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UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE A VIOLÊNCIA

A PSYCHOANALYTIC VIEW OF VIOLENCE

Bruna Evelyn Frois de Oliveira


Felipe Alvarenga Ruas e Silva
Gabriela Lima de Almeida Oliveira

RESUMO

Este artigo busca relacionar o tema violência à conceitos da psicanálise. Para isso parte do
conceito de violência interpessoal apontada pela Organização Mundial da Saúde e discute-a
no recorte estrutural da neurose. Teve como objetivo entender a permanência de sujeitos
neuróticos nas relações em que há experiências violentas, usando para tal o aporte teórico da
psicanálise e a articulação em conceitos como identificação, castração, narcisismo, compulsão
à repetição, gozo e sintoma. O artigo também questiona se toda relação é violenta, e para isso
utiliza da noção de agressividade proposta por Freud e Lacan em uma discussão sob a entrada
do sujeito na linguagem. A relação entre sintoma e posição dualista, vítima e agressor, são
tomadas sob duas perspectivas, a da castração, e a do capitalismo - o quinto discurso
lacaniano.

Palavras-chave: Violência. Psicanálise. Freud. Lacan. Agressividade.

ABSTRACT

This article seeks to relate the theme of violence to the concepts of psychoanalysis. For that, it
starts from the concept of interpersonal violence pointed out by the World Health
Organization and discusses it in the structural cut of neurosis. It aimed to understand the
permanence of neurotic subjects in relationships in which there are violent experiences, using
the theoretical contribution of psychoanalysis and the articulation of concepts such as
identification, castration, narcissism, repetition compulsion, enjoyment and symptom. The
article also questions whether any relationship is violent, and for that it uses the notion of
aggressiveness proposed by Freud and Lacan in a discussion under the subject's entry into
language. The relationship between symptom and the dualistic position of victim and
aggressor are taken from two perspectives, that of castration, and that of capitalism - the fifth
Lacanian discourse.

Keywords: Violence. Psychoanalysis. Freud. Lacan. Aggressiveness.

1 INTRODUÇÃO

A violência é uma realidade implacável vivenciada pelos seres humanos desde os


primórdios da humanidade, que tem resultado em desafios e obstáculos para a manutenção e
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prevenção da saúde, de forma global, na medida em que afeta não somente as vítimas mas os
autores da ação, bem como a sociedade como um todo.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a violência como o uso de força


física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra
um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano
psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação. A definição dada pela OMS
associa intencionalidade com a realização do ato, independentemente do resultado
produzido. Dahlberg, Linda L. e Krug, Etienne G., p.1165.

A partir deste conceito pode-se avaliar os vários tipos de violência, categorizados pela
OMS em: “Violência auto-infligida, Violência interpessoal e Violência Coletiva” p.1166. Será
abordado no presente texto características acerca da violência interpessoal.

Na violência interpessoal há uma característica que se destaca, como aborda Dahlberg


et al., por os sujeitos estarem ligados numa relação contínua, a vítima tende a ser atacada
repeditas vezes pelo agressor, como exemplo, a violência doméstica, o abuso infantil e
maus-tratos de idosos.

A violência, segundo o modelo ecológico exposto por Dahlberg et al. “é o resultado da


complexa interação dos fatores individuais, relacionais, sociais, culturais e ambientais”.
Portanto é uma questão multicausal e expressa de variadas formas. Tendo em vista os
multifatores da violência, vê-se que ela tem efeitos fatais e não fatais (não representam
incapacidade e morte, propriamente dito).

A violência é uma ação considerada como uma violação de direito, na medida em que
a vontade/liberdade de um sujeito se sobrepõe a de outro. De acordo com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH) no artigo 3º “Todo indivíduo tem direito à vida, à
liberdade e à segurança pessoal” direitos, os quais são impedidos pela violência.

A DUDH também declara no artigo 12º que “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias
na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques
à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a
protecção da lei”.
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Mediante ao exposto é possível conceber que a violência interpessoal fere diretamente


os Direitos Humanos, todavia a DUDH ressalta no artigo 8º que “Toda a pessoa tem direito a
recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os
direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.”. Dessa forma percebe-se a
complexidade e importância de tal discussão em âmbito global, pois além de uma questão de
saúde, é também uma questão jurídica e social.

