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RESUMO
1
Agradeço a meus alunos de Psicologia e Politicas Públicas e Psicologia Jurídica FCV, que muito contribuíram
para a construção desse texto, já que foi no debate e trocas em sala de aula que deu força e empenho a essa
escrita.
2
Psicólogo, pós-graduado em analise institucional, esquizoanálise e grupos, mestrado em comunicação social –
semiótica, doutorando na UFF – Psicologia e Produção de Subjetividade, professor assistente da FEAD e
Faculdade Ciências da Vida. Entre as disciplinas já lecionadas: Psicologia e Políticas Públicas e Psicologia
Jurídica, Ética, Dinâmica de Grupos, Psicologia Social e Comunitária.
1
Para pensar esse problema, assume-se a expressão da violência como agenciamento de
enunciação complexo, tal qual expõe Félix Guattari (1990), em As Três Ecologias: “a
violência e a negatividade resultam sempre de agenciamentos subjetivos complexos: elas não
estão intrinsecamente inscritas na essência da espécie humana, são construídas e sustentadas
por múltiplos agenciamentos de enunciação3”.
Entendendo o agenciamento num modo simples: como aquilo que agencia, como as
condições de algo se dar, se realizar ou acontecer. Estudar as condições de acontecer seria um
meio de compor uma cartografia de um agenciamento complexo. Na caminhada das leituras,
buscou-se pensar a cartografia da violência, como algo complexo através de outros
elementos. Tais elementos estão juntos no ato de expressar uma realidade dominada pela
violência. Achamos movimentos: relações entre ideias e relações entre corpos, diante de um
terceiro incluído, o afeto na forma negativa, que se pauta na morte como horizonte referencial.
A violência se expressa através de uma ação que envolve a reunião de ideias e ideias
de ideias, e a composição e decomposição de corpos, que expressam uma forma de coerção.
A coerção supõe a negatividade, expressa na ameaça de dor, padecimento ou morte. Surgem
questões: O que são as relações de coerção e extorsão entre corpos? O que são relações de
dominação entre ideias? Como se dá a imagem numa ação para que apareça a violência?
Como se dá a imagem de decomposição, para perceber a realidade da violação?
Essas questões nos colocam a pensar sobre a natureza das realidades e nelas, às
relações entre indivíduos e grupos, onde poderemos nos aventurar em uma cartografia da
violência para chegar a formas de dominação e modos de extorsão.
3
Guattari, F. AS TRÊS ECOLOGIAS, ed. Papirus, 9 edição, SP: 1990, p.43
4
Spinoza Ética. Tradução Tomaz Tadeu, autêntica, MG. 2009.
5
Spinoza, 2009, pro. 1, p. 14. Diz “uma substância é, por natureza, primeira, relativamente ás suas afecções”.
Na prop. 4 do livro II, p. 54 refere: “a ideia de Deus, da qual se seguem infinitas coisas, de infinitas maneiras, só
pode ser única”, o que mostra que as afecções ou modos são efeitos dos atributos da substância.
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uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência
eterna e infinita” (Spinoza, 2009, livro I, def. 6). Deus ou a substância é aquilo que “existe em si mesmo e
(Spinoza, 2009, livro I, def. 3)
que por si mesmo é concebido” . Já por atributo, Spinoza define como
“aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência” (Spinoza,
2009, livro I, def. 4)
. Vemos que Deus ou a natureza é a substância única, que se expressa por infinitos
atributos, mas o que se produz pelos atributos é perceptível ao intelecto humano, o que quer
dizer: tudo que há e acontece nas relações humanas são inteligíveis. Deus, a natureza de tudo
que acontece e se dá, é compreensível pela mente humana. Nada é encoberto. Nada é
misterioso, tudo tem suas causas, e “de uma causa dada e determinada segue-se
necessariamente um efeito”, daí, “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da
causa e envolve esse último (Spinoza, 2009, livro I, axioma 3 e 4).
