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A questão manifestada neste filme diz respeito à condição ontológica de um ser humano,
Teena Brandon /Brandon Teena, isto é, ao ser desta pessoa. É uma questão antropológica,
tecnicamente «ontoantropológica», pois diz respeito ao ser de um ser humano, de uma
pessoa.
Não se trata de uma questão social, psicológica, política, ética, biológica, fisiológica, química
ou física, uma vez que estas dimensões estão naturalmente implicadas, não podendo ser
isoladas, mas tendo todas as dimensões em consideração.
Todos os seres humanos têm de si próprios uma intuição relativamente ao ser que são.
Esta intuição é o ato espiritual, ato de pura inteligência interior a cada pessoa, em que cada
pessoa é sujeito e objeto de tal ato, descobrindo cada pessoa como o ser que é.
Este ato de inteligência é uma situação pela qual todos os seres humanos passam, no
entanto, o que diferencia a situação de Teena é que é rara e incomum. No entanto, raridade
e incomunidade não são critérios antropológicos e não deveriam ser critérios políticos, mas
são.
A diferença antropológica, que é o que aqui está em causa em termos da relação política,
causa medo.
O diferente causa medo porque põe em causa o meu tipo próprio de poder, geralmente
vivido como fraco, pondo em causa a bondade do que sou, das minhas escolhas, pode
implicar que a ordem cósmica em que vivo pode não ser correta, pondo a minha existência
em perigo, ao questionara ordem a que estou habituado. Se todos fossem como eu sou, tal
seria uma espécie de certificado de que também eu sou «bom».
Por isso, há que eliminar toda a diferença que surja, pois toda ela surge como ameaçadora
da ordem que permite a minha existência, como inimiga da minha possibilidade de ser.
Todos os seres humanos assim produzidos seriam diferentes, desde a dimensão material,
química, por todas as outras, chegando à parte espiritual.
Cada ser humano, terá de si próprio um ato de inteligência que lhe dá o sentido do seu
ser, diferentes de todos os outros. Só através da integração de todas as dimensões e
através da intuição, que dá sentido pessoal à integração e que me dá o que sou como
sentido, é que somos pessoas. Tal sentido não é modificável “de fora”, de qualquer modo.
É no caso de alguém como Teena que esta intuição de sentido ontológico, do que se é
como pessoa, que está em causa.
Teena Brandon, ser humano nascido com forma corporal feminina, tem de si o sentido de
ser um homem. Interessa-se por mulheres não porque seja lésbica, mas porque, para si
próprio, é um homem. Para ele próprio, é evidente que é um ser humano masculino numa
conformação biológica e corporal errada.
Para os demais seres humanos, cuja perspetiva é exterior, Teena é uma mulher, pois toda
a sua aparência externa é de mulher. De fora, a tendência é para pensar que se se tem um
corpo de mulher, tem de se ter de si próprio uma intuição que corresponda ao corpo que
se tem.
Ora, o corpo, ou o que se dá como corpo na forma de sentido à intuição que cada pessoa
tem do que é, no que é, pode não coincidir com o que o corpo é, não no sentido de
coincidência com o que pessoa intui que é, mas no sentido da sua manifestação bio-física.
É esta manifestação que quem não tem a experiência própria do corpo intui; é com ela que
se relaciona. Deste modo, a Teena fêmea humana que os outros percebem quando com ela
se relacionam não é a mesma Teena que este vive como experiência do seu corpo.
Do ponto de vista político, na relação com a parte ética do modo de ser das pessoas – em
que as decisões são tomadas –, esta situação pode provocar e, no caso, provocou
consequências trágicas, se as pessoas eticamente não estiverem preparadas para, pelo
menos, aceitar perceber a possível bondade da diferença com que se deparam.
Se não houver esta abertura ética então, por causa do medo que a diferença provoca seguir-
se-á um ataque a esse que nos provoca tal medo, sempre com o fim último de o eliminar
Numa lógica de poder parece apenas haver um modo de provar a Teena quem é superior,
atacando o ponto exato que está em causa, o da sua definição sexual (violação, atacando
o espírito).
