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Questões identitárias e juventudes

Quero, antes de mais nada, agradecer imensamente o convite do Centro Ruth


Cardoso para poder dialogar com sociólogos e educadores, agradecer mais
diretamente à Simone que me dirigiu o convite e indiretamente à Cassia Navas
que trabalha com corpo e criação no viés da dança e à minha querida aluna e
colega Cristina Santaella que propôs o meu nome pra esta mesa e nunca desiste
de me fazer provocações deste tipo às quais eu nunca desisto de aceitar.

É extremamente importante este diálogo sobre identidades neste cruzamento de


pesquisas e campos teóricos, para que possamos não só compreender melhor
as questões subjetivas de nosso tempo, mas acima de tudo para tentarmos dar
corpo e sustentação aos lugares de diálogo e busca de consensos, como este
aqui proposto.
Sabemos todos nós que o contexto social e histórico faz parte da constituição
subjetiva de cada época, através de seus discursos dominantes. São inclusive
determinantes para os desdobramentos investigativos que uma criança produz a
partir das modificações do seu corpo pela puberdade, no sentido do que é
proibido ou aprovado ou o que é entendido como feminino ou masculino. Os
discursos de cada época não só modificam os hábitos e comportamentos de
homens e mulheres mas afetam o Real do corpo, influindo na idade que a
menarca inicia, que a gravidez acontece e na medida em que a ciência avança e
possibilita modificações como mudança de sexo, tratamentos hormonais, etc
Então, embora as questões infantis sobre a sexualidade sigam padrões
estruturais no psiquismo, o modo como elas vão poder ser respondidas
subjetivamente vai depender do contexto e dos discursos predominantes não só
na família, mas na escola, nos laços sociais.
No início do século, certas manifestações infantis que expressassem desejos de
ser o sexo oposto, iriam ser tomadas como infantilidade, coisa de criança, que
certamente iria encontrar o rumo certo quando crescer. Isto é, apostava-se no
TEMPO que um sujeito necessita para desdobrar os traços que sustentam suas
identificações. Nos dias de hoje, a primeira manifestação da criança em relação à
sua posição sexuada é tomada como um SABER, não como um ensaio. Isto traz
consequências na interferência deste tempo necessário na construção de uma
“identidade”.
A criança se torna sujeito a partir do desejo do Outro. Isto significa: a partir do
desejo dos pais e do que circula nos discursos inconscientes do laço social do
seu tempo. Este tempo de alienação é o tempo da construção do fantasma, isto é,
da cena psiquíca na qual a criança estará apoiada e que determinará suas
identificações futuras, fazendo desta criança um sujeito de desejo. Num segundo
tempo, na puberdade, as transformações do seu corpo virão colocar em cheque
suas fantasias e suas teorias infantis, o que trará para si e para o ambiente
familiar uma crise de valores e uma suspensão das referências anteriores. Este é
um segundo tempo da operação de sexuação e neste é preciso apresentar-se ao
mundo de uma forma nomeada que, baseada na binaridade da anatomia,
classificou-se como homem ou mulher.
Mas Freud criou o conceito de pulsão justamente para poder tentar explicar a
diferença que o ser humano tem dos animais, do natural ou do instintivo. No caso
da natureza e dos animais, há como um saber prévio que determina os caminhos
do prazer e do desprazer em cada espécie. No caso do ser humano, suas
experiências vividas vão produzir este caminho, por isso dizemos que o ser
humano nasce prematuro. É somente através da sua inserção cada vez maior na
linguagem, através do desejo de seus cuidadores e semelhantes, que o ser
humano vai constituir alguns caminhos de escolhas para si.
Sobre sermos homens ou mulheres, somos todos constituídos de traços
femininos e masculinos e ainda tentamos dar conta de uma fantasia inconsciente,
uma cena que circunscreve um obscuro objeto de desejo que nos habita. Sendo
assim, nem a escolha de objeto nem as identificações não se alinham ou
reduzem a noção binária como: homem ou mulher. Freud dizia que todos nós
somos perversos-polimorfos, portanto nossa matéria é a mesma diminuindo as
barreiras entre o normal e o patológico.
Quando se diz que há uma “escolha” do gênero se toma o sujeito como não-
dividido, isto é, um eu puramente racional sem considerar o sujeito do
inconsciente. Lacan usa a expressão “escolha forçada” para nos dizer que há
algo do desejo inconsciente que me leva a ser quem sou, mesmo que parte de
mim não queira. O desejo é heterônimo, isto é, se apresenta como estranho, mas
faz parte de nosso eu dividido. Poder se dar conta de seus desejos inconscientes
e tornar-nos responsáveis por eles é a direção de toda análise.