Tendo acesso as condições causais dos acontecimentos, somos ativos e não passivos,
afirmamos e não negamos, produzimos e não reproduzimos. Porque buscando as causas e não
se confundindo com efeitos, nesse momento existimos porque a ação livre se dá
“exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir”
(Spinoza, 2009, livro I, def. 7)
. Na proposição18 dirá: “Deus é causa imanente, e não transitiva, de todas
as coisas”. Até aqui podemos resumir dizendo: tudo que acontece e se dá, tem sua causa
necessária, que se mostra inteligível a mente humana. As formas de violência e violação são
efeitos em que suas causas não são imanentes, por que Deus não produz violência nem
violação. Logo, são produzidos como artefato humano.
Voltando. Os atributos que expressam a substância tem sua gênese em si mesmo e por
si mesmo são colocados, mas os modos que derivam dos atributos, não. Cada indivíduo ou
3
grupo dependem de causas exteriores para compor-se, conhecer-se e realizar-se. O que
expressa os infinitos atributos da substância infinita de Deus? O finito. Os modos, as
maneiras de ser são modos finitos dos atributos, mas como são infinitos atributos, Deus ou a
natureza em Spinoza é complexa, múltipla, plural e não Uno transcendental. Essa é uma
diferença importante em relação ao pensamento da tradição, que separa Deus criador das
criaturas. Em Spinoza, Deus é a natureza de tudo que há. Ele é expressivo, por isso o atributo
que o expressa é inteligível. Não há metáfora, nem representações, mas graus de realidades e
perfeição.
Mas o que é um indivíduo que pode ser separado de suas forças de existir e de sua
potência de agir, pela violência? No postulado 1 do livro II dirá Spinoza: “o corpo humano
compõem-se de muitos indivíduos (de natureza diferentes) cada um dos quais é também
altamente composto”. Isso diz que é da natureza humana ser singularidade composta e
complexa, sua essência intrínseca é um grau de potência, positiva como todos os demais
modos singulares existentes por natureza. Se o individuo é composto de vários corpos
(coração, cérebro, circulação, etc.) e cada corpo é altamente complexo, isso diz que pode ser
afetado e afetar de diversas formas. A reunião de vários indivíduos compõe um grupo
altamente composto e complexo. Assim, um grupo não pode ser definido como a reunião de
unidades de indivíduos sem perceber que cada indivíduo se compõe de outros indivíduos
também altamente complexos. O que quer dizer que o grupo se define melhor pela reunião de
indivíduos com corpos compostos e complexos, que podem afetar e ser afetado de inúmeras
maneiras. Há complexidade no indivíduo e também nos grupos.
Mas notemos: em essência, cada um e todos os indivíduos convêm entre si. Isso
porque expressam os atributos da substância, que é a natureza ou Deus, “e nenhuma coisa tem
em si algo por meio do qual possa ser destruído, ou seja, que retire a sua existência, ao
contrário, ela se opõe a tudo que possa retirar a sua existência. (Spinoza, 2009, livro III, prop. 6, demonstração).”
Como diz Deleuze em Spinoza e os Signos (1970) “toda a natureza é positiva, e portanto
ilimitada e indeterminada no seu gênero...A positividade como essência infinita, corresponde
(Deleuze, 2007, p. 106 e 107).
à afirmação como existência necessária.” Se a violência fosse própria da
natureza humana, teríamos que supor que Deus ou a natureza teria algo em si mesmo, na
substância, que viria destruí-lo. Deus inventaria seu próprio padecimento, sua sujeição, seu
constrangimento e sua servidão, o que é ridículo. Isso mostra que cada indivíduo composto,
em si mesmo, não nasce com nenhuma negatividade. Por isso, podemos afirmar que a
violência não é da natureza do indivíduo, embora nele possa vir a pertencer, a se instalar, mas
não a constitui, o possui.
