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André Green, pensador da psicanálise

André Green, pensador da psicanálise

Cláudio Laks Eizirik*, Porto Alegre

Avenue de l´Observatoire, número 9, Paris, julho de 1992. Estou sentado


no consultório de André Green, recheado de livros, revistas, uma enorme
reprodução do quadro de Leonardo A Virgem, o Menino e Sant´Ana (que Freud
analisou em seu estudo sobre o pintor) e algumas esculturas. Minha visita tem
dois objetivos: ouvi-lo sobre um conceito da técnica psicanalítica que estou
estudando e convidá-lo a vir a Porto Alegre, o que ocorreu no ano seguinte. A
conversa se estende para diversos temas. Green passeia pela obra de Freud e, ao
mesmo tempo, relata episódios de sua vida e de seu relacionamento com outros
pioneiros da psicanálise e conta sobre si mesmo, sobre seus trabalhos, rotina,
planos. Tantos anos e inúmeros encontros depois, ainda guardo na memória as
impressões daquele dia em que, na intimidade da sala em que trabalhava, pude
perceber a grandeza de uma mente inquieta, profunda, culta na mais ampla acepção
desta palavra, e com uma agudeza para captar o fenômeno psíquico que transparece
em sua vasta obra.
André Green nasceu no Cairo, 1927, numa família de judeus sefaraditas.
Passou nessa cidade sua infância e adolescência, convivendo com a comunidade
europeia, o que desde logo lhe permitiu uma visão cosmopolita do mundo, e
estudou no liceu francês; após doenças em sua família e dificuldades financeiras
do pai, mudou-se para Paris em 1946.
Nos anos seguintes, Green estudou medicina e depois psiquiatria, sob a
orientação de um dos maiores psiquiatras da época, Henri Ey, em quem sempre
reconheceu uma figura paterna, chegando a declarar que tivera com Ey o que
faltara com o pai, principalmente a possibilidade de discutir e trocar pontos de
vista. Mais adiante, conviveu e estudou com outra grande figura da psiquiatria da
época, Ajuriaguerra.

* Psicanalista da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, Ex- Presidente da Associação


Psicanalítica Internacional.

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Cláudio Laks Eizirik

Seu próximo desafio foi tornar-se psicanalista, apesar das críticas de seus
colegas psiquiatras, na Sociedade Psicanalítica de Paris, da qual seria presidente
e diretor do instituto de ensino anos mais tarde e um dos mais destacados membros.
Apesar de ser este um período em que Lacan já se afastara dessa sociedade e da
Associação Psicanalítica Internacional, Green frequentou seus seminários durante
vários anos e estudou com seriedade suas contribuições, demonstrando outra vez
sua independência de pensamento. Embora tenha posteriormente rompido com
Lacan e escrito trabalhos críticos a ele, nunca deixou de reconhecer sua influência
na forma como foi desenvolvendo suas próprias ideias.
Mais adiante, ao mesmo tempo em que continuava sua leitura de Freud, de
cuja obra foi possivelmente um dos mais profundos conhecedores, passou também
a se interessar pelas obras de dois grandes psicanalistas ingleses, Bion e Winnicott,
e a partir daí suas contribuições para o pensamento psicanalítico se constituíram
numa síntese pessoal e numa elaboração desses quatro grandes autores com os
quais, pode-se dizer, continuou dialogando ao longo de sua vida. Mas fica claro
com quem mais dialogou, quando iniciou suas conferências brasileiras no Rio de
Janeiro, em 1986, com esta frase:

Se me perguntassem, na condição de convidado que vem de longe para


lhes falar o que há de novo em psicanálise, eu lhes responderia: Freud. No
ano passado, reli muitos de seus textos e refleti sobre certos conceitos.
Dei-me conta então de que eu, que leio Freud há 35 anos, não tinha
compreendido o que ele queria dizer [...] (Green, 1990).