O corpo, no entender da psicanálise, é uma fisiologia completada por uma
imagem, que o faz funcionar. É o corpo pulsional, diferente do corpo do animal
onde não passa a questão: ser ou ter um corpo, como no ser humano. Este, o
humano, passa a incluir na sua fisiologia um elemento aparentemente
estrangeiro, a imagem de si que vem do Outro, que é incorporado à fisiologia
pulsional. Então nosso corpo é tanto próprio quanto do Outro, isto é, ele depende
não só do tempo e do espaço mas do olhar e da voz do outro que possam ser seu
espelho , seu suporte de identificações no palco deste mundo.
Neste sentido, há um processo natural nesta escolha forçada que só vai se
definindo com o tempo. Não há como os pais fazerem o trabalho pela criança
nem escolhendo por ela, nem de se ausentando para proporcionar a ela total
liberdade sobre sua escolha. Neste sentido viralizou há alguns anos atrás pela
internet uma foto de mulher grávida em cuja barriga estava escrito com batom:
“Vai se chamar Ariel e decidir se vai ser menino, menina, sereia ou sabão em pó.”
Ironia feita a uma posição de radicalidade com relação à não-interferência dos
pais na posição sexuada de uma criança.
A posição dos pais não pode estar ausente para que aconteça a inscrição da
criança no imaginário familiar, inscrição desejante que fará dela um sujeito,
inclusive para que tenha possibilidades de interrogar o mundo dos adultos através
de seus ensaios teóricos. É o imaginário do adulto que vai poder nomear a
criança e transmitir a ela sonhos e ideais. Mesmo que seja uma posição libertária
e bem-intencionada, vai precisar ser contestada quando a criança fizer a
transição pela adolescência para poder encontrar seu lugar desejante no mundo.
Este caminho de verificar seu desejo não vai poder ser poupado. Portanto, é
importante que os pais sejam simplesmente o que são… politicamente corretos
ou não. Aquilo que comunicamos aos filhos não está sob o domínio da vontade ou
da comunicação. A transmissão se dá muito mais no plano inconsciente, portanto,
os filhos não se enganam com palavras aparentemente corretas, mas vazias de
exemplos. Além disso, é através dos desejos dos pais que as crianças podem se
constituir. Retirar-se como desejo é esvaziá-la da sua condição subjetiva. A
condição de alienação ao desejo dos pais é necessária à criança. Separar-se
deste desejo será seu percurso em direção à vida adulta, mas sua alienação à
linguagem continuará para sempre fazendo limite nesta “liberdade de escolha”.
A infancia é o tempo de maior abertura e de não fixação dos modos e lugares de
prazer. Aqui falamos das possibilidades perverso-polimorfas de deslocamentos e
experimentações que ainda não se definiram. Quando há uma leitura por parte
dos adultos das experimentações da infância ou puberdade como da ordem de
um ato (um achado, uma decisão) se interrompe a possibilidade deste
deslizamento e desta movimentação, tão necessária inclusive nos adultos, mas
principalmente na infância. Este tempo de experimentação e de formulação de
hipóteses não pode ser economizado.
O corpo anatômico de cada um é uma parte do que compõe cada sujeito, mas
não necessáriamente o determina na sexualidade. É através do corpo que
estamos no mundo e através dele que fazemos nossa imagem, através dele que
fazemos a montagem da nossa “identidade”. Por isso a psicanálise embora
reconheça a necessidade e a importância da luta de direitos de cada um dos
grupos que imaginariamente formariam uma identidade, só pode escutar cada um
na sua singularidade, no sentido do que cada ser de linguagem goza.
Dizer que o real do corpo não define a sexualidade não é a mesma coisa que
dizer que o real do corpo não conta. O corpo de uma mulher é diferente do corpo
de um homem. Quando se pensa em dar liberdade a uma criança na sua escolha
apresentando os dois gêneros como iguais, isto é, uma não diferença entre casar
com um menino ou com uma menina , se está ignorando uma realidade que faz
parte crucial da investigação das crianças: a concepção. Os caminhos da
sexualidade não se trilham em cima de uma recusa da real. Este faz parte da
realidade, assim como os discursos moralistas e preconceituosos, que sempre
existirão por mais lutas que se possa ganhar sobre os direitos, isto é, há algo
importante a enfrentar em cada invenção que fazemos na nossa vida, o que faz
parte do caminho de sustentação de nossos desejos. Lidar com as diferenças é
lidar com a alteridade, pois todos somos singulares. Reconhecer as diferenças
não é entrar em juízos de valores do qual é melhor ou pior. A injustiça vem do
julgamento do melhor ou pior, não da convivência com a diferença. Por isso
reconhecer alguém como preto ou branco, gay ou hetero ou seja lá que nome ou
imagem tenha, não se trata necessáriamente de um julgamento, mas sim do
reconhecimento de uma diferença.