No Brasil há uma legislação específica que diz respeito à violência doméstica


praticada contra as mulheres, Lei 11.340 de 07 agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da
Penha, que prevê proteção a mulher em situação de violência, punição do autor de tal
violência, a prevenção à violência doméstica e a criação de órgãos especializados de
atendimento às mulheres, dentre outras determinações. Considerando a intencionalidade desta
legislação vê-se que ela tem uma especificidade quanto ao gênero feminino. Todavia este
texto visou abordar a violência praticada entre sujeitos, sem determinação de gênero,
consequentemente não utiliza desta legislação como referência.

2 VIOLÊNCIA: UM OLHAR DA PSICANÁLISE

Partindo das questões apontadas, do que seria a violência, o artigo aborda um aspecto
da violência interpessoal. Iniciamos nossas pesquisas com a seguinte pergunta: o que leva as
vítimas a permanecerem nas relações nas quais vivenciam situações de violência? O tema se
aproxima e se relaciona com quais conceitos em psicanálise? Em alguma medida as relações
humanas são violentas?

Ao relacionar a violência com a teoria psicanalítica é importante ressaltar que faremos


um recorte estrutural, no qual nos ocuparemos em discutir esse fenômeno nas relações
neuróticas. Neste ponto, destacamos a complexidade do assunto, pois relações violentas que
se dão no campo da psicose e perversão tem em suas produções subjetivas e consequências
judiciais diferentes caminhos. Além disso, ao pensar as posições de passividade e atividade,
agressor e vítima nos deparamos com as interfaces da estrutura e a resposta do sujeito frente à
castração.
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A violência em psicanálise ainda não alcançou um status de conceito. O que não


impediu os teóricos da psicanálise elaborarem conteúdo quanto ao fenômeno em sua épocas.
Apesar de não se falar em violência como conceito, nos escritos Freudianos e Lacanianos, a
noção de agressividade aparece em torno de vários conceitos, principalmente aqueles ligados
à constituição do sujeito. Lacan até esboçou uma clínica diferencial entre neurose e psicose,
por meio da noção de intenção e tendência agressiva. A diferença se dá, pois na neurose existe
uma intenção agressiva, em que a pessoa quer dizer, mas paradoxalmente há uma vontade de
impedir o sentido. Enquanto na psicose existiria uma tendência agressiva, algo subjetivado e
que não conta com interpretação. (FERRARI, 2006, LAIA & CALDAS,2016)

Freud pensa a agressividade não como a expressa nos animais. Ele parte em se
aproximar de uma perspectiva mais biologicista e se distancia ao perceber que a agressividade
presente no ser humano diz de outra ordem, aquela em que se submete à uma lei, lei esta que
articula a proibição e a hostilidade ética, representada no mito “Totem e Tabu”. Por isso para
Freud, no ser humano existe hostilidade e ódio, que são dirigidos ao outro e estão na base do
princípio do prazer. (FERRARI,2006). ​Freud no texto “Mal estar da civilização” aponta o
privilégio da agressividade pelo sujeito frente a impossibilidade de fazer cumprir o ideal
social. Assim, a relação com o Outro é marcada por agressividade.

De acordo com Ferrari (2006), Lacan situa a agressividade na base da constituição do


Eu, e na sua relação com o objeto. Na sua individuação, a identificação primária dá-se sob
uma rivalidade interna. O sujeito constrói uma imagem que o aliena em uma organização
passional chamada Eu. O Eu surge dessa tensão e desperta o desejo pelo objeto que é desejo
do Outro.

Lacan, chega à ideia de que a agressividade é estruturante do ser. Ele chega à esse
ponto ao retomar o conceito de pulsão de morte elaborado por Freud e relatando que não há
agressividade sem identificação e nem identificação sem agressividade. (Ferrari, 2006) Lacan
em “A agressividade em psicanálise” (1948/1998) aponta para a paranóia original, que se dá
ainda no Estágio do Espelho. O que segundo ele demonstra que a relação com o outro é
permeada pela hostilidade e pela satisfação encontrada na destruição e aniquilamento do
semelhante, e não pela harmonia. Miller (1991: 19) citado por Ferrari (2006) diz que como
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prova disso basta olhar para a constituição do sujeito que se dá a partir da castração, ou
também o Supereu e o Outro. Este, o “Autre” a autora diverte-se em dizer ser quase possível
escrever com A de agressor.

