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UMA CARTOGRAFIA DA VIOLÊNCIA1

Contribuição aos estudos de modos de dominação e formas de extorsão

Lídiston Pereira da Silva2

PROPRIEDADE E INJUSTIÇA - Quando os socialistas demonstram que a divisão


da propriedade, na humanidade de hoje, é consequência de inúmeras injustiças e
violências, e in summa rejeitam a obrigação para com algo de fundamento tão
injusto, eles veem apenas um aspecto da questão. O passado inteiro da cultura antiga
foi construído sobre violência, a escravidão, o embuste, o erro; mas nós, herdeiros
de toda essa situação, e mesmo concreções de todo esse passado, não podemos
abolir a nós mesmos, nem nos é permitido querer extrair alguns pedaços dele. O que
é necessário não é novas distribuições pela força, mas graduais transformações do
pensamento. Em cada indivíduo a justiça deve se tornar maior e o instinto de
violência mais fraco.
NIETZSCHE – HDH-2001 - [452]

RESUMO

Partindo da compreensão de Spinoza/Deleuze sobre a natureza humana como meio de


estudar as formações de realidades e nelas, às relações entre indivíduos e grupos, os afetos
como determinações da ação e desde então, entrar nas formas de dominação e extorsão, como
meio de pensar uma cartografia da violência.

PALAVRAS CHAVES – Violência, violação, dominação e extorsão.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA VIOLÊNCIA

Tomaremos a concepção de Spinoza sobre a natureza humana, como horizonte geral,


no qual vamos situar uma atitude teórica, em que poderemos trabalhar com conceitos. A
proposta é encontrar instrumentos conceituais que nos ajudem a cartografar formas de
produção da violência e seus consequentes modos de violação. O objetivo é pensar questões,
que ainda estão em construção. Tendo esse contexto, perguntamos: como a violência, como
um agenciamento, intervém na decomposição de modos de vida, estabelecendo a dominação
e a extorsão?

1
Agradeço a meus alunos de Psicologia e Politicas Públicas e Psicologia Jurídica FCV, que muito contribuíram
para a construção desse texto, já que foi no debate e trocas em sala de aula que deu força e empenho a essa
escrita.
2
Psicólogo, pós-graduado em analise institucional, esquizoanálise e grupos, mestrado em comunicação social –
semiótica, doutorando na UFF – Psicologia e Produção de Subjetividade, professor assistente da FEAD e
Faculdade Ciências da Vida. Entre as disciplinas já lecionadas: Psicologia e Políticas Públicas e Psicologia
Jurídica, Ética, Dinâmica de Grupos, Psicologia Social e Comunitária.
1
Para pensar esse problema, assume-se a expressão da violência como agenciamento de
enunciação complexo, tal qual expõe Félix Guattari (1990), em As Três Ecologias: “a
violência e a negatividade resultam sempre de agenciamentos subjetivos complexos: elas não
estão intrinsecamente inscritas na essência da espécie humana, são construídas e sustentadas
por múltiplos agenciamentos de enunciação3”.

Entendendo o agenciamento num modo simples: como aquilo que agencia, como as
condições de algo se dar, se realizar ou acontecer. Estudar as condições de acontecer seria um
meio de compor uma cartografia de um agenciamento complexo. Na caminhada das leituras,
buscou-se pensar a cartografia da violência, como algo complexo através de outros
elementos. Tais elementos estão juntos no ato de expressar uma realidade dominada pela
violência. Achamos movimentos: relações entre ideias e relações entre corpos, diante de um
terceiro incluído, o afeto na forma negativa, que se pauta na morte como horizonte referencial.

A violência se expressa através de uma ação que envolve a reunião de ideias e ideias
de ideias, e a composição e decomposição de corpos, que expressam uma forma de coerção.
A coerção supõe a negatividade, expressa na ameaça de dor, padecimento ou morte. Surgem
questões: O que são as relações de coerção e extorsão entre corpos? O que são relações de
dominação entre ideias? Como se dá a imagem numa ação para que apareça a violência?
Como se dá a imagem de decomposição, para perceber a realidade da violação?

Essas questões nos colocam a pensar sobre a natureza das realidades e nelas, às
relações entre indivíduos e grupos, onde poderemos nos aventurar em uma cartografia da
violência para chegar a formas de dominação e modos de extorsão.

NATUREZA HUMANA E A FICÇÃO DA VIOLÊNCIA

A ideia de Deus ou natureza humana em Spinoza 4 é complexa. Reportemos-nos aos


livros da Ética de Spinoza, onde veremos: Deus é único, porque a substância de tudo que é
produção de produção, é única5 “Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é,

3
Guattari, F. AS TRÊS ECOLOGIAS, ed. Papirus, 9 edição, SP: 1990, p.43
4
Spinoza Ética. Tradução Tomaz Tadeu, autêntica, MG. 2009.
5
Spinoza, 2009, pro. 1, p. 14. Diz “uma substância é, por natureza, primeira, relativamente ás suas afecções”.
Na prop. 4 do livro II, p. 54 refere: “a ideia de Deus, da qual se seguem infinitas coisas, de infinitas maneiras, só
pode ser única”, o que mostra que as afecções ou modos são efeitos dos atributos da substância.
2
uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência
eterna e infinita” (Spinoza, 2009, livro I, def. 6). Deus ou a substância é aquilo que “existe em si mesmo e
(Spinoza, 2009, livro I, def. 3)
que por si mesmo é concebido” . Já por atributo, Spinoza define como
“aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua essência” (Spinoza,
2009, livro I, def. 4)
. Vemos que Deus ou a natureza é a substância única, que se expressa por infinitos
atributos, mas o que se produz pelos atributos é perceptível ao intelecto humano, o que quer
dizer: tudo que há e acontece nas relações humanas são inteligíveis. Deus, a natureza de tudo
que acontece e se dá, é compreensível pela mente humana. Nada é encoberto. Nada é
misterioso, tudo tem suas causas, e “de uma causa dada e determinada segue-se
necessariamente um efeito”, daí, “o conhecimento do efeito depende do conhecimento da
causa e envolve esse último (Spinoza, 2009, livro I, axioma 3 e 4).