Sobre identidade: É importante considerar que se os analistas não têm simpatia


pelo termo “identidade” é porque a análise deve desembocar sobre a “não-
identidade”. A identidade é de início uma questão de controle social, em outras
palavras: “seus documentos”? Documentos que lhes asseguram a identidade de
cidadão e, na falta, sabe-se o quanto o “sem documentos” é um suspeito por
definição. Isto é, a nível do discurso social civilizatório, os traços que nos
identificam são aqueles que temos em comum com o grupo e o que comprova
nosso pertencimento a ele. Mas aqueles que nos diferenciam são os que dizem
de nossa singularidade. Se o que a psicanálise chamou de Eu é o conjunto das
imagens, imagem do corpo inclusive, e de significantes que identificam o
indivíduo social, o que se concebe como sujeito é a parte do ser que não é
identificada, não identificada por essas imagens e esses significantes. É o sujeito
que não-se-sabe.
Se uma análise desemboca numa não-identidade é porque interessa acentuar o
que há em nós como criadores de nós mesmos. Criação a partir de nosso próprio
sintoma, isto é, o que se poderia dizer, um pouco além de uma “escolha forçada”.

Somos todos sujeitos falantes, e por isso mesmo, temos de nos ver com o
fenômeno da “consciência de si”, que engloba o nome próprio e nossa memória
através dos diferentes tempos da vida e as mudanças que foram ocorrendo.
Quem sou eu? Aquela foto de criança ou quando eu era jovem e rebelde ou agora
na velhice? O que une e se mantém em todas essas transformações? Não temos
resposta para isso...
Por isso é sempre difícil ouvir de fora alguma definição de quem somos. Sempre
nos parece injuriosa, pois nunca diz dos tantos outros eus dentro de nós. Parece
sempre uma redução e um veredito, principalmente na adolescência em que a
busca por si mesmo é intensa e fundamental.
Quando adultos, cada um está convidado a coincidir o mais possível com sua
identidade social, que tenha não só a resiliência necessária para enfrentar as
dificuldades, mas também que leve adiante o que se poderia chamar do destino
de cada um. A psicanálise faz o inverso: de início, ela convida aquele que
consulta a colocar em questão seu sentimento de identidade, se isso já não foi
feito pelo acaso das circunstâncias.
A identidade promovida por uma análise é diferente daquela da nossa carteira
como cidadãos. É aquela que leva em conta o Outro mas não no sentido de tomar
emprestado seus chavões e clichês. Essas são chamadas identidades de
alienação, não de separação. (Colette Soler)
Lacan passou anos a explicar que aquele que diz “eu” (je) não é Um; que é
preciso aprender que eu é “ao menos dois”, isto é, ele e seu inconsciente. Não há
identidade consigo mesmo. O laço civilizatório exige adaptação, as subjetividades
se ajustam às exigências do laço social, que ordena todos os hábitos do corpo
(alimentação, posturas relacionais, vestimentas, moda, gestão da violência e,
mesmo, do sexo) e também todo o pensamento, com seus preconceitos e valores
históricos. Mas isso não torna todas as pessoas iguais, apenas recalca (esconde)
