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ALTERIDADE UMA POSSIBILIDADE NO CASAL

Psicóloga Lisette Weissmann

No mundo contemporâneo, muitos paradigmas têm caído deixando as nossas

antigas certezas sem sustentação e colocando-nos na constante procura da compreensão

das novas formas que fazem parte da trama social. Também nos fazem duvidar se

falamos de novas conformações sociais ou se só assistimos a presença de novas

roupagens que vestem antigas estruturas, mas que nos impõem uma reflexão continua

sobre o tema. Será que os casais terão mudado? Ou será que persistem antigas

modalidades conjuntamente com necessidades contemporâneas que os fazem se adaptar

aos momentos atuais? Além de como enxerguemos o lugar e a conformação dos casais

na atualidade; certos fantasmas que fazem parte do imaginário social persistem; e os

casais, assim como qualquer outra formação social, também carregam as configurações

de todos os tempos.

A partir dos atendimentos psicanalíticos com casais, uma serie de interrogações

tem me ocupado insistentemente e tentarei abrir-los para discutir no presente capítulo. A

clínica nos desafia a pensar e tentar dar conta das questões que aparecem nela.

Começarei por definir o conceito de vínculo do qual parto, para depois focar no

termo casal especificamente. Para, em seguida, colocar as interrogações que surgem a

serem discutidas.

O termo vínculo descreve uma relação de dois sujeitos ou mais e um laço que

os une. Os sujeitos se encontram nessa relação intersubjetiva, na qual os elementos

conscientes e inconscientes dos sujeitos estão presentes, permeando a ligação entre eles,
1
conformando uma representação vincular inconsciente. Os sujeitos que formam parte do

vínculo têm uma presença que faz confronto um com o outro, o efeito dessa presença

assinala uma diferença a ser levada em conta.

“Um vínculo é construído por uma ligação duradoura entre duas ou mais

pessoas, que se apresentam respectivamente na forma de dois outros. Essa estrutura

vincular desenha um fazer entre dois, a partir do qual esses dois se instituem como

novos sujeitos desse vínculo. O relacionamento inclui uma diferença, já que cada um é

“ajeno”1, alteridade, diferente radical para o outro. O vínculo determina esses dois

sujeitos com base no que acontece entre eles”. (WEISSMANN, L. 2008, p.33)

Na Teoria das Configurações Vinculares, vínculo define-se como “uma situação

inconsciente que, ligando dois ou mais sujeitos, os determina em base a uma relação de

presença” (BERENSTEIN, 2004, p.29).

Os vínculos outorgam um sentimento de pertença, ao demarcar os sujeitos ao

fazer parte de um conjunto, em vinculação com outros. Os vínculos se apresentam como

grandes produtores de subjetividade com o outro.

Na hora de definir o casal, estamo-nos referindo a um vínculo, mas com

caracterizações específicas. O termo casal remete-nos a um vínculo em que dois outros

se escolhem para se constituir como esse dado casal. Dessa forma constituiriam um

vínculo em que um se reconhece frente ao outro como aquele outro privilegiado que

constitui esse par. Remetemo-nos a uma escolha especifica em que um sujeito escolhe

1
O conceito de ajeno é usado em espanhol, por não ter achado nenhum sinônimo que o traduza
com seu sentido próprio. O termo abarca a tradução de:estranho, estranhamento, alteridade,
diferença radical. “Em uma relação significativa, a ajenidad é todo o registro do outro que não
conseguimos inscrever como próprio”. (BERENSTEIN, 2004, P.35) Esse conceito é central no
presente trabalho.

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outro sujeito, para constituir-se respectivamente naquele outro privilegiado. Poderíamos

também adicionar as conceituações anteriores, os ditados populares que definem o casal

muito melhor do que a ciência consegue. Assim se fala de: a meia laranja, a cara

metade, o amor é cego, com você pão e cebola, etc.