Tendo acesso as condições causais dos acontecimentos, somos ativos e não passivos,
afirmamos e não negamos, produzimos e não reproduzimos. Porque buscando as causas e não
se confundindo com efeitos, nesse momento existimos porque a ação livre se dá
“exclusivamente pela necessidade de sua natureza e que por si só é determinada a agir”
(Spinoza, 2009, livro I, def. 7)
. Na proposição18 dirá: “Deus é causa imanente, e não transitiva, de todas
as coisas”. Até aqui podemos resumir dizendo: tudo que acontece e se dá, tem sua causa
necessária, que se mostra inteligível a mente humana. As formas de violência e violação são
efeitos em que suas causas não são imanentes, por que Deus não produz violência nem
violação. Logo, são produzidos como artefato humano.

Veremos que a violência se compõe de ideias inadequadas que operam em nossa


subjetividade, reduzindo nossa capacidade de existir e diminuindo nossa potência de agir em
conformidade com nossa natureza. Tornando-nos servis, sujeitados e passivos, já que a força
coercitiva separa cada indivíduo ou grupo daquilo que podem. Intervir na violência implicará
em fazer a passagem da condição passiva a ativa. Será buscar as causas daquilo que domina e
conduz cada indivíduo ou grupos a servidão voluntária. Importante notar que a resposta a
esses problemas não estão na natureza da vida, mas nas relações com as forças de corpos e
ideias que vem de fora e nos subjulgam.

Voltando. Os atributos que expressam a substância tem sua gênese em si mesmo e por
si mesmo são colocados, mas os modos que derivam dos atributos, não. Cada indivíduo ou

3
grupo dependem de causas exteriores para compor-se, conhecer-se e realizar-se. O que
expressa os infinitos atributos da substância infinita de Deus? O finito. Os modos, as
maneiras de ser são modos finitos dos atributos, mas como são infinitos atributos, Deus ou a
natureza em Spinoza é complexa, múltipla, plural e não Uno transcendental. Essa é uma
diferença importante em relação ao pensamento da tradição, que separa Deus criador das
criaturas. Em Spinoza, Deus é a natureza de tudo que há. Ele é expressivo, por isso o atributo
que o expressa é inteligível. Não há metáfora, nem representações, mas graus de realidades e
perfeição.

Os modos, os indivíduos, são efeitos dos atributos, dependem de outros modos


exteriores para vir a existir. Primeira diferença: os atributos são infinitos, os modos (humanos)
são finitos. A natureza humana se define com algo causado, por isso não é um ser, não é causa
de si, mas deriva de outras causas, por isso se diz que o ser humano é um modo de ser: “por
modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa,
por meio da qual é também concebido” (Spinoza, 2009, livro I, def. 5). A afecção da substância diz que a
forma humana é um efeito dos atributos, onde a causa humana depende de relação extrínseca
com o que vem de fora. Não nascemos com ideias prontas. Nossas ideias são imagens dos
corpos pelos quais nosso corpo é afetado. Dependemos dos encontros com o que vem de fora,
exterior a nós, que podem aumentar ou diminuir nossa potência de agir e nossa capacidade de
existir.

Dos infinitos atributos que expressam a substância para os indivíduos, segundo


Spinoza, dois atributos são acessíveis à forma humana: o pensamento e a extensão 6. Mas
(Spinoza, 2009, pro. 10, p. 18)
“cada atributo de uma substância deve ser concebido por si mesmo” .
Assim, a natureza humana pode ser definida a partir do atributo pensamento que produz as
ideias e as relações entre ideias, e o atributo extensão que produz os corpos e as formas de
composições entre corpos. Mas um atributo não envolve o outro. São linhas paralelas, onde
relações entre ideias dizem do pensamento e as composições ou misturas entre corpos, dizem
da extensão. Ambos são atributos que expressam uma única substância, Deus ou a natureza,
mas cada um a sua maneira, pois, a proposição 2 do livro III diz: “nem o corpo pode
determinar a mente a pensar, nem a mente determinar o corpo ao movimento ou ao repouso”.
Até aqui, podemos reter como indicações metodológicas que, segundo Spinoza, tudo que
6
Spinoza, 2009, livro II, prop. 1 e 2.
4
acontece ao humano, sua realidade, deve ser lida em duas linhas: uma que mostra as relações
entre ideias, outra que desvela as formas de composição entre os corpos. O que quer dizer: a
violência é um instrumental, um agenciamento, que não tem por natureza Deus, e que
funciona segundo formas de coerção e modos de persuasão, que operam tanto nas relações
entre ideias, como nas misturas ou composições entre os corpos.

Mas o que é um indivíduo que pode ser separado de suas forças de existir e de sua
potência de agir, pela violência? No postulado 1 do livro II dirá Spinoza: “o corpo humano
compõem-se de muitos indivíduos (de natureza diferentes) cada um dos quais é também
altamente composto”. Isso diz que é da natureza humana ser singularidade composta e
complexa, sua essência intrínseca é um grau de potência, positiva como todos os demais
modos singulares existentes por natureza. Se o individuo é composto de vários corpos
(coração, cérebro, circulação, etc.) e cada corpo é altamente complexo, isso diz que pode ser
afetado e afetar de diversas formas. A reunião de vários indivíduos compõe um grupo
altamente composto e complexo. Assim, um grupo não pode ser definido como a reunião de
unidades de indivíduos sem perceber que cada indivíduo se compõe de outros indivíduos
também altamente complexos. O que quer dizer que o grupo se define melhor pela reunião de
indivíduos com corpos compostos e complexos, que podem afetar e ser afetado de inúmeras
maneiras. Há complexidade no indivíduo e também nos grupos.

