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SÓCIO-ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

FILME ‘’BOYS DON’T CRY”

A propósito do tema «Sexualidade e Identidade»

A questão manifestada neste filme diz respeito à condição ontológica de um ser humano,
Teena Brandon /Brandon Teena, isto é, ao ser desta pessoa. É uma questão antropológica,
tecnicamente «ontoantropológica», pois diz respeito ao ser de um ser humano, de uma
pessoa.
Não se trata de uma questão social, psicológica, política, ética, biológica, fisiológica, química
ou física, uma vez que estas dimensões estão naturalmente implicadas, não podendo ser
isoladas, mas tendo todas as dimensões em consideração.

Todos os seres humanos têm de si próprios uma intuição relativamente ao ser que são.
Esta intuição é o ato espiritual, ato de pura inteligência interior a cada pessoa, em que cada
pessoa é sujeito e objeto de tal ato, descobrindo cada pessoa como o ser que é.

Este ato de inteligência é uma situação pela qual todos os seres humanos passam, no
entanto, o que diferencia a situação de Teena é que é rara e incomum. No entanto, raridade
e incomunidade não são critérios antropológicos e não deveriam ser critérios políticos, mas
são.

A diferença antropológica, que é o que aqui está em causa em termos da relação política,
causa medo.

O diferente causa medo porque põe em causa o meu tipo próprio de poder, geralmente
vivido como fraco, pondo em causa a bondade do que sou, das minhas escolhas, pode
implicar que a ordem cósmica em que vivo pode não ser correta, pondo a minha existência
em perigo, ao questionara ordem a que estou habituado. Se todos fossem como eu sou, tal
seria uma espécie de certificado de que também eu sou «bom».

Por isso, há que eliminar toda a diferença que surja, pois toda ela surge como ameaçadora
da ordem que permite a minha existência, como inimiga da minha possibilidade de ser.

É este o pano de fundo político e antropológico – com matizes religiosos – em que se


desenrola a tragédia de Teena.

Em suma, o mundo humano sempre foi e continua a ser um mundo de preconceitos, de


medo perante a possibilidade da diferença, de ódio, nascido de tal medo, a tudo o que
possa parecer desestabilizar o mundo fechado em que as pessoas geralmente se
habituaram a viver.

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A humanidade, onto-antropologicamente (segundo o ser que a constitui) depende, em seus
diferentes níveis, de combinatórias que permitem diferenciações que são o que criam cada
ser humano como realidade única, irrepetível, irredutível.

Todos os seres humanos assim produzidos seriam diferentes, desde a dimensão material,
química, por todas as outras, chegando à parte espiritual.

Cada ser humano, terá de si próprio um ato de inteligência que lhe dá o sentido do seu
ser, diferentes de todos os outros. Só através da integração de todas as dimensões e
através da intuição, que dá sentido pessoal à integração e que me dá o que sou como
sentido, é que somos pessoas. Tal sentido não é modificável “de fora”, de qualquer modo.

É no caso de alguém como Teena que esta intuição de sentido ontológico, do que se é
como pessoa, que está em causa.

Teena Brandon, ser humano nascido com forma corporal feminina, tem de si o sentido de
ser um homem. Interessa-se por mulheres não porque seja lésbica, mas porque, para si
próprio, é um homem. Para ele próprio, é evidente que é um ser humano masculino numa
conformação biológica e corporal errada.

Para os demais seres humanos, cuja perspetiva é exterior, Teena é uma mulher, pois toda
a sua aparência externa é de mulher. De fora, a tendência é para pensar que se se tem um
corpo de mulher, tem de se ter de si próprio uma intuição que corresponda ao corpo que
se tem.

O corpo é uma realidade de sentido, cuja única experiência pertence a quem o é.

Ora, o corpo, ou o que se dá como corpo na forma de sentido à intuição que cada pessoa
tem do que é, no que é, pode não coincidir com o que o corpo é, não no sentido de
coincidência com o que pessoa intui que é, mas no sentido da sua manifestação bio-física.
É esta manifestação que quem não tem a experiência própria do corpo intui; é com ela que
se relaciona. Deste modo, a Teena fêmea humana que os outros percebem quando com ela
se relacionam não é a mesma Teena que este vive como experiência do seu corpo.

Do ponto de vista político, na relação com a parte ética do modo de ser das pessoas – em
que as decisões são tomadas –, esta situação pode provocar e, no caso, provocou
consequências trágicas, se as pessoas eticamente não estiverem preparadas para, pelo
menos, aceitar perceber a possível bondade da diferença com que se deparam.

Se não houver esta abertura ética então, por causa do medo que a diferença provoca seguir-
se-á um ataque a esse que nos provoca tal medo, sempre com o fim último de o eliminar

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e, com ele, o perigo que apresenta, que constitui, e que ameaça o nosso mundo, a nossa
vida nele.

Numa lógica de poder parece apenas haver um modo de provar a Teena quem é superior,
atacando o ponto exato que está em causa, o da sua definição sexual (violação, atacando
o espírito).

Antropologicamente, todos os seres humanos são diferentes, porque naturalmente podem


ser diferentes. Nenhum ser humano é mais ou menos humano do que qualquer outro.
Nenhum deve ser maltratado porque é diferente. No limite, se a humanidade se tem
revelado como incapaz de se amar, isto é, de quer e exercer o bem do outro e para o outro,
tem de, pelo menos, ser capaz de respeitar o outro.

