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Não é só o gênero que é socialmente construído,…

Salvo no Dropbox • 14 de set. de 2022 13:45

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“Não é só o gênero
que é socialmente
construído, o sexo
biológico também”

Uma das maiores pesquisadoras


da relação entre biologia,
linguagem e cultura do mundo,
Anne Fausto-Sterling comenta
como médicos usam critérios
culturalmente construídos para
adequar o corpo de bebês

Nana Queiroz
2 de maio de 2016 (Atualizado em 17 de janeiro
de 2019)

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Anne Fausto-Sterling argumenta que também existe
muito de construção social na atribuição do sexo
biológico, assim como há no gênero. Foto: Divulgação

O pensamento da bióloga
americana Anne Fausto-Sterlling, autora
do polêmico e celebrado artigo “Os cinco
sexos”, está na vanguarda absoluta tanto
da medicina quanto das ciências sociais.
Mas como seria possível uma coisa dessas?
É que Anne sugere que antiga divisão
absoluta que fazíamos de gênero (uma
construção social sobre o que significa ser
mulher ou homem) e sexo biológico
(características biológicas do corpo) está
ultrapassada. E que as ciências biológicas e
sociais têm que começar a trabalhar juntas
para pensar o conceito sexo/gênero, como
duas coisas inseparáveis, faces da mesma
moeda.
Essa ideia é principalmente inspirada na
análise que Anne faz das pessoas intersexo
(antigamente chamadas hermafroditas) e
como os médicos têm pressa em adequar
seus corpos cirurgicamente, ainda bebês,
às identidades de gênero consideradas
aceitáveis em uma determinada cultura,
mesmo que essas pessoas sejam
perfeitamente saudáveis como a natureza
os fez. Não seria esse um indício de que até
a biologia se curva a um conceito
artificialmente criado de que só existem
dois sexos na natureza, um masculino e um
feminino?

LEIA TAMBÉM: CIS, TRANS,


TRAVESTI? ENTENDA OS TERMOS
Conheça mais sobre o ponto de vista de
Anne no bate-papo que ela teve com
AzMina.

Em seus livros você argumenta que


também existe muito de construção social
na atribuição do sexo biológico, assim
como há no gênero. Devíamos, então, em
sua opinião, abolir de vez a divisão e dizer
que o que existe é apenas o sexo e o sexo já
imbute conceitos socialmente
construídos?

Essa é uma pergunta difícil. Eu tendo a


mesclar os conceitos, mas não da maneira
que você sugeriu. Em meu livro mais
recente (Sex/Gender: Biology in a Social
World – Sexo/Gênero: Biologia em um
Mundo Social), eu combinei os termos para
criar o conceito sexo/gênero. Cada um
deles é um dos lados de uma mesma
moeda. Não conseguiremos separar uma
coisa da outra, elas estão interligadas. Em
qual devemos focar nossas atenções?
Depende do contexto.

Deveríamos deixar de falar de gênero e de


sexo para que eles deixem de importar na
hora de criar desigualdades?

Não. Criei o conceito dos cincos sexos (para


se referir aos genótipos XX, XY, XXY, XXX e
XYY) de maneira irônica, para que nós
paremos de pensar de maneira binária
(como se só existissem homens e
mulheres), mas não acho que devamos
deixar de buscar palavras para falar de
sexos. Não podemos fazer os gêneros
desaparecerem simplesmente fingindo que
eles não existem.

Então, como a linguagem pode se adaptar


para ser mais inclusiva?

Não há uma solução única, é preciso


considerar cada contexto individualmente.
Acredito que se estivermos falando sobre
diferenças de salários, por exemplo,
podemos até tentar igualar o discurso, mas
precisaremos de categorias para medir a
desigualdade. O mesmo problema se passa
com a raça. Vemos que existe injustiça
racial, mas para medir o tamanho dessa
desigualdade, temos falar dela, encontrar
onde está concentrada, mesmo que isso
signifique usar categorias que não existem,
na realidade, na biologia, e sejam apenas
construções sociais.

A linguagem que usamos tem que ser


específica ao conteúdo de que estamos
falando. Em alguns casos fará sentido falar
de gênero (ou raça), em outros, esses
conceitos devem ser evitados.

Como podemos falar de pessoas intersexo


sem cair na “abordagem do bizarro” que
se dá ao tema, com respeito e aceitação?
Temos que falar da frequência em que isso
ocorre e relacionar a outras coisas que as
pessoas vêem, já que andamos com nossas
genitais cobertas.

Todo mundo lembra de já ter


visto um albino, por
exemplo, e albinos são
menos comuns do que
intersexuais. A gente não
nota porque essas coisas
ficam escondidas, mas estão
aí.