Mas notemos: em essência, cada um e todos os indivíduos convêm entre si. Isso
porque expressam os atributos da substância, que é a natureza ou Deus, “e nenhuma coisa tem
em si algo por meio do qual possa ser destruído, ou seja, que retire a sua existência, ao
contrário, ela se opõe a tudo que possa retirar a sua existência. (Spinoza, 2009, livro III, prop. 6, demonstração).”
Como diz Deleuze em Spinoza e os Signos (1970) “toda a natureza é positiva, e portanto
ilimitada e indeterminada no seu gênero...A positividade como essência infinita, corresponde
(Deleuze, 2007, p. 106 e 107).
à afirmação como existência necessária.” Se a violência fosse própria da
natureza humana, teríamos que supor que Deus ou a natureza teria algo em si mesmo, na
substância, que viria destruí-lo. Deus inventaria seu próprio padecimento, sua sujeição, seu
constrangimento e sua servidão, o que é ridículo. Isso mostra que cada indivíduo composto,
em si mesmo, não nasce com nenhuma negatividade. Por isso, podemos afirmar que a
violência não é da natureza do indivíduo, embora nele possa vir a pertencer, a se instalar, mas
não a constitui, o possui.
5
Entrar na servidão supõe que corpos exteriores assim determinados, venham a possuir
indivíduos e grupos. É dizer, cada indivíduo é complexo. Compõe-se de vários outros corpos,
que são susceptíveis de ser afetados por diferentes outros corpos e diferentes outras ideias que
lhe vem do exterior. Essas forças são mais fortes e assim podem modificar a natureza das suas
relações constitutivas, que mesmo que inicialmente sejam positivas, podem vir a levar a um
estado de dominação, passividade e sujeição. Isso porque “os indivíduos que compõe o corpo
humano e, consequentemente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos exteriores
de muitas maneiras” (Spinoza, 2009, livro II, axioma 4 e postulado 3, p. 52 e 66) . Essas afetações podem ser positivas
e assim aumentar a capacidade de agir e de existir do indivíduo ou grupo. Mas podem ser
negativas, diminuindo, inibindo ou impossibilitando suas capacidades, levando-o ao estado de
servidão. Quando isso ocorre, estamos diante de formas de violência, que não sendo da
natureza humana, lhe envolve em medo, ficções ou crendices.

As formas de afetação: corpos e ideias, que buscam dominar através da coerção e


certas formas de persuasão, são tipos específicos de agenciamentos. Possuem em si mesmo a
condição de causa inadequada, porque delas só retemos seus efeitos. Ora, se Spinoza define
por causa adequada, “aquela cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela
mesma”. Ou seja, diante dessas forças somos ativos, afirmativos, produtivos. Diante delas
lidamos, rearranjamos, somos a causa ativa do que acontece. Construímos a realidade do qual
somos também causa ativa. Ao contrário, chama de causa inadequada ou parcial, “aquela que
não pode ser compreendida por ela só” (Spinoza, 2009, livro III, def. 1, p. 98) , porque resulta de misturas
inadequadas, já que nossa essência singular encontra-se determinada por forças externas, que
diminuem nossa capacidade de existir e reduz nossa potência de agir, no qual só retemos os
efeitos separados de suas causas. Efeito que resulta do encontro de nossas forças com forças
exteriores, mas retemos dessas forças só os efeitos que acontecem em nós, sem saber as
verdadeiras causas que causam essas forças exteriores. Daí, conhecemos mais as afecções, as
afetações de nosso corpo, do que dos corpos exteriores que nos afetam. Por isso não
conhecemos adequadamente, somos passivos. Não compreendemos o que nos ocorre, só
reagimos. Seria pensar que no roubo, no rapto, em ataques de fúria, o violador se encontra
tomado por ideias inadequadas, afetos negativos, onde compõe uma imagem de sua ação, com
o qual busca decompor as relações constitutivas do violado, estabelecendo, assim, os meios de
dominação.

6
A dominação é um estado de corpo em condições de misturas com outros corpos
externos, no qual as ideias estão bloqueadas por outras ideias, onde as forças próprias são
inibidas, a potência reduzida, compondo a condição de sujeição. Esses corpos e essas ideias
são composições que agenciam a violência. A violência se expressa na forma de coerção. A
coerção faz chantagem (a bolsa ou a vida), no qual efetua a extorsão. Podemos dizer que a
violência é um meio em que o violador se usa para efetuar a extorsão. Padecemos quando “em
nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que não somos a causa
senão parcial” (Spinoza, 2009, livro III, def. 2, p. 98). O que é retomado pela proposição 3 do livro 4, onde
diz: “a força pela qual o homem persevera no existir é limitada e é superada, infinitamente,
pela potência das causa exteriores”. Estamos expostos aos encontros com corpos e ideias que
servem tanto para nos definir como para nos sujeitar. Define-nos porque tomamos consciência
de nós e de nosso corpo através da composição e misturas com outros corpos. Porém, tais
encontros podem ser afirmativos ou negativos, adequados ou inadequados, alegres ou tristes.
Em relação à violência, sempre se tem encontros tristes e inadequados, porque acontece de
nossa potência ser reduzida, impedida ou anulada. Nossas relações que nos caracterizam são
decompostas pelas forças exteriores a nós, se misturam a nossas e nos tornam passivos. Isto é,
separa-nos das forças de existir e da potência de agir. Separa-nos daquilo que realmente
podemos. Essa separação, essa decomposição de relações, será a marca da violência.

Quer dizer, na composição de nossas relações constitutivas com outros corpos e outras
ideias, nosso grau de potência pode sofrer dos efeitos do que vem de fora, isso porque
“nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma causa exterior” seguido de: “À medida
que uma coisa pode destruir outra elas são de natureza contrária, isto é, elas não podem
(Spinoza, 2009, livro III, prop. 4 e 5)
estar no mesmo sujeito”. . Ainda, em Spinoza, “uma ideia que exclui a
existência de nosso corpo não pode existir em nossa mente, mas lhe é contrária” (Spinoza, 2009, livro
III, prop. 10)
. Disso, deduz-se que o que produz a violência é diferente e contrária à natureza
humana, que ao possuí-la, agencia modos de violação. A violação é parte das relações
humanas, que são contrárias umas as outras. Isso porque, “dado uma coisa qualquer, existe
(Spinoza, 2009, livro IV, axioma)
uma outra, mais potente, pela qual a primeira pode ser destruída” .
Quando ocorre o uso da força sobre um corpo e uma ideia, na forma de coerção, o violador o
faz por ação vil, no qual busca a dominação, usando-se de diferentes modos de violação.