O espaço sócio-cultural também outorga um lugar privilegiado e assinalado pela

língua para cada parceiro do casal, constituindo-se assim em esposo e esposa

respectivamente dentro da cultura que os rodeia. A cultura estabelece dentro do

imaginário social, um lugar para cada um dos sujeitos que conformam o casal, como

aqueles que fazem parte desse determinado vínculo. A antropologia designa o casal

como uma estrutura marcada pela cultura em que esses dois sujeitos constituem uma

configuração que se sustenta como a base da futura família. Essas inscrições da cultura

ficam marcadas no sujeito no espaço psíquico que chamamos de transubjetivo.

O casal é uma estrutura vincular que se estabelece no “entre” duas pessoas

diferentes, isto é, uma relação intersubjetiva estável entre um sujeito e outro sujeito, no

qual cabe o mundo intra-subjetivo de cada um, constituindo o vínculo uma área

diferenciada da estrutura objetal.

“Seria o caso de nos perguntar quando falamos de outro como objeto externo e

quando falamos do outro como objeto da pulsão. Aqui nos defrontamos com a fronteira

entre o espaço intrasubjetivo e o espaço intersubjetivo. No espaço intrapsíquico,

focalizamos o objeto da pulsão e de sua relação de objeto; outro campo de abrangência

inclui o espaço intersubjetivo. Assim, Isidoro Berenstein enfatiza que “o outro e sua

presença mostram permanentemente que a representação do ego não o abarca, algo

sempre o excede” (BERENSTEIN, 2001, p.90). Afirma, desse modo, que as

representações intrapsíquicas são as representações do ego que não atingem nem


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abarcam ao outro e sua presença; este excede as representações. Por isso, definem-se

como espaços diferenciados” (WEISSMANN,L. 2008,p.49). As relações de objeto

pertencem ao espaço intrasubjetivo e os vínculos ao espaço intersubjetivo.

Pensando nas formas de relacionarem-se os casais da contemporaneidade,

poderíamos diferenciar relacionamentos, de vínculos. Os relacionamentos são inúmeros,

efêmeros e passageiros; diferenciamos os do vínculo de casal, pois os definimos como

um vínculo com um percurso na temporalidade.

O casal, assim como qualquer outro tipo de vínculo, traz ao relacionamento um

trabalho vincular como tarefa a ser construída. A tarefa vincular poderia ser descrita

como um trabalho de edificação a partir do outro, pois só na aceitação do “ajeno” do

outro é que cada sujeito consegue se vincular realmente. Estar vinculados significa

aceitar que esses dois sujeitos são dois outros respectivamente. Assim nos aproximamos

da difícil e laboriosa tarefa que propõe o outro como “ajeno”, diferente radical,

alteridade, outro em sua mais abrangente definição.

Momentos vitais no casal

Ao pensar o casal projetado no tempo nos defrontamos com distintos momentos

vitais a serem atravessados.

O primeiro momento é o namoro, momento de extrema idealização, de

organização narcísica necessária que estabelece as bases para um possível crescimento

vincular posterior. No namoro cada sujeito cobre o outro sujeito do vínculo com suas

projeções internas, para conseguir enxergar o outro como alguém que reproduz aquilo

que a fantasia de completude narcísica necessita nesse momento vital.

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Para tentar desvendar o que é o momento de namoro vou recorrer aos poetas,

pois eles sempre foram os que estiveram mais perto de conseguir descrever, ou abraçar

com palavras, aquilo que por momentos resulta tão inapreensível e inatingível, quanto o

namoro.

Clarisse Lispector em seu livro Entrevistas (LISPECTOR, 2007) foi

perguntando a conhecidos artistas, poetas e criadores como definiam o amor, vamos

refletir sobre suas respostas.

Nelson Rodrigues diz: “Eu sou um romântico num sentido quase caricatural.

