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Lacan — a Antifilosofia e o Real

como Ato
Alain Badiou*
Tradução: Analucia Teixeira Ribeiro

Vou falar da relação entre psicanálise e filosofia. A partir dos anos 70, Lacan
nomeou esta relação antifilosofia. Chamaremos de antifilosofia qualquer dispositivo
de pensamento que oponha a singularidade de um ato à categoria filosófica de
verdade. Podemos considerar que houve três grandes antifilósofos contemporâneos:
Nietzsche, Wittgenstein e Lacan.
Numa antifilosofia, penso que é preciso distinguir a matéria e o ato. A matéria é
a experiência de referência sobre a qual o antifilósofo trabalha, e o ato é o que
concentra o pensamento antifilosófico.
Para Nietzsche, por exemplo, a matéria é artística: o poema, a música, a tragédia.
Mas o ato, pode-se dizer, é arquipolítico, o que significa, como dizia Nietzsche,
quebrar em duas partes a história do mundo.
Para Wittgenstein, a matéria é lógico-matemática, mas o ato é arquiestético: é o
ato místico, onde o bem e o belo estão confundidos.
Para Lacan, a matéria decisiva é a experiência do desejo e do amor. Mas, em
minha opinião, o ato é arquicientífico. Ele está integralmente sob o ideal da trans­
missão e seu signo é o materna.
Na antifilosofia há uma subjetividade singular, que é uma certeza antecipada de
uma vitória do pensamento. Nietzsche diz em Ecce Homo: “Um dia minha filosofia
vencerá". Wittgenstein diz, no prefácio do Tratactus: “A verdade dos pensamentos
aqui comunicados parece-me definitiva". E Lacan diz, em L’Etourdit: "Não sou eu que
vencerei, é o discurso ao qual eu sirvo".
Gostaria de fazer duas observações sobre esse ponto. A subjetividade filosófica
é diferente; é uma subjetividade no presente. O endereçamento filosófico é, ao
mesmo tempo, no presente e intemporal, ao passo que na antifilosofia a temporali­
dade é adiada e a vitória está por vir. É que na antifilosofia o sujeito fala em seu
próprio nome; ele é o servidor de seu próprio discurso. É por isso que o momento
decisivo é sempre o de um ato. Por exemplo, Nietzsche: "Não é impossível que eu
seja o primeiro filósofo de nossa época e mesmo um pouco mais do que isso, algo
de decisivo e fatal que se ergue entre dois milênios".
A antifilosofia é sempre como um surgimento, porque sua certeza é da ordem
do ato; e de um ato podemos ter certeza, porque ele tem efeitos. O filósofo produz
sentido, o antifilósofo produz efeitos.

* Filósofo, Professor da Universidade de Vincennes, Paris VIII.


4 C O L Ó Q U IO PSICANÁLISE E FILOSOFIA — SUJEITO E L IN G U A G E M

0 que Lacan quer dizer, quando diz que vai vencer? Ele quer dizer que o ato
analítico existe, e que os efeitos desse ato são inevitáveis. É preciso pois examinar o
ato analítico, como chave da antifilosofia. 0 que é preciso compreender bem, o mais
difícil, é que o ato não é exatamente uma questão de verdade. Para Lacan, o ato toca
mais o saber do que a própria verdade. Isto já é uma espécie de contradição com a
filosofia. Poderíamos dizer que toda antifilosofia, subordina a verdade a um vínculo
entre ato e saber.
Já em Nietzsche, a crítica da verdade está ligada à afirmação do ato. Eu cito o
Crepúsculo dos ídolos: "0 mundo-verdade, nós o abolimos. Que mundo ficou? 0 mundo
das aparências. Mas com o mundo-verdade, nós também abolimos o mundo das
aparências. É meio-dia, o momento em que a sombra é mais curta".
Eu diria que toda antifilosofia é um pensamento do meio-dia, e ela considera a
filosofia como um pensamento da meia-noite. Filosofia e antifilosofia são meia- noite
e meio-dia. Há a meia-noite dos poetas, a meia-noite de Hölderlin, de Mallarmé; e há
o meio-dia de Nietzsche ou de Lacan.
0 meio-dia é o nome do acontecimento real, o nome de uma báscula da vida.
Perguntarão se Lacan é um homem do meio-dia ou da meia-noite. É a verdade que é
meio-dita. Há um meio-dito1 da verdade. Creio que, efetivamente, o pensamento de
Lacan também é um pensamento do meio-dia. E por mostrar que a verdade filosófica,
por não ser da ordem do ato, sempre vem tarde demais, à meia-noite.
Como já dizia Hegel, o pássaro de Minerva alça vôo ao cair da noite, e a filosofia
aparece quando tudo já aconteceu. A psicanálise, por sua vez, se propõe a acontecer
quando algo acontece. É por esse motivo que ela seria do meio-dia, e não do a
posteriori da noite. Disso resulta que o próprio Lacan vai pouco a pouco destituir a
verdade, em benefício do par: ato e saber. Podemos ver isso em dois enunciados do
Seminário XX. No dia 15 de maio de 1973, Lacan diz que há relação de ser que não
se pode saber; mas em 20 de março 1973, ele diz que é próprio da análise que possa
ser constituído um saber sobre a verdade. Não a verdade do saber, o que seria
filosófico, mas um saber sobre a verdade, o que é antifilosófico.
0 objetivo da análise é criar um saber sobre a parte não sabida da verdade. E a
chave deste enigma — um saber sobre o que não é sabido na verdade — chama-se
materna. No materna é possível, simultaneamente, que haja relação de ser não sabida
e que haja também um saber sobre a verdade. É o matema que nos permite
compreender este enunciado decisivo de Lacan: “o saber faz a verdade do nosso
discurso". É o saber que faz a verdade; não é a verdade que a si subordina o saber. E
isto só é possível porque há o ato analítico.
Eu diria que o ato é um passe do saber. 0 ato é, ao mesmo tempo, a queda de
um saber suposto ao sujeito e a vinda de um saber que não se pode supor; o que
quer dizer transmissível e, se possível, integralmente transmissível. M as vocês vêem
que um saber integralmente transmissível não é mais cativo da singularidade do
¿ujeito. E assim, o ato se encontra entre dois saberes: um saber suposto ao sujeito e
um saber integralmente transmissível e, por conseguinte, desligado do sujeito.
O ato analítico é antifilosófico, porque sua posição é estar entre dois saberes. A
partir daí_ é preciso compreender, em Lacan, o triângulo: filosofia, psicanálise,
matema. E este triângulo que esclarece o que quer dizer antifilosofia.
LACAN _ A AN TIFILO SO FIA E O REAL C O M O AT O 5

Comecemos por uma frase de VEtourdit: "Por ser a linguagem mais própria do
discurso científico, o materna é a ciência sem consciência, de que faz promessa nosso
bom Rabelais; é aquela diante da qual um filósofo só pode ficar arrolhado". 0 materna,
como ciência sem consciência, como ciência, se posso assim dizer, sem sujeito
filosófico, é o que deixa o filósofo arrolhado. Podemos dizer que a antifilosofia é
sempre o que desarrolha a filosofia, ou ainda, que toda filosofia é uma rolha. Vemos
também que é o materna que deve abrir, desarrolhar a filosofia.
Ainda em UEtourdit, Lacan diz: “É nisso que os maternas, dos quais se formula
um impasse matematízável, ele mesmo a ser definido como o que de real se ensina,
são de natureza a se coordenarem a esta ausência tomada do real". Vocês podem ver
que o materna é o impasse do matematízável, e que o matematízável é o que faz com
que o real se ensine. Assim, o matema é o real do transmissível, visto que é o impasse
do que se ensina. Lacan nos diz que o matema, assim concebido, é a ausência tomada
do real. O que vem a ser esta ausência tomada do real? É, evidentemente, a ausência
da relação sexual e, em particular, a ausência da relação sexual em toda matematiza-
ção, em toda inscrição.
Retomemos esse ponto difícil: há o real, há o que se ensina do real, que Lacan
chama de matematízável, há o matema como impasse do matematízável. Esse
impasse do matematízável é a ausência da relação sexual e, em conseqüência disso,
só há matema por causa da ausência da relação sexual, visto que só há matema por
causa do impasse do matematízável.
É aí que vai aparecer o ato, poderíamos quase dizer, como real do real. É uma
metáfora, mas isso quer dizer que o matema faz real, daquilo que do real se ensina.
Podemos dizer que o matema é o real inscritível do real ensinado. Ou ainda, o matema
é o que inscreve, como impasse, o real, daquilo que se ensina do real. É por isso que
o matema é a chave do ato, porque ele é capaz de inscrever o real do que se pode
dizer do real. É a razão pela qual eu diria que o ato lacaniano, o ato analítico, é
arqui-científico. Científico, porque exige o matematízável ou a formalização; arqui-
científico, porque ele age sobre o real da formalização, porque é o real do que se
ensina, mas ele mesmo não se ensina.
Como podem ver, a questão do ato, exige uma espécie de duplo sentido do real:
o real ensinado ou transmissível e o real desse real ensinado ou transmissível. Para
apreender esse duplo sentido do real, é necessário o matema, que é arqui-científico,
porque não é matematízável, mas o real do matematizável. E é preciso o ato,
precisamente porque existe aí algo que não se ensina e que, por conseguinte, não se
repete. A singularidade do ato é a única garantia do matema. Pode-se então dizer que
a operação anti-filosófica, em Lacan, tem em seu cerne o par: ato / matema. Para que
haja o ato, entre dois saberes, é preciso o matema, mas se posso assim dizer, o
matema como ato. É preciso, para isso, que o desejo do analista seja desejo do
matema; ou ainda, o matema deve vir na posição de objeto causa de desejo. Sob que
condições pode haver desejo do matema? Como condição analítica do ato.
Para que haja o desejo do matema, é preciso se curar do desejo do Um. É preciso
deixar de suspirar pelo Um. Tomar-se analista, na antifilosofia é, antes de tudo, deixar
de suspirar pelo Um. Portanto, a questão da antifilosofia, a questão do ato, a questão
do matema estão todas ligadas à posição de Lacan sobre o Um, o que quer dizer
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também à posição de Lacan em relação à metafísica, porque pode-se chamar de