7
É o efeito de causas inadequadas o que compõe as relações extrínsecas, determinadas
por ideias e corpos que vem do exterior a se compor com o nosso e que nos dominam.
Tornam-nos passivos, sujeitados. Por desconhecermos as causas da violência que se misturam
com nossa essência singular, onde padecemos, não sabemos como essas conduzem a formas
de violação, que tanto indivíduos como grupos passam a assumir que isso lhes pertence como
parte de sua natureza. Acredita-se que se efetuou tal ação ou omissão, por vontade própria.
Por livre arbítrio. O que é reforçado por discursos dominantes que se usam da coerção e de
certas formas de persuasão que dizem identificar a violência como algo pessoal, afirmando
fazer parte do caráter do violador. Tal preconceito, é muito presente em diversos modos de
interpretar e intervir na realidade em políticas públicas e, consequentemente, pode estar
presente nos modos de pensar e agir em situações de violência.

NECESSIDADE E ESCOLHA

No tocante ao pensamento de Spinoza, a escolha é uma ideia inadequada, porque


supõe o livre arbítrio, que se deduz no pensamento da tradição, como resultado da imagem e
semelhança que o humano tem com Deus, isto é, inspirado na imagem de que os reis tem o
mesmo mandato de Deus, o homem pode tudo. Isso projetou uma imagem sobre a realidade
(que é o como se entende a natureza das coisas), muito confusa e mutilada. Deliberar, querer e
decidir, são expressões do homem forte. Escolher se torna uma força de vontade, mas onde
supõe: somos livres para expressar, conscientemente, nossa deliberação. Do ponto de vista
de quem faz as leis, os legisladores, o homem livre pode errar desviar, pecar, por isso deve ser
vigiado, estar em constante avaliação. Suas atitudes e ações na realidade como procedimento
legal são passíveis de serem julgadas. A lei se torna obediência e não consentimento coletivo
de uma realidade. Obedecer e servir são palavras de ordem. Isso, na Ética de Spinoza, revela
mais um exemplo de que o homem foi entendido, pela tradição, como sendo a expressão da
vontade livre, o que mostra um preconceito, que nos conduz a imagem de a responsabilidade
por escolhas “tais como as de bem, mal, ordenação, confusão, calor, frio, beleza, feiura...” se
produziu junto à ilusão nos homens, que “por se julgarem livres, foi que nasceram noções
tais como louvor e desaprovação, pecado e mérito”. (Spinoza, apêndice, livro I, da ética, p.45).

Dizem os entendidos: nossa vida são nossas escolhas. Há, nas escolhas, algo de
vontade voluntária, segundo uma finalidade e não sendo uma relação necessária, onde se

8
supõe que o ato de escolher é contingente, esse só pode se dar entre possíveis. Lógica: se não
é possível, como se poderá escolher? Isso se justifica, porque temos a escolha de não fazer o
que fizemos ou de fazer o que não fizemos. Com isso, torna-se possível imputar a consciência
de quem age, uma culpabilidade da ação realizada e, consequentemente, dispor os corpos a
(IV, def. prop. 48)
julgamento e condenação. Spinoza dirá: “Não há, na mente, nenhuma vontade
absoluta ou livre: a mente é determinada a querer isso ou aquilo por uma causa que é
também ela, determinada por outra causa, e esta última, por sua vez, por outra, e assim até o
infinito”. Por isso diz, todo efeito tem uma causa e envolve essa. Nesse sentido, a violência
tem sua causa, que sendo algo composto, tem outras causas que o causam e assim por diante.

Vimos que na violência, trata-se de ideias inadequadas que produzem a tristeza, já que
diminuem a capacidade de existir e de agir dos envolvidos, porque são tocados por paixões
mais fortes ao qual respondem aos efeitos como se fossem as causas. Como mostra Spinoza
(esc. da prop. 2 do livro 2)
na Ética: “ Os homens se julgam livres apenas porque estão conscientes de
suas ações, mas desconhecem as causas pelas quais são determinados”(p.103). Não
compreendemos aquilo pelo qual deliberamos. Até porque escolhemos em relação ao que vem
de fora, onde a situação é dada e nela, as alternativas como condições de expressar a escolha.
Nisso, sempre acontece de se mostrar as cartas como marcadas. Já que as alternativas são
dadas como meio de escolher. Ao contrario, em Spinoza, tudo resulta de uma necessidade.
Não há possibilidades disponíveis para a escolha livre, seja para o pensamento como para a
extensão. Tudo que acontece é causado e, nesse acontecimento as relações são necessárias
para que ela seja o que é. Pois, se houvesse outro modo de acontecer seria outra coisa e não
essa aí que se deu. A causa é necessária, porque são as afetações e os afetos que assim se
realizaram e se atualizaram.

Seja para as ideias como para os movimentos e repouso dos corpos, tudo é
determinado por alguma causa, que é determinado por outra causa e assim ao infinito, por
isso, “essas decisões da mente surgem, nela, com a mesma necessidade com que surgem as
ideias das coisas existentes em ato. Aqueles, portanto, que julgam que é pela livre decisão da
mente que falam, calam, ou fazem qualquer outra coisa, sonham de olhos abertos” (Escólio da prop.
2 do livro 2, p. 103)
.

9
Percebe-se que a violência é algo que separa o indivíduo daquilo que ele pode. Limita
e restringe. Sua reação é sujeição e não produção. Assim, tanto o violador como o violado
são determinados por causas. Suas ações sejam elas conscientes ou inconscientes, são relações
determinadas do exterior, a agirem na forma da violência, mesmo quando se julgam fazer isso
livremente, só responde aos efeitos. Efeitos de afetos negativos, destrutivos, efeitos de
relações entre corpos e ideias inadequadas.

O QUE A VIOLÊNCIA NÃO É

Tendo em vista o espaço desse artigo, não cabe estender-nos em diferentes formas de
compreensão do que seja a violência, optamos por reduzir esse debate ao que a violência não
é, para em seguida, buscarmos contornar as condições da ação e situar subjetivamente os
efeitos da violência tanto no violador como no violado, através da dominação e da extorsão.