A autora segue mostrando que Lacan diferencia potência agressiva de agressividade


nos seus ensinos. A potência agressiva parece convergir para o que quer dizer violência: “é,
certamente, o essencial na agressão, pelo menos no plano humano. Não é a palavra; inclusive,
é exatamente o contrário. O que se pode produzir em uma relação inter-humana é a violência
ou a palavra” (1957-58/1999: 468 apud Ferrari,2006).

Perpassado pelo Outro, que o castra, e por seu próprio Supereu que é divisor e
tensionador, o sujeito é então marcado por agressividade desde sua entrada na linguagem.
Lacan dá ao significante uma dupla função, a de pacificador e de agressor. Por isso o
simbólico, tem para a teoria lacaniana um papel pacificador dessa paranóia imaginária. Ferrari
(2006) diz:

Como se sabe, o real não é o mesmo para todos. Há, então, uma violência onde o
que se viola é uma ordem estabelecida, seja ela considerada da ordem da natureza ou
da civilização. Pensá-la de forma simbólica é considerar a violência da própria
linguagem sobre o vivente que, ao nascer, encontra o Outro do discurso. Nesse
encontro, ocorre a violência de alienar-se na lei dos significantes, que são, sempre,
do outro. (FERRARI, 2006, p.59)

Na concepção psicanalítica o sujeito não nasce pronto. Apesar de marcas importantes


o organismo biológico não é suficiente para nos referirmos a noção de ser que se constitui,
mas como “algo que vai se constituir” (PALONSKY, p. 22). Esta constituição se dá a partir
da compreensão da castração, como algo que falta ou alguma falha na estrutura. Considerando
a estrutura neurótica é concebível que “esse oferecimento que o sujeito faz da própria
castração para sustentar o Outro como não-castrado é o que define a neurose” (PALONSKY,
p. 27), na medida que o sujeito sustenta a integralidade do Outro através de suas faltas.

“Definido por Lacan, o falo representa o significante do desejo” (Násio,1997),


ultrapassando o órgão genital e atingindo um valor simbólico em todas as relações. Quando o
ser humano nasce, ele primeiramente é posicionado pela mãe no lugar de falo. Numa dialética
ilusória, a criança completa a mãe e quer ser o que a completa. Contudo sai dessa posição no
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momento em que mãe e bêbê são castrados simbolicamente pela interdição da figura paterna,
tornando possível perceber a falsa completude. Apenas dessa forma o ser humano pode se
inserir na cultura como um sujeito desejante. A partir de então, inicia-se a procura da
integralidade, porém nunca satisfeita, pois “por definição, toda estrutura tem uma falha, uma
falha que lhe é inerente, não sendo, portanto, devida a alguma contingência”. (PALONSKY,
p.18)

A partir dessa noção é possível compreender que “O Outro, enquanto estrutura,


implica também uma castração, e a maneira como o sujeito se posiciona frente à castração do
Outro e à sua própria resulta na definição ou no estabelecimento do que denominamos
estrutura clínica.” (PALONSKY, p. 19)

Ferreira e Danziato trazem em um estudo de caso de 2019, intitulado “Ana” um trecho


que nos auxilia a exemplificar melhor essa relação:

Prosseguindo, a busca pelo próprio desejo advém da falta com que o sujeito castrado
se depara no complexo de castração. Entretanto, isso não atesta que a via para se
alcançar o objeto seja colocar-se no lugar de objeto para o Outro. A via dos próprios
objetos acaba se perdendo por se acreditar que esse Outro é a fonte para se chegar à
causação do próprio desejo. Com isso, a ideia de apropriação na relação acaba por se
deparar com a perda de um sujeito e, ao que tudo indica, se esconde por trás do
desejo do outro. FERREIRA, Esther de Sena. DANZIATO, Leonardo José Barreira.
Cad. Psicanál. (CPRJ), Rio de Janeiro, v. 41, n. 40, p. 158, jan./jun. 2019

Ainda que a violência passe pela relação interpessoal, não chega a ter um estatuto de
conceito em psicanálise. Apesar disso, Freud e Lacan, autores referências na psicanálise,
foram estudiosos que observaram o contexto de suas épocas e pensaram as relações humanas
e a forma como se dão os vínculos sociais. Assim, entende-se que “a violência é vista sempre
em um referencial que mostra que o encontro com a linguagem não é sem conseqüências para
o humano” (FERRARI, 2006). Portanto, toda relação comportaria uma violência?