SEXUALIDADE E IDENTIDADE
▪ IDENTIDADE
A questão da identidade não é apenas questão própria dos seres humanos, mas aplica-se
a todos os seres, universalmente. Todos os seres são o que são porque possuem uma
identidade própria, irredutível a qualquer outra
É a diferença, que existe sobre um fundo ontológico (segundo o ser) comum, que permite
a existência de mais do que uma única identidade. Assim, é a diferença que cria literalmente
os seres como realidades distintas. Por outro lado, a diferença é tão importante
ontologicamente que é apenas através da existência de diferenças que podemos dizer que
tal ser é algo de não absolutamente estático, absolutamente sem movimento, que o mesmo
é dizer sem diferenciação. Aquilo a que chamamos «movimento» é sempre a manifestação
da diferenciação em ato. Tudo é movimento e, se este cessasse, tudo deixaria
imediatamente de ser, o mesmo é dizer, tudo é diferenciação e diferença em ato.
No entanto, a identidade, sendo diferença, também possui uma outra característica: não
muda, uma vez que quando é apropriada, é inalterável, mesmo quando tudo o resto muda,
não havendo uma dispersão ontológica. Para isso ser possível, existe uma «estrutura
▪ SEXUALIDADE
O que difere ao nível desta parte da sexualidade humana não é a sua presença, mas como
cada pessoa a integra. Esta integração é feita por cada pessoa de uma forma pessoal,
irrepetível, não sendo passível de qualquer juízo alheio.
Nas outras espécies, o ato de dar continuidade às espécies é instintivo. No ser humano,
não é bem assim. Nós temos capacidade de escolha, e podemos escolher deixarmos de nos
reproduzir. Esta capacidade de escolha na dimensão política do ser humano pode trazer
consequências quando uma pessoa escolhe sobre a privacidade de outra (violação). É esta
capacidade de não determinação inercial que cria a sexualidade: a apropriação pessoal do
facto de ser sexuado. Diz-se mesmo ser sexuado, dado que o sexo é algo que se é, não
algo que se possui.
Não é antropologicamente possível a uma pessoa ter uma identidade própria se não tiver
integrada nessa identidade a sexualidade que é.
É neste sentido que a questão da diferença entre «sexo» e «género» se põe: pode ser-se
uma sexualidade feminina, possuindo um sexo masculino. Neste caso, o termo «possuir»
pode ser utilizado. Possuo um sexo masculino, mas não o sou: é uma realidade natural em
que as pessoas não se identificam com o seu gênero.
Em termos da prestação de cuidados de saúde, não basta serem respeitadas, mas têm de
ser devidamente bem tratadas, isto é, em ato, amadas.
Neste filme podemos encontrar várias questões que nos interessam do ponto de vista de
uma sócio-antropologia da saúde.
O filme relata o drama vivido por Desmond Doss (cidadão americano) que tem um
desempenho incomum como soldado socorrista (doravante «Medic») ao serviço do Exército
dos Estados da América, durante parte final da Segunda Guerra Mundial. Nesta batalha,
Doss, para lá de cumprir as suas tarefas de resgate de feridos em campo de batalha,
protagonizou um feito único, ao salvar cerca de 75 militares americanos, bem como alguns
japoneses, demonstrando não fazia distinção etnocêntrica entre seres humanos a salvar.
Ora, este exemplo máximo de boa conduta como militar, oficialmente reconhecida com a
mais alta condecoração dos Estados Unidos, a «Medalha de Honra», era o que oficialmente
se classifica como «objetor de consciência», no filme «cooperador de consciência». Por
motivos relacionados com uma juventude violenta, tendo estado prestes a matar a tiro de
revólver o pai por se ter tornado alcoólico e violento, decidiu, por promessa para com o
«seu Deus», nunca voltar a pegar numa arma. Doss resolve, contra a vontade da família (pai)
oferecer-se para o exército, como soldado-médico, de forma não-combatente com uso de
armas. Doss queria contribuir como os outros camaradas para o esforço de guerra, mas
sem o uso de violência, nomeadamente o associado ao uso de armas. Algo de errado
ocorreu durante as formalidades do seu processo de admissão e foi colocado numa unidade
combatente, em que foi formalmente obrigado a usar uma espingarda, o que nunca aceitou,
criando, deste modo, gravíssimos problemas aos militares que o comandavam, inabituados
a lidar com tais questões. Mas criou, sobretudo, problemas a Doss, pois foi alvo de juízos
preconceituosos que lhe causaram sofrimento, especialmente ao nível da sua definição
antropológica, parecendo ser considerado como uma entidade menos que humana.