A violência não é parte da natureza humana. Não faz parte de nenhuma pulsão de
morte (Freud) ou de negatividade intrínseca, como nos ensina a Profa. Cristina Rauter
(2011), reportando-se a Spinoza para afirmar que “a negatividade presente no campo social é
compreendida não como tendência inerente ao humano ou à sociedade humana, mas como
processo histórico a ser compreendido numa genealogia dos modos de subjetivação e num
campo social dado” 7. Na mesma perspectiva, Hannah Arendt, dirá: “nem a violência nem o
poder são fenômenos naturais, isto é, uma manifestação do processo vital, eles pertencem ao
âmbito político dos negócios humanos, cuja qualidade essencialmente humana é garantida
pela faculdade do homem para agir, a habilidade para começar algo novo 8”. Por fim,
podemos citar Félix Guattari que dirá em “As Três Ecologias” sobre violências: “elas não
estão intrinsecamente inscritas na essência da espécie humana, são construídas e sustentadas
por múltiplos agenciamentos de enunciação9”.

Na perspectiva sociológica, a violência não é algo gerado pelas condições econômicas,


não encontra como causa à pobreza, tese essa que possui autoria desconhecida, mas que
prepondera em inúmeras pesquisas como um dado suposto simplesmente por dedução
preconceituosa, como bem mostra Prof. Dr. Michel Misse, sociólogo que escreve: “Cinco

7
Rauter C. O negativo como obstáculo a uma compreensão da violência contemporânea: criminalidade e
coletivo - cad. Psicanál.-cPRJ, Rio de Janeiro, v. 33, n. 24, p. 78-90, 2011
8
Arendt H, Sobre Violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 60
9
Guattari, F. AS TRÊS ECOLOGIAS, ed. Papirus, 9 edição, SP: 1999, p.43
10
Teses Equivocadas Sobre a Criminalidade Urbana no Brasil”10. Demonstra que não é
verdadeira a suposição de que a maioria dos pobres seja criminosa e que mesmo que nas
prisões sejam os mais presentes, isso se deve mais aos estereótipos ou tipificações, pois, em
suas pesquisas percebe que os indivíduos da comunidade não compactuam com a
criminalidade, considerando-se como trabalhadores. Com isso, segue mostrando que a
criminalidade violenta não pode ser associada com a lógica de heroísmo, na imagem
destorcida de que o crime organizado realizaria a parte que o estado não cumpre, dando
recursos imediatos e proteção. Tão pouco, tem recorte étnico ou modos de expressão cultural
como “descendência direta dos quilombos, das capoeiras, das estratégias de resistências do
negro e mulato nos morros e favelas, da ética da malandragem”11. Complementa a visão dos
estudos cariocas, afirmando a quarta tese equivocada de que a violência urbana estaria ligada
a migração rural, na sua maioria nordestina que não se adaptaria a realidade de grandes
cidades, jogados a miséria e ao isolamento: se tornariam violentos. Por fim, a quinta tese
destorcida, onde nega que a violência urbana seria resultado do aprofundamento de lutas de
classe. Um modo político de resistência.

A violência urbana não é um conceito, mas o objeto a ser estudado. Conforme Prof.
Dr. Machado da Silva12, sociólogo, a violência urbana é uma representação social produzida
no imaginário dos dominados. Tal postura, não nos diria muito do significado do uso da
violência por seus autores. Problematiza o fato de uma suposta homogeneidade nos processos
de socialização, que seria compreendido como algo igual para todos, onde os que não se
orientam por esse modelo seriam os desviantes. Assim, surge outra visão ingênua, no qual a
criminalidade seria resultante de comportamentos desviantes ou patológicos no processo de
socialização. Mas, é justamente em relação à suposição de uma formação social padrão e
igualitária a todos, que incidirá sua crítica. Tal pensamento torna indiferente criminoso e não
criminoso. Nessa perspectiva, as análises passam a situar o problema da violência a partir de
um olhar estreito que não considera a realidade própria dos autores de ilícitos. Diz-nos: “este
é exatamente o desafio que se coloca para uma compreensão menos parcial do fenômeno:

10
Misse, M. Violência e Participação Política no Rio de Janeiro. RJ, IUPERJ, série estudos n. 91, agosto de
1995, 23:39.
11
Idem, p.8
12
Silva, L. A. Machado da. CRIMINALIDADE VIOLENTA: por uma nova perspectiva de análise. Rev. Sociol.
Polít., Curitiba, n. 13, p. 115-124, nov. 1999.
11
descobrir como os agentes do crime violento formulam as justificativas de seu
comportamento e quais os significados culturais que elas expressam.” (M. Silva 1999:121).

Afirma ainda prof. Machado da Silva, a violência urbana como uma representação
seria resultante de um complexo de condutas muito novas, produzindo novas regras de
sociabilidade fundada na violência generalizada, que nega a alteridade e a intersubjetividade 13,
própria a um individualismo egocêntrico, que torna todas as coisas e pessoas em objetos, para
alcançar seus interesses. Dentre os fatores de sua formação, revela que a ‘sociabilidade
violenta’ se constitui de modo independente e não é dirigida contra o Estado, “a atividade
criminal não pode ser reduzida a priori à mera adaptação ao contexto, pois os criminosos
não violam nem se rebelam contra o ordenamento estatal: este simplesmente não é elemento
significativo do comportamento destes atores 14”. A organização criminosa não tem o Estado
como objetivo, nem como referencia de sua existência e ação.

A violência urbana produziria, por isso, uma fragmentação social. Teria sua própria
lógica, autônoma em relação às instituições legais. Assim, as discussões que buscam justiçar
as causas da violência na ausência do Estado, na violência do Estado, na carência de
oportunidades, nas deficiências operacionais e de recursos de repressão policial, seriam
insuficientes para pensar o problema da violência urbana. Tais questões e ações não são
excluídas, mas acrescenta algo mais, de grande relevância. Autonomia referencial que
constitui a sociabilidade violenta, que seria, então, causa da criminalidade violenta, não é algo
que surge contra o Estado. Coexistindo como todos os demais problemas do tecido social e as
condições de sociabilidade ou civilidade.

Se o prof. Machado entende a violência urbana como parte do imaginário dos


dominados e como mais uma formação simbólica, ligada à linguagem significante, isso diz
respeito a um dos modos da sociologia pensar seus objetos de pesquisa. Para a psicologia
social, deslocada do imaginário social dos dominados, mas como ação vil, a violência não é
uma representação, nem tampouco uma formação simbólica, mas um modo de produzir
realidades que visa submeter e subjulgar indivíduos e grupos.