Acho que todo amor é eterno e, se acaba, não era amor. Para mim, o amor continua

além da vida e além da morte. Digo isso e sinto que se insinua nas minhas palavras um

ridículo irresistível, mas vivo a confessar que o ridículo é uma das minhas dimensões

mais válidas” (ibidem, p. 30).

Em outra entrevista Clarisse pergunta a Fernando Sabino:

“Como é que você resumiria o conteúdo da palavra amor?”

E Fernando responde: “Amor é dádiva, renúncia de si mesmo na aceitação do outro.

Amar o próximo como a si mesmo e a Deus sobre todas as coisas”. (ibidem, p. 35)

Também pergunta a Pablo Neruda : “O que é amor? Qualquer tipo de amor”.

E Neruda responde: “A melhor definição seria: o amor é o amor.” (ibidem,

p.74).

Marly de Oliveira contesta: “Sabe que eu escrevi 47 poemas tentando defini-lo e

não consegui.” (ibidem, p.78)

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E finalmente Clarisse pergunta para Chico Buarque: “O que é o amor?” E ele

responde: “Não sei definir, e você?”

Clarisse responde: “Nem eu.” (ibidem, p. 104)

As palavras parecem transitar de um conhecimento que abrange uma situação

onipotente e omnissapiênte, que tudo pode e tudo sabe, condensado nas palavras: Deus,

vida, morte; até um extremo de máximo desconhecimento e falta de possibilidades de

abranger o fenômeno, nas palavras “não sei,” “não consegui”. Isso parece nos descrever

um fenômeno tão difícil de definir por quanto humano que é.

Chico Buarque oferece um ato de amor no dialogo que estabelece com Clarisse

Lispector. Primeiro fala que o amor não é possível de ser enquadrado e fixado em uma

definição, já que as definições fazem alusão a um pensamento lógico e estático. O amor

não pode ser definido nem apriori nem aposteriori, mas inclui uma situação que impõe

aos sujeitos a necessidade de dar uma resposta. Mas quando Chico pergunta a

entrevistadora “E você?”, ai estaria nos apresentando com o maior ato de amor que

inclui dar a palavra ao outro e depois reconhecer que o sujeito não sabe. A partir desse

não saber é que o sujeito precisa do outro para executar esse ato extremo de entrega no

amor, que também inclui a aceitação de uma carência pessoal “Eu não sei”. Percebemos

também que no amor aparece um intercambio possível de dois sujeitos que se entregam

um ao outro, sem saber bem a que, mas com vontades e possibilidades de estabelecer

trocas.

Por último gostaria de citar Machado de Assis que em 1872, em seu livro

Ressurreição (ASSIS, 1990) considera:

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“O amor... não nasce de uma circunstancia fortuita, nem de uma longa intimidade, é

uma harmonia entre duas naturezas, que se reconhecem e completam”.

O poeta descreve dois sujeitos que por momentos se perdem neles mesmos e por

momentos se diferenciam; movimento de aproximação e perda dos limites de cada um.

Duplo movimento, um, de discriminação que procura separar e diferenciar os dois

sujeitos entre si, e outro, em que os faz se perderem no relacionamento.

O vínculo de casal poderia ser descrito como um espaço no qual se desenvolve a

interdependência e interpenetração, sendo essas as condições do relacionamento

vincular. Desenha-se assim um movimento que permite aos sujeitos se indiscriminarem,

no momento culminante do entrelaçamento dos corpos na sexualidade, e ao mesmo

tempo se enxergarem como sujeitos alheios um do outro. A interpenetração tem a ver

com o contato e intercambio, entre dois sujeitos atravessados pela bidirecionalidade,

que reciprocamente altera a subjetividade de cada um e cria a intersubjetividade nos

integrantes do casal.