SEXUALIDADE E IDENTIDADE

▪ IDENTIDADE

A questão da identidade não é apenas questão própria dos seres humanos, mas aplica-se
a todos os seres, universalmente. Todos os seres são o que são porque possuem uma
identidade própria, irredutível a qualquer outra

É a diferença, que existe sobre um fundo ontológico (segundo o ser) comum, que permite
a existência de mais do que uma única identidade. Assim, é a diferença que cria literalmente
os seres como realidades distintas. Por outro lado, a diferença é tão importante
ontologicamente que é apenas através da existência de diferenças que podemos dizer que
tal ser é algo de não absolutamente estático, absolutamente sem movimento, que o mesmo
é dizer sem diferenciação. Aquilo a que chamamos «movimento» é sempre a manifestação
da diferenciação em ato. Tudo é movimento e, se este cessasse, tudo deixaria
imediatamente de ser, o mesmo é dizer, tudo é diferenciação e diferença em ato.

A realidade é o conjunto integrado em ato de todas as diferenças identitárias em ato de


relação. É constituída por um infindável movimento de diferenciação quer através do
surgimento de novos seres, de novas diferenças identitárias, quer através da evolução
diferencial de cada ser já existente. Como a existência é um contínuo surgimento de
diferenças, podemos dizer que cada ser é, por via das sucessivas diferenças que vais sendo,
novo a cada instante, nunca se repetindo.

No entanto, a identidade, sendo diferença, também possui uma outra característica: não
muda, uma vez que quando é apropriada, é inalterável, mesmo quando tudo o resto muda,
não havendo uma dispersão ontológica. Para isso ser possível, existe uma «estrutura

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ontológica» que permite a manutenção da identidade. Esta estrutura é a pessoa, dado que
ela permanece quando tudo o mais muda.

▪ SEXUALIDADE

A sexualidade diz respeito à formação da identidade de cada pessoa. O sexo e a sexualidade


constituem um centro fundamental para a constituição do sentido próprio de cada ser
humano, permitindo assim ter uma identidade. Não é possível ter uma identidade própria
se não tiver integrada nela a sexualidade e o sexo que se é e, desta forma, não existe
humanidade.

Neste ponto, é importante falarmos da perversão da sexualidade reprodutora, que integra


cada pessoa e é o modo natural de continuidade da espécie humana, em instrumento de
poder. O controlo político da fertilidade humana confere poder a quem o exercer. Tal
controlo pode ser exercido a nível micro (famílias) ou a um nível macro (países). O modo de
exercer este controlo pode assumir várias variantes, como utilização de estruturas que
condicionam positiva ou negativamente a sexualidade reprodutora.

O que difere ao nível desta parte da sexualidade humana não é a sua presença, mas como
cada pessoa a integra. Esta integração é feita por cada pessoa de uma forma pessoal,
irrepetível, não sendo passível de qualquer juízo alheio.

Nas outras espécies, o ato de dar continuidade às espécies é instintivo. No ser humano,
não é bem assim. Nós temos capacidade de escolha, e podemos escolher deixarmos de nos
reproduzir. Esta capacidade de escolha na dimensão política do ser humano pode trazer
consequências quando uma pessoa escolhe sobre a privacidade de outra (violação). É esta
capacidade de não determinação inercial que cria a sexualidade: a apropriação pessoal do
facto de ser sexuado. Diz-se mesmo ser sexuado, dado que o sexo é algo que se é, não
algo que se possui.

Não é antropologicamente possível a uma pessoa ter uma identidade própria se não tiver
integrada nessa identidade a sexualidade que é.

É neste sentido que a questão da diferença entre «sexo» e «género» se põe: pode ser-se
uma sexualidade feminina, possuindo um sexo masculino. Neste caso, o termo «possuir»
pode ser utilizado. Possuo um sexo masculino, mas não o sou: é uma realidade natural em
que as pessoas não se identificam com o seu gênero.

Em termos da prestação de cuidados de saúde, não basta serem respeitadas, mas têm de
ser devidamente bem tratadas, isto é, em ato, amadas.

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A sexualidade não se esgota na reprodução e é a presença constante quer na pessoa, pois
forma-a também, quer nas relações entre as pessoas. Tal não significa que as relações entre
as pessoas são «sexuais», mas que são sempre «sexuadas», uma vez que a sexualidade
humana acompanha sempre a realidade humana, fazendo parte da identidade própria de
cada um.

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FILME ‘’ O HERÓI DE HACKSAW RIDGE’’

A propósito do tema «a ação do técnico de saúde – em situação antropológica extrema

Neste filme podemos encontrar várias questões que nos interessam do ponto de vista de
uma sócio-antropologia da saúde.

Opções de sentido próprias de cada pessoa (p.ex: religiosas)

O filme relata o drama vivido por Desmond Doss (cidadão americano) que tem um
desempenho incomum como soldado socorrista (doravante «Medic») ao serviço do Exército
dos Estados da América, durante parte final da Segunda Guerra Mundial. Nesta batalha,
Doss, para lá de cumprir as suas tarefas de resgate de feridos em campo de batalha,
protagonizou um feito único, ao salvar cerca de 75 militares americanos, bem como alguns
japoneses, demonstrando não fazia distinção etnocêntrica entre seres humanos a salvar.
Ora, este exemplo máximo de boa conduta como militar, oficialmente reconhecida com a
mais alta condecoração dos Estados Unidos, a «Medalha de Honra», era o que oficialmente
se classifica como «objetor de consciência», no filme «cooperador de consciência». Por
motivos relacionados com uma juventude violenta, tendo estado prestes a matar a tiro de
revólver o pai por se ter tornado alcoólico e violento, decidiu, por promessa para com o
«seu Deus», nunca voltar a pegar numa arma. Doss resolve, contra a vontade da família (pai)
oferecer-se para o exército, como soldado-médico, de forma não-combatente com uso de
armas. Doss queria contribuir como os outros camaradas para o esforço de guerra, mas
sem o uso de violência, nomeadamente o associado ao uso de armas. Algo de errado
ocorreu durante as formalidades do seu processo de admissão e foi colocado numa unidade
combatente, em que foi formalmente obrigado a usar uma espingarda, o que nunca aceitou,
criando, deste modo, gravíssimos problemas aos militares que o comandavam, inabituados
a lidar com tais questões. Mas criou, sobretudo, problemas a Doss, pois foi alvo de juízos
preconceituosos que lhe causaram sofrimento, especialmente ao nível da sua definição
antropológica, parecendo ser considerado como uma entidade menos que humana.