metafísica a organização intelectual do suspiro pelo Um.
Diríamos que, sobre esse ponto, Lacan é antimetafísico e que, por conseguinte,
ele dialoga com Heidegger. Podemos considerar que Heidegger é também uma
crítica, uma desconstrução da metafísica do Um, que Heidegger chama de ontoteo-
logia. Mas afinal de contas, a ontoteologia é o suspiro pelo Um. Assim, poderíamos
dizer que Lacan e Heidegger nos dizem, ambos, que é preciso parar de suspirar.
A questão, na realidade, é bastante complexa, porque Lacan dá dois sentidos
diferentes à palavra metafísica. Sobre esse ponto eu comentarei uma passagem de
Radiophonie, texto de 1970. Respondendo a uma questão, Lacan se pergunta quais
foram os efeitos da lingüística sobre a teoria do simbólico. Ele diz o seguinte:
"Pensa-se estender este sucesso |o sucesso da lingüística] a toda a rede do simbólico,
não se admitindo sentido a não ser que a rede responda por ele, e pela incidência de
um efeito, não de um conteúdo". Dito de outra maneira, o sentido deve ser pensado
como efeito do simbólico, e não como conteúdo. Lacan continua: “O significado será
ou não pensável cientificamente, conforme se mantenha ou não um campo signifi-
cante que, por seu próprio material, se distinga de qualquer campo físico obtido pela
ciência". Lacan quer dizer que, se passamos da rede simbólica ao campo significante,
a consistência do campo significante torna o significado pensável cientificamente.
Mas, diz Lacan, este campo é distinto do campo físico e, neste sentido, podemos
chamá-lo de metafísico. A tese de Lacan é a seguinte: existe ciência ou científico cuja
condição, isto é, a consistência do campo significante, não é física no sentido da
ciência, e pode assim ser dita metafísica. É o que Lacan vai dizer explicitamente, eu
o cito novamente: "Isto implica uma exclusão metafísica, a ser tomada como fato de
des-ser (désêtre). Nenhuma significação será tida doravante como sendo evidente“. No
fundo, Lacan diz o seguinte: podemos chamar de metafísica o des-ser da significação.
A significação não pode consistir por si mesma, já que é apenas efeito da consistência
do campo significante. E a consistência desse campo não é física, logo ela é metafísica.
É preciso pois, subtrair o ser da significação, e é por isso que há um des-ser (désêtre)
da significação. Podemos então dizer que existe uma condição metafísica do pensá­
vel. Só que, para pensar isto, é preciso uma operação metafísica subtrativa, um fato
de des-ser ou uma exclusão.
Há portanto um primeiro sentido lacaniano da palavra metafísica, indicando uma
metafísica subtrativa, que retira todo ser da significação. Mas existe igualmente um
segundo sentido da metafísica: seria a metafísica, no sentido de Aristóteles, ou seja,
uma ciência do ser? Para Lacan, não pode haver ciência do ser. Ele é muito violento
contra a ontologia, pensa que a ontologia é sempre uma “canalhice". Se a metafísica
pretende ser uma ciência do ser, deve absolutamente ser considerada como imagi­
nária. M as há uma boa metafísica, a metafísica subtrativa, que não é, em absoluto,
uma ciência do ser, mas é a condição do des-ser, para a significação. Resumindo, e
como todo resumo é um pouco falso, poderemos dizer que a má metafísica é a ciência
do ser, e a boa metafísica é a ciência do des-ser.
Agora, como comparar a crítica da má metafísica, com a crítica que faz Heideg­
ger? Será que a má metafísica tem para Lacan o mesmo sentido que a metafísica para
Heidegger? Lembremos alguns traços da definição de metafísica feita por Heidegger.
Um texto muito claro, sobre este assunto, é o que se chama "Projeto para a história
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do ser enquanto metafísica”, que se encontra, em geral, no final do tomo 2 do


Nietzsche de Heidegger. Quero assinalar que este texto, na minha opinião, é muito
interessante para um lacaniano.
Heidegger, neste texto, relaciona claramente a metafísica com a questão do Um.
A metafísica é quando a potência normativa do Um rasura onde domina a aletheya, a
verdade como eclosão, plenitude. Afinal de contas, existe metafísica quando o Um
marca o ser, de tal maneira que a disposição inicial do ser cai no esquecimento.
Podemos dizer que há metafísica, quando o Um, o que Heidegger chama de unidade
unificadora, toma-se a determinação fundamental do ser. A metafísica é o que
Heidegger chamará de "captura do ser pelo Um“.
Como se caracteriza o pensamento do Um em Lacan? É o Um que decide sobre
a má metafísica? O texto fundamental é o Seminário ...Ou pire. Vocês poderão reler
o resumo escrito desse Seminário, que foi publicado. Lacan diz nesse texto: “o que
eu designo por suspirar, é ao Um que isso os leva". Somos levados ao Um, suspiramos
pelo Um . E Lacan dirá: “não suspirar é minha honra”. Vocês podem ver, portanto, que
a questão do Um tem, realmente, como para Heidegger, um aspecto normativo.
"Suspirar ou não suspirar1', eis a questão. E essa questão é fundamental para o analista.
Lacan continua:11Os analistas — quando Lacan fala dos analistas, é sempre para falar
mal deles, e é o caso aqui — não podem se habituar a serem promovidos como
abjeção no lugar definido, porque o Um o ocupa por direito, com a agravação de que
esse lugar é o do semblant.“ O que Lacan diz é que os analistas, ao invés de virem
como abjeção, como dejeto, no lugar ocupado pelo Um, preferem suspirar pelo Um.
É claro que o Um ocupa um lugar que cobre o real e que a estrutura do Um, em relação
ao real, é uma estrutura do semblant.
Isso se assemelha à tese de Heidegger; é apenas uma semelhança formal, mas
ela existe. Para Heidegger, o ser é dominado pelo Um, na história da metafísica. Para
Lacan, o real está coberto pelo Um, que desempenha o papel de semblant. Por
conseguinte, para Lacan e para Heidegger, é preciso deslocar o Um; é preciso que
algo apareça em seu lugar. Para Heidegger, isso seria o próprio ser; para Lacan, deveria
ser o analista. Mas se não deslocarmos o Um, para Heidegger, estaremos na metafísica
e, para Lacan, estaremos no suspiro. Podemos dizer então que, para Lacan a má
metafísica é o suspiro pelo Um, que proíbe ou impede a abjeção do real a descoberto.
Lacan acrescenta: "uma mulher não suspira pelo Um, sendo do outro. O Um parece
dar o semblant de mestria do pensamento masculino. Uma mulher é sempre do outro,
no exato lugar onde os homens suspiram pelo Um°. Isso, entre parênteses, porque a
mulher também deve aprender a desempenhar o papel do Um, para que se possa
suspirar por ela.
A posição antifilosófka, como acontece muitas vezes, tenta ser feminina. Lacan
dirá: "outros suspiram, e esses outros, que suspiram, são os que não sabem ser,
verdadeiramente, do outro“. A honra do pensamento é não suspirar pelo Um. É, pois,
a honra do pensamento, ser uma mulher que não suspire. Podemos então dizer que
uma mulher tem sempre essa honra de não suspirar pelo Um. O que quer dizer que
uma mulher não faz metafísica, visto que a má metafísica, é suspirar pelo Um, ou seja,
fazer pensamento do Um. Lacan vai dizer que a honra antifilosófica do pensamento
consiste em não fazer pensamento do Um. G to Lacan: “Eu não fazia pensamento do
Um mas, a partir do dizer de que há Um (Y a d ' l’Un), eu ia ao termo que seu uso
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demonstra, para disso fazer metafísica". A posição de Lacan é muito interessante. A