5
Entrar na servidão supõe que corpos exteriores assim determinados, venham a possuir
indivíduos e grupos. É dizer, cada indivíduo é complexo. Compõe-se de vários outros corpos,
que são susceptíveis de ser afetados por diferentes outros corpos e diferentes outras ideias que
lhe vem do exterior. Essas forças são mais fortes e assim podem modificar a natureza das suas
relações constitutivas, que mesmo que inicialmente sejam positivas, podem vir a levar a um
estado de dominação, passividade e sujeição. Isso porque “os indivíduos que compõe o corpo
humano e, consequentemente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos exteriores
de muitas maneiras” (Spinoza, 2009, livro II, axioma 4 e postulado 3, p. 52 e 66) . Essas afetações podem ser positivas
e assim aumentar a capacidade de agir e de existir do indivíduo ou grupo. Mas podem ser
negativas, diminuindo, inibindo ou impossibilitando suas capacidades, levando-o ao estado de
servidão. Quando isso ocorre, estamos diante de formas de violência, que não sendo da
natureza humana, lhe envolve em medo, ficções ou crendices.
6
A dominação é um estado de corpo em condições de misturas com outros corpos
externos, no qual as ideias estão bloqueadas por outras ideias, onde as forças próprias são
inibidas, a potência reduzida, compondo a condição de sujeição. Esses corpos e essas ideias
são composições que agenciam a violência. A violência se expressa na forma de coerção. A
coerção faz chantagem (a bolsa ou a vida), no qual efetua a extorsão. Podemos dizer que a
violência é um meio em que o violador se usa para efetuar a extorsão. Padecemos quando “em
nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que não somos a causa
senão parcial” (Spinoza, 2009, livro III, def. 2, p. 98). O que é retomado pela proposição 3 do livro 4, onde
diz: “a força pela qual o homem persevera no existir é limitada e é superada, infinitamente,
pela potência das causa exteriores”. Estamos expostos aos encontros com corpos e ideias que
servem tanto para nos definir como para nos sujeitar. Define-nos porque tomamos consciência
de nós e de nosso corpo através da composição e misturas com outros corpos. Porém, tais
encontros podem ser afirmativos ou negativos, adequados ou inadequados, alegres ou tristes.
Em relação à violência, sempre se tem encontros tristes e inadequados, porque acontece de
nossa potência ser reduzida, impedida ou anulada. Nossas relações que nos caracterizam são
decompostas pelas forças exteriores a nós, se misturam a nossas e nos tornam passivos. Isto é,
separa-nos das forças de existir e da potência de agir. Separa-nos daquilo que realmente
podemos. Essa separação, essa decomposição de relações, será a marca da violência.
Quer dizer, na composição de nossas relações constitutivas com outros corpos e outras
ideias, nosso grau de potência pode sofrer dos efeitos do que vem de fora, isso porque
“nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior” seguido de: “À medida
que uma coisa pode destruir outra elas são de natureza contrária, isto é, elas não podem
(Spinoza, 2009, livro III, prop. 4 e 5)
estar no mesmo sujeito”. . Ainda, em Spinoza, “uma ideia que exclui a
existência de nosso corpo não pode existir em nossa mente, mas lhe é contrária” (Spinoza, 2009, livro
III, prop. 10)
. Disso, deduz-se que o que produz a violência é diferente e contrária à natureza
humana, que ao possuí-la, agencia modos de violação. A violação é parte das relações
humanas, que são contrárias umas as outras. Isso porque, “dado uma coisa qualquer, existe
(Spinoza, 2009, livro IV, axioma)
uma outra, mais potente, pela qual a primeira pode ser destruída” .
Quando ocorre o uso da força sobre um corpo e uma ideia, na forma de coerção, o violador o
faz por ação vil, no qual busca a dominação, usando-se de diferentes modos de violação.
7
É o efeito de causas inadequadas o que compõe as relações extrínsecas, determinadas
por ideias e corpos que vem do exterior a se compor com o nosso e que nos dominam.