Resposta social ao modo como cada ser humano constrói o que é a sua unidade de sentido
antropológica própria

O modo como os seus, agora, não por reação, à opção não-violenta de vida militar de Doss
é ilustrativo e modelar no que diz respeito à negatividade ética e política dos seres humanos
em inter-relação, que tem uma base antropológica. O modo positivo, também modelar, da
relação entre seres humanos é, precisamente, o que Doss incarna.

Com o indemonstrado pretexto de que Doss era cobarde, apesar de ser dos melhores em
termos de exercícios físicos, foi aquele tratado de modo a que optasse ou por desistir da

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sua opção não-violenta ou da sua inserção no exército. Tudo serviu para procurar
determinar Doss a que desistisse. Nada o conseguiu, chegando a sua situação a um nível
de paroxismo quando é levado a Tribunal Militar em que a opção era ser desmobilizado
com desonra, isto é, como um ser humano menorizado, ou ser encarcerado longamente no
Presídio Militar de Leavenworth.

Ainda assim, Doss não soçobrou, tendo mantido a sua posição até ao fim, acabando por
ser ajudado pelo pai, sendo então autorizado a tornar-se medic sem a necessidade de usar
armas.

No fim da batalha, a imagem social de Doss sairá radicalmente modificada, mostrando que
tais imagens são falsas e alicerçadas em preconceitos sociais, do que num olhar claro sobre
a realidade das pessoas diminuindo-as do ponto de vista antropológico, isto é, do seu ser
próprio

A ação do ser humano, em situação (extrema, neste caso) superando tudo o que sejam as
imagens sociais e mesmo sociológicas, isto é, intelectualmente elaboradas, acerca desse
mesmo ser humano

O modo como Doss responde às constrições sociais que lhe foram impostas consistiu em
superar o nível em que tais ações contra si existiam, agindo como se não existissem, de tal
modo que salvou a vida, precisamente, a muitos dos que mais gravemente tinham exercido
violência contra ele, assim mostrando que não dependia da imagem social e das ações
sociais, antes da sua resolução interior e modo próprio de ver e viver o mundo e a
humanidade nele presente. Deste modo, e sempre seguindo a sua opção não-violenta e
pró-dignidade universal humana, já depois de trabalhar no resgate dos seus camaradas
durante a primeira fase da batalha em que estiveram envolvidos, Doss decidiu permanecer
no campo de batalha, assistindo os feridos, que eram em número de muitas dezenas.

O facto de alguém pacificamente se impor contra o geral de uma sociedade preconceituosa


acaba por ser o instrumento que permite salvar da morte grande parte dessa mesma
sociedade: O resultado positivo da inequívoca afirmação pessoal como ação pelo bem da
comunidade

A ação do medic Desmond Doss prova que não há modelos pré-estabelecidos de


humanidade, que os modos sociais de se perspetivar o outro são sempre formas
preconceituosas. Um ser humano nunca é o que os outros pensam dele, nunca é redutível
a uma conformidade qualquer a um padrão qualquer de uma sociedade qualquer. Cada ser

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humano é o que é, como é: e como é, é o modo próprio de a sua humanidade se manifestar,
ser. Um ser humano é um ser humano e tem de ser respeitado na sua comum humanidade.

Conclusão

A lição de Doss para o técnico de saúde contemporâneo

A ação do medic Doss serve de paradigma para a ação possível de todo o técnico de saúde
que se queira reclamar como digno do nome profissional que transporta (p.ex:«enfermeiro»,
técnico de extrema proximidade antropológica) como ação que tem como fim apenas o bem
de esse a quem se dirige, pelo bem de esse a quem se dirige, sem contemplação por fatores
colaterais, secundários e que põem sempre em risco o que deve ser o serviço ao bem de
quem se cuida. No limite, quem não se quer assumir como técnico de saúde que siga este
paradigma de entrega total, deve repensar a sua ação, como Doss fez, decidindo se quer
mesmo ser ou continuar a ser técnico de saúde. Doss é um exemplo notável de como a
definição antropológica de cada ser humano em sua mesma interioridade tem importância
fundamental nas relações humanas, o que se aplica com extrema pertinência ao âmbito das
atividades de cuidado de saúde, nomeadamente à enfermagem.

Terceira Lição Teórica e Quarta Lição Teórica

«Antropologia como ponto nodal das diferentes dimensões dos seres humanos»

DIMENSÃO PSICOLÓGICA

O termo «psykhe» designa a alma, que anima os seres, dando-lhes vida. O ser humano
destaca-se dos outros seres por possuir uma alma racional, lógica, que é capaz de
apreender o sentido das coisas, transformando a materialidade das coisas em pensamento
humano.

A psicologia humana não se limita a uma ciência comportamental ou narrativa de factos


imagéticos ocorridos na mente. É uma forma total de perspetiva sobre a humanidade vista
a partir da interioridade de cada ser humano, cujo significado habitava a alma. Era uma
“antropologia” aplicada ao ato humano, visto a partir da sua interioridade.