metafísica é o pensamento do Um. O que vai fazer a antifilosofta é explicar os efeitos
do há Um (V a d 'l’Un), efeitos de que, em particular, a metafísica dá testemunho.
Portanto, temos esse movimento, característico da antifílosofia, ou seja, que a
antifilosofia deve explicar a filosofia como um efeito, deve reduzir a filosofia a uma
forma particular de efeito. Lacan vai mostrar, a partir da posição do Um, que a
metafísica é apenas um efeito singular dessa posição. Podemos dizer que Lacan
substitui o pensamento do Um pelo pensamento das operações do Um, em particular
da operação metafísica, que é apenas uma das operações possíveis do Um.
A tese de Lacan é a seguinte: se levantarmos a questão do ser do Um, se
quisermos pensar o Um, então estaremos na metafísica, vamos suspirar, vamos fazer
má metafísica. E a honra consiste, justamente, em não fazer metafísica: é a honra
feminina. Se pensarmos o Um como operação e não como ser, isto é, se demonstrar­
mos em que consiste o uso do Um, então não seremos tomados pelo suspiro, não
estaremos sob o poder normativo do Um. Assim, é absolutamente necessário
distinguir dois enunciados: o enunciado "o Um é", metafísico; e o enunciado “há Um"
(V a d’ l'Un), que é o enunciado antifilosófico. E a partir do enunciado "há um" ( / a d’
l’Un), podemos explicar o enunciado "o Um é", como efeito metafísico.
Eu sou filósofo, por isso sem dúvida devo suspirar, mas como li Lacan, tomei
minhas precauções e comecei minha filosofia explicando que nunca se deve dizer "o
Um é", mas sempre "há Um" (Y ad'l'U n ). Por isso, meu suspiro é mais complicado.
Retornemos à comparação com Heidegger. A partir do momento em que a
metafísica para Lacan é um efeito de um enunciado particular, uo Um é", ela nunca
será para ele um destino, ao contrário do que é para Heidegger. Num certo sentido,
sempre houve pessoas para dizer que "há Um" (Ya d’1'Un), e não "o Um é". Por exemplo,
as mulheres, cuja existência é antiga...
O que Lacan vai dizer é que o debate filosofia / antifílosofia começa desde o
princípio, o que significa que não há uma história do ser, o que é a idéia de Heidegger.
Não há uma história do pensamento do Um, há uma cisão originária, porque a história
do pensamento, para Lacan, é ao mesmo tempo a história do ser e a história do
des-ser. Esta conjunção não pode fazer uma história. E, por conseguinte, a relação de
Lacan com a filosofia é mais complexa do que a de Heidegger. Para Heidegger, há
uma história da metafísica. Lacan, por sua vez, quer submeter a filosofia a um teste,
à prova de uma cisão. E essa prova é a do próprio ato analítico. Podemos dizer que
Heidegger comenta um destino, enquanto Lacan propõe uma prova, que está na
forma do ato.
Em Mais Ainda, Seminário XX, Lacan diz: "O ato é quando surge um dizer que não
vai sempre até poder ex-sistir ao dito". O que é um ato? É um dizer, no qual o dito
insiste mais do que existe. O ato é da ordem do dizer, mas o que é dito nesse dizer
não se deixa isolar ou separar. Entre o dizer e o que é dito no dizer, não se pode
separar, e assim o que é dito não faz senão insistir no dizer. E Lacan acrescenta: "aí
reside a prova de que um certo real pode ser atingido". Assim podemos ver que, para
o dizer, é sempre o ato que é uma prova. A noção de prova, na psicanálise em geral,
é inteiramente ligada ao ato. É o ato que faz prova, porque ele é um dizer inseparável
do dito. Aí, um certo real pode ser atingido. Portanto, se quisermos saber se a filosofia
atinge um real, será preciso submetê-la à prova do ato. E Lacan nos diz no mesmo
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texto: “0 que vai acontecer de mais desagradável, este ano, é submeter a esta prova
um certo número de dizeres da tradição filosófica". Aí está a verdadeira natureza da
relação anti-filosófica: submeter o dizer filosófico à prova do ato e ver se o dizer
filosófico, submetido a essa prova, atinge algum real.
Por conseguinte, a relação de Lacan com a filosofia não é uma relação teórica, é
uma relação de prova. Ele utiliza o termo tradição filosófica, e não utiliza a palavra
metafísica, como Heidegger certamente teria feito. Na realidade, para Lacan, há a
tradição filosófica, e na tradição filosófica há a boa metafísica e a má. E a prova
consiste em separar as duas. É por isso que qualquer dizer filosófico pode ser
submetido a essa prova, e que não existe destino único, histórico, da filosofia.
Na verdade, para Lacan, a origem da tradição filosófica é dupla. Há a tese: "o Um
é", que é a tese de Parmênides, como Lacan a entende, e há, por outro lado, a tese:
"há Um" (Y a d 'l’un), que é a tese de Heráclito. Assim, desde o princípio, na própria
filosofia, há o suspiro e há a honra ou, se vocês quiserem, há o homem e a mulher.
Podemos dizer que, para Lacan, a filosofia é bissexual. Talvez para Heidegger ela não
o seja. É preciso fazer a prova dessa duplicidade da filosofia. Vocês sabem, aliás, que
já é esse o caso de Sócrates: ora Lacan vê em Sócrates o nascimento da figura do
mestre, ora a figura do analista. É essa a duplicidade filosófica. É somente através de
provas sucessivas que podemos fazer a separação, e Lacan diz explicitamente que do
lado de Parmênides temos uma tolice, isto é, que o ser pensa, enquanto do lado de
Heráclito temos uma verdade, ou seja, que o ser significa. Podemos então dizer que
a antifilosofia de Lacan, centrada no ato, considera que a filosofia é o laço, ou a trança
de dois componentes heterogêneos. Assim, não é do lado de uma história do ser que
se encontra a tradição filosófica, mas do lado de uma duplicidade entre interpretação
do ser ou operação do des-ser.
0 que há de notável é que, para efetuar essa prova, para submeter a filosofia ao
ato, para distinguir a boa e a má metafísica, para distinguir enfim homem e mulher
na filosofia, para distinguir o suspiro pelo Um e as operações do Um, é preciso ir
procurar do lado do amor, isto é, da relação da filosofia com o amor. Lacan dirá: "0
amor, há muito se fala disto, será que preciso acentuar que o amor está no cerne do
dispositivo filosófico?“ E é porque o amor está no cerne do dispositivo filosófico, que
a psicanálise podè submeter a filosofia a uma prova, pois o amor é a própria matéria
da psicanálise. A antifilosofia lacaniana tem, como matéria, o desejo e o amor, mesmo
que o ato ligado ao matema seja um ato arquicientífico. Assim, a filosofia pode estar
do lado da matéria, para a psicanálise. O dizer filosófico pode ser ouvido pela
psicanálise, porque o amor está no seu cerne.
E com a questão do amor, vão ser possíveis duas provas. A primeira: haverá
sentido em fazer um ou em desejar fazer um? Porque o amor também é uma via de
entrada na questão do Um. A segunda questão: será que se pode amar a verdade?
São estas duas questões que estão no cerne da filosofia, na opinião de Lacan. E sobre
essas duas questões, é verdade que Lacan suspeita da filosofia: suspeita que filosofia
diga que há sentido em fazer um, e que a filosofia seja um amor da verdade.
Concluindo por hoje, digamos algumas palavras sobre a maneira pela qual vai se
apresentar essa interrogação sobre o amor. De que amor se trata? Num primeiro
sentido, a questão do amor é a questão do amor pelo mestre, é o amor de
transferência, é a análise do Banquete de Platão. 0 ponto-chave, na minha opinião,
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que vai nos levar de volta ao problema saber/verdade é quê, para Lacan, pode haver
amor do saber, mas jamais desejo de saber. Este é um ponto essencial de sua
discussão com a filosofia: amor do saber, mas nunca desejo de saber.
Tomem, por exemplo, a introdução à edição alemã dos Escritos. Lacan declara,
não há o menor Wisstrieb, não há nenhuma espécie de pulsão de saber e desejo de
saber. Por conseguinte, a questão do amor vai consistir em saber, ou determinar, se
falamos do amor do saber ou do amor da verdade. E a discussão com a filosofia
situa-se amplamente neste ponto. Digamos que a antifilosofia vai sustentar que pode
haver amor do saber, enquanto a filosofia, segundo Lacan, sustenta que há um amor
da verdade.
Vocês sabem que para Lacan existem três grandes paixões: o amor, o ódio, a
ignorância. A ignorância é uma paixão maior. Por quê? Porque não existe desejo de
saber. As duas teses estão absolutamente ligadas. Como não há desejo de saber, a
ignorância é uma paixão natural. Contra a ignorância, só existe o amor do saber e
não seu desejo. Este amor do saber vai determinar as figuras subjetivas do saber.
Toda e qualquer convocação ao saber implica num amor, inclusive, naturalmente, no
âmbito da análise. Mas devemos sempre lembrar-nos de que, se nos encontramos no
terreno do desejo, e não do amor, então, a paixão absoluta do ser humano é a
ignorância. No fündo, a discussão da filosofia vai se apresentar da seguinte forma:
será que a filosofia é capaz de lutar contra a paixão de ignorar? E Lacan tende a dizer
que não. Por quê? Porque a filosofia pretende o amor da verdade, e o que se deve
opor à ignorância é o amor do saber e não o amor da verdade.
Lacan vai dizer que a grande hipótese filosófica é que deve haver um amor da
verdade que, como um imperativo, é preciso amar a verdade, mas que a filosofia se
engana quanto a esse imperativo. Ela crê que o amor da verdade é o amor de uma
força, quando na realidade é o amor de uma fraqueza. Isso está explicado claramente
no Seminário 17, 0 avesso da psicanálise. Lacan faz a seguinte pergunta: "O que é
amado, no amor da verdade?" E responde: “É o amor dessa fraqueza, cujo véu
levantamos, o amor do que a verdade esconde e que se chama castração. Ele
acrescenta mais adiante: “a verdade, ou seja, a impotência". O amor da verdade é, na
realidade, o amor de uma impotência. Mas, na filosofia, esse amor de uma impotência
está escondido, como se fosse o amor de uma potência. Para o analista, é inútil amar
a verdade, Lacan diz até mesmo que é nocivo, é uma tentação filosófica, o que
significa, afinal de contas, de novo, a tentação do suspirar. Tornar-se psicanalista
significa instalar-se no desamor da verdade, e é por isso que a psicanálise é uma
antifilosofia. Ela deve deixar o terreno do amor da verdade. A ilusão filosófica seria
amar a verdade como potência, quando só se pode amá-la como impotência. O que
pode também ser dito da seguinte forma: a filosofia tenta ignorar a castração, que
está no fundo da verdade como impotência.
E Lacan vai concluir, se pretendermos amar a verdade como potência, se
escondermos que todo amor da verdade é, na realidade, amor de uma fraqueza, então
nos tornaremos impotentes contra a paixão da ignorância. Não podemos combater
a paixão da ignorância com o amor da verdade. Na realidade, para lutar contra a
paixão da ignorância é preciso amar o saber, e amar, na verdade, sua fraqueza: amar
o saber como força e a verdade como fraqueza. Este é o verdadeiro dispositivo contra
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a ignorância. Lacan dirá, portanto, que a filosofia é fraca em relação à paixão da


ignorância. Esse é, talvez, o verdadeiro movimento antifilosófico.
Abro um parêntese: sobre este ponto, também tomei minhas precauções.
Naturalmente, eu estabeleci que a verdade é uma fraqueza, algo de totalmente
precário, algo de literalmente sem força e sem garantia. Mostrei que a consistência
e a força estão do lado da ignorância e assim, espero que minha disposição filosófica
seja forte contra a ignorância. Mas nem por isso renuncio ao amor da verdade, ou
seja, à minha definição original. A disputa vai então se deslocar provavelmente da
questão do amor para uma outra questão subterrânea, que é a questão da relação
com o real.
Finalmente, vimos hoje três coisas. Primeiramente, a relação de Lacan com a
filosofia distingue uma boa e uma má metafísica. Portanto, não é uma relação global,
é uma relação misturada. Em segundo lugar, uma primeira questão é a do Um. A
filosofia será uma variante do suspiro? Sobre este ponto também a resposta de Lacan
é dupla: há na concepção filosófica do Um, na tradição filosófica, os dois aspectos. E
em terceiro lugar, podemos submeter a filosofia à prova do ato, porque o amor está
no seu cerne. Desta vez, a questão é: amor da verdade ou amor do saber. E aí também
a discussão é complexa. 0 que veremos a partir de amanhã é como o real se engaja
nesse debate.
Concluindo, a questão filosofia / antifilosofia se dá sobre o triângulo: saber-ver-
dade-real, com todas as combinações possíveis. Existe saber do real? Existe verdade
do real? Existe um real da verdade? Existe uma verdade do saber? E existe um saber
da verdade? 0 conjunto dessa combinatória nos fornecerá a chave da relação de Lacan
com a filosofia. E vai nos permitir compreender um dos últimos enunciados de Lacan,
que é de aparência muito violenta. Este enunciado é o seguinte: “Eu me insurjo contra
a filosofia". Vamos ver amanhã o fundo dessa insurreição.
Questões

Maríe-Claire Boons— Você nos falou muito a respeito do saber, do amor do saber
que seria subjacente ao dispositivo da cura. M as é justamente o amor do saber que
permite o desdobramento da transferência. Mas é sobre isso que Lacan não deixa de
insistir, é que o desejo do analista não está mais no amor do saber, mas no desejo
de saber. 0 que quer dizer que o analista circunscreveu o próprio horror do saber, e
passou ao desejo do saber, circunscrevendo esse horror. De uma certa maneira, o
psicanalista responde à demanda de amor com o desejo de saber. E se ele não tem
entusiasmo por esse desejo de saber, que é o desejo de saber sobre o que é a
castração, nesse momento não há analista.
A. Badiou— Como saber, verdade e real é o assunto de amanhã, eu vou responder
só a uma parte da pergunta. É preciso se arranjar com isso: há várias declarações de
Lacan, em que ele diz que não há desejo de saber. Ele desenvolve isso muito
claramente. Não se pode ficar na suposição de que isso exista. Entretanto, é também
verdade que isso deve advir no dispositivo singular da análise. Portanto, só existe
uma resposta para isso, é que o desejo de saber é uma construção. Efetivamente, é
preciso combinar a tese “não há desejo de saber”, com a tese "no artifício da
experiência analítica, um tal desejo se constrói". M as só se compreende isso, através
de uma mudança do que quer dizer saber. Este foi meu ponto de partida. 0 ato
12 C O L Ó Q U IO PSICANÁLISE E FILOSOFIA — SUJEITO E L IN G U A G E M