Tornam-nos passivos, sujeitados. Por desconhecermos as causas da violência que se misturam
com nossa essência singular, onde padecemos, não sabemos como essas conduzem a formas
de violação, que tanto indivíduos como grupos passam a assumir que isso lhes pertence como
parte de sua natureza. Acredita-se que se efetuou tal ação ou omissão, por vontade própria.
Por livre arbítrio. O que é reforçado por discursos dominantes que se usam da coerção e de
certas formas de persuasão que dizem identificar a violência como algo pessoal, afirmando
fazer parte do caráter do violador. Tal preconceito, é muito presente em diversos modos de
interpretar e intervir na realidade em políticas públicas e, consequentemente, pode estar
presente nos modos de pensar e agir em situações de violência.
NECESSIDADE E ESCOLHA
Dizem os entendidos: nossa vida são nossas escolhas. Há, nas escolhas, algo de
vontade voluntária, segundo uma finalidade e não sendo uma relação necessária, onde se
8
supõe que o ato de escolher é contingente, esse só pode se dar entre possíveis. Lógica: se não
é possível, como se poderá escolher? Isso se justifica, porque temos a escolha de não fazer o
que fizemos ou de fazer o que não fizemos. Com isso, torna-se possível imputar a consciência
de quem age, uma culpabilidade da ação realizada e, consequentemente, dispor os corpos a
(IV, def. prop. 48)
julgamento e condenação. Spinoza dirá: “Não há, na mente, nenhuma vontade
absoluta ou livre: a mente é determinada a querer isso ou aquilo por uma causa que é
também ela, determinada por outra causa, e esta última, por sua vez, por outra, e assim até o
infinito”. Por isso diz, todo efeito tem uma causa e envolve essa. Nesse sentido, a violência
tem sua causa, que sendo algo composto, tem outras causas que o causam e assim por diante.
Vimos que na violência, trata-se de ideias inadequadas que produzem a tristeza, já que
diminuem a capacidade de existir e de agir dos envolvidos, porque são tocados por paixões
mais fortes ao qual respondem aos efeitos como se fossem as causas. Como mostra Spinoza
(esc. da prop. 2 do livro 2)
na Ética: “ Os homens se julgam livres apenas porque estão conscientes de
suas ações, mas desconhecem as causas pelas quais são determinados”(p.103). Não
compreendemos aquilo pelo qual deliberamos. Até porque escolhemos em relação ao que vem
de fora, onde a situação é dada e nela, as alternativas como condições de expressar a escolha.
Nisso, sempre acontece de se mostrar as cartas como marcadas. Já que as alternativas são
dadas como meio de escolher. Ao contrario, em Spinoza, tudo resulta de uma necessidade.
Não há possibilidades disponíveis para a escolha livre, seja para o pensamento como para a
extensão. Tudo que acontece é causado e, nesse acontecimento as relações são necessárias
para que ela seja o que é. Pois, se houvesse outro modo de acontecer seria outra coisa e não
essa aí que se deu. A causa é necessária, porque são as afetações e os afetos que assim se
realizaram e se atualizaram.
Seja para as ideias como para os movimentos e repouso dos corpos, tudo é
determinado por alguma causa, que é determinado por outra causa e assim ao infinito, por
isso, “essas decisões da mente surgem, nela, com a mesma necessidade com que surgem as
ideias das coisas existentes em ato. Aqueles, portanto, que julgam que é pela livre decisão da
mente que falam, calam, ou fazem qualquer outra coisa, sonham de olhos abertos” (Escólio da prop.
2 do livro 2, p. 103)
.
9
Percebe-se que a violência é algo que separa o indivíduo daquilo que ele pode. Limita
e restringe. Sua reação é sujeição e não produção. Assim, tanto o violador como o violado
são determinados por causas. Suas ações sejam elas conscientes ou inconscientes, são relações
determinadas do exterior, a agirem na forma da violência, mesmo quando se julgam fazer isso
livremente, só responde aos efeitos. Efeitos de afetos negativos, destrutivos, efeitos de
relações entre corpos e ideias inadequadas.