A situação do namoro é o momento inicial do vínculo de casal e estabelece as

bases narcísicas e primárias que serão desenvolvidas na evolução do vínculo. Com o

transcorrer do tempo a situação de namoro terá que evoluir para se enriquecer e se

complexizar, ou se empobrecer perdendo complexidade e esvaziando de sentido o

vínculo. Quando o vínculo de namoro vai se transformando em amor, percorre um

longo caminho, necessário para que se desenvolva um momento de quebra do vínculo

narcísico. Momento no qual aparecem as cobranças, as reclamações nascidas a partir da

ferida narcísica que implica a queda da idealização do outro e a integração de

características que envolvem o outro com sua presença. O ditado popular diz que: está

incluso no pacote.
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Como poderia acontecer toda essa evolução do namoro ao amor, sem que o

vínculo fique detido nas cobranças que não conseguem restaurar a ferida imposta pela

presença do outro?

O amor inclui um espaço para o desencontro, supõe um espaço para as

diferenças, para as falhas e os prazeres postergados, para a elaboração das frustrações

que implicam o processo secundário. Em contrapartida podemos considerar que o

namoro se baseia em funcionamentos psíquicos primitivos e opera de acordo com o

princípio de prazer. O namoro é movido pela tendência passional e pelo ideal, emquanto

o amor é movido pelas tendências realistas e sensatas.

O amor poderia ser definido como uma cena que sustenta as diferenças, e

aproxima aos sujeitos a experiência da diferença. Por meio do amor os sujeitos

conseguem ir além deles mesmos. Quando Fernando Sabino ao definir o amor nomeia a

Deus, estaria nos revelando uma figura que vai alem de si mesmo. Essa seria a essência

de viver a experiência do amor, conseguir dar uma bem-vinda ao outro indo alem de nos

mesmos.

O psicanalista uruguaio Nelson Gottlieb alega que: “O encontro como o outro

tem a ver, as vezes,com um deslocamento, uma descentralização de nossas idéias e

convicções. Isso faz parte da experiência de estar com outro (GOTTLIEB, 2007)2

Voltando a tentar caracterizar tanto o namoro quanto o amor, do ponto de vista

psicanalítico, poderíamos definir o namoro como uma estrutura vincular na qual há um

predomínio de um funcionamento dual; e o amor como uma estrutura vincular com

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“El encuentro con el otro implica, a veces, un descoloque, una descentralización de nuestras ideas,
convicciones. Esto como parte de la experiencia de estar con otro”. (GOTTLIEB, 2007).

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predomínio do funcionamento de terceiridade. No funcionamento de dualidade o

sujeito considera o outro de forma muito próxima à representação intrapsíquica que ele

tem, porém o outro ficaria representado na fantasia e nos objetos internos daquele que o

representa. Um funcionamento no qual predomine a terceiridade teria em conta um

acesso a ter registro das diferenças do outro, constituindo- se esse outro, como

autônomo e com suas semantizacões próprias.

Remetendo a Miguel Spivacov em seu livro Clínica Psicoanalitica de Parejas, o

autor diz “há maior predomínio de funcionamentos projetivos e narcísicos — dualidade

— menor é a capacidade de metabolizar o conflito intersubjetivo; quanto maior é o

predomínio da terceiridade — reconhecimento e elaboração das diferenças e da

autonomia —, maior é a capacidade de elaborar conflitos no vínculo.” (SPIVACOV,

2008, p. 53)

Janine Puget considera que quando “o trabalho psíquico de interpenetração é

realizado em um vínculo não capturado pela repetição, supõe uma diferença

reconhecida conscientemente entre o objeto externo e o interno,... uma proposta de

conhecimento que se realiza em clave de diferença”. (PUGET, 2001, p. 12)

Vemos como os autores vão tentando construir uma teoria que dê conta dos

funcionamentos pelos quais os casais transitam no evoluir do tempo.

Quando um casal está instalado em um funcionamento de terceiridade, com

predominância de um relacionamento de amor, se defrontam com a aceitação entre os

sujeitos do vínculo: das diferenças,das presenças dos dois egos que fazem parte do

vínculo, o que implicaria que se reconheçam como dois outros como “ajenos”.