analítico está entre dois saberes e saber não tem, absolutamente, o mesmo sentido
nos dois casos. Entre saber, em “sujeito-suposto-saber" e saber, em “desejo de saber",
no sentido em que falamos, tratando-se nesse caso de um saber transmissível, ou um
materna, há, se posso assim dizer, um deslocamento do próprio saber. É por isso que
eu preferiria dizer, aliás eu disse, “desejo do materna", ao invés de “desejo do saber“.
Eduardo Vidal — Eu queria colocar nesta discussão mais um ponto: o que é da
ignorância, na medida em que, num certo sentido, a ignorância não pode ser
ultrapassada integralmente, na medida em que há um recalque originário na fundação
do sujeito do inconsciente.
A questão do desejo de saber também, para mim, é problemática, mesmo como
questão de final de análise, na medida em que, precisamente, ela poderia comemorar,
honrar uma certa ilusão que ultrapassa o limite do real, o obstáculo do real. Lacan
falava de ignorância douta, em algum momento.
Marie-Claire Boons — Eu gostaria de acrescentar alguma coisa. Estou inteiramen­
te de acordo em que haja um deslocamento do conceito de saber entre “sujeito-su­
posto-saber“ e “desejo de saber“. Porque o desejo de saber, que é algo conquistado,
e sobretudo o passe é uma prova para tentar passar ao desejo de saber, é um desejo
de inscrever saber onde não há nada, isto é, onde há uma falha no Outro, onde há a
hiância no Outro, sua inconsistência. Você cita a edição alemã onde Lacan diz que
não há desejo de saber, mas, por outro lado ele diz que o nome próprio do analista
é desejo de saber. Mas é desejo de um saber que pode ser construído, que é
demonstrável, portanto é um desejo de materna.
M. Cristina Vidal — Gostaria de agradecer a Alain Badiou pela conferência, muito
interessante, que abordou questões que estamos trabalhando na Letra, principalmen­
te sobre o saber, a verdade e o Um. Eu queria só acrescentar uma pequena coisa em
relação à questão da citação sobre o desejo de saber, que Lacan coloca no Seminário
17, 0 Avesso da psicanálise, onde ele diz, não só que não há desejo de saber, mas
também que, justamente, é o desejo de saber que obtura a possibilidade de chegar
a um saber. Justamente, coloca isso na primeira aula, num seminário dedicado aos
universitários, ou seja ao discurso universitário, discurso da filosofia, apontando para
a questão da filosofia, de tentar chegar a um saber único, a um saber total, “ao saber".
Creio que essa citação aponta fundamentalmente para uma tentativa de quebrar isso,
e me pergunto se isso não tem a ver também com essa posição anti-filosófica.
A. Badiou — Proponho que se adie agora a questão do saber, porque como acabei
de dizer, ela será realmente central no que eu vou dizer amanhã. Entretanto, sobre
a idéia de um saber total, é verdade que aí Lacan vê um fantasma filosófico, ligado
por outro lado também, à figura do mestre. Mas isso é o que eu chamaria de
antifilosofia superficial. Há muito tempo se diz que os filósofos são pretensiosos e
acham que sabem o que não sabem. Mas os filósofos respondem a isso há muito
tempo também; e respondem o que é o contrário: são eles que assumem a função
critica sobre todo saber estabelecido e foram eles que começaram a crítica sobre a
noção de totalidade, isso desde o Parmênides de Platão. Isso é um processo antifilo­
sófico tradicional.
Acho que a verdadeira antifilosofia de Lacan não está nesse nível, ela é mais
profunda e concerne, afinal, à questão do real, ou seja, àquilo que a filosofia não quer
conhecer. A verdadeira questão de Lacan é: como, na filosofia, está em jogo a paixão
LACAN — A AN TIFILO SO FIA E O REAL C O M O ATO 13

de ignorar? Esse é o verdadeiro problema. Mesmo se dissermos que o filósofo quer


conhecer tudo, portanto, está no imaginário, a verdadeira crítica é que ele só diz que
quer conhecer tudo, para poder ignorar certas coisas e, fundamentalmente, duas: a
castração e, mais ainda, o gozo. Isso nós veremos amanhã.

Esta manhã, vamos examinar a relação de Lacan com a filosofia, a partir de quatro
termos: o sentido, a verdade, o saber e o real. Para Lacan, a filosofia diz o seguinte:
há um sentido da verdade, porque há uma verdade do real. Inversamente, Lacan e a
antifilosofia vão dizer que não há sentido da verdade, porque do real não há senão
uma função de saber. Vamos explicar pouco a pouco a oposição dessas duas teses.
O real, para Lacan, se dá como ausência de sentido. Mas o que é preciso entender
bem, é que ausência de sentido, para Lacan, nunca quer dizer não-sentido. Há uma
função de sentido do real, enquanto ausência de sentido. Há uma ausência no sentido,
uma subtração ao sentido que não é um não-sentido. É essencial compreender a
diferença entre ausência de sentido (ab-sens) e não-sentido (non-sens).
Em L’Etourdit Lacan diz que Freud nos coloca no caminho de que a ausência
(ab-sens) designa o sexo. Vocês sabem que o real, como impossível, se diz: não há
relação sexual. Pode-se sustentar que há ausência (ab-sens) da relação, mas essa
ausência de sentido, Lacan vai dizer que é um sentido ab-sexo. A ausência de sentido
não é o não-sentido, porque ela é um sentido ab-sexo e, por conseguinte ausência
designa, realmente, algo que é da ordem do sentido: a saber, o sentido ab-sexo.
Isso nos permite uma abordagem da questão do materna e, por conseguinte, do
saber transmissível. O saber transmissível incide sobre a ausência (ab-sens), isto é,
sobre o sentido ab-sexo, enquanto a verdade é o véu desse sentido ab-sexo. O materna
é transmissão integral do sentido ab-sexo, enquanto a verdade não é senão meio-di-
zer, que vela esse sentido.
Há portanto, para Lacan, um sentido do saber, um sentido que se diz a partir do
real, que se diz enquanto ab-sexo e tem por nome ausência (ab-sens), enquanto o
sentido da verdade se diz como velamento. Pode-se então supor que a filosofia teria
como falta, permanecer no par sentido-verdade. Ela não chegaria até o sentido do
saber. A filosofia não alcançaria a ausência (ab-sens) e, portanto, ela não chegaria ao
real. Afilosofia ficaria na hipótese de um sentido da verdade e não alcançaria o vínculo
do saber e do real. Poderíamos então dizer que a oposição entre filosofía e antifilo­
sofia é que há, de um lado, o par sentido-verdade e, do outro, a noção de ausência
(ab-sens), que é uma função do real no saber. Ou ainda, simplesmente, que a filosofia
oporia sentido e não-sentido, enquanto a psicanálise descobriria o que não é nem
sentido, nem não-sentido: o que Lacan chama de ausência (ab-sens).
A questão fundamental do racionalismo lacaniano está em jogo na categoria da
ausência (ab-sens). Será que pode haver um pensamento racional, que não aceite a
oposição do sentido e do não-sentido, mas que passe entre os dois? E é isso, a
ausência da relação sexual. Não é um sentido, mas também não é um não-sentido.
Essa questão é ainda mais essencial, porque o ato analítico vai produzir um saber
transmissível que incide sobre o sentido ab-sexo. Pode-se até mesmo dizer que a
grande produção da psicanálise é um saber que está fora da oposição do sentido e
14 C O L Ó Q U IO PSICANÁLISE E FILOSOFIA — SUJEITO E LIN G U A G EM

do não-sentido. E Lacan sustenta que esse saber é, num certo sentido, científico. Foi
o que chamei ontem, de aspecto arqui-científico do ato analítico.
No fundo, a antifilosofia de Lacan consiste em sair da simples oposição sentido-
verdade, e criar um espaço novo, o espaço da ausência. E esse espaço não é
controlável senão como saber. É aí que está em jogo a importância do passe. 0 passe
consiste em verificar que houve análise e baseia-se na idéia de transmissibilidade. O
passe verifica que foi produzido saber, verifica que houve o espaço da ausência e,
afinal, pode-se dizer que o que prova o ato analítico é a produção de um saber, porque
é o saber que toca a ausência. E o passe organiza essa verificação. 0 passe organiza
ausências sucessivas.
No fundo, poderia ser dito que Lacan pensa que a filosofia é o que não passa, é
aquilo de que não há passe. No fiindo, quando um passe fracassa, é porque perma­
neceu filosófico; ou ainda, o dejeto de um passe é filosofia, porque a filosofia fica
fechada no par sentido e verdade e ignora a ausência, ou seja, o sentido ab-sexo.
Pode-se então dizer que o passe é a organização prática da antifilosofia.
Resumindo tudo isso, a ausência é o que sustenta o saber transmissível e podem
ser tiradas quatro conclusões negativas concernentes à filosofia: a filosofia ignora a
ausência; ela permanece na oposição sentido/não-sentido; a filosofia ignora a posição
real do saber; a filosofia é como um espelho no qual sentido e verdade são o reflexo
um do outro. Só o sentido ab-sexo pode quebrar esse espelho. É preciso então aceitar
dizer que Lacan, a partir dos anos 70, critica fundamentalmente a filosofia, em sua
pretensão teórica. A filosofia não alcança o real e Lacan vai opor à operação filosófica
um ato de um tipo novo, que em sua própria possibilidade arruina as operações da
filosofia. A filosofia é incapaz de ser um pensamento do real, porque ela ignora,
desconhece que o real é ausência (ab-sens) da relação sexual. A partir do momento
em que a filosofia ignora essa ausência da relação, isso quer dizer que, em qualquer
filosofia, sempre há um momento em que se trata uma não-relação como uma relação;
não necessariamente a não-relação sexual, isso pode ser deslocado, mas o sintoma
filosófico é que num dado momento uma não-relação é tratada como relação. O que
quer dizer que a ausência (ab-sens) é tratada como sentido (sens). Digamos que a
filosofia força a ausência ao sentido. É por isso que ela alimenta o fantasma da
totalidade: tudo tem relação com tudo. Ela não alcança o ponto de não- relação, que
é também o ponto da ausência. A conseqüência disso é que a filosofia nos faz falsas
promessas. Quando vocês pensam que tudo tem relação com tudo, vocês podem
prometer muito, mas não podem sustentar, manter suas promessas. O poeta francês
Claudel, diz que a mulher é uma promessa que não pode ser sustentada. Nesse
sentido, a filosofia é uma mulher, é uma promessa que não pode ser sustentada, a
promessa de que tudo é relação.
Sob o nome de sabedoria, a filosofia pretende dar uma satisfação ou uma
beatitude; até mesmo as filosofias céticas ou niilistas prometem, na verdade, uma
beatitude, mesmo que seja a beatitude do nada. É por isso que Platão, por exemplo,
tenta de toda forma demonstrar que o filósofo é mais feliz do que o tirano; ele nos
promete que seremos todos mais felizes do que o tirano, o que sempre fez rir o
tirano. Lacan não pensa nada disso; não há beatitude intelectual. O sujeito filosófico
se apresenta como um sujeito completamente satisfeito, mas Lacan vai dizer que ele
só é um sujeito completamente satisfeito, porque ignora sua hiância, porque forçou
LACAN — A AN TIFILO SO FIA E O REAL C O M O A T O 15