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Existe um belo comentário realizado pelo prof. Michel Misse, num artigo inédito “Crimes Urbanos,
sociabilidade violenta e ordem legítima: comentário sobre as hipóteses de Machado da Silva” que pode ser
encontra da página http://www.tigurl.org/images/resources/tool/docs/1837. acesso dia 07.04.2012
14
Idem Machado da Silva, 1999, p.121.
12
A violência não pode ser reduzida às formas de violação. Como a violência se
mostrasse submetida à quantidade de força usada. Quanto mais força, mais violenta é a ação,
fazendo do grau de violação a causa da violência.

A violência não é um individuo, nem um grupo, embora possa ser efetuada por
indivíduos e grupos. Dizer que a violência não pertence à natureza humana e nem a social,
nos remete a refletir a lógica da ação e nela, os modos de agenciamentos complexos que se
usa para produzir a dominação e a extorsão. Passemos a esse ponto.

A AÇÃO VIL: hipótese afetiva da lógica de dominação pela violência

Partiremos da aula de Gilles Deleuze, de 31 de janeiro de 1981, sobre Spinoza em


Vincennes15, no qual vai tratar de duas objeções levantadas por Blyenberg à Spinoza, a
respeito do mal. Trata-se do estudo que ficou conhecido como “As cartas do mal”. Duas
objeções: uma concernente a natureza como um todo. Outra, do ponto de vista particular, no
qual se pode focalizar uma ação. Tal dinâmica na ação, nós ajudará a pensar uma cartografia
da violência.

A primeira objeção de Blyenberg constrói-se no raciocínio em que coloca a


negatividade, a violência como parte da substância, no qual Deus a expressaria. Explica sua
compreensão a respeito da teoria de Spinoza, que nas relações entre corpos podem ocorre
movimentos de composição e de decomposição, que isso só faz mostrar oscilações, no qual
ora a vantagem se dá para um corpo, ora a vantagem se faz para o outro. Por exemplo: no
processo de alimentação é necessário que um corpo se decomponha (o alimento) para que o
outro se componha, nosso corpo. Nesse sentido, a natureza toda se comporia de relações
coexistentes de composição e decomposição, que estariam sempre juntas.

A resposta de Spinoza, segundo Deleuze, será simples: “é que do ponto de vista da


natureza inteira, não se pode dizer que há ao mesmo tempo composição e decomposição
posto que, do ponto de vista da natureza inteira, há somente composição. Não há mais do que
composições de relações.16”. Diferente será quando nos situarmos, não na natureza inteira,
15
Deleuze, Aula sobre Spinoza do dia 13 de janeiro de 1981. Tradução Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso e
Hélio Rebello Cardoso Jr. P46. Disponível no sitio: http://www.4shared.com/zip/8KMKVKqk/Deleuze_G_-
_Curso_sobre_Spinoz.htm acesso dia 07.04.2012.
16
Deleuze, Aula sobre Spinoza do dia 13 de janeiro de 1981. Tradução Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso e
Hélio Rebello Cardoso Jr. P46.
13
mas num ponto de vista particular de nosso entendimento onde, sim, podemos dizer que: “tal
e tal relação se compõe, em detrimento de tal outra relação que deve se decompor para que
as duas se componham. Mas é porque nós isolamos uma parte da natureza. Do ponto de vista
da natureza inteira somente há relações que se compõem.”17.

As relações de decomposições só existem no nível dos modos, das coisas que são
causadas por outras, que não são substância, mas maneiras de ser dessa substância única.
Vimos acima, que em essência, cada singularidade é positiva, mas que essa depende das
relações que vem de fora para compor e se compreender. Esses outros corpos que vem de
fora, podem ser mais potentes que nosso corpo. Podendo vir a determinar de modo negativo,
decompondo nossas relações constitutivas. Quando isso ocorre, queremos dizer que aconteceu
à violência. Só no nível de relações precisas e fixas, é que pode haver composição e
decomposição de relações.

A outra objeção de Blyenberg refere-se a vícios e a virtudes. Esse ponto de vista não
será em relação à natureza inteira, mas nas relações determinadas. Onde a virtude revela-se
nas relações de composição, independente das relações que venham a ser decompostas. Isso
convém. É favorável, por isso é virtude. Ao contrário, inferirá que o vício seria tudo que
venha a decompor as nossas relações. Isso é desfavorável. Não convém, por isso é vício.

Mas qual vai ser a resposta de Spinoza a Blyenberg? Esse se reportará a uma ação,
dizendo que qualquer ação pode ser ora boa, ora má. Na proposição 59 do livro IV refere:
“Diz-se que uma ação é má apenas à medida que surge por sermos afetados de ódio ou de
algum afeto mau. Ora, nenhuma ação, considerada em si só, é boa ou má”. A ação se julga
através dos afetos que envolvem como diz Spinoza “cada um julga ou avalia, de acordo com
seus afetos, o que é bom, ou mau, o que é melhor ou pior e, finalmente, o que é ótimo ou
péssimo”. (esc. Prop. 39, do livro III).

Deleuze toma o exemplo de Spinoza a respeito da ação de golpear. Levantar a mão,


serrar o punho e com força golpear. Isso não é mau nem bom. É um ato físico, diz da potência
de um corpo. “Agora, se o homem, levado pela ira ou pelo ódio, é determinado a cerrar o
punho ou mover o braço, isso ocorre... porque uma só e mesma ação pode estar associada às
(esc. Prop. 39, do livro III).
mais diversas imagens de coisas” A ação é determinada boa ou má,
17
Idem, Deleuze aula de 13.01.1981, p. 46.
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adequada ou inadequada, confusa ou clara e distinta, pela associação a imagem da coisa a qual
a ação recairá. Há uma associação que reúne duas imagens: a imagem da ação e a associação
dessa imagem à imagem da coisa que irá sofrer a ação. Para nossos estudos será violência
quando a imagem da ação movida por um afeto paixão, uma tristeza, como ódio, raiva, ira,
medo, temor, pavor, vingança, soberba, associa-se a imagem da coisa, indivíduo ou grupo,
sob o qual recairá a ação, decompondo essas relações, e produzindo as condições de
dominação.