Para que sejamos definidos como seres humanos psicológicos, é fundamental que sintamos.
O que eu sinto define-me como pessoa. As nossas ações também podem traçar um perfil
psicológico de cada um de nós.

Não pode haver uma antropologia que se aproxime do que seja a realidade propriamente
humana sem que tenha em consideração a dimensão psicológica dos seres humanos, bem
como todas as outras dimensões suas próprias. Caso contrário, apenas existirão abstrações

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teóricas redutoras “porque não tomam em consideração a riqueza total que constitui cada
ser humano”. Todos os modelos culturais presentes ao longo dos tempos na história da
humanidade que definem o que o ser humano é, sem atenção à sua pluralidade, não passam
de formas perversas de modelação do humano, dado que são incompletas. Por isso, todos
os seres humanos, individualmente considerados, possuem uma alma diferente uns dos
outros, mas é o mesmo modelo de alma que faz deles, todos, seres humanos e não outra
coisa qualquer.

Na relação da psicologia com outras disciplinas científicas, devemos ter cuidado científico
para não usar termos errados do ponto de vista antropológico, como por exemplo,
«psicologia social». De facto, isto não existe porque não existem almas, mentes ou
interioridades humanas comuns. Se duas ou mais pessoas estiverem reunidas a
manifestarem-se com o mesmo objetivo, tal é um fato sociológico, político e antropológico
em que essas pessoas estão a fazer o mesmo, mas psicologicamente não formam uma
mente comum, mesmo que haja influência de uma pessoa sobre outra.

Em termos antropológicos, psicologicamente, cada pessoa é uma entidade única,


irrepetível, inconfundível que tem de ser assumida e trabalhada, em todas as valências,
como ser único e irredutível que é, no respeito absoluto pela sua diferente individualidade
antropológica.

Em termos das ciências da saúde, é importante perceber que não é possível tratar
psicologicamente de algo como uma «alma coletiva» porque tal simplesmente não existe.
Cada pessoa, psicologicamente, é o que é e deve ser abordada como tal na sua
singularidade própria. Tal não se sucede quando as pessoas passam a ser consideradas
como dados estatísticos.

Da mesma forma, os profissionais de saúde devem ser considerados na sua singularidade.


Apesar de terem as mesmas funções, o prestador de cuidados não pode ser substituído,
dado que não têm a mesma alma. Trocar por outro é, psicologicamente, o mesmo que
mudar dois mundos antropológicos.

DIMENSÃO SOCIOLÓGICA

A dimensão sociológica integra a dimensão relacional exterior dos seres humanos, dizendo
respeito à exterioridade da sua relação interpessoal.

A sociologia foi fundada por Comte na tentativa de integrar grandes ciências como a física
(parte material do mundo), a metafísica (estruturas não-físicas que sustentariam as
estruturas físicas, mas que as transcendiam) e a teologia (parte de absoluto do real).

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A sociologia é então a pura descrição ou narração física da atividade humana, trabalhando
fundamentalmente com dados estatísticos e lidando com realidades cujos fenómenos
resultam de interações de números inimagináveis de realidades individuais. Para a
sociologia, interessa o todo e não cada uma das partes individuais, ou seja, interessa-lhe
apenas a generalidade, não as particularidades, não sendo por isso capaz de afirmar o que
cada indivíduo está a fazer. Permite descobrir regularidades gerais passadas, presentes e
especular sobre futuras (com base científica e sempre por analogia).

A sociologia permite pensar antropologicamente por meio de dados estatísticos o que é a


imagem da humanidade em geral. Mas, como a humanidade é algo dinâmico e em
permanente mudança, o que é a imagem geral da humanidade nunca corresponderá à sua
verdadeira realidade. Estas imagens gerais são só úteis para um manejo abstrato da
realidade. Não devem ser confundidas com a realidade, pois em vez de representarem a
realidade humana, reduz os seres humanos da sua própria realidade para outras que não
existem, mas que são impostas por modelos sociológicos, fazendo com que as pessoas
deixem de ser o que são livremente. Esta redução implica a destruição da dimensão
antropológica da realidade propriamente humana (a dimensão ética).

DIMENSÃO ÉTICA

Fazendo uma ponte com a dimensão sociológica, quando se confunde uma imagem geral
da humanidade com a realidade, que sabemos que não correspondem, existe a redução da
própria realidade dos seres humanos a outra imposta pelos modelos sociológicos. A pessoa
deixa de ser livre e perde a sua dimensão ética.

A ética é o âmbito próprio e irredutível da interioridade humana em que as decisões são


tomadas: “o momento ético é o momento de decisão”. A ética é o próprio ser humano em
ato de autodeterminação, ou seja, é através da ética que cada ser humano se define a si
próprio.

Sem ética, o ser humano seria uma entidade passiva, capaz de sentir, de sofrer estímulos
externos, podendo responder-lhes, mas não seria capaz de agir. Só há ação quando existe
um sujeito humano que age voluntariamente, ou seja, quando toma a decisão de agir. Assim
sendo, a ética condiciona a ação.

Desta forma, e como já foi dito anteriormente, retirar a dimensão ética de uma pessoa, faz
com que esta deixe de ser humana, dado que lhe seria retirada a sua parte ativa e
capacidade de autodeterminação. Aplicado a todos os seres humanos, deixa de existir
humanidade. O ser humano deve ser abordado em todas as suas valências.