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O dicionário Aurélio determina que o conceito de alteridade deriva do latim “alter”que

significa outro, e define o termo alteridade como “qualidade do que é outro”

(FERREIRA, 2004).

A questão que se impoe, e que esse texto se propõe a pensar é porque resulta tão

dolorido e difícil que isso aconteça nos casais? Por que o vínculo escolhido para ser o

privilegiado e para dar sustentação narcísica aos sujeitos tanto intrasubjetivamente,

quanto inter e transubjetivamente3 é o que ocasiona a maior quantidade das consultas

terapêuticas? Porque resulta tão pouco tolerado a aqueles dois sujeitos que fazem parte

do casal poder pensar se em clave de diferença?

Vinheta clínica: Pedro e Ana

Pedro e Ana estão em atendimento vincular de casal faz um ano e meio. No

inicio do trabalho analítico Pedro diz: “Eu já sei como Ana pensa, eu a conheço faz

tanto tempo, faz 10 anos que estamos casados. Ela também sabe como eu penso. Porem

eu não sei por que é tão difícil de nos entendermos, e temos que vir à consulta com

você.”

Talvez Pedro esteja nos transmitindo à dor que significa a possibilidade de

enxergar Ana como alguém “ajeno” a ele, com uma “ajenidad” que lhe habilite a pensar

por si só, não só a pensar de forma diferente a Pedro, mas sim a pensar como sujeito

alter, diferente do outro. Mas quando Ana tem o espaço para pensar por si só, não

consegue fazê-lo, e recorre a Pedro, ela o chama incansavelmente para tomar decisões.

Ana sente seu mundo desabar quando Pedro não atende o telefone celular; nesse

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Partimos do conceito de psiquismo com uma tripla espacialidade o espaço intrasubjetivo no qual se
inclui o eu e seus objetos internos, o espaço intersubjetivo constituído pelo eu e seus vínculos e o espaço
transubjetivo do eu com suas marcas do social e da cultura.

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momento parece que a sua sustentação narcísica cai e se sente inundada pela angústia;

assim Ana insiste no celular até o cansaço.

Pedro diz: “Você acha que se eu não atendo o telefone ela tem que insistir 23 vezes! Eu

tinha 23 chamadas perdidas dela no celular. Ela não poderia imaginar que deixei o

celular no escritório e que estou em reunião?”

Ana contesta: “Se você não responde o celular eu tenho medo de que alguma coisa

ruim tenha acontecido com você”.

Sensação de desmoronamento? Queda do mundo sustentado na energia pulsional que o

outro parece providenciar? Esse casal estaria atravessando a finalização do momento

narcísico do namoro, defrontando-se com a queda do vínculo baseado na dualidade.

Alguns autores nomeiam esse momento como de “dês namoro”, perda da etapa de

namoro. Pedro e Ana, frente ao desmoronamento do namoro, ainda não conseguem

desenhar nenhuma outra forma de relacionamento que os sustente, ao mesmo tempo em

que os habilite a serem dois sujeitos, outros entre si, com uma alteridade possível.

Atravessar a etapa das cobranças que são proporcionais a ferida narciscica sofrida, traria

depois, no advento do amor a possibilidade de aceitar que o outro existe para alem de si

mesmo.

Nesse momento o espaço analítico seria o espaço privilegiado para providenciar

um lugar para partilhar a dor da perda do namoro. Momento que será preenchido com

cobranças, que deverão dar conta da ferida narcísica que esse processo acarreta.

Acompanhar o casal nesse processo imprime confiança de que é possível conseguir

transpor as barreiras da dor, e assim construir juntos, outras possibilidades com que dois

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sujeitos podem se relacionar em um vínculo, com espaço para o amor, amor ao outro,

amor a si mesmo e amor ao “entre” que promove o vínculo do casal.

Mas por que a dor é tão grande quando a alteridade não pode ser aceita no

vínculo de casal?