Se adaptarmos nossa linguagem para


incluir mais e mais sexos e mais e mais
identidades de gênero, você acredita que,
um dia, as categorias serão tantas que,
simplesmente, deixarão de fazer sentido?

Pode caminhar para este lado, mas acho


que a questão reprodutiva sempre será
importante na definição do vocabulário e
da discussão.
Em sua opinião, as descobertas recentes
da medicina vão nos ajudar a sermos mais
tolerantes com a maneira como as pessoas
expressam seu gênero socialmente?

Não sei, mas tendo a acreditar no oposto:


quanto mais celebrarmos, culturalmente, a
diversidade sexual humana, mais o mundo
médico e biológico vai reconhecer essas
diferenças e tratar delas.

Argumentos biológicos têm


sido usados como um
artifício da intolerância.
Movimentos sociais, por sua
vez, tem sido grandes
propagadores da aceitação.

É possível ser uma bióloga e uma


feminista ao mesmo tempo?
Eu sou. (risos)

Muitas pessoas, talvez a maioria delas,


nunca sequer ouviram falar de pessoas
intersexo, mesmo que isso seja
perfeitamente natural. E nem sequer
demos nomes a esses diversos tipos de
identidades sexuais contidos dentro desse
conceito. Não deveríamos fazer isso?

Na literatura médica, esse debate já vem se


desenvolvendo há um século e meio mais
ou menos! Há uma história complexa sobre
como decidimos quem pertence a cada
categoria, quem é um verdadeiro
hermafrodita, e etc. Não é como se
tivéssemos de repente, do nada, decidido
falar sobre isso. A questão é como devemos
usar essas categorias hoje.

Isso é parte de uma disputa política


acirrada entre usar o termo intersexual ou
nomes de síndromes específicas que foram
aceitas no linguajar médico até hoje, os
chamados “distúrbios do desenvolvimento
sexual”. Eu uso o nome intersexo, como
muitas pessoas a quem a ideia de
distúrbios desagrada muito. As pessoas
intersexo que defendem essa posição
querem ser capazes de se posicionar em
uma categoria que garanta direitos
políticos específicos (como registrar-se
sem ter que se enquadrar entre homem ou
mulher ao nascer).
Por outro lado, os conceitos de distúrbios
servem para pessoas que querem receber
determinados tratamentos médicos e, para
isso, é necessário saber qual o tipo
específico de sexo desta pessoa.
Intersexual é uma categoria ampla que
inclui diversos tipos de pessoas, as
síndromes não.

Não deveríamos, de fato, deixar de falar


em “distúrbios” para nos referir a pessoas
perfeitamente saudáveis que apenas têm
constituições físicas pouco comuns?

Não acho que devemos


resumir a “isso é um
distúrbio”, é apenas uma
variação biológica.

No ponto de vista de quem considera que


existem tipos “normais” de corpos a que
aspirar, isso será uma desordem. Mas essa
visão é problemática porque nos faz
questionar uma série de outras
características sexuais, por exemplo, existe
um tamanho “normal” de seios e outros
tamanhos não-naturais? Quem decide
se pessoas que não têm nenhum seio ou
seios enormes sofrem de alguma
síndrome? Há muitas variáveis para as
características sexuais dos indivíduos. E a
ideia de distúrbio não nos ajuda muito, em
minha opinião, a não ser na hora de pensar
tratamentos médicos, para quem escolher
fazê-los. Mas aí trata-se de uma escolha
tática.

O termo hermafrodita é ofensivo?

O Movimento Intersexo acha que sim,


porque é um termo antiquado e
estereotípico, e o rejeitou. E eu acredito que
temos que respeitar a posição de
movimentos políticos, o que eles devem ser
chamados é escolha deles.

Algumas mulheres transexuais no Brasil


têm optado por não fazer a cirurgia genital
de mudança de sexo pois não querem
perder a sensibilidade e a capacidade de
atingir um orgasmo. No caso das pessoas
intersexo, se passa o mesmo? Existe
algum tipo de regra médica para quando
as pessoas devem ou não fazer cirurgias de
“adequação”?
Toda vez que você faz uma cirurgia genital,
há algum tipo de perda de sensação. Mas,
em alguns casos, as genitálias são tão
atrofiadas que tornam impossível urinar
sem intoxicar o corpo. Nesses casos é
preciso intervenção médica para que a
pessoa consiga sobreviver. Mas a maioria
das pessoas não se encaixam nesses casos.
Para mim e para a maioria dos membros do
movimento intersexo, não devemos fazer
cirurgias em crianças pequenas a não ser
que seja medicamente necessário.