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Tropeçar em algo não é considerado um ato, mas sim um acidente físico. Aqui, não há um
sujeito ético em ação, dado que foi um episódio involuntário. O sujeito era apenas um
móvel físico que por acaso era um ser humano a seguir os princípios físicos que o mundo
determina. Empurrar uma pessoa, já se torna um ato, dado que existe um sujeito ético que
participou num episódio voluntário, decidido por ele.

DIMENSÃO POLÍTICA

O ser humano não existe isolado. Necessita de estar em relação com as pessoas. “A política
é a relação entre as pessoas.” É «político» tudo o que for propriamente relação ou interação
entre dois ou mais seres humanos, como relações entre professor e aluno, enfermeiro e
cliente, relações sexuais, amorosas,etc.

O ser humano é sempre um «ser de assembleia», desde do ato que promove a sua conceção
até ao último ato antes de a sua vida terminar envolver outros seres humanos. Um «ser de
assembleia» é um ser político.

Desta forma, “o ato de cuidado sanitário é sempre um ato político.” O doente e o prestador
de cuidados constituem sempre assembleia, unidos por uma relação – política.

A política é muito importante antropologicamente, pois os seres humanos estão unidos por
uma relação exatamente porque a própria inter-relação humana assim o determina. Tal
implica que o sucesso de um seja o sucesso do outro, da mesma forma que a falha de um
é a falha do outro. No âmbito da saúde, se a interação sanitária falha, e cuidador e o cuidado
sofrem consequências.

DIMENSÃO JURÍDICA

A humanidade não é perfeita, por isso existe a necessidade normativa em âmbito


antropológico. Se a humanidade fosse perfeita, ou seja, se todos os seus atos cumprissem
o que seria o bem de todos, não seria necessário haver normas.

Porém, como o ser humano dispõe de possibilidade de escolha ética, que permite aos seres
humanos construírem autonomamente a sua existência. Ou seja, podem optar pelo que
causa o bem ou o mal de todos o que permite aos seres humanos construírem
autonomamente a sua existência. Desta forma tem de haver normas que regulem a vida
política (em sociedade).

O direito é o âmbito de tais normas. Estas têm uma importância na existência das pessoas,
tendo um papel antropológico de grande relevo. Não é possível conceber a vida humana
concreta e organizada sem referência à dimensão normativa.

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DIMENSÃO RELIGIOSA

A religião é algo que se centra na subjetividade humana. Refere-se ao transcendente, mas


diz respeito aos seres humanos. Assume todas as dimensões humanas (política, por
exemplo). Diz respeito à intuição dos seres humanos sobre o que é considerado sagrado
(algo absoluto, transcendente). “O sagrado é isso que tem sentido absolutamente”.
Podemos considerar que «isso» é o seu «deus», que permite aos seres humanos viverem
com um determinado sentido absoluto.

Quando é possível partilhar essa valorização, estamos perante o sentido político da religião:
surgem as religiões que conhecemos (religião cristã, religião judaica, etc).

Se tirarmos esse absoluto à pessoa que se rege por ele, tiramos-lhe o que a prende à sua
existência: tudo deixa de fazer sentido porque o sentido de tudo depende desse absoluto.
No limite, a pessoa entra em desespero e suicida-se dado que já nada faz sentido. Qualquer
ateu tem um «deus» que lhe permite permanecer vivo, que funciona como o seu absoluto,
que lhe confere sentido à vida. A vida sem sentido é possível biologicamente, não é um ato
humanamente possível.

Estas considerações são fundamentais para os profissionais de saúde, para que possam
entender porque razão pessoas em mesmas situações reagem de modos diferentes: perante
sofrimento terminal, uns esperam pela morte e outros pedem para morrer. Estes são os que
já não encontram sentido na vida. É preciso ter em atenção que matar um ser humano é
algo mau! Não há substituto para a vida, razão pela qual torna-se antropologicamente
sagrada.

CONCLUSÃO

Nós, enquanto seres humanos, somos constituídos por todas estas dimensões que,
interligadas e interdependentes, constituem a ontologia do nosso próprio ser. Todas estas
dimensões constituem o que é a antropologia como cultura, sendo esta um produto
antropológico relevante.

Para nós, cuidadores de saúde, não é possível trabalhar sem dominar a parte cultural geral
e específica de cada um com quem nos relacionarmos.

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FILME ‘’I AM SAM’’

A propósito do tema «família, essência, estrutura e modos

O filme procede à demolição de todos os preconceitos sobre o constitui o fundamento da


família: se bem que os aspetos materiais e sociais externos sejam importantes, nada se
compara em importância ao que o amor é como laço, vínculo fundamental, do que é a
família. Sem amor, não há família, mas apenas um amontoado de pessoas, a que se pode
chamar socialmente «família».

É a Família, através de um relacionamento de atos de amor, em que, aqui sim, o supremo


bem da criança é posto em primeiro lugar, através de atos de dom de possibilidade de
bem: definição própria do amor.

Em suma, o que constitui a essência da família é o ato de amor, recíproco – a família é o


exemplo melhor de amizade –, o que condiciona totalmente a sua estrutura e modos. A
estrutura da família forma-se sempre em torno de um eixo de amor, ou não há família.

Culturalmente, os modos de estruturação em torno deste eixo de amor variam muito. O


mesmo se diga dos modos de constituição, sempre relativos quer ao eixo estruturante, quer
às estruturas culturais. O que não pode falhar é a presença do amor. É esta a grande lição
de I am Sam.

FAMÍLIA, AFETOS E CONSUMOS

Do ponto de vista da realidade histórica diacrónica e sincrónica, não encontramos uma só


realidade a que corresponda «a família»: são muitas as tipologias de família.