O casal se inicia com uma promessa de namoro “para toda a vida”, “felizes para

sempre”, “até que a morte os separe”, assim é considerado tanto pela lei quanto pela

religião, e essa seria uma fantasia difícil de abandonar. Por outro lado a hipótese que

reforça o começo do vínculo centrado no namoro indica o lugar outorgado no social ao

casal. No imaginário social, persistem aqueles desejos primários narcísicos, de

dualidade, visualizados nos ditados populares que apresentam o casal como o espaço

idealizado por excelência.

Os momentos históricos da pós-modernidade tingem a cultura com ideais

hedonistas e imediatistas. Os relacionamentos também acabam sendo influenciados pelo

contexto que os rodeia assim o casal pareceria estar eximido de aceitar o conflito como

parte do mesmo.

As hipóteses antes consideradas reforçam a fantasia de que o casal só pode se

sustentar se for num eterno namoro. A dor da queda do namoro é tão grande que esses

casais não conseguem se prolongar no tempo, se separando como solução de

compromisso, para não se defrontar com a ferida narcísica da perda do namoro, e sem

se permitir aceder ao amor propriamente dito, pela dor que traz.

Vinheta clínica: João e Maria

Trata-se de um casal que tem um ano de atendimento vincular psicanalítico.

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Maria sofre de ciúmes excessivos, e uma noite, em que João tinha chegado

extremadamente tarde do trabalho, não agüenta, e começa a bisbilhotar o celular dele

para achar algum indicio que fundamente seus ciúmes, entretanto João dorme a seu

lado. Maria acha um email de uma mulher que convida João a alguma coisa que ela não

consegue terminar de ler, pois João acorda, tira o celular das mãos dela e apaga na hora

todos os emails recebidos no celular.

Na sessão, Maria chora desesperada, alegando que não pode confiar mais nele.

Contam que os dois passaram a noite em claro sem dormir chorando e jurando-se amor

eterno, mas que ela não consegue acreditar nele e que precisa de alguma comprobação

para se tranqüilizar.

Maria pede a João para olhar os emails dele no computador. João chora

amargamente, pois alega que fazer isso seria uma falta de respeito para com ele e que

ela tem que acreditar nas suas palavras e não pedir comprovações. Maria insiste e João

tem que se debruçar para cumprir com o desejo dela. Amparados na terapia, vão para

casa a verificar os emails e pedem uma sessão extra, nessa noite, para conversarmos

juntos sobre o que sentiram. Eles vêem os emails e não acham nada de mais, João

atravessa essa difícil prova que mexeu muito com ele.

João: “Eu sinto que ter feito isso foi uma falta de respeito para comigo mesmo, mas se

Maria precisa disso para começar a acreditar em mim... È só por esta vez, outra vez não

vai se repetir”.

Depois de uns meses Maria volta a sentir ciúmes, João consegue limitá-la

fazendo-a lembrar-se do combinado na terapia.

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João: “Maria, lembra que combinamos que essa seria a única vez em que você veria

meus emails, que daqui para frente você teria que acreditar em mim. Eu estou de seu

lado, acredite”.

Depois João diz: “A outra noite eu senti ela muito solitária e ciumenta. Eu estava

assistindo meus jogos de futebol, isso é tudo o que preciso fazer quando venho

estressado do trabalho, eu desligo minha cabeça assim. Perguntei para ela: Maria você

está carente? Você quer sentar por perto? Maria não gosta do futebol mas...”

Maria: “Eu decidi descer com meu laptop, em vez de trabalhar no andar de cima onde

minhas filhas dormem, eu fui para a sala para estar junto com João. Eu não gosto do

futebol, mas, juntos íamos, cada um na sua, fazer nossas coisas. Podíamos comentar

alguma que outra coisa, e me senti apoiada, meus ciúmes desapareceram. Decidi que

daqui para frente depois de por minhas filhas para dormir, vou descer e ficar por perto

dele. Cada um fazendo o que bem quer fazer”.