a ausência (ab-sens) a ser como um falso sentido {faux-sens). 0 ato analítico, para Lacan,
não é um ato de beatitude. Na verdade, Lacan só nos promete a angústia e o mal
estar, e isso é uma promessa que se pode sustentar.
Em janeiro de 80, numa de suas últimas declarações, Lacan escreve: "o psicana­
lista tem horror de seu ato“. É preciso levara sério essa declaração, porque se não se
tem horror é porque não há ato, é porque se é filósofo, o que quer dizer: um homem
contente. Se o psicanalista não tem horror de seu ato é porque ele foi devorado pela
filosofia. É isso também a antifilosofia, é que a filosofia é a tentação do psicanalista,
no próprio cerne de seu ato. E proteger-se do ato, ignorar a ausência é uma pulsão
filosófica. Pode-se dizer também que o ato filosófico, ou mais exatamente a operação
filosófica nos promete a satisfação como produção de discurso. Ora, o ato analítico,
que é enunciativo, não é uma produção de discurso. Ele é até mesmo, num certo
sentido, um dejeto do discurso. O problema do ato analítico não é tanto produzi-lo,
mas ser capaz de enfrentá-lo, de superar, de suportar seu horror. Há um face a face
do psicanalista com seu ato, ao passo que há uma interioridade do filósofo e de sua
promessa.
Falando dos psicanalistas — para falar mal deles, como sempre — Lacan disse o
seguinte: “o ato, eu lhes dou a chance de enfrentá-lo". E sempre se queixava de que
eles não tinham aproveitado essa chance. Enfrentar o ato, é esse o imperativo
analítico, e esse imperativo tem como inimigo a promessa filosófica. Pode-se dizer
também, muito simplesmente, que a análise não promete nada.
É preciso, então, entender a lógica da oposição entre ato e promessa, e isso nos
remete à questão da verdade e do saber. A operação filosófica pretende ser uma busca
da verdade. Lacan nos dirá que não se pode buscar a verdade e o ato analítico é tudo,
exceto uma busca da verdade. Entre filosofia e psicanálise, temos um deslocamento
essencial do triângulo verdade-saber-real. Isso se dá em dois enunciados opostos,
que a meu ver, são o cerne da questão. A filosofia dirá: há um saber da verdade do
real. É assim que ela lerá os três termos. E a própria filosofia constitui o saber de uma
verdade do real.
Para Lacan, é outra coisa, é um outro laço. A fórmula mais clara está em
Radiophonie. Lacan diz: “a verdade se situa por supor o que do real faz função no
saber". Para Lacan, o efeito de verdade— pois a verdade é um efeito— tem a seguinte
forma: no saber um real vem funcionar, e só há verdade ou lugar da verdade, quando
um real vem em função num saber. É aí que a psicanálise pode ser tentada pela
filosofia, tentada a voltar à formulação filosófica: há um saber da verdade do real.
Vamos dar um exemplo: se vocês disserem que “o inconsciente é a verdade do
consciente", estarão fazendo filosofia e de modo algum análise. Porque vocês estarão
dizendo que a psicanálise é o saber de que o inconsciente é a verdade do consciente.
Isto é a apropriação filosófica da psicanálise, e a psicanálise é sempre ameaçada por
essa apropriação, porque é muito difícil sustentar que a verdade remete à função do
real no saber. Eu diria até mesmo que isso é a ética da psicanálise: nunca pensar que
estamos numa verdade do real. A antifilosofia é uma ética, pois o grande imperativo
psicanalítico pode ser dito da seguinte forma: “não seja filósofo", no cerne da própria
análise. É preciso desembaraçar a psicanálise dessa tentação, é preciso, como diz
Lacan, insurgir-se contra a filosofia, porque a filosofia é subversão de seu ato. E essa
subversão se assinala de uma maneira clara: ao invés de ter horror, ficar contente.
16 C O L Ó Q U IO PSICANÁLISE E FILOSOFIA — SUJEITO E L IN G U A G E M

Todo homem contente é um filósofo, e um psicanalista contente não passa de um


filósofo camuflado.
Não compreender o inconsciente como verdade do consciente ou da experiência,
é o próprio eixo do pensamento de Lacan, e é um combate, uma luta perpétua.
Tomemos uma passagem de Radiophonie. "0 inconsciente, diz Lacan, não é senão um
termo metafórico a designar o saber, que não se sustenta senão se apresentando
como impossível, para que daí ele se confirme ser real." Ele diz que o inconsciente,
em primeiro lugar, não é senão uma metáfora, não para uma verdade, mas para um
saber. Saber que se enoda ao real enquanto impossível. A verdade não é de modo
algum idêntica a esse saber e, sobretudo, não é um saber desse saber. Onde está a
verdade? Qual é seu lugar? Seu lugar se apresenta quando um saber se revela
impossível, o que quer dizer que há uma função de real engajada nesse saber. Eu diria
que o esforço antifilosófico de Lacan é manter a verdade à distância do inconsciente,
é nunca deslizar para a idéia de que o inconsciente é verdade, e não situar a verdade
senão como função do real no saber. Em ...Ou pire, Lacan vai dizer: "o inconsciente,
na medida em que ele se revela como saber“.
A partir daí pode-se reconstruir, sistematicamente, a separação entre filosofia e
psicanálise. Para Lacan, não há verdade do real; há verdade, na medida em que há
função do real no saber. Não há também saber do real, há função do real no saber.
Essa função é a função do impossível. Não há também, propriamente, saber da
verdade. Há verdade, como efeito, quando um real funciona num saber.
Então, como se vê, para Lacan, nunca se pode desfazer o triângulo verdade-sa-
ber-real; é um triângulo enodado. Se vocês falarem de verdade e de saber, será preciso
que haja um real, porque a verdade não é senão a função do real no saber. Se vocês
falarem de verdade e real, será preciso que haja o saber, porque não é senão como
função no saber que o real faz verdade. Se vocês falarem de saber e real, há um efeito
de verdade. É portanto, impossível, isolar dois dos termos do triângulo. Há uma tríade
verdade-saber-real e vocês não podem extrair disso um par. Dito de outra forma, o
três não se deixa decompor segundo o dois. Então, se vocês disserem verdade-real,
serão obrigados a reintroduzir o saber; de modo que não há verdade do real, o que
seria um par. Então, o que Lacan pensa, é que a filosofia é sempre o que reduz o três
ao dois. Por exemplo, a filosofia vai pensar que há uma verdade do real; ou que há
um saber do real; ou que há uma verdade do saber; ou até mesmo que há um real da
verdade. A filosofia explora todos os pares. E o que Lacan diz é que não há par, só há
a tríade. Então, pode-se dizer que a filosofia é a subversão do três pelo dois.
Temos aí um teorema de Lacan— sou eu quem o invento, mas ele está em Lacan.
Esse teorema se formula assim: se vocês subverterem o três pelo dois, terão um
pensamento falso do Um. Se colocarem o três em par, serão levados a pensar que o
Um é e, como eu dizia ontem, vão suspirar pelo Um. Porque o que acontece quando
vocês colocam o três em par? Resta um. Vai restar um, e para o filósofo esse um será
sempre o verdadeiro. Aquele que não entra no par, é o real do par. Por exemplo, se
vocês disserem "há um saber do real", vocês vão fazer da verdade, que resta, o Um;
se vocês disserem "há uma verdade do real“, todo o problema será saber como se
sabe, o saber. A cada vez vocês terão um termo, como resto, que será o verdadeiro
motor da filosofia. Este termo será pensado como um, fora do dois, ao invés de ser
enodado ao dois. É por isso que o enunciado filosófico é "o Um é", enquanto o
LACAN — A AN TIFILO SO FIA E O REAL C O M O AT O 17

enunciado analítico é “há Um" (V a dTUn). "Há Um" na tríade, mas não "há Um"
separado. Pode-se dizer então que a oposição filosofia e antifilosofia, incide na
distribuição: um, dois, três. A operação filosófica é desfazer o trio em dois e fazer
com que tudo isso seja sustentado pelo Um. A operação analítica é enodar os três e
tratar o Um e o dois em retroação do três. 0 exemplo maior é o dessa tríade
verdade-saber-real.
Mas é preciso tirar conseqüências disso. Se não há par, porque o par é filosófico,
se não há verdade do real, se também não há saber do real, porque nos dois casos
só teríamos o dois, então é preciso que o vínculo ao real seja da ordem do ato. Porque
não é por uma decomposição da tríade, que se tem acesso ao real; não pode ser senão
por um corte. Você não pode desfazer o nó. Desfazer o nó, isso é filosofia. Vocês só
podem cortá-lo, e cortá-lo é da ordem do ato. Pode-se dizer então que filosofia é o
que desenoda, desenlaça, enquanto a psicanálise é o que corta. Nós, filósofos,
pretendemos desfazer os nós, fio por fio. A antifilosofia dirá que não se pode desfazer
o nó; pode-se revelá-lo, em corte.
Isso pode ser dito de uma maneira muito simples: não se pode conhecer o real.
O acesso ao real é da ordem do ato, mas não do conhecimento. Desfazer o nó é
conhecer. Quando vocês podem desfazer um nó, sabem como ele foi feito, já que o
estão desfazendo; mas quando vocês cortam, não conhecem nada. Portanto, aos
olhos de Lacan, algo do real se opõe ao conhecer, é preciso subtrair o real ao
conhecer. Mas também não se pode cair numa doutrina do incognoscível, uma
doutrina mística.
É um pouco como sobre o sentido e o não-sentido, onde o caminho de Lacan
não é o do sentido (sens), nem o do não-sentido (non-sens), mas o da ausência (ab-sens).
Aqui, o caminho de Lacan não será o do conhecimento, nem o do incognoscível. O
real não é o que se conhece, o que também não quer dizer que ele seja desconhecido.
Em. Radiopbonie, Lacan diz: "assim o real se distingue da realidade, não é para
dizer que ele é incognoscível, mas que não se trata de conhecê-lo, mas de demons­
trá-lo". Então, para esclarecer, Lacan chama de realidade o que se pode conhecer, é
uma definição muito simples de realidade; a realidade é o conjunto do que se pode
conhecer. O real é subtraído ao conhecer. Será que isso quer dizer que não o
conheçamos, ou que ele seja incognoscível? Se fosse assim, isso quereria dizer que
Lacan é kantiano, a realidade seria como o fenômeno e o mundo real seria como a
coisa em si. Poderíamos então conhecer a realidade, como, para Kant, o fenômeno,
mas a coisa em si, o real, seria incognoscível. A antifilosofia acabaria sendo numa
filosofia crítica. Lacan vai evitar essa solução kantiana. Agora há pouco, na citação,
Lacan diz, explicitamente, que o real não é incognoscível, então não é como a "coisa
em si" de Kant. Aí também ele vai propor uma solução própria, ou seja, que o real se
demonstra.
Podemos recapitular: não é nem o sentido (sens), nem o não sentido (non-sens),
mas a ausência (ab-sens). Não é nem o três absolutamente fechado, nem o dois da
filosofia, é o corte. Não é nem o conhecimento, nem o incognoscível, é o demons­
trado; que o real se demonstra, quer dizer que ele não tem relação nem com o
conhecer nem com o não-conhecer. O real é indiferente ao conhecer, inclusive sob a
forma negativa do incognoscível. Essa tese de que o real é indiferente ao conhecer,
18 C O L Ó Q U IO PSICANÁLISE E FILOSOFIA — SUJEITO E L IN G U A G E M