Como muitos psicanalistas de todas as latitudes, se me perguntassem hoje


o que há de novo na psicanálise, contudo, eu discordaria e diria: Green. Ao longo
das últimas décadas, André Green dedicou sua enorme capacidade à psicanálise.
Através da vitalidade de suas reflexões abriu novos caminhos para o futuro, sem
repudiar a sabedoria do passado.
Sua vasta obra pode ser grosseiramente dividida nos trabalhos teóricos e
clínicos, em que ampliou a chamada metapsicologia freudiana, e nos trabalhos de
psicanálise aplicada, em que abordou, com profundidade e perspicácia, inúmeros
domínios da cultura.
Dentre seus inúmeros livros publicados (e acabamos de saber por Fernando
Urribarri, durante a homenagem que a SPPA prestou a Green em 16 de março,
que há mais dois em vias de publicação), destacam-se O discurso vivo (1973),
Narcisismo de vida, narcisismo de morte (1983), Sobre a loucura pessoal (1990),
O desligamento (1992), O trabalho do negativo (1993), Um psicanalista engajado

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André Green, pensador da psicanálise

(conversações com Manuel Macias, 1994), A causalidade psíquica (1995), As


cadeias de Eros (1997), O tempo fragmentado (2000), O pensamento clínico
(2002a)1, Ideia diretrizes para uma psicanálise contemporânea (2002), Sortilégios
da sedução (2005), Por que as pulsões de destruição ou de morte? (2007), Ilusões
e desilusões do trabalho psicanalítico (2010).
Do seu vasto conjunto de contribuições ao campo teórico e clínico, destaca-
se seu já clássico trabalho sobre o complexo da mãe morta, em que mostra o
efeito devastador sobre o psiquismo dos filhos da depressão das mães e de sua
indisponibilidade emocional, o que as torna, embora vivas, emocionalmente
mortas. Num momento em que tanto se estuda a depressão, este trabalho é
indispensável para qualquer pessoa que trabalhe com doentes mentais. Em seguida,
seus estudos sobre os casos limite, também chamados de fronteiriços ou borderline,
lançam nova luz sobre este desafiador conjunto de patologias mentais. De um
ponto de vista mais teórico, suas noções sobre desobjetalização, terceiridade,
narcisismo de vida e narcisismo de morte, a importância do afeto, das
representações, da linguagem, a introdução do negativo em psicanálise, das forças
da destrutividade e da maldade, e sua crítica ao abandono da primazia da
sexualidade (num artigo crítico que mobilizou a IPA a escolher a sexualidade
como tema do congresso de Barcelona em 1997) figuram entre as mais destacadas.
Green sempre se interessou pela cultura em suas várias expressões, e a
outra parte de sua obra consiste em analisar, do ponto de vista psicanalítico, as
principais tragédias gregas (em especial, naturalmente, o Édipo Rei), várias
tragédias de Shakespeare, pinturas de Leonardo, obras de Proust, Conrad e de
Borges. Para dar apenas um exemplo, certamente muito caro a todos nós, latino
americanos, seu trabalho O progresso e o esquecimento é ao mesmo tempo uma
homenagem e uma fina análise de sua comovente visita a Borges.
Nos últimos anos, Green se tornou um personagem central do movimento
psicanalítico internacional, e suas viagens para conferências e supervisões um
acontecimento. Algumas de suas conferências eram verdadeiras experiências
estéticas, tal a fluidez e a elegância com que abordava as mais complexas questões.
Algumas vezes, por outro lado, seus ouvintes encontravam reações impacientes e
mesmo ríspidas aos questionamentos que lhe eram feitos. Isto não impediu,
contudo, que sua total devoção à psicanálise acabasse por lhe granjear um respeito
generalizado e o reconhecimento de seu monumental trabalho.
Na abertura do Congresso Internacional de Psicanálise de 2007, em Berlim,
recebeu o maior prêmio da Associação Psicanalítica Internacional, denominado

1
As traduções dos títulos das obras de 2002a, 2005, 2007 e 2010 foram feitas pelo autor.

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Relevantes Realizações Científicas. Suas palavras de agradecimento foram uma


profissão de fé no futuro da psicanálise e um estímulo ao continuado trabalho dos
analistas. Após ter-lhe entregue o prêmio, e estando de pé ao seu lado, testemunhei
uma das cenas mais emocionantes daquele Congresso: toda a plateia de pé,
aplaudindo-o demoradamente, enquanto Green agradecia com um sorriso banhado
em lágrimas.
Avenue de l´Observatoire, número 9, Paris, 22 de janeiro de 2012. Calou-
se a voz de André Green; sua obra gigantesca continua iluminando os caminhos
da psicanálise e dos psicanalistas.

Referências

GREEN, A. (1990). Conferências brasileiras de André Green: metapsicologia dos limites. Rio de
Janeiro: Imago.

Recebido em 22/03/2012
Aceito em 29/03/2012

Revisão técnica de Luisa Rizzo

Cláudio Laks Eizirik


Rua Marquês do Pombal, 783/307
90540-001 – Porto Alegre – RS – Brasil
e-mail: ceizirik.ez@terra.com.br

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