Tendo em vista o espaço desse artigo, não cabe estender-nos em diferentes formas de
compreensão do que seja a violência, optamos por reduzir esse debate ao que a violência não
é, para em seguida, buscarmos contornar as condições da ação e situar subjetivamente os
efeitos da violência tanto no violador como no violado, através da dominação e da extorsão.
A violência não é parte da natureza humana. Não faz parte de nenhuma pulsão de
morte (Freud) ou de negatividade intrínseca, como nos ensina a Profa. Cristina Rauter
(2011), reportando-se a Spinoza para afirmar que “a negatividade presente no campo social é
compreendida não como tendência inerente ao humano ou à sociedade humana, mas como
processo histórico a ser compreendido numa genealogia dos modos de subjetivação e num
campo social dado” 7. Na mesma perspectiva, Hannah Arendt, dirá: “nem a violência nem o
poder são fenômenos naturais, isto é, uma manifestação do processo vital, eles pertencem ao
âmbito político dos negócios humanos, cuja qualidade essencialmente humana é garantida
pela faculdade do homem para agir, a habilidade para começar algo novo 8”. Por fim,
podemos citar Félix Guattari que dirá em “As Três Ecologias” sobre violências: “elas não
estão intrinsecamente inscritas na essência da espécie humana, são construídas e sustentadas
por múltiplos agenciamentos de enunciação9”.
7
Rauter C. O negativo como obstáculo a uma compreensão da violência contemporânea: criminalidade e
coletivo - cad. Psicanál.-cPRJ, Rio de Janeiro, v. 33, n. 24, p. 78-90, 2011
8
Arendt H, Sobre Violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 60
9
Guattari, F. AS TRÊS ECOLOGIAS, ed. Papirus, 9 edição, SP: 1999, p.43
10
Teses Equivocadas Sobre a Criminalidade Urbana no Brasil”10. Demonstra que não é
verdadeira a suposição de que a maioria dos pobres seja criminosa e que mesmo que nas
prisões sejam os mais presentes, isso se deve mais aos estereótipos ou tipificações, pois, em
suas pesquisas percebe que os indivíduos da comunidade não compactuam com a
criminalidade, considerando-se como trabalhadores. Com isso, segue mostrando que a
criminalidade violenta não pode ser associada com a lógica de heroísmo, na imagem
destorcida de que o crime organizado realizaria a parte que o estado não cumpre, dando
recursos imediatos e proteção. Tão pouco, tem recorte étnico ou modos de expressão cultural
como “descendência direta dos quilombos, das capoeiras, das estratégias de resistências do
negro e mulato nos morros e favelas, da ética da malandragem”11. Complementa a visão dos
estudos cariocas, afirmando a quarta tese equivocada de que a violência urbana estaria ligada
a migração rural, na sua maioria nordestina que não se adaptaria a realidade de grandes
cidades, jogados a miséria e ao isolamento: se tornariam violentos. Por fim, a quinta tese
destorcida, onde nega que a violência urbana seria resultado do aprofundamento de lutas de
classe. Um modo político de resistência.
A violência urbana não é um conceito, mas o objeto a ser estudado. Conforme Prof.
Dr. Machado da Silva12, sociólogo, a violência urbana é uma representação social produzida
no imaginário dos dominados. Tal postura, não nos diria muito do significado do uso da
violência por seus autores. Problematiza o fato de uma suposta homogeneidade nos processos
de socialização, que seria compreendido como algo igual para todos, onde os que não se
orientam por esse modelo seriam os desviantes. Assim, surge outra visão ingênua, no qual a
criminalidade seria resultante de comportamentos desviantes ou patológicos no processo de
socialização. Mas, é justamente em relação à suposição de uma formação social padrão e
igualitária a todos, que incidirá sua crítica. Tal pensamento torna indiferente criminoso e não
criminoso. Nessa perspectiva, as análises passam a situar o problema da violência a partir de
um olhar estreito que não considera a realidade própria dos autores de ilícitos. Diz-nos: “este
é exatamente o desafio que se coloca para uma compreensão menos parcial do fenômeno:
10
Misse, M. Violência e Participação Política no Rio de Janeiro. RJ, IUPERJ, série estudos n. 91, agosto de
1995, 23:39.