3 VÍTIMA E AGRESSOR?

Há a compreensão cultural/social de que a vítima estaria passiva diante dos atos


violentos praticados pelo agressor, contudo é possível questionar se o sujeito que sofre a
agressão também participa na manutenção desse sistema, ao depositar em si a castração diante
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do ideal de um Outro (agressor) não castrado. A partir disso, torna-se possível discutir se
realmente existe a possibilidade de diferenciar a vítima e o agressor, como sujeitos opostos
em um conflito personificado entre duas pessoas, ou se vítima e agressor são papéis exercidos
por um mesmo sujeito, ora sendo vítima, ora sendo agente/agressor.

Para o Mestre em Direito, ​Patrick Juliano Casagrande Trindade (2020):

Não existe em nosso ordenamento jurídico um só conceito de violência, mas vários.


Ou seja, não há como generalizar, pois cada vítima e cada autor do crime, a
depender, estão em leis diferentes. A única coisa que possui um conceito geral é que
autor do crime é quem pratica a ação ou omissão caracterizada como violência, já a
vítima é aquela que teve o bem jurídico afetado por este autor.

Para a psicanálise, existe a possibilidade de pensar o par vítima-agressor, que se dá


através de vários conceitos, como por exemplo, a castração que segundo Palonsky (1997) é a
falha/falta que há nas relações, a qual está presente para ambos, contudo respondem a ela de
forma diferentes, as posições que se encontram fazem com que esses lugares variem. ​Ou seja,
torna-se discutível se o que difere a vítima e o agressor seria a forma como cada um responde
a castração.

Por outro lado o agressor estabelece com a vítima uma relação objetal, onde esse
sujeito é o seu objeto de desejo, falo, o que confere a ele o ideal de completude, o qual teria
como função satisfazer seus desejos, bem como responder a seu ideal de integralidade. Porém
quando a vítima frustra esse ideal, mostra a falha, possibilitando que o agressor responda a ela
com atos de violência.

4 VIOLÊNCIA, IDENTIFICAÇÃO, NARCISISMO E FANTASIA

Em 1919, Freud escreve um ensaio denominado “Uma criança é espancada” no qual a


partir de um estudo realizado com 6 pacientes, ele teoriza sobre as fantasias sexuais
primitivas, cujos resultados impactam na relação da construção da estrutura perversa.
Segundo Freud, “a perversão infantil pode, como sabemos, tornar-se o fundamento para a
formação de uma perversão semelhante que dure toda a vida” ou é interrompida através do
recalcamento. Apesar disso, a violência não está presente apenas nas estruturas perversas, o
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que Freud também aponta no artigo mencionado acima. As fantasias de espancamento,


mostram que de fato a noção de violência está incutida no ser humano.

Segundo Ferrari (2006) os estudos sobre a constituição do ideal do eu e narcisismo


ampliam a compreensão acerca da agressividade. Isso porque ao pensar o ideal do eu como
aquele facilitador do recalque, este permite trocas sociais, chegando ao narcisismo como o
momento importantíssimo de investimentos libidinais e retorno dessa libido sobre o próprio
Eu. Freud se depara com a noção, que seria escrita posteriormente, pulsão de morte. O que
também abre o campo para relacionar com a violência, pois foi a base da explicação de Freud
para teorizar de que a vida humana se edifica sobre um fundo de destruição, como exemplo
disso, Freud (1920) exemplifica a tendência do ser para a morte com o masoquismo primário.
Ao final de seus estudos, Freud liga o masoquismo à excitação sexual, assim equivalendo dor
e prazer. A respeito dessa grande descoberta Ferrari cita:

No interior do sujeito, como há a pretensão de tornar a pulsão de morte inofensiva, a


agressividade passa a ser vista como versão de Eros. Mas, colocada no exterior, ela é
destruição, versão da pulsão de morte. Ela é libido disposta a se misturar com a
sexualidade para formar o sadismo e com a vontade de morte sexualizada para
formar o masoquismo erógeno (Ferrari, 2006, apud Gallo, 1991: 62).