Resposta social ao modo como cada ser humano constrói o que é a sua unidade de sentido
antropológica própria
O modo como os seus, agora, não por reação, à opção não-violenta de vida militar de Doss
é ilustrativo e modelar no que diz respeito à negatividade ética e política dos seres humanos
em inter-relação, que tem uma base antropológica. O modo positivo, também modelar, da
relação entre seres humanos é, precisamente, o que Doss incarna.
Com o indemonstrado pretexto de que Doss era cobarde, apesar de ser dos melhores em
termos de exercícios físicos, foi aquele tratado de modo a que optasse ou por desistir da
Ainda assim, Doss não soçobrou, tendo mantido a sua posição até ao fim, acabando por
ser ajudado pelo pai, sendo então autorizado a tornar-se medic sem a necessidade de usar
armas.
No fim da batalha, a imagem social de Doss sairá radicalmente modificada, mostrando que
tais imagens são falsas e alicerçadas em preconceitos sociais, do que num olhar claro sobre
a realidade das pessoas diminuindo-as do ponto de vista antropológico, isto é, do seu ser
próprio
A ação do ser humano, em situação (extrema, neste caso) superando tudo o que sejam as
imagens sociais e mesmo sociológicas, isto é, intelectualmente elaboradas, acerca desse
mesmo ser humano
O modo como Doss responde às constrições sociais que lhe foram impostas consistiu em
superar o nível em que tais ações contra si existiam, agindo como se não existissem, de tal
modo que salvou a vida, precisamente, a muitos dos que mais gravemente tinham exercido
violência contra ele, assim mostrando que não dependia da imagem social e das ações
sociais, antes da sua resolução interior e modo próprio de ver e viver o mundo e a
humanidade nele presente. Deste modo, e sempre seguindo a sua opção não-violenta e
pró-dignidade universal humana, já depois de trabalhar no resgate dos seus camaradas
durante a primeira fase da batalha em que estiveram envolvidos, Doss decidiu permanecer
no campo de batalha, assistindo os feridos, que eram em número de muitas dezenas.
Conclusão
A ação do medic Doss serve de paradigma para a ação possível de todo o técnico de saúde
que se queira reclamar como digno do nome profissional que transporta (p.ex:«enfermeiro»,
técnico de extrema proximidade antropológica) como ação que tem como fim apenas o bem
de esse a quem se dirige, pelo bem de esse a quem se dirige, sem contemplação por fatores
colaterais, secundários e que põem sempre em risco o que deve ser o serviço ao bem de
quem se cuida. No limite, quem não se quer assumir como técnico de saúde que siga este
paradigma de entrega total, deve repensar a sua ação, como Doss fez, decidindo se quer
mesmo ser ou continuar a ser técnico de saúde. Doss é um exemplo notável de como a
definição antropológica de cada ser humano em sua mesma interioridade tem importância
fundamental nas relações humanas, o que se aplica com extrema pertinência ao âmbito das
atividades de cuidado de saúde, nomeadamente à enfermagem.
«Antropologia como ponto nodal das diferentes dimensões dos seres humanos»
DIMENSÃO PSICOLÓGICA
O termo «psykhe» designa a alma, que anima os seres, dando-lhes vida. O ser humano
destaca-se dos outros seres por possuir uma alma racional, lógica, que é capaz de
apreender o sentido das coisas, transformando a materialidade das coisas em pensamento
humano.
Para que sejamos definidos como seres humanos psicológicos, é fundamental que sintamos.
O que eu sinto define-me como pessoa. As nossas ações também podem traçar um perfil
psicológico de cada um de nós.