11
Idem, p.8
12
Silva, L. A. Machado da. CRIMINALIDADE VIOLENTA: por uma nova perspectiva de análise. Rev. Sociol.
Polít., Curitiba, n. 13, p. 115-124, nov. 1999.
11
descobrir como os agentes do crime violento formulam as justificativas de seu
comportamento e quais os significados culturais que elas expressam.” (M. Silva 1999:121).
Afirma ainda prof. Machado da Silva, a violência urbana como uma representação
seria resultante de um complexo de condutas muito novas, produzindo novas regras de
sociabilidade fundada na violência generalizada, que nega a alteridade e a intersubjetividade 13,
própria a um individualismo egocêntrico, que torna todas as coisas e pessoas em objetos, para
alcançar seus interesses. Dentre os fatores de sua formação, revela que a ‘sociabilidade
violenta’ se constitui de modo independente e não é dirigida contra o Estado, “a atividade
criminal não pode ser reduzida a priori à mera adaptação ao contexto, pois os criminosos
não violam nem se rebelam contra o ordenamento estatal: este simplesmente não é elemento
significativo do comportamento destes atores 14”. A organização criminosa não tem o Estado
como objetivo, nem como referencia de sua existência e ação.
A violência urbana produziria, por isso, uma fragmentação social. Teria sua própria
lógica, autônoma em relação às instituições legais. Assim, as discussões que buscam justiçar
as causas da violência na ausência do Estado, na violência do Estado, na carência de
oportunidades, nas deficiências operacionais e de recursos de repressão policial, seriam
insuficientes para pensar o problema da violência urbana. Tais questões e ações não são
excluídas, mas acrescenta algo mais, de grande relevância. Autonomia referencial que
constitui a sociabilidade violenta, que seria, então, causa da criminalidade violenta, não é algo
que surge contra o Estado. Coexistindo como todos os demais problemas do tecido social e as
condições de sociabilidade ou civilidade.
13
Existe um belo comentário realizado pelo prof. Michel Misse, num artigo inédito “Crimes Urbanos,
sociabilidade violenta e ordem legítima: comentário sobre as hipóteses de Machado da Silva” que pode ser
encontra da página http://www.tigurl.org/images/resources/tool/docs/1837. acesso dia 07.04.2012
14
Idem Machado da Silva, 1999, p.121.
12
A violência não pode ser reduzida às formas de violação. Como a violência se
mostrasse submetida à quantidade de força usada. Quanto mais força, mais violenta é a ação,
fazendo do grau de violação a causa da violência.
A violência não é um individuo, nem um grupo, embora possa ser efetuada por
indivíduos e grupos. Dizer que a violência não pertence à natureza humana e nem a social,
nos remete a refletir a lógica da ação e nela, os modos de agenciamentos complexos que se
usa para produzir a dominação e a extorsão. Passemos a esse ponto.
As relações de decomposições só existem no nível dos modos, das coisas que são
causadas por outras, que não são substância, mas maneiras de ser dessa substância única.
Vimos acima, que em essência, cada singularidade é positiva, mas que essa depende das
relações que vem de fora para compor e se compreender. Esses outros corpos que vem de
fora, podem ser mais potentes que nosso corpo. Podendo vir a determinar de modo negativo,
decompondo nossas relações constitutivas. Quando isso ocorre, queremos dizer que aconteceu
à violência. Só no nível de relações precisas e fixas, é que pode haver composição e
decomposição de relações.