de que o real depõe o conhecer é uma tese anti-filosófica muito antiga, uma tese que
se encontra em todos os antifilósofos clássicos. Gostaria de dar-lhes dois exemplos.
O primeiro é o de Pascal, grande antifilósofo, inimigo íntimo de Descartes. Para
Pascal, todo o problema é que sob o nome de Deus, algo é indiferente ao conhecer.
0 Deus de Pascal não se deixa conhecer. O que não quer dizer que o ignoremos, ou
que ele não seja cognoscível; simplesmente ele é, como dirá Pascal, sensível ao
coração. É o Deus sensível ao coração, o Deus de Isaac e de Jacó, que é, se posso
assim dizer, um outro Deus, diferente daquele dos filósofos e dos sábios. Para Pascal,
o Deus real não tem a ver com o conhecimento, mas com uma sensibilidade singular,
enquanto o Deus de Descartes, do qual se demonstra a existência, o que tem a ver
com a razão, seria, em termos lacanianos, o Deus da realidade. Evidentemente, há
em Pascal, a oposição de um Deus real e um Deus da realidade, de modo que o Deus
real, como o real de Lacan, tem a ver em última análise com o ato; como vocês sabem,
Pascal chama esse ato de "aposta". E só se tem acesso ao Deus real, segundo esse ato.
Um segundo exemplo, muito claro, seria o de Rousseau, tratando-se desta vez
da moral. No livro Profession de Foi du Vicaire Savoyard, Rousseau explica que o real da
moralidade é inacessível ao conhecer. Isso é acompanhado de uma grande proclama­
ção antifilosófica. Eu o cito: "As idéias gerais e abstratas são a fonte dos maiores erros
dos homens. Jamais o jargão da metafísica fez descobrir uma só verdade". E Rousseau
vai concluir, por um lado, que é preciso abandonar a razão, porque a razão nos
engana, e vai acrescentar: "a consciência não nos engana nunca". Sobre essa base, ele
vai determinar o que é o ato: “os atos da consciência não são julgamentos, mas
sentimentos".
Como vocês podem ver, nessa dupla referência a Pascal e a Rousseau, identifica-
se o ato antifilosófico como sempre subtraído à lógica do conhecimento, e o ato se
assinala por um afeto: "sentimento", diz Rousseau; "sensível ao coração“, diz Pascal.
E é porque há esse afeto, que estamos certos de que o ato não pode nos enganar.
Haverá em Lacan um afeto que não engana nunca, se quisermos completar a
comparação? Pois bem, há sim: é a angústia. A angústia, dirá Lacan, é o que não nos
engana, ela é o correlato não enganador do ato. Isso aproxima muito Lacan de um
outro grande antifilósofo, que é Kierkegaard. Porque também para Kierkegaard, a
angústia se liga ao ato como afeto de um saber instantâneo. E aí também o acesso
ao real supõe um corte, do qual a angústia é como um sinal. Para Kierkegaard,
conhecera realidade nunca faz verdadée, em particular, nunca faz verdade do sujeito.
Kierkegaard dirá que a verdadeira subjetividade não é aquela que sabe; o que também
Lacan poderia dizer. 0 saber está sim no lugar onde o real funciona, mas a própria
experiência da análise mostra que a verdadeira subjetividade não é aquela que sabe.
Kierkegaard chama o real de existência. A existência é o que, justamente, não é da
ordem da realidade; e não é da ordem do conhecer. A existência deve ser extraída
do conhecimento e, bem entendido, isso tem a ver com o ato. Em Kierkegaard, muito
claramente, o ato é o momento em que o existente encontra seu próprio real. Isso
tudo fica muito próximo da análise. Como Kierkegaard nomeia esse momento? Ele
o chama de “escolha", o que quer dizer "decidir a existência". Mas decidir a existência
é algo muito próximo de "demonstrar o real", que seria a expressão de Lacan. Para
Lacan, no fundo, a única coisa que está em jogo, numa análise, é que aí o real se
demonstra. Para Kierkegaard, na escolha vamos decidir a existência, ou seja, decidir
LACAN — A ANTIFILO SOFIA E O REAL C O M O ATO 19

o real. A consequência disso é que a escolha, evidentemente, nunca é escolha disso


ou daquilo, porque assim se cairia de novo na realidade; a escolha é escolha da
escolha. Exatamente como demonstrar o real, num certo sentido, é ato puro, ou corte
instantâneo. Kierkegaard vai tentar dizer-nos que não há real, ou seja, existência,
senão quando há um ato que não é determinado por aquilo de que ele é ato; quando
há uma escolha, pela qual se escolhe, simplesmente. Aí há a angústia, mas há o real
e há isso: nunca nos enganamos. A fórmula de Kierkegaard será a seguinte, e ela é
muito interessante, inclusive com relação à análise: “Se apenas pudermos levar um
homem a uma encruzilhada, de maneira que não haja nenhuma outra saída para ele,
senão a escolha, então ele escolherá certo". Se a escolha á o ato do real, é só quando
essa escolha é forçada, quando não há outra saída senão escolher, que há realmente
a escolha, ou seja, a existência, isto é, o real.
Então, será que uma análise consiste em levar o analisante a uma encruzilhada,
isto é, ao ponto no qual ele não tem outra saída senão escolher, ficando entendido
que "escolher" significa encontrar seu real, demonstrar o real, decidir a existência? E
a angústia será o sinal dessa ausência de saída? Isso nos leva a interrogar de novo o
próprio ato. Em Radiophonie Lacan dirá: "o efeito de ato se produz como dejeto de
uma simbolização correta1'. Podemos dizer então que é como dejeto de uma simbo-
lização correta que, no ato, o real se demonstra. Era essa demonstração que nos
interessava, pois ela é algo que não é nem o conhecimento, nem o incognoscível.
Poderíamos dar uma definição provisória da cura analítica: é uma demonstração, uma
formalização, na qual o real é demonstrado e onde o ato faz corte. Haverá um efeito
de obrigatoriedade nesse processo? Porque Kierkegaard nos diz que é preciso levar
o sujeito ao lugar onde ele não tem mais saída, e acho que isso está contido na idéia
de demonstração. Se o real se demonstra, é porque ele não se mostra, o real virá
como impasse de uma escritura, de uma formalização. O real é um impasse da
formalização. É preciso que haja uma obrigatoriedade do impasse; essa obrigatorie­
dade consiste em criar uma ausência de saída. Lacan tem uma expressão para isso:
ele diz que o processo da análise consiste em transformar uma impotência em
impossibilidade. Eu diria que não há ato, a não ser se foi possível que aquilo que se
dava como impotência, se dê como impossível.
Podemos então dizer que o processo analítico tem três dimensões. Em primeiro
lugar, é preciso situar a impotência; é o processo preliminar e constante, pois o que
é a demanda de análise? É uma demanda de que seja remediada uma impotência que
é, em regra geral, a impotência de amor. Mas é preciso proceder a uma situação da
impotência. É o que eu chamarei de tarefa de localização, porque o sofrimento não
é tanto a própria impotência, quanto sua errância. O sujeito que sofre é aquele que
demanda e cuja impotência está por toda parte. Então, a primeira dimensão da análise
é localizar a impotência. Isso tem a ver com o campo interpretativo.
Em seguida, ou ao mesmo tempo, isso não é cronológico, é preciso elevar a
impotência ao impossível. Isso tem a ver com o campo da formalização. Não se está
mais no equívoco da interpretação, mas na obrigatoriedade da formalização. E eu
diria que a arte do analista é sustentar essa elevação da impotência ao impossível.
E depois, a terceira dimensão é que se tem uma borda de corte, quando se chega
ao impasse da formalização, e aí o real vai intervir na dimensão do ato.
20 C O L Ó Q U IO PSICANÁLISE E FILOSOFIA — SUJEITO E L IN G U A G EM

Eu diria que uma análise é tridimensional, que ela nunca é linear, porque sempre
combina, como num volume: a topologia da impotência, a elevação do impossível e o
corte do ato. O que não engana em tudo isso é a angústia e, o problema vai ser, como
Lacan dirá, dosar a angústia. Ele diz que, na experiência, é necessário canalizar a angústia,
se ouso dizer, dosá-la para não ser submergido por ela. E acrescenta que isso é uma
dificuldade, correlativa daquela que existe em conjugar o sujeito com o real.
Eu diria que a análise tem dois imperativos: elevar a impotência ao impossível,
sob o ideal do matema, e dosar a angústia, para que ela guie a simbolização, quando
ela é bloqueio da simbolização. Esses problemas são problemas de tempo. Toda
antifilosofia, a meu ver, encontra o problema da organização do tempo. O tempo da
formalização é sempre ameaçado por uma precipitação, porque é ligado ao tempo
lógico, e contém antecipações. O tempo da angústia deve ser dosado, deve ser
contido. Como Lacan sublinha, isso é a dificuldade de uma conjunção muito rápida
com o real. É preciso então conter a precipitação formalizante, o desejo do matema,
que é absolutamente necessário e, ao mesmo tempo, conter de certa forma o afeto,
não ficar submergido pela angústia. O tempo da análise é esse duplo tempo: o tempo
da elevação formalizante e o tempo da dosagem do afeto. E esses dois tempos não
coincidem, porque o desejo do matema é como contrariado pela exigência da
dosagem do afeto. Eu diria que o desejo do matema se efetua como desejo contra­
riado por aquilo que não engana. Se não houvesse contrariedade, não haveria
exigência ética. É porque o desejo do analista é contrariado, que há uma exigência
ética. A questão última do ato antifilosófico é a de seu tempo, isto é, de seu duplo
tempo: o tempo da obrigatoriedade formalizante e o tempo da contenção do afeto.
É por esse motivo que sempre há discussão sobre o tempo da análise; é uma discussão
essencial, onde está também em jogo a oposição à filosofia. Porque o que caracteriza
a filosofia é que ela tem todo o tempo possível. Ela não está numa ética do tempo,
sempre preferiu a eternidade, enquanto a psicanálise está sob a injunção contrariada
de um duplo tempo, injunção que é cortada pelo ato. Mas talvez pudéssemos
encontrar aí, uma tentativa de reconciliação. Estou apenas improvisando, mas talvez
a psicanálise seja somente filosofia cortada, o que faz imediatamente uma diferença
essencial. Vocês sabem que Platão ensinava que a filosofia era sempre um longo
desvio. Também na psicanálise há um longo desvio, porque há as três dimensões:
localização da impotência, elevação ao impossível e momento do ato. M as esse longo
desvio, está sob a regra de um tempo. Talvez um dia fique claro que a psicanálise
organizou um corte temporal do fora-tempo filosófico.
Questões