Não pode haver uma antropologia que se aproxime do que seja a realidade propriamente
humana sem que tenha em consideração a dimensão psicológica dos seres humanos, bem
como todas as outras dimensões suas próprias. Caso contrário, apenas existirão abstrações
Na relação da psicologia com outras disciplinas científicas, devemos ter cuidado científico
para não usar termos errados do ponto de vista antropológico, como por exemplo,
«psicologia social». De facto, isto não existe porque não existem almas, mentes ou
interioridades humanas comuns. Se duas ou mais pessoas estiverem reunidas a
manifestarem-se com o mesmo objetivo, tal é um fato sociológico, político e antropológico
em que essas pessoas estão a fazer o mesmo, mas psicologicamente não formam uma
mente comum, mesmo que haja influência de uma pessoa sobre outra.
Em termos das ciências da saúde, é importante perceber que não é possível tratar
psicologicamente de algo como uma «alma coletiva» porque tal simplesmente não existe.
Cada pessoa, psicologicamente, é o que é e deve ser abordada como tal na sua
singularidade própria. Tal não se sucede quando as pessoas passam a ser consideradas
como dados estatísticos.
DIMENSÃO SOCIOLÓGICA
A dimensão sociológica integra a dimensão relacional exterior dos seres humanos, dizendo
respeito à exterioridade da sua relação interpessoal.
A sociologia foi fundada por Comte na tentativa de integrar grandes ciências como a física
(parte material do mundo), a metafísica (estruturas não-físicas que sustentariam as
estruturas físicas, mas que as transcendiam) e a teologia (parte de absoluto do real).
DIMENSÃO ÉTICA
Fazendo uma ponte com a dimensão sociológica, quando se confunde uma imagem geral
da humanidade com a realidade, que sabemos que não correspondem, existe a redução da
própria realidade dos seres humanos a outra imposta pelos modelos sociológicos. A pessoa
deixa de ser livre e perde a sua dimensão ética.
Sem ética, o ser humano seria uma entidade passiva, capaz de sentir, de sofrer estímulos
externos, podendo responder-lhes, mas não seria capaz de agir. Só há ação quando existe
um sujeito humano que age voluntariamente, ou seja, quando toma a decisão de agir. Assim
sendo, a ética condiciona a ação.
Desta forma, e como já foi dito anteriormente, retirar a dimensão ética de uma pessoa, faz
com que esta deixe de ser humana, dado que lhe seria retirada a sua parte ativa e
capacidade de autodeterminação. Aplicado a todos os seres humanos, deixa de existir
humanidade. O ser humano deve ser abordado em todas as suas valências.
DIMENSÃO POLÍTICA
O ser humano não existe isolado. Necessita de estar em relação com as pessoas. “A política
é a relação entre as pessoas.” É «político» tudo o que for propriamente relação ou interação
entre dois ou mais seres humanos, como relações entre professor e aluno, enfermeiro e
cliente, relações sexuais, amorosas,etc.
O ser humano é sempre um «ser de assembleia», desde do ato que promove a sua conceção
até ao último ato antes de a sua vida terminar envolver outros seres humanos. Um «ser de
assembleia» é um ser político.
Desta forma, “o ato de cuidado sanitário é sempre um ato político.” O doente e o prestador
de cuidados constituem sempre assembleia, unidos por uma relação – política.
A política é muito importante antropologicamente, pois os seres humanos estão unidos por
uma relação exatamente porque a própria inter-relação humana assim o determina. Tal
implica que o sucesso de um seja o sucesso do outro, da mesma forma que a falha de um
é a falha do outro. No âmbito da saúde, se a interação sanitária falha, e cuidador e o cuidado
sofrem consequências.
DIMENSÃO JURÍDICA
Porém, como o ser humano dispõe de possibilidade de escolha ética, que permite aos seres
humanos construírem autonomamente a sua existência. Ou seja, podem optar pelo que
causa o bem ou o mal de todos o que permite aos seres humanos construírem
autonomamente a sua existência. Desta forma tem de haver normas que regulem a vida
política (em sociedade).
O direito é o âmbito de tais normas. Estas têm uma importância na existência das pessoas,
tendo um papel antropológico de grande relevo. Não é possível conceber a vida humana
concreta e organizada sem referência à dimensão normativa.