Ato de amor

Vemos como a vinheta nos apresenta com um ato de amor, entrega ao outro com

a aceitação do “ajeno” do outro, outro carregador de alteridade que tem que ser aceita

para configurar um vínculo que habilite dois sujeitos a serem e conviverem no “entre”

que eles mesmos construíram. “Se tal como Badiou diz, no amor temos a experiência e

o pensamento da diferença, no amor está à resposta que hospeda ao outro e nos conduz

a ir até um alem de nos mesmos” (GOTTLIEB, 2007).

João contrapõe suas próprias convicções pessoais para tentar dar um conforto a

Maria em um ato de amor, ele consegue ir alem de si mesmo para se entregar a ela no

ato de amor. Maria também consegue aceitar estar junto, ainda sem partilhar aquilo que

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João esta fazendo, mas no intuito de estar-se entregando ao vínculo que produz

aconchego. Estaríamos aqui nos defrontando com um ato de intercambio em que dois

sujeitos se reconhecem como diferentes e decidem partilhar o vínculo, ainda tendo que

aceitar um não saber, mas na busca de uma possibilidade de construção conjunta de um

“entre” comum a eles.

Neste intercambio, que podemos chamar de ato de amor, eles parecem não ter

necessidade de confirmar o que cada um sabe, mas sim de deixar-se levar, um pelo

outro, em procura do desconhecido do vínculo, em busca da alteridade radical que o

outro oferece.

No vínculo de amor dois sujeitos encontram-se como desconhecidos entre si por

ser diferentes; e pretendem através do interagir mutuo construir um relacionamento

próprio. O outro atrai o sujeito quando pode despertar nele a curiosidade por constituir-

se em diferente com possibilidades de ser descoberto e de ser conhecido.

Construir esse vínculo de amor inclui um trabalho vincular que abarcará a

diferença que o outro nos apresenta, já a partir de sua presença. Para conseguir chegar a

conhecer a esse outro, o sujeito tem que realizar um trabalho que inclui afastar-se de si

mesmo para poder enxergar a partir de um ponto de vista diferenciado do seu.

O trabalho vincular psicanalítico encontra-se na confluência dessa eminente

tarefa que propõe enxergar o mundo a partir de um ponto de vista de alteridade.

Poderíamos nomear esse ato como: desprender-se de si, olhar de outro ponto de vista.

No trabalho vincular com casais, nossa tarefa analítica pode ser pensada como uma

ajuda aos casais para não cair nas “ciladas do amor”, armadilhas que os deixam

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atrapalhados na oferta narcísica que o namoro oferece na faze inicial dos

relacionamentos conjugais.

Fica em nossas mãos, analistas de casais, a possibilidade de ampliar narrativas e

relatos que possibilitem transitar o processo vincular de des-idealização e assim permitir

o aceso ao amor no vínculo conjugal. Porém, sempre deixando em aberto a

possibilidade de diálogo, que institua o respeito ao diferente de cada um, seja na

consolidação ou evolução de qualquer vínculo de amor.

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BIBLIOGRAFIA

ASSIS M. Ressurreição. São Paulo: Escala, 1990.

BERENSTEIN, I. Devenir otro con otros. Ajenidad, presencia, interferencia. Buenos

Aires: Paidós Psicología Profunda, 2004.

FERREIRA, A.B.H. Novo dicionário eletrônico Aurélio da língua portuguesa. Versão

5.0 Edição eletrônica autorizada a Positivo Informática Ltda.,2004.

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Fepal. Panel sobre pareja. La pareja: mapeo de planos, 2007.

LISPECTOR C. Entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.

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SPIVACOW M. Clínica Psicoanalítica con Parejas. Entre la teoría y la intervención.

Buenos Aires: Lugar, 2008.

WEISSMANN, L. Famílias monoparentais: um olhar psicanalítico. Dissertação de

mestrado PUCSP. São Paulo, 2008.

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