O ser humano experimenta desde a tenra infância as dualidades prazer e desprazer,


amor e ódio, ideal do eu e eu ideal. Além de constituí-lo, Freud percebe que a criança ao
experimentar sensações prazerosas quer repeti-las, como que em um grande esforço para
restituir o equilíbrio, a homeostase.

Lacan traz a noção de que em nome do princípio do prazer o ser humano se aliena no
desejo do Outro. A partir disso inicia uma busca para algo mais além do princípio do prazer,
o gozo.

Relendo Freud, Lacan parte das construções à respeito da pulsão de morte, e vai além
ao propor que a obsessão do indivíduo é em busca da restituição do equilíbrio, repetindo a
pulsão de morte, uma compulsão que afirma a ausência de homeostase nos seres humanos.
Tendo todo indivíduo uma tendência ao retorno do objetivo de alcançar o que busca em vida,
a morte.
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Não há sujeito que renuncie de bom grado à perda de gozo, este insistirá de outras
formas. É o caso da compulsão de repetição, o fato do objeto ter sido perdido e
renunciado não significa que ele tenha sido esquecido. “Se o gozo do ser se define
como perdido, ele quer, no entanto retornar, ele insiste. Tal é o fundamento da
compulsão de repetição; aquilo que se perdeu não é o que se esqueceu, mas retorna
como uma manifestação do recalque originário. (Bidaud, 1998, p.104-105 apud
RABELAIS, 2012, P.41)

No texto “Sobre o narcisismo”, publicado em 1914, Freud discute os investimentos


libidinais no Eu e relata que:

“É fácil observar, além disso, que o investimento libidinal de objetos não aumenta o
amor-próprio. A dependência do objeto amado tem efeito rebaixador; o apaixonado é
humilde. Alguém que ama perdeu, por assim dizer, uma parte de seu narcisismo, e
apenas sendo amado pode reavê-la.” (Freud, 1914 p.31)

Neste sentido, pode-se pensar que em parcerias violentas, há uma compulsão à


repetição dessa violência, onde o investimento libidinal talvez esteja despejado de forma
abundante no parceiro, retirado de si. Desta forma, como proposto e discutido no capítulo
enamoramento em “Psicologia das Massas e análise do Eu” o sujeito enamorado, superestima
o objeto, fazendo com que este tome lugar do ideal do eu (Freud,1921).

5 A VIOLÊNCIA É UM SINTOMA?

Partindo do conceito de pulsão, Silva Júnior (2010) esclarece que observa-se tanto na
violência quanto no sintoma, um excesso de gozo. Este que é entendido por Lacan como:

Lacan estabelece então uma distinção essencial entre o prazer e o gozo, residindo
este na tentativa permanente de ultrapassar os limites do princípio de prazer. Esse
movimento, ligado à busca da coisa perdida que falta no lugar do Outro, é causa de
sofrimento; mas tal sofrimento nunca erradica por completo a busca do gozo.
(Roudinesco, p.300)

Sendo assim, a violência emergiria do que não está bem, “impedindo a felicidade
buscada pela via do prazer e desvelando o mal-estar a que os sujeitos estão submetidos”
(SILVA, JÚNIOR 2010). Por tais razões, tendo como perspectiva a castração e a economia
pulsional, a violência é tida como um sintoma dos sujeitos, enlaçando as parcerias violentas.
Apesar do enlace que o sintoma faz, as posições de vítima e agressor são lugares variáveis,
pois como já visto, são qualificações que dependem da posição do sujeito frente à castração,
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como ele se apresenta e vê o Outro. Desta forma há múltiplas possibilidades para cada sujeito,
inclusive que ele ocupe para si mesmo o lugar de vítima e agressor.