Quando é possível partilhar essa valorização, estamos perante o sentido político da religião:
surgem as religiões que conhecemos (religião cristã, religião judaica, etc).
Se tirarmos esse absoluto à pessoa que se rege por ele, tiramos-lhe o que a prende à sua
existência: tudo deixa de fazer sentido porque o sentido de tudo depende desse absoluto.
No limite, a pessoa entra em desespero e suicida-se dado que já nada faz sentido. Qualquer
ateu tem um «deus» que lhe permite permanecer vivo, que funciona como o seu absoluto,
que lhe confere sentido à vida. A vida sem sentido é possível biologicamente, não é um ato
humanamente possível.
Estas considerações são fundamentais para os profissionais de saúde, para que possam
entender porque razão pessoas em mesmas situações reagem de modos diferentes: perante
sofrimento terminal, uns esperam pela morte e outros pedem para morrer. Estes são os que
já não encontram sentido na vida. É preciso ter em atenção que matar um ser humano é
algo mau! Não há substituto para a vida, razão pela qual torna-se antropologicamente
sagrada.
CONCLUSÃO
Nós, enquanto seres humanos, somos constituídos por todas estas dimensões que,
interligadas e interdependentes, constituem a ontologia do nosso próprio ser. Todas estas
dimensões constituem o que é a antropologia como cultura, sendo esta um produto
antropológico relevante.
Para nós, cuidadores de saúde, não é possível trabalhar sem dominar a parte cultural geral
e específica de cada um com quem nos relacionarmos.
A família é uma estrutura fundamental da espécie humana, sem a qual não poderíamos
viver. Isto por que a família funciona como criadora de ser e de vida possibilitadora de
desenvolvimento do mesmo. Não só o ser humano depende do ato familiar mínimo que é
o encontro sexual fértil, como também não pode subsistir sem o que é a família mínima,
constituída pelo ato de contínuo cuidado de um outro ser humano. O fundamental é a
estrutura-família como criadora de ser e de vida e possibilitadora de desenvolvimento de
ser e de vida.
De facto, a família possui uma dimensão biológica, dado que não é possível haver vida
humana sem vida humana pré-existente. É necessária a dimensão biológica para o
surgimento de uma nova vida. Mas, por vezes, os progenitores não merecem ser chamados
de família de o novo ser humano. A simples mecanicidade material da criação da vida
individual não constitui algo que mereça o nome de família. Isto porque ser família exige
o FAMÍLIA NA PASSIVA
O ser humano, em seu ato vígil, nada mais é do que um ato de pensamento precisamente
no que o torna propriamente humano, isto é, um ser racional e livre, mas livre apenas
porque racional. Neste ato vígil, a inteligência que o ergue contra um absoluto nada de
sentido é constituída por isso a que chamamos sensibilidade, por isso a que chamamos
vontade, por isso a que chamamos inteligência, em sentido estrito.
Cada uma destas chamadas faculdades humanas não é um desdobramento da pessoa mas
formas próprias que a inteligência humana como um todo tem de se adaptar ao contexto
de ser em que se encontra inserida.
Acresce que o afeto, como toda a sensibilidade são da ordem do passivo: não dependem
fundamentalmente de nós. A passividade nega essencial e substantivamente a nossa
liberdade: quando sinto, sou dominado pelo que sinto – ao simplesmente sentir, sou
escravo do que sinto. Se não for capaz de me apropriar do que sinto, desapareço como
pessoa.
A família não deve ser algo de passional, de passivo, mas de ativo: apenas na amorosa
atenção ao bem possível e necessário do outro, dos outros, sem qualquer violência, por
excesso ou por defeito, apenas no exercício do ato pleno de caridade para com o outro, a
família pode encontrar a sua possibilidade plena e a sua plena realização. A família, é, pois,
um ato e apenas como ato pode subsistir.
A família pode ser vista como «coisa que consome» mas é sobretudo «coisa que consuma»,
que realiza a possibilidade de continuidade propriamente humana da humanidade, não
havendo, para ela, substituto possível.