— É impressionante a pertinência de tudo o que o senhor falou, mas eu gostaria


de fazer uma pergunta, talvez primária. Qual é a diferença, se o senhor puder
desenvolver um pouco mais, entre essa operação de corte e o desfazer da filosofia ?
A. Badiou — Retomarei o exemplo verdade-saber-real. A filosofia procede sempre
de maneira analítica. Ela vai procurar identificar cada termo — real, saber, verdade
— e em seguida propor uma reconstrução de seu vínculo. Para identificar cada termo,
ela vai desfazer todos os laços aparentes, é uma operação crítica filosófica muito
conhecida. A filosofia é essencialmente separadora. Por exemplo, ela vai distinguir
saber e verdade, vai colocar a questão da relação de cada um deles com o real e, em
LACAN — A AN TIFILO SO FIA E O REAL C O M O ATO 21

seguida, vai sistematizar o conjunto dos laços, numa reconstrução. A posição de Lacan
é completamente diferente. Para Lacan, cada termo é sempre tomado numa configu­
ração, e o real é a própria configuração. Em última análise, é a experiência que conta,
é o processo clínico, que não é um processo analítico. É muito estranho que a
psicanálise se chame análise, porque é tudo, exceto uma análise. Entre parênteses,
também não é uma síntese; não é nem análise, nem síntese. É por isso que quando
se tem um conjunto verdade-saber-real — quer dizer, quando há um efeito de verdade
porque algo do real está em função num saber, o polo real nunca será isolado pela
análise, ele o será num corte do nó, em ato. E isso também é uma experiência, é
realmente um ato.
Efetivamente, se tomarmos o mesmo conjunto: verdade-saber-real, o procedi­
mento filosófico vai desfazer o três e reduzi-lo ao dois ou ao Um; enquanto o ato
analítico vai demonstrar que, na verdade, só há o três, e não vai poder separar, a não
ser num corte efetivo, num corte que é realizado. É por isso que esses dois
procedimentos são inteiramente diferentes. Pode-se sustentar que a análise, no
pensamento lacaniano, demonstrou cada vez mais que um nó é aquilo que não se
desenoda: é o que se corta, e o corte mostra o enodamento. Poderíamos dizer que
a filosofia é uma teoria do desenlace, do desfecho. Isso seria sua relação com o teatro,
onde há um desfecho. Contudo, um final de análise não é um desfecho, o espaço da
análise não é teatral, embora se diga que é uma outra cena. Eu diria que a psicanálise
é uma cena, que não é uma cena de teatro.
Marie-Claire Boons — Para prolongar um pouco mais este debate, parece-me,
ainda assim, que não se pode evitar, em certos momentos da análise, que o corte
feito no nó, se ele mostra o desenlace, desfaça o nó. E esse momento de desfazer o
nó, preside a um outro reenlaçamento, mas há um momento em que ele se desfaz.
A. Badiou — Vamos entrar em acordo quanto às palavras. Eu chamo de desfazer
o nó, desfazer fio por fio. Se você pegar um pacote amarrado com um nó, você pode
tentar desfazer o nó, ou então cortá-lo. Nos dois casos o nó é desfeito, mas não da
mesma maneira. E eu não acho que o corte mostre o desenlace; o corte mostra o
enlace, a amarração. É a filosofia que quer mostrar o desenlace; a psicanálise, pelo
corte, mostra o enlace, o enlaçamento.
— Quando você fala da "escolha da escolha", isso tem algum equivalente com
"desejo de desejo"?
A. Badiou — Esta é uma pergunta complexa, porque a escolha, no sentido de
Kierkegaard, não é comparável ao desejo, mas ao ato. É preciso pois se perguntar
primeiro se escolha da escolha, ou escolha de escolher é algo como um ato puro, ou
seja, um ato que não tem finalidade, um ato que não persegue um objetivo. Quando
Kierkegaard fala de escolha da escolha, ele quer dizer que o que eu escolho é ter a
possibilidade, o poder de escolher. Não é para perseguir um objetivo, é para
experimentar o meu real de existente. Isso seria comparável ao ato analítico como
corte, por exemplo, porque esse ato só pode ter lugar se ele não é alguma coisa que
persegue um objetivo, mas simplesmente uma maneira de decidir um impasse da
formalização. 0 que Kierkegaard dirá também, já que ele diz “eu escolho escolher,
quando não tenho outra saída". Isso é extraordinário, porque é a idéia de que a
verdadeira escolha é quando sou forçado a escolher. É uma teoria muito particular
da liberdade, e se há uma teoria lacaniana da liberdade, ela é seguramente desse tipo.
22 C O L Ó Q U IO PSICANÁLISE E FILOSOFIA — SUJEITO E LIN G U A G EM

0 que quer dizer que, para ser livre, é preciso ser forçado a sê-lo. Se há uma coisa
que a psicanálise ensina é que, espontaneamente, temos horror de ser livres. A idéia
liberal segundo a qual desejaríamos ser livres, é completamente falsa. Como filósofo,
o que eu admiraria na psicanálise é que ela compreendeu bem que a liberdade é uma
criação, uma construção, não é de modo algum um dado. 0 que é dado é nosso
profundo desejo de servidão, e o horror do ato é o horror da liberdade. Isso é algo
que Kierkegaard viu muito bem. Ele diz que para escolher, mas escolher realmente,
é preciso não ter outra possibilidade, porque enquanto tivermos outra possibilidade,
é ela que tomaremos, ao invés de escolher. Parece-me que há algo assim na cura
analítica. São comparações sempre um pouco grosseiras, mas mesmo assim existe a
idéia de que é sob um regime de obrigatoriedade formalizada, de lei formal, que
temos, talvez, a chance de encontrar nosso real.
Portanto, se formularmos uma teoria psicanalítica da liberdade, diremos que a
liberdade é o resultado de uma obrigatoriedade formal e não é, de modo algum, a
realização de uma espontaneidade. Isso é o que todos os antifilósofos já tinham
compreendido: encontramos esse ponto preciso em Pascal, em Rousseau, em Kier­
kegaard, em Nietzsche. E o encontramos em Lacan, mas num outro dispositivo,
porque a grande força de Lacan é ter a experiência analítica.
— Em relação à filosofia pensada fora-tempo ou, desejo de eternidade, o senhor
diria que os filósofos que não se ligam a esse desejo, e para os quais o tempo é um
problema de organização ou de problematização, são todos antifilósofos? Eu coloco
Deleuze nesse lugar, e perguntaria se na questão de para quem o tempo é problema,
haveria uma aproximação entre Deleuze e Lacan.
A. Badiou — Poderíamos responder a isso, muito simplesmente. Deleuze é
absolutamente uma filosofia da eternidade, mais do que qualquer um. Em primeiro
lugar, sua tese fundamental é o retomo eterno. Em segundo lugar, sua teoria do
tempo faz do passado total virtual o próprio ser do tempo. Por conseguinte, tudo o
que vem é sempre o que volta. A particularidade é que a eternidade está atrás de nós,
não é uma eternidade que está porvir, é uma eternidade que já está sempre aí, cujo
modelo, aliás, é a substância de Spinoza, da qual Deleuze sempre disse que era a
filosofia definitiva. A grande força de Deleuze, como a de Nietzsche e Spinoza, é
afirmar que a eternidade está aí, o que lhes evita uma falsa promessa, porque eles
não têm que prometê-la, a gente não tem que ganhá-la, basta efetuá-la. Mas, sobre
esse ponto, continua sendo uma filosofia, realmente.
A sua questão me leva mesmo assim a um esclarecimento. Dizer que a filosofia
cria um fora-tempo, não quer dizer que o tempo não seja um problema para ela. Ao
contrário, justamente, é um problema. Mas na psicanálise, o tempo é uma imposição
da própria experiência, é algo diferente de um problema. Bem entendido, o tempo
é, por outro lado, um problema filosófico, e mais ainda se se deseja a eternidade.
Eduardo Vidal — Como você falou em Deleuze, eu gostaria de perguntar se há
ainda alguma chance de que ele seja antifilósofo. Não tanto do lado do tempo mas,
talvez, do lado das modalidades, sobretudo da contingência.... (não ficou gravado
o restante da pergunta).
A. Badiou — Sim, mas a teoria de Deleuze é que os entes atuais não têm entre
eles nenhuma relação. Primeiro tem-se a não-relação; não é a não-relação sexual, é a
não- relação universal. Mas depois, todo o pensamento de Deleuze é pensar a
LACAN — A AN TIFILO SO FIA E O REAL C O M O ATO 23

não-relação como relação. Por exemplo, na sua obra Foucauít, ele explica que a
não-relação é uma relação mais profunda do que a relação, porque a não-relação do
atual sempre indica uma profunda relação virtual. Se vocês tomarem coisas absolu­
tamente disjuntas, verão que, virtualmente, cada uma não é senão sua passagem para
a outra. Por exemplo, Deleuze explica sempre que ser um homem, não se compreende
senão como tornar-se mulher; e ser mulher é uma forma de tomar-se homem. Se
vocês passarem à virtualidade, àquilo de que cada ente é capaz, então, a não-relação
se toma uma relação profunda e fundamental. É a razão pela qual o próprio acaso
que é, aparentemente, a contingência pura, tem como verdadeiro conteúdo o retomo
eterno. Deleuze vai explicar que no lance de dados há dois aspectos: o gesto de lançar
os dados e o que cai, e que dá os números. Deleuze dirá que o verdadeiro lance de
dados é o lançamento, e ele vai acrescentar que, na realidade, há só um lançamento.
O lançar é o mais importante.
Então, acho que a filosofia de Deleuze não é uma filosofia da contingência, mas
uma filosofia da necessidade, ou melhor ainda, do destino. Acho que ela não é uma
filosofia do tempo, mas uma filosofia da eternidade. Penso ainda que não é uma
filosofia do múltiplo, mas uma filosofia do Um; e que ela não é uma filosofia da não-
relação, mas uma filosofia da relação. Aliás, ele próprio chama o ser de "a relação".
Evidentemente, há mais relação ainda, se a relação liga o não-ligado, porque, para
Deleuze, relação é uma potência, tudo é potência, e a potência da relação é,
justamente, ligar o que não é ligado por si mesmo.
É por isso que eu acho que é uma filosofia, e fico feliz com isso, porque quanto
mais filosofía houver, mais a discussão com a antifilosofia será, digamos, sólida.
— 0 senhor disse na conferência, que Lacan recusa a solução kantiana, para a
teorização do real. Na sua opinião, Freud seria mais simpático a essa solução
kantiana? E talvez a consequência disso fosse até o fato da abordagem do tempo ser
diferente?
A. Badiou — Quero dizer inicialmente, que é preciso ver onde Lacan não é
kantiano. Porque muitas coisas poderiam deixar entender que ele seja kantiano. Por
exemplo, quando ele diz que o real é insimbolizável, se vocês pensarem, por outro
lado, que o sujeito é estruturado na ordem simbólica, isso pode parecer muito
próximo de Kant. Lacan não é kantiano, porque ele pensa que há uma prova do real.
Uma prova que não é moral, não é a razão prática; uma prova que é, se posso assim
dizer, formal. Acredito que se possa até mesmo dizer que a utilização, por Lacan, da
matemática e da lógica e, finalmente, a noção de materna, tudo isso é para não ser
kantiano, ou seja, para ter um verdadeiro esquema do real, para não deixá-lo cair no
incognoscível puro.
Se fizermos essa pergunta com relação a Freud, é verdade que Freud permanece,
apesar de tudo, no conhecimento incognoscível. Em Freud, não há recurso verdadeiro
ao formalismo e os modelos são, muitas vezes, mais físicos do que matemáticos.
Então, há pontos de dificuldade sobre o que é cognoscível e o que é incognoscível.
Eu não diria que isso é kantiano, porque não se vê nada semelhante em Freud, mas
isso está, em parte, fechado na teoria do conhecimento, apesar de tudo. Ao passo
que o grande gênio de Lacan é ter saído da teoria do conhecimento, e isso é um gesto
extraordinário. Manter a noção de sujeito, embora saindo de qualquer teoria do
conhecimento, esse é talvez o projeto mais espantoso de Lacan. Mas, como vimos,
24 C O L Ó Q U IO PSICANÁLISE E FILOSOFIA — SUJEITO E L IN G U A G E M