Ainda sobre a perspectiva da violência como um sintoma, este que condensa para o
sujeito a verdade e o gozo, Ferrari (2006) cita a resposta de Miller em “O Outro que não
existe e seus comitês de ética” (2005) à pergunta “o que é uma civilização?”. A qual ele
responde, “é um sistema de distribuição do gozo a partir de semblantes, um modo de gozo,
uma distribuição sistematizada dos meios e maneiras de gozar.”(FERRARI,2006 p.53)

Silva Júnior (2010) também salienta que “a violência como sintoma denuncia que o
gozo não caminha no ritmo dos significantes mestres ordenadores da civilização, ou seja,
denuncia que algo não vai bem na ordem instituída.”. O autor, após partir de colocações
clássicas freudianas, constrói:

Na sociedade contemporânea, a pulsão revela ainda mais sua face mortífera, como
modo de gozo presente tanto nos novos sintomas quanto na violência. O declínio da
função paterna e a falência dos ideais na atualidade produziram um sujeito aliviado
das responsabilidades para com seu desejo e o Outro, tornando-se um sujeito
fagocitado pelo imperativo de gozo da civilização técnico-científica e da política de
um mercado globalizado. Diante disso, a psicanálise não tem como tarefa aliviar o
sujeito de sua culpa frente ao ideal, mas sim procurar levar o sujeito a consentir em
questionar sua relação com o discurso da civilização contemporânea, além de lhe
ajudar a suportar a inconsistência do Outro, sua ausência de garantias, sem, por isso,
ceder ao imperativo de gozo do Supereu. (Silva Júnior 2010 p. 331)

O mesmo autor, citando Lacan, aponta que a linguagem pode ser violenta e que o
sujeito utiliza o significante para romper o pacto simbólico com o Outro. É na falta de sentido
que o gozo escapado retorna no real como violência. Sendo a mesma (violência) uma
passagem ao ato onde não houve a mediação simbólica.

Em oposição à essa percepção da violência como um sintoma, Santos e Teixeira


(2006) apontam para o fenômeno não como um sintoma, formador de laços, mas justamente o
oposto, como uma ruptura de laços sociais. Santos e Teixeira (2006) em uma revisão dos
discursos lacanianos, demonstram que o quinto discurso, o do capitalista não está sob a
mesma articulação dos outros quatro (do mestre, da universitária, da analista e da histérica).
Nessa perspectiva o quinto discurso, se contrapõe aos discursos lacanianos quando assegura à
sujeitos despossuídos, proletários, uma forma de tamponar à castração, através do imperativo
de gozo. Por isso a prerrogativa de que o real é impossível, sendo apenas possível através da
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lei que o barra, não vale para o discurso do capitalista. As autoras ressaltam que os efeitos
dessa lógica aparecem como uma devastação no campo do sujeito e do Outro:

Pensamos que a eclosão generalizada da violência no campo social nos aponta os


efeitos devastadores do discurso do capitalismo. Hoje, o gozo não é mais impossível,
pois a via da fantasia não garante mais que o gozo se limite à transgressão da lei. O
gozo emerge sob a forma de um real sem lei, e não contra a lei, na
contemporaneidade. Ele não se opõe a essa ou aquela restrição legal. Ele se
apresenta desencadeado pelas vias simbólicas, como puro, sem sentido. Poderíamos
avançar na direção de pensar suas relações com o capricho, e com a diversidade de
modalidades do gozo não-todo de fazer suplência à desproporção entre o simbólico e
o real. Nesse caso, a violência não seria um sintoma e seu lugar seria ao lado da
psicose, do gozo místico, do capricho e da exceção​.

Como efeitos do discurso do capitalismo, Santos e Teixeira (2006) apontam que o


declínio do Nome do Pai, produz sujeitos que gozam desenfreadamente, além de sujeitos tão
singulares que não se reduzem à identificação com o mestre. A autora hipotetiza “que o
discurso do capitalista tem uma relação de estrutura com a manifestação da violência e pode
nos servir de recurso para elevá-la à dimensão de um conceito em psicanálise.”