A família possui então uma dimensão económica, já que implica consumo. O consumo é
são quando se consome os bens necessários para quem a família possa existir como tal. É
um ato de união dos membros da família. O consumo é perverso quando a família consome
menos ato de amor que é e, consequentemente, tem necessidade de consumir outras
realidades. Quem sabe que é amado, não precisa de ir em busca de soluções alternativas,
porque o ato de amor preenche totalmente o ser quem ama e o ser quem é amado e sabe
que é amado. A fonte dos consumos perversos na família é a ausência de amor na família.
A ausência de amor na família corresponde a uma real inexistência de família: pode haver
família em sentido jurídico ou em sentido sociológico, mas sem amor, não há família no
sentido essencial e substantivo do termo, precisamente porque a família, ontologicamente,
ou é um ato de amor ou não é coisa alguma.
Sendo a família um ato de amor, ela não deixa de ser uma «coisa sofrida». Isto porque amar
pode dar muito trabalho, dor e sofrimento, se bem que também pode dar muita alegria:
parir um filho, criá-lo ... são atos que causam dor, trabalho e sofrimento, mas também
causam muita alegria. Parece, então, que a família é uma tenebrosa promessa de dor e de
sofrimento, com uma talvez vã possibilidade de alegria associada.
A dimensão ética da família diz respeito ao que é o ato interior próprio de cada um dos
seus elementos integrantes: é no seio deste ato, que tudo o que a família é e pode ser
nasce e é a partir dele que pode transcender-se para o âmbito do político, isto é, das
relações interpessoais.
A ação do ser humano é sempre ética, pois é sempre o que esse ser humano é enquanto
ato próprio, a nada redutível. O mal é tão ético quanto ao bem, só que eticamente negativo.
A dimensão política da família é a própria família, quer dizer, o ato da família é um ato de
amor entre pelo menos duas pessoas, ato político por essência e substância.
Em cada ato que cada ser humano realiza, mesmo em normais situações não-trágicas, cada
ser humano decide sempre no horizonte, seu-pessoalíssimo, de vida e de morte.
A cada momento da vida humana se pode perder o sentido. Tal situação configura sempre
um estado de desespero, a que ninguém sobrevive e que nos deve sempre remeter para
um reverente silêncio, em homenagem a tal pessoa.
Toda a experiência humana é apenas e só uma experiência de vida. Nesta nossa dimensão
humana comum, nenhum ser humano pode saber o que a morte por experiência própria.
Tudo o que se pode saber sobre a morte e dizer sobre a morte é algo que nunca deriva de
uma experiência quer da própria pessoa quer de qualquer outra pessoa, pois esta segunda
pessoa vive de acordo com o mesmo modo da primeira. Nenhum discurso propriamente
humano é possível acerca da morte.
Os discursos do tipo ficcional ou mítico não são discursos feitos sobre a experiência de
morte. Apenas ensinam-nos como viver e morrer, o que ainda é um processo de vida. Todo
o percurso de vida que conduz à morte constitui experiência humana, e, por isso, pode ser
partilhado.
Tudo o que se pode saber da morte são relatos derivados da aproximação da própria
pessoa a este limite ou da observação, sempre externa, da aproximação de outra pessoa à
morte. Constitui o fruto de uma experiência de vida, perto da morte.
Embora não se possa saber o que é a morte, pode-se saber o que é “morrer em ato de
consciência”, associado ao ato de cessação da mesma. Tal acontece comummente quando
somos sedados para uma intervenção cirúrgica ou quando adormecemos. Diferentemente
do ato de morrer, retomamos a vida. Se a pessoa não voltar a acordar, tendo assim morrido,
o momento em que a anestesia lhe fez perder a consciência ou o momento em que
adormeceu foi quando teve o último ato de experiência como pessoa subjetivamente viva,
A morte corresponde, então, ao que se segue à total aniquilação da consciência e com esta
implica que se deixe se haver ser humano e passe-se a ser uma coisa meramente biológica,
interiormente indiscernível de um cadáver ou qualquer coisa material e que da sua
realidade, mais nada reste.