A família é uma estrutura fundamental da espécie humana, sem a qual não poderíamos
viver. Isto por que a família funciona como criadora de ser e de vida possibilitadora de
desenvolvimento do mesmo. Não só o ser humano depende do ato familiar mínimo que é
o encontro sexual fértil, como também não pode subsistir sem o que é a família mínima,
constituída pelo ato de contínuo cuidado de um outro ser humano. O fundamental é a
estrutura-família como criadora de ser e de vida e possibilitadora de desenvolvimento de
ser e de vida.

De facto, a família possui uma dimensão biológica, dado que não é possível haver vida
humana sem vida humana pré-existente. É necessária a dimensão biológica para o
surgimento de uma nova vida. Mas, por vezes, os progenitores não merecem ser chamados
de família de o novo ser humano. A simples mecanicidade material da criação da vida
individual não constitui algo que mereça o nome de família. Isto porque ser família exige

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trabalho e amor, que possibilite o desenvolvimento ou crescimento das potencialidades
desse ser. A família é coisa biológica no sentido de que é maximamente o ato de
possibilitação da renovação da vida, do surgimento e desenvolvimento de vida nova.

A outra forma paradigmática de se ser família é através de um ato puramente espiritual,


sendo família simplesmente porque se ama.

A família é o lugar do pleno crescimento das potencialidades propriamente humanas do ser


humano incoativo. A família é a autoridade da sabedoria. Desta forma, ao corrigirmos os
mais novos da nossa família, permitimos o seu desenvolvimento.

o FAMÍLIA NA PASSIVA

O ser humano, em seu ato vígil, nada mais é do que um ato de pensamento precisamente
no que o torna propriamente humano, isto é, um ser racional e livre, mas livre apenas
porque racional. Neste ato vígil, a inteligência que o ergue contra um absoluto nada de
sentido é constituída por isso a que chamamos sensibilidade, por isso a que chamamos
vontade, por isso a que chamamos inteligência, em sentido estrito.

Cada uma destas chamadas faculdades humanas não é um desdobramento da pessoa mas
formas próprias que a inteligência humana como um todo tem de se adaptar ao contexto
de ser em que se encontra inserida.

A sensibilidade é a inteligência quando é capaz de ler o sentido presente na materialidade


das coisas; a vontade é a inteligência cada vez que opta por passar de um objeto a outro,
isto é, a vontade é o motor do movimento próprio da inteligência; a inteligência, em sentido
estrito, é o ato comum de literalmente ler o sentido presente nas coisas. Num sentido ainda
mais restrito, a inteligência teórica é a capacidade de ler o sentido de tudo o que não tem
dimensão material: matemáticas, lógica, metafísica em geral.

Acresce que o afeto, como toda a sensibilidade são da ordem do passivo: não dependem
fundamentalmente de nós. A passividade nega essencial e substantivamente a nossa
liberdade: quando sinto, sou dominado pelo que sinto – ao simplesmente sentir, sou
escravo do que sinto. Se não for capaz de me apropriar do que sinto, desapareço como
pessoa.

A família não deve ser algo de passional, de passivo, mas de ativo: apenas na amorosa
atenção ao bem possível e necessário do outro, dos outros, sem qualquer violência, por
excesso ou por defeito, apenas no exercício do ato pleno de caridade para com o outro, a
família pode encontrar a sua possibilidade plena e a sua plena realização. A família, é, pois,
um ato e apenas como ato pode subsistir.

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o FAMÍLIA COMO «COISA QUE CONSOME»

A família pode ser vista como «coisa que consome» mas é sobretudo «coisa que consuma»,
que realiza a possibilidade de continuidade propriamente humana da humanidade, não
havendo, para ela, substituto possível.

A família possui então uma dimensão económica, já que implica consumo. O consumo é
são quando se consome os bens necessários para quem a família possa existir como tal. É
um ato de união dos membros da família. O consumo é perverso quando a família consome
menos ato de amor que é e, consequentemente, tem necessidade de consumir outras
realidades. Quem sabe que é amado, não precisa de ir em busca de soluções alternativas,
porque o ato de amor preenche totalmente o ser quem ama e o ser quem é amado e sabe
que é amado. A fonte dos consumos perversos na família é a ausência de amor na família.

A ausência de amor na família corresponde a uma real inexistência de família: pode haver
família em sentido jurídico ou em sentido sociológico, mas sem amor, não há família no
sentido essencial e substantivo do termo, precisamente porque a família, ontologicamente,
ou é um ato de amor ou não é coisa alguma.

o FAMÍLIA COMO «COISA SOFRIDA»

Sendo a família um ato de amor, ela não deixa de ser uma «coisa sofrida». Isto porque amar
pode dar muito trabalho, dor e sofrimento, se bem que também pode dar muita alegria:
parir um filho, criá-lo ... são atos que causam dor, trabalho e sofrimento, mas também
causam muita alegria. Parece, então, que a família é uma tenebrosa promessa de dor e de
sofrimento, com uma talvez vã possibilidade de alegria associada.

A família é o ato presente de amor entre pessoas sendo um ato de fé na possibilidade de


bem do futuro, mas é, sobretudo, o presente contínuo do querer que esse bem seja
possível. Logo, a família é um esforço contínuo de realização do bem comum que se quer
para tais pessoas, se necessário contra tudo e contra todos, na certeza de que, mesmo
todos morrendo no fim, o amor nunca morreu: morremos sem que o nosso amor morra.

o DIMESÃO ÉTICA DA FAMÍLIA

A dimensão ética da família diz respeito ao que é o ato interior próprio de cada um dos
seus elementos integrantes: é no seio deste ato, que tudo o que a família é e pode ser
nasce e é a partir dele que pode transcender-se para o âmbito do político, isto é, das
relações interpessoais.