A ação seja qual for: cortar, atirar, bater, não é boa nem má. O afeto envolvido a
determina. Assim, como concebemos a ação e qual a imagem que temos dos seus efeitos na
coisa a qual dirigimos nossa ação, isso sim, diz de um gesto ou de uma violação. É diferente
deixar cair à mão com força no rosto de alguém, e deixar cair à mão num bumbo. No
primeiro, nossa ação age decompondo as relações da pessoa, no segundo, compomos, criam-
(na proposição 59 do livro IV)
se harmônicas, fazemos música. Mas o que difere? Lembra-nos Spinoza : “a
todas as ações às quais somos determinados, em virtude de um afeto que é uma paixão,
podemos ser determinados, sem esse afeto, pela razão”. A violência é uma paixão, enquanto
toda paixão é um afeto que é determinado por forças exteriores, no qual retemos mais o que
sentimos, do que a verdade do que nos afeta. Por isso, reagimos aos efeitos de ideias confusas,
inadequadas, porque desconhecemos as causas. Não nos orientamos pela razão, mas pelas
forças de dominação que nos possuem e nos diminuem, limitam ou impossibilitam, diante dos
quais tornamo-nos passivos, sujeitados ou servis. Nessas condições, dizemos que a violência
opera em nós uma separação, que se efetua entre as forças de existir e nossa potência de agir.

Marquemos esse ponto. A análise da ação se dá em duas dimensões: “a imagem do ato


como potência do corpo, o que pode um corpo, e a imagem da coisa associada, isto é, do
objeto sobre o qual o ato recai. Entre os dois, há uma relação de associação. É uma lógica
(Deleuze:1981:50).
da ação.” Mas há outro aspecto muito importante. Deleuze constrói a ideia de
que o “Bom” é toda ação com o qual compomos relações diretas. “Mau”, a toda ação que visa
à decomposição direta de relações. Mas podem ocorrer movimentos mistos, sem com isso se
perder a determinação real, no qual diz: a) será boa a determinação direta da ação quando
realiza uma composição, mesmo que a relação indireta seja de decomposição – o ato
cirúrgico é uma ação direta de composição, cura, e indireta de decomposição, cicatriz; b)
será má a decomposição direta, mesmo que realize uma composição indireta – no caso do
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rapto, do assalto, onde a decomposição direta da violação envolve uma composição indireta
de ganhos, lucros e vantagens. Como dirá Deleuze: “há dois tipos de ação: as ações nas quais
a decomposição vem por consequência e não em primeiro, porque o princípio é uma
composição...e, inversamente, há as ações que diretamente decompõem e somente implicam
composição indiretamente”. Conclui afirmando: “este é o critério de bom e do mau, e é com
este critério que se há de viver.” (Deleuze 1981:50).

DIFERENÇA DE NATUREZA: entre afetos-violência e corpo-violação

Em relações entre indivíduos, e indivíduos e grupos, ocorrem à violência. Podemos


incluir a natureza e com ela as questões ecológicas. A violência está presente em todos os
segmentos, em todas as culturas, em todas as sociedades, os países, os estados, os municípios,
os bairros, as favelas. No trânsito, na casa, na família, na escola, no trabalho. Nos parques e
nas praças. A violência aparece, é o que se dá entre os corpos e entre as ideias desses corpos.
Entre imagem da ação que contém um afeto negativo e imagem da coisa, indivíduo ou grupo,
a ser decomposta. Desde então, passamos a perceber que as relações entre corpos não dizem
tudo da violência, mas uma parte dela, a violação. A outra parte remete aos afetos negativos
que determinam o endereçamento da ação. Os corpos violados expressam a violência através
das marcas da violação. Mas a violação difere da violência por natureza. Por muito tempo, se
compreendeu a violência como uma quantidade de emprego de força. Nessa percepção, dizia-
se que a ação efetuada, depois de efetuada, como o crime, a violação, o pecado, eram causas
da violência. Assim, foi possível personificar as violações nos indivíduos que o cometiam.

Nessa perspectiva, torna-se importante diferenciar violência de violação. A violência


revela-se não na ação, mas nos afetos negativos que ela envolve e que a determina. A
violência deixa de ser a ação, para ser um afeto que está envolvido na ação, que determina
diretamente que a ação será de decomposição de relações. Já a violação é o grau de
decomposição, que ocorre a coisa violada. Na violência vemos as relações entre ideias, que
vem de fora, sendo que cada ideia envolve afetos negativos. Sendo ideias, diz do atributo
pensamento. A violência opera no pensamento tanto do violador como do violado. Ao
contrário. A violação envolve relações entre os corpos, pressupõe o uso de instrumentos, que
servirão de meio para a decomposição de outros corpos e outras ideias. É algo que vem de

16
fora, já que nem a violência nem a violação, são de natureza humana, mas diz das relações
que se estabelecem na extensão.

Podemos pensar que tanto a violência como a violação, faz parte de uma mesma ação.
Portanto, estão na ideia-paixão do violador e não da vítima. Sim, se a ação não for efetuada.
Porém, uma ação não é uma ação, se não for efetuada. Quando efetuada, envolve outros
corpos ao qual recai. Nessa perspectiva, há diferença de natureza entre a ação agida e ação
sofrida. A imagem da ação sofrida é violação. E imagem da ação agida é violência, essa
contém um afeto que a determina. Como isso, percebeu-se que não se toca na violência se
tratarmos só a violação. Podemos prender julgar, condenar, sentenciar, mas nada faremos em
relação ao que agencia a violência, se não tocarmos nos afetos que a determina. Isso serve
tanto para o executor como para a vítima. Por isso a diferença se torna importante.

EXTORSÃO CORPÓREA E DOMINAÇÃO AFETIVA

Pensemos nas formas de crimes violentos que envolvem a presença de afetos


negativos, destrutivos, como assalto seguido de morte, rapto, homicídios, estupros, etc. Na
perspectiva das relações entre corpos, a violação supõe o uso da força instrumental no modo
coercitivo. Seu objetivo direto é a extorsão. O enunciado da coerção é uma chantagem (bolsa
ou a vida). A chantagem é a negociação coercitiva, que efetua a extorsão. Nesse ponto de
vista, a ação direta tomada por um afeto negativo, busca a coerção, estabelece a chantagem e
realiza a extorsão. Isso diz de relações de decomposição entre corpos. A violação é algo que
vem do exterior e se realiza no exterior. A coerção se deu em algum lugar. É espacial. Há
violado. Fez vítima.

