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Somos todos sujeitos falantes, e por isso mesmo, temos de nos ver com o
fenômeno da “consciência de si”, que engloba o nome próprio e nossa memória
através dos diferentes tempos da vida e as mudanças que foram ocorrendo.
Quem sou eu? Aquela foto de criança ou quando eu era jovem e rebelde ou agora
na velhice? O que une e se mantém em todas essas transformações? Não temos
resposta para isso...
Por isso é sempre difícil ouvir de fora alguma definição de quem somos. Sempre
nos parece injuriosa, pois nunca diz dos tantos outros eus dentro de nós. Parece
sempre uma redução e um veredito, principalmente na adolescência em que a
busca por si mesmo é intensa e fundamental.
Quando adultos, cada um está convidado a coincidir o mais possível com sua
identidade social, que tenha não só a resiliência necessária para enfrentar as
dificuldades, mas também que leve adiante o que se poderia chamar do destino
de cada um. A psicanálise faz o inverso: de início, ela convida aquele que
consulta a colocar em questão seu sentimento de identidade, se isso já não foi
feito pelo acaso das circunstâncias.
A identidade promovida por uma análise é diferente daquela da nossa carteira
como cidadãos. É aquela que leva em conta o Outro mas não no sentido de tomar
emprestado seus chavões e clichês. Essas são chamadas identidades de
alienação, não de separação. (Colette Soler)
Lacan passou anos a explicar que aquele que diz “eu” (je) não é Um; que é
preciso aprender que eu é “ao menos dois”, isto é, ele e seu inconsciente. Não há
identidade consigo mesmo. O laço civilizatório exige adaptação, as subjetividades
se ajustam às exigências do laço social, que ordena todos os hábitos do corpo
(alimentação, posturas relacionais, vestimentas, moda, gestão da violência e,
mesmo, do sexo) e também todo o pensamento, com seus preconceitos e valores
históricos. Mas isso não torna todas as pessoas iguais, apenas recalca (esconde)
as diferenças.
A forma como os discursos sociais nos apresentam são uma espécie de espelho
identitário do qual não se pode sair. Uma constelação de significantes, os do
sexo, da idade (o corpo), da origem (a língua), da família (a história, portanto), da
religião, da instrução e da profissão (a competência) etc. Esses índices
determinam a identidade social, aquela que é atribuída. Esta é a identidade social
de alienação. O que provoca no indivíduo anseios contraditórios: todos queremos
ter uma identidade social, mas não uma qualquer e sim uma valorizada. Então por
um lado queremos ser iguais a todo mundo e por outro queremos ser distintos,
valorizados, destacados como únicos.
Sabemos que na história da humanidade não foi sempre assim. O individualismo
moderno nem sempre existiu. O que se deduz das lógicas dos discursos que
foram mudando a partir da modernidade? O discurso científico foi um dos
principais responsáveis pela exclusão do singular, na criação de universalismos.
Foi uma resposta a esta impossibilidade da ciência de ouvir a singularidade que a
psicanálise surgiu.
Por outro lado, o capitalismo tornou real essa exclusão subjetiva , tornando-a
cotidiana em nossas vidas, como uma realidade dada. O valor dinheiro
transformou-se no mais alto valor de um indivíduo, como um valor íntimo. Isso
trouxe aos mais pobres uma pobreza dupla, pois o indivíduo pobre acaba não
valendo como indivíduo. Além disso, a lógica capiltalista, junto com a linguagem
binária da internet, transformou o tempo e o espaço no mundo. As relações
entre as pessoas ficaram binárias e imediatas, o que não permite perder tempo
nos processos de sexuação. É preciso ter um corpo e uma vida sexual como se
compra uma mercadoria, de usufruto imediato. Esta aparente facilitação
descartável nos deixa de fora como sujeitos.
Sendo assim, o lugar terceiro, aquele que possibilita a dialética, o diálogo e tudo
oque sustenta um processo de pensamento, acaba mal-visto. Ao invés de nos
aproximar, sem este terceiro espaço, nossas diferenças ficam irredutíveis. Não é
possível construir laço social, apenas avizinhar-se. E para não ser invadido, é
preciso muros. O resultado é a escalada de ódios, intolerâncias religiosas e
racismos. É aí que a segregação é convocada, ela se torna o único modo de
tratamento das diferenças entre as identidades sociais incompatíveis, mas
chamadas a conviver no mesmo território e implicadas na mesma economia.
É a perda do lugar de singularidade que fabrica segregações, cria fascismos. Mas
combater a segregação com vias moralizantes e cancelamentos, como diz o
colega de mesa Richard, é usar da mesma lógica binária que fabrica a
segregação.
Muito de nossos sintomais sociais contemporâneos tem como origem a repetição
da lógica totalitária da qual vivemos no passado e queremos fugir. Convocar ao
diálogo mesas multidisciplinares como esta e pensar no futuro de nossos jovens
é, no momento em que vivemos, é uma sustentação democrática.