A ação do ser humano é sempre ética, pois é sempre o que esse ser humano é enquanto
ato próprio, a nada redutível. O mal é tão ético quanto ao bem, só que eticamente negativo.

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O problema do mal é ser negativo ontologicamente. O mal que se faz aniquila a
possibilidade de bem eternamente e pode ter consequências trágicas. Todo o bem feito
permanece para sempre no seio da família, assim como o mal. A ética na família, na sua
relação com a dimensão política da família, implica uma total atenção ao bem de cada
elemento.

o DIMENSÃO POLÍTICA DA FAMÍLIA

A dimensão política da família é a própria família, quer dizer, o ato da família é um ato de
amor entre pelo menos duas pessoas, ato político por essência e substância.

o FAMÍLIA COMO O LUGAR DA AMIZADE

A família é o lugar da amizade. É a amizade que constitui a família. A amizade ontológica,


ética e politicamente, é um ato de amor recíproco entre pelo menos duas pessoas, ou seja,
é a família em ato. Assim sendo, não há família sem amizade.

o FAMÍLIA COMO COMUNIDADE DE AMOR

A grande base da e para a família é o ato de amor necessariamente mútuo, a amizade. A


família não é apenas amor: com um ato de amor singular e não correspondido. Tem de
haver correspondência.

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FILME ‘’MILLION DOLLAR BABY’’

A propósito do tema «a morte, o morrer e os cuidados paliativos

Independentemente de qualquer consideração ética, política, religiosa, o poder de decisão


sobre a vida e a morte de cada ser humano faz parte da sua mais profunda definição de
humanidade.

Em cada ato que cada ser humano realiza, mesmo em normais situações não-trágicas, cada
ser humano decide sempre no horizonte, seu-pessoalíssimo, de vida e de morte.

A cada momento da vida humana se pode perder o sentido. Tal situação configura sempre
um estado de desespero, a que ninguém sobrevive e que nos deve sempre remeter para
um reverente silêncio, em homenagem a tal pessoa.

A MORTE COMO HORIZONTE ANTROPOLÓGICO

Toda a experiência humana é apenas e só uma experiência de vida. Nesta nossa dimensão
humana comum, nenhum ser humano pode saber o que a morte por experiência própria.

Tudo o que se pode saber sobre a morte e dizer sobre a morte é algo que nunca deriva de
uma experiência quer da própria pessoa quer de qualquer outra pessoa, pois esta segunda
pessoa vive de acordo com o mesmo modo da primeira. Nenhum discurso propriamente
humano é possível acerca da morte.

Os discursos do tipo ficcional ou mítico não são discursos feitos sobre a experiência de
morte. Apenas ensinam-nos como viver e morrer, o que ainda é um processo de vida. Todo
o percurso de vida que conduz à morte constitui experiência humana, e, por isso, pode ser
partilhado.

Tudo o que se pode saber da morte são relatos derivados da aproximação da própria
pessoa a este limite ou da observação, sempre externa, da aproximação de outra pessoa à
morte. Constitui o fruto de uma experiência de vida, perto da morte.

Ora, no primeiro caso, o da aproximação da própria pessoa à morte, há um caso de


experiência em que, não se podendo saber o que é a morte, se pode saber o que é morrer
em termos do ato de consciência como ato de cessação de tal mesma consciência.

Embora não se possa saber o que é a morte, pode-se saber o que é “morrer em ato de
consciência”, associado ao ato de cessação da mesma. Tal acontece comummente quando
somos sedados para uma intervenção cirúrgica ou quando adormecemos. Diferentemente
do ato de morrer, retomamos a vida. Se a pessoa não voltar a acordar, tendo assim morrido,
o momento em que a anestesia lhe fez perder a consciência ou o momento em que
adormeceu foi quando teve o último ato de experiência como pessoa subjetivamente viva,

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mesmo que biologicamente viva por mais algum tempo. Deste modo, a pessoa morre como
ato de consciência. Se a pessoa prestou atenção ao processo de consciência que precedeu
a efetivação da anestesia, ou o sono, e retoma a vida, a experiência do que é morrer como
ato de consciência existiu e foi a altura em que sobrepotenciou-se a atenção dos sentidos,
isto é, da consciência como ato de sentir a realidade, bem como a inteligência, que permitiu
integrar todos os sentidos, tal como se ouvíssemos ou víssemos pela última vez. Salienta-
se, desta forma, que a vida como consciência constitui-nos propriamente como seres
humanos.

A morte corresponde, então, ao que se segue à total aniquilação da consciência e com esta
implica que se deixe se haver ser humano e passe-se a ser uma coisa meramente biológica,
interiormente indiscernível de um cadáver ou qualquer coisa material e que da sua
realidade, mais nada reste.

Quem vive a vida sabendo que um dia vai morrer, sabe que qualquer sentido à vida apenas
tem significado antes da morte, dado que vai terminar em nada. Não há recompensa pelo
mal, nem pelo bem, nem se transformam em nada: simplesmente o ser humano deixa de
existir. A preocupação de quem acredita que um dia vai morrer não é consigo próprio, mas
com o que as consequências das suas ações sobre outras pessoas. Quem não acredita que
vai morrer, tem em consideração que o que fizer enquanto vivo terá consequências, não
apenas sobre o mundo, mas também sobre si próprio, permanecendo após a morte.