Se pensarmos que uma faca pode servir como utensílio de cozinha e como arma
homicida, o que muda não é o instrumento, mas o modo de uso, que implica um afeto.
Afetivamente, a imagem da ação na perspectiva da violência não visa à extorsão, mas a
dominação. Como domina? A violência supõe afetos que reúnem ideias e corpos que formem
um agenciamento de coerção, no qual se supõe o temor e o pavor, para poder instalar o medo.
É uma composição. Há ideias, e toda ideia envolve afetos. Por mais instável que pareça às
intensidades dominantes, sempre há imagens, mesmo que confusas, não conscientes, há
ideias. E entre essas ideias há afetos. Afetos negativos, que compõe imagens e ações, que tem

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por finalidade decompor relações que caracterizam indivíduos ou grupos. Essa decomposição
de relações constitutivas entre indivíduos ou grupos, faz uma torção subjetiva. Separa esse
indivíduo ou grupo daquilo que ele pode. Separa a força de existir da potência de agir. Isso
difere a violação, que produz danos físicos, financeiros, da violência que produz danos
afetivos emocionais.

Se olharmos para o campo social e nos perguntarmos: onde se revelam relações de


dominação? Ali veremos relações que são determinadas segundo certos interesses a funcionar
através do uso da violência. A violência se expressa em infinitos modos de violação.
Coexistem, mas não são da mesma natureza. Nem solicitam a mesma compreensão. A
violência é uma relação que se faz através de afetos nas ideias, diz do atributo pensamento. É
um agenciamento que tem seu lado mental. Enquanto as formas de violação são composições
entre os corpos na extensão. É o mesmo agenciamento, que aparece em dois planos.

Por um lado: matar, roubar, extorquir, oprimir, reprimir, rechaçar, retalhar, atacar,
invadir, sujeitar, são ações, envolvem relações entre corpos. São formas de violação. Supõe
decomposição de relações constitutivas. Toda imagem de violação supõe o afeto violência,
mas a violência não se reduz às formas de violação. A violação faz parte da prática de
coerção que se efetua na extorsão. A coerção é causada pela violência. Com isso, podemos
dizer que o violador é aquele que está dominado pela violência, antes mesmo de realizar
qualquer violação.

Por outro lado: o ódio, o rancor, a mágoa, a vingança, a soberba, o temor que faz de
qualquer um querer o que não quer, e não querer o que quer (Spinoza 18). Mais intenso ainda: o
pavor de que um mal maior ao qual não se tem dúvida que irá acontecer. Daí a instalação do
medo, que se define por escolher um mal menor a um mal maior. O medo é a força afetiva, a
intensidade de dominação da violência no interior do indivíduo ou grupo violado.

Nota-se assim que os afetos pelos quais uma vítima passa oscila entre temor e pavor e
fixa-se como medo. Esses afetos não são tratados no mesmo modo que a violação física ou
patrimonial. Assim, o uso da violência em relações de dominação, introduz a violação
(coerção, chantagem e extorsão), como modo de instalar o medo da perda, dor, padecimento
ou morte. Mas a violência é uma intervenção subjetiva, virtual, no espírito, envolve o
18
Spinoza, na ética fará essa diferenciação entre medo, temor e pavor, soberbos. Esc. da proposição 39.
18
pensamento. A violação é sempre objetiva, opera-se nas relações entre os corpos, se dá no
atual, supõe a extensão.

São como duas linhas constitutivas do humano: a linha do pensamento: nesse


acontecem às relações entre ideias e ideias de ideias. A linha da extensão: no qual se dá as
composições e decomposição entre os corpos. Há mais: as intensidades afetivas, que estão
envolvidas nas ideias. Lembremos que são os afetos que determinarão quando uma ação será
violência e produzirá decomposição de relações: a violação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mas o que são nossas ideias sobre as coisas? São imagens que se formaram das
relações que nosso corpo e nossas ideias estabelecem com outros corpos e outras ideias que
encontramos no decorrer da vida. Em cada momento, em cada instante, vivemos uma variação
de intensidade. Quando essa variação faz uma passagem de um estado a outro, nessa
passagem um afeto se atualiza. Pode atualizar aumentando ou diminuindo nossa potência de
agir. Quando aumenta, se diz que estamos na alegria. Quando diminui, estamos na tristeza. A
questão é: que tipos de corpos vieram ao encontro de nosso corpo? Que relações aí se
formaram? Isso nos remeteu a pensar a lógica das ações.

A afetação se mostra nos efeitos dos corpos sobre um corpo particular. Nessas
afetações um afeto negativo, destrutivo, envolvido em ideias e imagens das coisas, determina
a ação vil. Afetivamente, a ação vil é violência. Essa é causa para a violação e não o
contrário. São duas linhas paralelas, coexistentes, diferentes em natureza uma da outra.
Ambas necessárias para cartografar à violência. A ação vil busca individualizar um afeto,
dominar subjetivamente, enquanto as ameaças e violações se ocupam de realizar a chantagem
e, assim, extorquir objetivamente. Não há violação sem violência e vice versa. Acontece que a
violência se instaura na dimensão do pensamento, enquanto a violação se mostra nas relações
entre corpos, mas a violência não pertence à natureza de nenhum indivíduo ou grupo, mas
nele se instala, se apropria, domina e faz executar.

Vimos que na perspectiva de Spinoza, o pensamento não determina a extensão, nem a


extensão o pensamento, mas coexistem, como linhas paralelas. Não é as ideias que definem a
violência nem as relações entre corpos a violação, mas afetos-paixões na imagem da ação que
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sendo negativos investem na decomposição de relações da coisa afetada, estabelecendo, de
um lado, a dominação e de outro, a extorsão. Tais traços nos serviram de base para começar a
pensar em uma cartografia da violência. Algo em construção.

BIBLIOGRAFIA

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