A outra objeção de Blyenberg refere-se a vícios e a virtudes. Esse ponto de vista não
será em relação à natureza inteira, mas nas relações determinadas. Onde a virtude revela-se
nas relações de composição, independente das relações que venham a ser decompostas. Isso
convém. É favorável, por isso é virtude. Ao contrário, inferirá que o vício seria tudo que
venha a decompor as nossas relações. Isso é desfavorável. Não convém, por isso é vício.
Mas qual vai ser a resposta de Spinoza a Blyenberg? Esse se reportará a uma ação,
dizendo que qualquer ação pode ser ora boa, ora má. Na proposição 59 do livro IV refere:
“Diz-se que uma ação é má apenas à medida que surge por sermos afetados de ódio ou de
algum afeto mau. Ora, nenhuma ação, considerada em si só, é boa ou má”. A ação se julga
através dos afetos que envolvem como diz Spinoza “cada um julga ou avalia, de acordo com
seus afetos, o que é bom, ou mau, o que é melhor ou pior e, finalmente, o que é ótimo ou
péssimo”. (esc. Prop. 39, do livro III).
A ação seja qual for: cortar, atirar, bater, não é boa nem má. O afeto envolvido a
determina. Assim, como concebemos a ação e qual a imagem que temos dos seus efeitos na
coisa a qual dirigimos nossa ação, isso sim, diz de um gesto ou de uma violação. É diferente
deixar cair à mão com força no rosto de alguém, e deixar cair à mão num bumbo. No
primeiro, nossa ação age decompondo as relações da pessoa, no segundo, compomos, criam-
(na proposição 59 do livro IV)
se harmônicas, fazemos música. Mas o que difere? Lembra-nos Spinoza : “a
todas as ações às quais somos determinados, em virtude de um afeto que é uma paixão,
podemos ser determinados, sem esse afeto, pela razão”. A violência é uma paixão, enquanto
toda paixão é um afeto que é determinado por forças exteriores, no qual retemos mais o que
sentimos, do que a verdade do que nos afeta. Por isso, reagimos aos efeitos de ideias confusas,
inadequadas, porque desconhecemos as causas. Não nos orientamos pela razão, mas pelas
forças de dominação que nos possuem e nos diminuem, limitam ou impossibilitam, diante dos
quais tornamo-nos passivos, sujeitados ou servis. Nessas condições, dizemos que a violência
opera em nós uma separação, que se efetua entre as forças de existir e nossa potência de agir.
16
fora, já que nem a violência nem a violação, são de natureza humana, mas diz das relações
que se estabelecem na extensão.
Podemos pensar que tanto a violência como a violação, faz parte de uma mesma ação.
Portanto, estão na ideia-paixão do violador e não da vítima. Sim, se a ação não for efetuada.
Porém, uma ação não é uma ação, se não for efetuada. Quando efetuada, envolve outros
corpos ao qual recai. Nessa perspectiva, há diferença de natureza entre a ação agida e ação
sofrida. A imagem da ação sofrida é violação. E imagem da ação agida é violência, essa
contém um afeto que a determina. Como isso, percebeu-se que não se toca na violência se
tratarmos só a violação. Podemos prender julgar, condenar, sentenciar, mas nada faremos em
relação ao que agencia a violência, se não tocarmos nos afetos que a determina. Isso serve
tanto para o executor como para a vítima. Por isso a diferença se torna importante.
Se pensarmos que uma faca pode servir como utensílio de cozinha e como arma
homicida, o que muda não é o instrumento, mas o modo de uso, que implica um afeto.
Afetivamente, a imagem da ação na perspectiva da violência não visa à extorsão, mas a
dominação. Como domina? A violência supõe afetos que reúnem ideias e corpos que formem
um agenciamento de coerção, no qual se supõe o temor e o pavor, para poder instalar o medo.