Quem está num processo de morrer, que é uma experiência humana, situa- se entre duas
possibilidades extremas: o que ela experiencia lhe conduzirá ao nada ou a algo diferente e
desconhecido. Apenas a morte responderá a esta alternativa.

Existe uma incontornabilidade da morte e não do morrer. Isto porque, relativamente à


morte, há casos em que esta surge de modo súbito, sem haver possibilidade de existir um
processo de morrer.

A morte é um limite necessário dado que não podemos fugir dela. Por isso, não faz sentido
temer a morte, dado que não faz sentido temer o nada, nem uma metamorfose, dado que
é uma nova vida. Pode é haver medo de sofrer, mas isto só faz sentido como forma de
recompensa negativa a nova vida por algo feito na vida anterior a metamorfose. É o
processo de morrer que suscita medo, devido à possibilidade do sofrimento. Mas este medo
desaparece durante o sofrimento.

Desta forma, não é o sofrimento em si que causa medo. O medo da morte pode ser a fonte
de maior sofrimento e a causa de se acelerar o processo de morrer: suicídio, eutanásia. O
sofrimento ocupa todo o âmbito consciente da pessoa, não havendo mais pessoa para lá
do sofrimento. Afeta, deste modo, a pessoa como um todo e é sempre da ordem do

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espiritual. Não há sofrimentos físico (as coisas materiais não sofrem), mas pode haver
sofrimento a partir de causas fisiológicas, como a dor. Se neste momento doloroso não
existir certeza de morte, pode não provocar sofrimento. Mas há casos em que a dor é tão
extrema que provoca insuportabilidade pessoal e desejo de acelerar o processo de morrer,
de forma a libertar-se de tal dor.

Para o sofrimento puramente espiritual (morte de um ente querido), não qualquer


intervenção química ou terapêutica, apenas iludem o sofrimento, diminuindo a dor
associada. Quer morrer com processo de sofrimentos extremo, quer a dor que se transforma
em sofrimento que remete para um processo de morrer voluntário, implica intervenções
que diminuam de forma aceitável, ou mesmo anulem o sofrimento.

O papel dos cuidados paliativos, no que diz respeito à questão do sofrimento ante-morte,
é importante. Deve-se sempre ministrar a quantidade de medicação necessária para que o
sofrimento induzido pela dor não exista. Tal não significa suicídio nem eutanásia, porque
não se está a por o fim à vida da pessoa, mas sim ao seu problema que causa sofrimento.
Se acidentalmente se ministrar doses elevadas que causa a morte da pessoa, tal é um
simples acidente. Se se ministrar doses a menos, é um ato de cobardia.

A presença de prestadores de cuidados é fundamental, tanto a sua capacidade técnica com


humana, dado que promovem o bem de quem está em processo de morrer, em sofrimento
ou não, permitindo que estas vivam até ao fim com dignidade humana.

EUTANÁSIA: A SOLUÇÃO FINAL

O termo «eutanásia» quer literalmente dizer «boa morte». Trata-se, indubitavelmente de um


eufemismo de tipo meramente psicológico, destinado ao engano da angústia de quem tem de
morrer, nomeadamente todos nós.

Do ponto de vista estritamente mundano, não há «boa morte», só há morte, isto é a total
aniquilação de todas as possibilidades próprias de um ser humano. Assim, por mais
confortável e psicologicamente agradável que a morte seja, tal de nada serve, pois o
objecto-sujeito de tal morte de nada beneficia senão durante um processo que não tem
qualquer ou não pode ter qualquer sentido ulterior, pois de tal ser humano nada vai restar,
nem mesmo qualquer forma própria de memória.

Do ponto de vista estritamente mundano, tanto importa que a morte seja «boa» ou «não-
boa», pois quer da vida quer do processo de morte quer da própria morte, nada resta, tudo
se equivale e equivale absolutamente a nada.

A «eutanásia» ou «kakotanásia», que seria o seu antónimo, equivalem-se, pois nada faz
qualquer sentido e o modo como se morre é apenas uma questão psicológica que pode

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variar desde a maior satisfação até à maior insatisfação, tudo isto modificável quimicamente
de forma artificial através da medicação “indicada”.

Aforma como se morre é muito importante do ponto de vista ético, isto é, do absoluto do
ato realizado por cada ser humano, o que relativiza tudo o resto, mesmo o possível
sofrimento havido em vida, vida de que o processo de morte faz parte. Aqui, apenas o
sofrimento desnecessário é absurdo, devendo ser atenuado sob todos os modos possíveis,
ainda que no risco de que a intervenção possa apenas coincidentemente fazer sobrevir a
morte.

A história da chamada eutanásia é a história da morte provocada. Provocada por razões ou


com finalidade de misericórdia, diz-se. Mas provocada, o que introduz um elemento
fundamental, pois, assim sendo, trata-se ou de um suicídio ou de um assassinato.

O uso do arbítrio humano no que diz respeito à vida humana no que esta tem de absoluto.
Ao abrir-se o uso de tal arbítrio em tal tema, imediatamente se põe a vida humana, não
como coisa teórica ou abstrata, mas como realidade concreta, irredutível e insubstituível,
nas mãos de quem nunca deveria estar. Nenhum ser humano deveria ter ou poder ter ou
exercer poder de vida e de morte sobre um outro ser humano. O poder próprio de morte
própria não é confundível com um ato de eutanásia e chama-se poder de «suicídio».

Como absoluta negatividade última nunca poderá ser um direito, mas, sendo uma trágica
possibilidade própria, é irredutível e diz respeito apenas à interioridade ética do sujeito-
pessoa, imperscrutável, que tem de ser respeitada, sob pena de absoluto desrespeito da
pessoa humana.

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