam
15
atrapalhados na oferta narcísica que o namoro oferece na faze inicial dos
relacionamentos conjugais.
16
BIBLIOGRAFIA
17