“No discurso do capitalista, o sujeito passa a ser reduzido a um consumidor, enquanto


o objeto causa de seu desejo se torna um ​gadget1 – que ocupa a posição do outro do discurso
capitalista.” (Badin, R. 2018). Desta forma, ao discutir o fenômeno, violência, a partir da ótica
do quinto discurso lacaniano, a violência seria um sintoma social, impulsionado pelo
imperativo de gozo ao qual o agressor seria posicionado como consumidor e a vítima o objeto
a ser consumido, tendo a vítima a posição de proporcionar a felicidade do consumo.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência segundo a Organização Mundial da Saúde é toda ação de imposição de


força física ou poder sobre outro sujeito, independente dos resultados (fatais e não fatais). A
Declaração Universal dos Direitos Humanos endossa que todo ser humano tem direito à uma
vida livre de violências. Diante do exposto foi discutido no presente texto a relevância de tal
tema no cenário atual, considerando que a violência afeta tanto os sujeitos envolvidos, como a
sociedade em geral.

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​Pequeno objeto ou aparelho mecânico ou eletrônico, geralmente de forma e função simples e de utilidade
limitada, apesar de mais incomum ou engenhoso do que os dispositivos ou utensílios tecnológicos mais triviais.
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Ao ser introduzido na linguagem o sujeito, em um primeiro momento é refém do


Outro; como um objeto em um corpo dividido, sem linguagem passa por um encontro com a
palavra. Encontro que se dá em um campo de desencontros e desajustes. O corpo infantil se
unifica a partir da palavra do Outro. Outro que também o castra simbolicamente. Corpo que
experimenta o gozo e logo em seguida não mais o tem e é compelido por uma busca repetida
do prazer, assim como para além do prazer. A violência habita corpos marcados por
experiências individuais e relações de sujeitos que ocupam lugares diferentes frente à
vivências subjetivas.

Ao longo da discussão, foi possível relacionar o tema da violência à alguns conceitos


psicanalíticos, em que se pode notar a partir da noção de agressividade trazida pelos teóricos
que a violência está no campo do que não se pode ser dito; como diz Lacan (1954/1998, p.376
apud Laia, 2016) “Acaso não sabemos que nos confins onde a fala se demite começa o âmbito
da violência, e que ela já reina ali, mesmo sem que a provoquemos?”. Com base nisso, o texto
discutiu, através do olhar psicanalítico, se toda relação é em alguma medida violenta e o
porquê das relações violentas perdurarem.

Para a primeira sentença, fundamentado na relação entre violência e agressividade,


toda relação se inicia de forma violenta. A começar pela nomeação da criança, a qual está
completamente nas mãos dos Outros que a cercam, passando pelas experiências edípicas e
seguindo até as dificuldades que a linguagem impõe à sujeitos desejantes. Sendo assim, toda
relação é em alguma medida violenta. O que não exime as saídas e significações que cada um
dá para suas experiências e torna a intensidade dessa violência única à cada sujeito.

Já para à segunda proposição, o porquê os sujeitos permanecem em relações que há


experiências violentas, foi pensado ao relacionar o conceito de compulsão à repetição e gozo.
Destarte, os sujeitos são enlaçados por uma experiência que apesar de dolorosa, está vinculada
à sua constituição e experiências anteriores. Logo, seja por um sintoma individual, seja por
um sintoma social, permanece nos significantes que lançou o seu gozo, reeditando suas
experiências pessoais em parcerias, por vezes muito duradouras, as quais, ele mesmo, por
vezes não se vê longe.
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No entanto, é importante lembrar o potencial da palavra e a simbolização frente à


violência. Se a violência está presente na ausência da fala e mediação simbólica, como uma
passagem ao ato, é de se esperar que a palavra enunciativa do analista e o gesto que convida o
sujeito a falar sem medo podem ser uma ferramenta para quebra de ciclos de violência. Como
bem pontua Santos e Teixeira (2006), a respeito da dimensão da fala do analista, “essa
dimensão se opõe em princípio ao avanço do significante separado do gozo do falante, como
está posto pelo avanço do significante puro da ciência no capitalismo”.

O potencial da fala do analista está em apostar na recuperação dos laços do sujeito


com seu discurso. O analista o faz quando confronta o imperativo de gozo e revela a
existência do real para o sujeito, levando a pensar que não há e não haverá no mercado algo
capaz de tamponar a falta, e que esta, faz parte do humano. Se a violência se baseia no
fascínio do objeto capaz de preencher a falta, entender e poder responder pelo gozo nas
condições em que vive é uma possibilidade de formar laços.

REFERÊNCIAS:

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