as diferenças.
A forma como os discursos sociais nos apresentam são uma espécie de espelho
identitário do qual não se pode sair. Uma constelação de significantes, os do
sexo, da idade (o corpo), da origem (a língua), da família (a história, portanto), da
religião, da instrução e da profissão (a competência) etc. Esses índices
determinam a identidade social, aquela que é atribuída. Esta é a identidade social
de alienação. O que provoca no indivíduo anseios contraditórios: todos queremos
ter uma identidade social, mas não uma qualquer e sim uma valorizada. Então por
um lado queremos ser iguais a todo mundo e por outro queremos ser distintos,
valorizados, destacados como únicos.
Sabemos que na história da humanidade não foi sempre assim. O individualismo
moderno nem sempre existiu. O que se deduz das lógicas dos discursos que
foram mudando a partir da modernidade? O discurso científico foi um dos
principais responsáveis pela exclusão do singular, na criação de universalismos.
Foi uma resposta a esta impossibilidade da ciência de ouvir a singularidade que a
psicanálise surgiu.
Por outro lado, o capitalismo tornou real essa exclusão subjetiva , tornando-a
cotidiana em nossas vidas, como uma realidade dada. O valor dinheiro
transformou-se no mais alto valor de um indivíduo, como um valor íntimo. Isso
trouxe aos mais pobres uma pobreza dupla, pois o indivíduo pobre acaba não
valendo como indivíduo. Além disso, a lógica capiltalista, junto com a linguagem
binária da internet, transformou o tempo e o espaço no mundo. As relações
entre as pessoas ficaram binárias e imediatas, o que não permite perder tempo
nos processos de sexuação. É preciso ter um corpo e uma vida sexual como se
compra uma mercadoria, de usufruto imediato. Esta aparente facilitação
descartável nos deixa de fora como sujeitos.
Sendo assim, o lugar terceiro, aquele que possibilita a dialética, o diálogo e tudo
oque sustenta um processo de pensamento, acaba mal-visto. Ao invés de nos
aproximar, sem este terceiro espaço, nossas diferenças ficam irredutíveis. Não é
possível construir laço social, apenas avizinhar-se. E para não ser invadido, é
preciso muros. O resultado é a escalada de ódios, intolerâncias religiosas e
racismos. É aí que a segregação é convocada, ela se torna o único modo de
tratamento das diferenças entre as identidades sociais incompatíveis, mas
chamadas a conviver no mesmo território e implicadas na mesma economia.
É a perda do lugar de singularidade que fabrica segregações, cria fascismos. Mas
combater a segregação com vias moralizantes e cancelamentos, como diz o
colega de mesa Richard, é usar da mesma lógica binária que fabrica a
segregação.
Muito de nossos sintomais sociais contemporâneos tem como origem a repetição
da lógica totalitária da qual vivemos no passado e queremos fugir. Convocar ao
diálogo mesas multidisciplinares como esta e pensar no futuro de nossos jovens
é, no momento em que vivemos, é uma sustentação democrática.

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