É uma composição. Há ideias, e toda ideia envolve afetos. Por mais instável que pareça às
intensidades dominantes, sempre há imagens, mesmo que confusas, não conscientes, há
ideias. E entre essas ideias há afetos. Afetos negativos, que compõe imagens e ações, que tem
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por finalidade decompor relações que caracterizam indivíduos ou grupos. Essa decomposição
de relações constitutivas entre indivíduos ou grupos, faz uma torção subjetiva. Separa esse
indivíduo ou grupo daquilo que ele pode. Separa a força de existir da potência de agir. Isso
difere a violação, que produz danos físicos, financeiros, da violência que produz danos
afetivos emocionais.
Por um lado: matar, roubar, extorquir, oprimir, reprimir, rechaçar, retalhar, atacar,
invadir, sujeitar, são ações, envolvem relações entre corpos. São formas de violação. Supõe
decomposição de relações constitutivas. Toda imagem de violação supõe o afeto violência,
mas a violência não se reduz às formas de violação. A violação faz parte da prática de
coerção que se efetua na extorsão. A coerção é causada pela violência. Com isso, podemos
dizer que o violador é aquele que está dominado pela violência, antes mesmo de realizar
qualquer violação.
Por outro lado: o ódio, o rancor, a mágoa, a vingança, a soberba, o temor que faz de
qualquer um querer o que não quer, e não querer o que quer (Spinoza 18). Mais intenso ainda: o
pavor de que um mal maior ao qual não se tem dúvida que irá acontecer. Daí a instalação do
medo, que se define por escolher um mal menor a um mal maior. O medo é a força afetiva, a
intensidade de dominação da violência no interior do indivíduo ou grupo violado.
Nota-se assim que os afetos pelos quais uma vítima passa oscila entre temor e pavor e
fixa-se como medo. Esses afetos não são tratados no mesmo modo que a violação física ou
patrimonial. Assim, o uso da violência em relações de dominação, introduz a violação
(coerção, chantagem e extorsão), como modo de instalar o medo da perda, dor, padecimento
ou morte. Mas a violência é uma intervenção subjetiva, virtual, no espírito, envolve o
18
Spinoza, na ética fará essa diferenciação entre medo, temor e pavor, soberbos. Esc. da proposição 39.
18
pensamento. A violação é sempre objetiva, opera-se nas relações entre os corpos, se dá no
atual, supõe a extensão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mas o que são nossas ideias sobre as coisas? São imagens que se formaram das
relações que nosso corpo e nossas ideias estabelecem com outros corpos e outras ideias que
encontramos no decorrer da vida. Em cada momento, em cada instante, vivemos uma variação
de intensidade. Quando essa variação faz uma passagem de um estado a outro, nessa
passagem um afeto se atualiza. Pode atualizar aumentando ou diminuindo nossa potência de
agir. Quando aumenta, se diz que estamos na alegria. Quando diminui, estamos na tristeza. A
questão é: que tipos de corpos vieram ao encontro de nosso corpo? Que relações aí se
formaram? Isso nos remeteu a pensar a lógica das ações.
A afetação se mostra nos efeitos dos corpos sobre um corpo particular. Nessas
afetações um afeto negativo, destrutivo, envolvido em ideias e imagens das coisas, determina
a ação vil. Afetivamente, a ação vil é violência. Essa é causa para a violação e não o
contrário. São duas linhas paralelas, coexistentes, diferentes em natureza uma da outra.
Ambas necessárias para cartografar à violência. A ação vil busca individualizar um afeto,
dominar subjetivamente, enquanto as ameaças e violações se ocupam de realizar a chantagem
e, assim, extorquir objetivamente. Não há violação sem violência e vice versa. Acontece que a
violência se instaura na dimensão do pensamento, enquanto a violação se mostra nas relações
entre corpos, mas a violência não pertence à natureza de nenhum indivíduo ou grupo, mas
nele se instala, se apropria, domina e faz executar.
BIBLIOGRAFIA
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