Quem vive a vida sabendo que um dia vai morrer, sabe que qualquer sentido à vida apenas
tem significado antes da morte, dado que vai terminar em nada. Não há recompensa pelo
mal, nem pelo bem, nem se transformam em nada: simplesmente o ser humano deixa de
existir. A preocupação de quem acredita que um dia vai morrer não é consigo próprio, mas
com o que as consequências das suas ações sobre outras pessoas. Quem não acredita que
vai morrer, tem em consideração que o que fizer enquanto vivo terá consequências, não
apenas sobre o mundo, mas também sobre si próprio, permanecendo após a morte.
Quem está num processo de morrer, que é uma experiência humana, situa- se entre duas
possibilidades extremas: o que ela experiencia lhe conduzirá ao nada ou a algo diferente e
desconhecido. Apenas a morte responderá a esta alternativa.
A morte é um limite necessário dado que não podemos fugir dela. Por isso, não faz sentido
temer a morte, dado que não faz sentido temer o nada, nem uma metamorfose, dado que
é uma nova vida. Pode é haver medo de sofrer, mas isto só faz sentido como forma de
recompensa negativa a nova vida por algo feito na vida anterior a metamorfose. É o
processo de morrer que suscita medo, devido à possibilidade do sofrimento. Mas este medo
desaparece durante o sofrimento.
Desta forma, não é o sofrimento em si que causa medo. O medo da morte pode ser a fonte
de maior sofrimento e a causa de se acelerar o processo de morrer: suicídio, eutanásia. O
sofrimento ocupa todo o âmbito consciente da pessoa, não havendo mais pessoa para lá
do sofrimento. Afeta, deste modo, a pessoa como um todo e é sempre da ordem do
O papel dos cuidados paliativos, no que diz respeito à questão do sofrimento ante-morte,
é importante. Deve-se sempre ministrar a quantidade de medicação necessária para que o
sofrimento induzido pela dor não exista. Tal não significa suicídio nem eutanásia, porque
não se está a por o fim à vida da pessoa, mas sim ao seu problema que causa sofrimento.
Se acidentalmente se ministrar doses elevadas que causa a morte da pessoa, tal é um
simples acidente. Se se ministrar doses a menos, é um ato de cobardia.
Do ponto de vista estritamente mundano, não há «boa morte», só há morte, isto é a total
aniquilação de todas as possibilidades próprias de um ser humano. Assim, por mais
confortável e psicologicamente agradável que a morte seja, tal de nada serve, pois o
objecto-sujeito de tal morte de nada beneficia senão durante um processo que não tem
qualquer ou não pode ter qualquer sentido ulterior, pois de tal ser humano nada vai restar,
nem mesmo qualquer forma própria de memória.
Do ponto de vista estritamente mundano, tanto importa que a morte seja «boa» ou «não-
boa», pois quer da vida quer do processo de morte quer da própria morte, nada resta, tudo
se equivale e equivale absolutamente a nada.
A «eutanásia» ou «kakotanásia», que seria o seu antónimo, equivalem-se, pois nada faz
qualquer sentido e o modo como se morre é apenas uma questão psicológica que pode
Aforma como se morre é muito importante do ponto de vista ético, isto é, do absoluto do
ato realizado por cada ser humano, o que relativiza tudo o resto, mesmo o possível
sofrimento havido em vida, vida de que o processo de morte faz parte. Aqui, apenas o
sofrimento desnecessário é absurdo, devendo ser atenuado sob todos os modos possíveis,
ainda que no risco de que a intervenção possa apenas coincidentemente fazer sobrevir a
morte.
O uso do arbítrio humano no que diz respeito à vida humana no que esta tem de absoluto.
Ao abrir-se o uso de tal arbítrio em tal tema, imediatamente se põe a vida humana, não
como coisa teórica ou abstrata, mas como realidade concreta, irredutível e insubstituível,
nas mãos de quem nunca deveria estar. Nenhum ser humano deveria ter ou poder ter ou
exercer poder de vida e de morte sobre um outro ser humano. O poder próprio de morte
própria não é confundível com um ato de eutanásia e chama-se poder de «suicídio».
Como absoluta negatividade última nunca poderá ser um direito, mas, sendo uma trágica
possibilidade própria, é irredutível e diz respeito apenas à interioridade ética do sujeito-
pessoa, imperscrutável, que tem de ser respeitada, sob pena de absoluto desrespeito da
pessoa humana.