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Apresentação
A.B.A.T.E.D
Setembro de 1976
ANÁLISE EXISTENCIAL – DASEINANALYSE
Mas negligenciando este fato, Ludwig Binswanger não tardou a descobrir – e nisto
ele foi o primeiro – o quanto a concepção heideggeriana da essência do existir humano era
capital para a psiquiatria, à qual serviria de nova base, e como as características de ser do
homem expostas em “Ser e Tempo” se revestiam da maior importância para a medicina em
seu conjunto e para a psiquiatria em particular. À conselho do psiquiatra suíço Jakob Wirsch,
Ludwig Binswanger utilizou em seguida o conceito de daseinsanalyse que era originalmente
de ordem puramente filosófica e ontológica, num sentido completamente diferente, ôntico.
Desde 1941, Binswanger considerou que a denominação “daseinsanalyse psiquiátrica” trazia
um novo método de investigação que deveria permitir-lhe compreender e descrever, sob um
ângulo fenomenológico, os sintomas e as síndromes concretas, distintos e diretamente
perceptíveis surgidos da psicopatologia. Desviava-se assim, expressamente, do método de
pensamento científico que prevalecia, até então, no domínio da psiquiatria e da psicanálise.
Essas duas disciplinas estabeleceram de fato – como Freud comprazia-se em dizer, de modo
um tanto chocante em nome de todos os cientistas – como princípio absoluto, o interesse
menor pelos fenômenos diretamente perceptíveis, do que pelas forças e tendências supostas e
“escondidas” atrás desses fenômenos.
2
- N.T. – Do alemão “sorge”, que significa: cuidar, zelar, preocupar-se, etc.
Coerente consigo mesmo, parou logo de qualificar suas pesquisas de “daseinsanalíticas”.
Voltou, então, à posição adotada por Husserl, o mestre de Heidegger, que não tinha ainda
chegado no ponto de ultrapassar a noção de consciência subjetiva existente primordialmente
em si, e penetrando no sentido do fenômeno do “mundo” heideggeriano, Binswanger deu
mesmo um outro nome à nova orientação de sua pesquisa, intitulando-a de “fenomenologia
antropológica”.
Este pensamento serviu como base para a elaboração de novos caminhos para uma
nova aproximação da medicina e da psicologia. É por isso que a “Daseinsanalyse” não deve
ser considerada como mais uma “escola” que simplesmente se agrupa a todas as que já
existem. É, antes de tudo e primordialmente, uma nova abordagem do conjunto de fenômenos
chamados normais e patológicos do existir humano. Mas esta abordagem não é mais que um
caminho, um meio de acesso. Não leva a um tesouro de conclusões científicas.
Assim, por exemplo, roupas guardadas num armário não sabem absolutamente que
estão nesse lugar e o armário não tem a mínima idéia de que contém roupas. Completamente
diferente, é o ser-no-mundo do homem. O existir não cessa nos limites da pele do homem e
nela não está contido. Senão, nunca uma pessoa olhando pela janela de seu quarto seria capaz
de ver a casa situada à sua frente como uma casa. O homem, aliás, não é para ele somente um
objeto isolado, por assim dizer, suspenso no vazio. Ao primeiro olhar, já lhe é dado ver a casa
como uma casa, que lhe fala por uma série de significados e de relações específicas. A casa
enquanto tal indica, por exemplo, diretamente para a aquele que a olha, que ela serve de
habitação para os homens. E o leva, em seguida, ao solo que a sustenta. Por intermédio de seu
telhado, se revela como uma proteção tanto do calor solar quanto das tempestades. Essas são
algumas das inumeráveis referências significativas que pertencem, de início, a cada casa. Tais
referências não são feitas posteriormente pelo homem, mas, elas mesmas, pertencem
primordialmente à própria casa.