isso toma o materna absolutamente necessário. Se não houver o real como impasse
da formalização, forçosamente caímos de novo numa forma da teoria do conheci­
mento.
— 0 senhor mencionou, na sua exposição, que Lacan diz que a cura analítica
consiste em transformar a impotência em impossibilidade, e que só há ato quando
aquilo que era impotência surge como impossibilidade. No Seminário 4, Lacan diz
que a arte está no limite entre o realizável e o impossível e, no seu livro Para uma
nova teoria do sujeito, o senhor diz que a arte é um processo de verdade. E também
diz que a arte é criação de finitude e que a obra de arte é, de fato, a única coisa finita
que existe. Então, poderemos articular a criação artística como algo que articula o
impasse da escritura, que expõe o real, que circunscreve um corte, e que se
aproximaria, de alguma forma, do ato do analista?
A. Badiou — Acho que, efetivamente, pode-se tentar aproximar certos aspectos
da criação artística e certos aspectos do ato analítico. Aliás, o próprio Lacan faz isso.
Em particular, é impressionante o uso que ele faz do teatro, como se fosse possível
encontrar, no teatro, o equivalente de situações analíticas. Como se alguma coisa da
arte fosse análise cega, análise sem discurso analítico. Isso porque as operações de
isolamento, formalização e corte têm seu correspondente na arte. A questão da forma,
da obrigatoriedade da forma, é uma questão decisiva da arte; a questão de concentrar
as coisas num ponto é essencial; a questão do corte, da interrupção é também muito
importante. Então, acho que essa comparação é formalmente praticável.
A questão muito mais complicada é a da finitude. Essa é uma grande questão em
Lacan, mas eu precisaria falar mais duas horas sobre isso, que é a luta de Lacan com
a questão do infinito. Penso que na arte há uma produção finita efetiva, o que se
chama de obra. Mas o que é isso na análise? Pode-se dizer que há uma finitude do
desejo, se tomarmos a coisa do lado do objeto. É evidente que o objeto causa de
desejo finitiza o desejo. Mas, parece que há algo que toca o infinito, do lado do gozo,
do lado do feminino. Portanto, a questão da ligação entre finito e infinito, na própria
teoria Iacaniana, é uma questão complexa, uma questão que não é exatamente aquela
que se encontra na arte, e que está, evidentemente, ligada à questão do feminino,
ao mesmo tempo na modalidade do não-todo e na modalidade do segundo gozo.
Mas essas são, realmente, outras questões.
— O senhor nomeou três dimensões na cura, e também o tempo como dentro
do vínculo formalizante da dosagem do afeto. Ao pensar uma topologia da cura, o
papel do tempo deve ser visto como uma dimensão adicional, ou uma correlação
entre as três dimensões, ou ainda apenas uma variável disjunta ?
A. Badiou — Penso que o tempo da cura intervém como uma dimensão suple­
mentar, enodada às três outras, há um modelo relativista. Isso é uma imagem, mas
há um espaço-tempo da cura. Há operações essenciais, que eu chamo de localização,
elevação e ato, pois o tempo é uma dimensão dos três e, ao mesmo tempo, é uma
dimensão por si mesmo. Então é, realmente, como um espaço-tempo. É por isso que
há sempre uma dificuldade de isolar a questão do tempo, quando se discute sobre
uma análise. Por exemplo, as famosas discussões sobre se o tempo deveria ser longo
ou curto, na verdade nunca chegaram a nada. Sabemos bem que, na realidade, cada
um se vira, porque uma sessão é como um ponto no espaço-tempo. Então, vocês nunca
podem calcular, antecipadamente, se é longo ou curto — isso é uma falsa questão. 0
LACAN — A AN TIFILO SOFIA E O REAL C O M O A T O 25

problema é o do próprio espaço-tempo, e cada caso é singular, cada caso se situa de


maneira particular no espaço-tempo. O uso do tempo não é o mesmo, se as operações
dominantes são do tipo isolamento, ou do tipo formalização. É em relação às três
dimensões que o próprio tempo se toma uma questão. Por conseguinte, penso que não
pode haver regra exterior, estou convencido disso; nem curta, nem longa. É preciso se
situar no espaço-tempo da cura, e isso tem a ver com o analisante e com o analista.
— Eu gostaria de saber se o senhor poderia precisar um pouco mais a referência
a Spinoza, feita a partir das perguntas sobre Deleuze, caracterizando-o como uma
espécie de ápice da filosofia, digamos assim, na medida em que no seu livro 0 ser e
o evento, o senhor analisa, na meditação 10, a filosofia de Spinoza, introduzindo nela
um ponto de vazio, ou de não existência talvez, a partir da consideração dos modos
infinitos, imediatos e mediatos. Não seria esse um ponto, em que a filosofia de
Spinoza talvez não pudesse ser colocada totalmente do lado da filosofia, e mais uma
antifilosofia, ou não?
A. Badiou — A tese segundo a qual a filosofia de Spinoza é uma filosofia definitiva,
é uma tese de Deleuze, não é a minha. No que me diz respeito, talvez por eu ser
muito educado pela antifilosofia lacaniana, eu não sustentaria essa teoria da eterni­
dade já dada, o que seria ou a teoria do virtual total, como em Deleuze ou Bergson,
ou então uma teoria da substância e de seus modos, como em Spinoza. Penso que
há, realmente, múltiplo disseminado ou sem relação, sem virtualidade unificadora;
minha filosofia é mais uma filosofia da separação. As observações que eu fazia à
respeito de Spinoza, eram inspiradas pela psicanálise, num sentido particular. Eu dizia
que Spinoza forclui, elimina o vazio, e sustentava que o vazio retorna, na instabilidade
dos modos infinitos; era, então, uma leitura sintomal. Se há forclusão da separação
pura, forçosamente, ela retoma, em algum lugar, na filosofia. Era isso que eu queria
assinalar a respeito de Spinoza.
Para voltar à questão da antifilosofia, há antifilosofia quando se opõe à filosofia
um ato irredutível, é uma condição absolutamente necessária. Quando não há essa
condição, não se pode falar de antifilosofia, de modo racional.
— Minha questão é a seguinte: O senhor terminou a conferência de ontem
dizendo que não há desejo de saber, que o que há é a paixão da ignorância, e propõe
o desejo do materna. E hoje, o senhor situa o desejo do materna na situação analítica,
ou a questão da formalização precipitante do materna, dizendo que o analista tem
que sustentar essa precipitação formalizante, e coloca a questão da dosagem da
angústia. Diz também que a angústia é o correlato não enganador do corte, do ato.
O que me ocorre é o seguinte: a angústia faz corte? E como é que nesse contexto, se
dá essa formalização precipitante do materna, na situação analítica, da parte do
analisante?
A. Badiou — Em primeiro lugar, bem entendido, não é a angústia que faz ato. A
angústia pode assinalar o ato, não é que ela faz corte, que faz ato. A angústia é como
um indício, um sinal. Acho, aliás, que ela pode acompanhar cada uma das dimensões
da psicanálise, não somente sua dimensão de ato. Pode haver, por exemplo, uma
angústia que não engana, sobre o fato de se aproximar da localização da impotência,
pode estar ligada às operações de localização. Seria possível mostrar que há um
momento em que começa o desprendimento da impotência para o impossível, e isso
também pode ser assinalado pela angústia. Como diz Lacan, de toda maneira, é
26 C O L Ó Q U IO PSICANÁLISE E FILOSOFIA — SUJEITO E LIN G U A G E M

preciso dosar a angústia e, por outro lado, é preciso estar sob o desejo do materna.
A única constatação que eu fazia, é que esses dois imperativos não se sobrepõe um
ao outro, mas há uma contrariedade entre os dois, porque apesar de tudo, uma
formalização e o desejo da formalização é um desejo antecipador. Todb mundo sabe
que quando se está encontrando a solução de um problema matemático, é impossível
conter o pensamento — uma experiência que é preciso ter vivido — é onde o desejo
está atuando em sua precipitação própria . Mesmo durante a análise, pode lhes
aparecer de repente uma formalização admirável. Isso, de um lado, mas do outro, é
preciso mesmo assim dosar o processo, dosar seu tempo. Penso então que há dois
imperativos que se contrariam, não o tempo todo, mas isso pode acontecer, no
espaço-tempo da cura. O analisante pode ser vítima dessa contrariedade, é esse o
problema. E ele que pode tomar-se o dejeto da formalização, quando normalmente
é o analista que deve ser o dejeto. Quem é o dejeto, nesse caso, é uma questão
essencial. Afinal de contas, é o analista que é pago para isso, para ser aquele que vai
para o lixo, e não está certo que ele faça o outro cair no lixo. Isso, para alguém que
parte da hipótese de que não há analista desonesto, ou cínico; que parte da hipótese
de que não há analista que ganhe a vida jogando os outros na lata do lixo; de que não
há lixeiros de neuroses. Supondo então que o analista seja autêntico, a questão de
quem vem ao lugar do impasse, é algo que se resolve em imperativos contrariados.
E por isso que é preciso uma ética, senão não se entenderia por que é preciso uma
ética. Do ponto de vista do desejo do próprio analista, há imperativos contrariados.
Então, desejo do matema sim, mas segundo um tempo que não lhe é inteiramente
homogêneo. É um velho problema, isso ocorreu primeiro no tempo do freudismo,
sob a forma de não fornecer interpretação prematura. 0 problema agora é encontrar
o tempo próprio do desejo do matema.
— Tenho uma pergunta muito simples a fazer. Ontem, o senhor começou sua
exposição fazendo uma diferença entre a boa metafísica e a má metafísica. A boa
metafísica, o senhor definiu como sendo a ciência do des-ser. Eu entendi o des-ser
como liberdade. Então, a boa metafísica seria a ciência da liberdade. Hoje, o senhor
terminou a exposição, falando sobre a liberdade em Kierkegaard, a liberdade de
escolha da escolha. A minha pergunta é a seguinte: a antifilosofia, teria como
fundamento a liberdade? E ainda, se for esta a resposta, a antifilosofia é uma boa
metafísica?
A. Badiou — Poderíamos responder imediatamente que sim, porque a distinção
entre boa e má metafísica é uma distinção do próprio Lacan, encontrável nos textos
de Lacan. Pode-se então sustentar que a antifilosofia como a ciência da liberdade —
gosto bastante de sua fórmula — é algo como a boa metafísica. É por isso que minha
posição filosófica é sempre absorver a maior quantidade possível de antifilosofia.
Aliás, acredito que o trabalho filosófico, em grande parte, é esse: compreender que
há, na antifilosofia, uma espécie de chamada à ordem, da questão da liberdade —
liberdade, como definimos hoje. E, por conseguinte, a filosofia deve atravessar a
antifilosofia. Já disse isso muitas vezes: a meu ver, não há filosofia contemporânea,
se ela não suportar a prova de Lacan. Mas eu não fui muito ouvido por meus colegas...

NOTA
1. Em francês, hom ofonia entre midi, m eio-dia e mi-dit, m eio-dito (N.T.).
Letra Freudiana. Colóquio Psicanálise e Filosofia — Sujeito e Linguagem — Ano XVI
n° 22 (1997)

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