A questão de como seu corpo


deveria ser para expressar
como você se sente por
dentro pode ser adiada até a
adolescência ou a vida
adulta, quando a pessoa
pode decidir por si mesma.

Por diversas razões: 1) você ainda não sabe


qual o gênero desta criança será e pode
cometer um grave erro; 2) essa devia ser
uma escolha do indivíduo.

Sobre a certidão de nascimento, em sua


opinião, a solução encontrada pela
Alemanha, de incluir um terceiro sexo
para registro, é positiva?

Essa é uma solução possível. Mas é preciso


que a criança possa modificá-la se sentir a
necessidade mais adiante. Os pais, com a
ajuda de especialistas, têm que aceitar que
seu filho ou filha não teve o sexo
determinado ao nascer e tomar decisões
condizentes de como criá-la, ouvindo à
criança o tempo todo. Não estou dizendo
que é uma decisão fácil, mas outros pais
enfrentam situações similares com
crianças que nasceram com outras
características incomuns.

Todo o argumento conservador contra


gays gira em torno de ser um
comportamento “não-natural”. Já no
caso das pessoas intersexo, trata-se de
uma condição inegavelmente natural, já
que a natureza os fez assim e a maioria
deles é saudável. Porque, historicamente,
não criamos categorias socialmente
aceitas para essas pessoas como criamos
para homens e mulheres?

Eu nem saberia responder a isso. Mas


alguns países têm categorias históricas,
sim, curiosamente, a maioria deles fica na
Ásia. Há também comunidades indígenas
nos Estados Unidos que também têm um
terceiro sexo. Mas a nossa tradição
europeia-ocidental, não.

No ano passado, a maior Parada LGBT do


Brasil adotou o lema “Eu nasci assim, eu
cresci assim, vou ser sempre assim:
respeitem-me!”. Há a sensação de que o
argumento do “nasci assim” é usado para
naturalizar orientações sexuais, fazendo
que pessoas que usam argumentos
biológicos as aceitem, já que é mais fácil
aceitar uma condição natural do que uma
escolha. Como se “nascer assim” fosse
mais digno do que “escolher ser feliz
assim”. Mas isso não é negativo no longo
prazo? A escolha sexual não deveria ser
tão respeitada quanto as inclinações
naturais que temos?

O debate não pode se estruturar em torno


da escolha, há uma diferença entre escolha
e orientação sexual. Quando falamos de
escolha, nos remete a ideia de entrarmos
em um restaurante e decidirmos se
queremos salada ou batata frita com nosso
hambúrguer. A sexualidade humana não é
assim. As pessoas não entendem o
desenvolvimento de sua sexualidade dessa
maneira. Não é como se acordassem um dia
e dissessem “Ah! Hoje decidi que serei
heterossexual!”.

Entendemos que a sexualidade, na maioria


das pessoas, é bem estável, ela não sofre
alterações ao longo da vida. Mudá-la é
muito improvável e aí já entramos na
polêmica discussão em torno da “cura
gay”.

Não se trata apenas de


escolha, mas de uma
formação extremamente
complexa e estável de nossa
psique.

E não estou falando apenas de gays, mas


todos os espectros da sexualidade humana,
inclusive a heterossexual, eles também não
optam por isso.
Mas a fluidez também faz parte da
sexualidade humana, não? Existem muitas
pessoas que se consideraram
heterossexuais sua vida toda e, de repente,
amam e desejam uma pessoa do mesmo
sexo.

Isso é verdade. Há fluidez durante o ciclo


de vida das pessoas, mas algumas são mais
fluidas que outras. Isso é algo que ainda
precisamos entender, já percebemos isso
no mundo, mas ainda não entendemos
como se dá. De onde isso vem? Não
sabemos. Só sabemos que a palavra
“escolha” não serve à grandiosidade deste
debate intelectual.

Que direitos ainda precisamos oferecer às


pessoas intersexo para que vivam uma
vida plena?

Algo no estilo do terceiro sexo deveria estar


disponível em todos os documentos
existentes, para que ninguém tenha que se
forçar a ser homem ou mulher. A educação
sexual também é importante. Devíamos
falar disso logo na infância, na primeira
vez em que tratamos o tema sexo, mas com
um nível de maturidade apropriado para
cada faixa etária. Não precisamos falar de
camisinha com crianças de cinco anos, mas
podemos explicar como homens, mulheres
e pessoas intersexo são diferentes umas
das outras.

“A natureza tem muita


diversidade e temos que
reconhecer isso”

Anne Fausto-Sterling é uma das mais


destacadas biólogas e especialistas em gênero
do mundo, professora emérita da
Universidade Brown e pesquisadora
da Associação Americana para o Avanço
Científico. Ela é autora de cinco livros no
tema, publicados em diversos idiomas.

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