Mas como essa possibilidade de ver, tanto no sentido “óptico” como no sentido
“figurado”, seria possível se o que se encontra entre a pessoa expectadora e a casa da frente
não fosse aberto, “transparente”? E, além disso, seria impossível para essa pessoa ver uma
casa se ela mesma, enquanto expectadora, não fosse em sua essência aberta, abertura que
consiste em um poder ver a presença que a ela se oferece e em um poder compreender os
diversos significados que chegam a partir dos lugares onde está, o que vem ao seu encontro,
na abertura espacial e temporal de seu mundo. O homem pode perceber uma casa enquanto a
casa de frente, unicamente porque o existir humano subentende, ocupa, ou, melhor ainda, é de
imediato, uma abertura transparente e estendida para o que se encontra no mundo, do mais
próximo ao mais longínquo, tanto no sentido espacial quanto temporal. Podemos também
comparar a essência da existência humana a uma clareira que consiste em um poder ver o que
vem a seu encontro. Assim, o existir humano é sempre conforme sua natureza mais profunda,
um “ek-stare” no sentido próprio do termo e pode enquanto abertura iluminadora estar tanto
aqui como ali e se encontrar numa livre relação com aquilo que se oferece a ele na abertura
iluminadora de seu mundo. Já que em sua essência o homem tem não somente a possibilidade
de escolher ele mesmo que tipo de relação quer estabelecer com os diferentes entes que se
apresentam a ele em meio à multiplicidade de dados do mundo, mas também porque lhe é
necessário, a todo momento, tomar pessoalmente tais decisões, o ser humano - e só ele - deve
ser qualificado de ser-si-mesmo.
Esta possibilidade de existir no modo de ser-si-mesmo, não somente não exclui, mas
na realidade inclui, que todo homem se encontra primordialmente e sempre,
fundamentalmente co-existindo com outras pessoas. Nunca o homem se encontrou
primordialmente como um sujeito individual, subsistindo apenas para si mesmo, sozinho, e
que apenas mais tarde teria sido levado a entrar em contato com outras pessoas. Os homens
estão primordialmente, e sempre, co-existindo perto das mesmas coisas de um mesmo mundo;
contribuem sempre primariamente em comum, embora cada um a seu modo, para manter
aberto este mundo “descoberto”. É isto que constitui o caráter fundamental de ser-com-o-
outro primordial e é sobre isto que se fundam os modos mais diversos de desdobramento do
ser-com-o-outro e notadamente a possibilidade de uma ciência como a sociologia.
É, contudo, precisamente quando o homem morre que fica evidenciado algo também
característico do ser humano. De repente, aquilo que justamente constituía a corporeidade do
homem vivo mudou de característica de ser e tornou-se um corpo inanimado, no espaço físico
mensurável. Por muito tempo, foi freqüente a medicina querer compreender o homem sadio
ou doente a partir da redução de seu existir a cadáver. Mas isto oferecia uma perspectiva de
pesquisa unicamente para o estudo de anatomia. Ora, enquanto um homem ainda existe, sua
corporeidade é de uma natureza completamente diferente que não pode ser comparada
somente ao cadáver. Qualquer corpo vivo não pode, portanto, ser compreendido, conforme
sua natureza, a não ser que seja considerado como a corporeidade da relação com aquilo que
se desvela ao homem. Se, por exemplo, um sapateiro coloca sola num sapato, sua mão direita
não constitui uma parte objetivada de seu corpo, mas é primordialmente integrante do todo
relacional da tarefa em que ele está empenhado. Só se pode dizer de seu corpo que ele é, no
existir humano, aquilo que pode ser e percebido também pelos sentidos e por isso mesmo
medido e calculado até certo ponto como todo objeto inanimado. Entretanto, a verdadeira
essência da corporeidade escapa sempre e imediatamente no momento exato em que se faz
uso da possibilidade de vê-la como qualquer objeto inanimado e mensurável.
AS DESCOBERTAS DASEINSANALÍTICAS, BASE TEÓRICA DE UMA NOVA
PSIQUIATRIA
Hoje, mais numerosos que as diversas forma de histeria são os modos de ser-doente
que se caracterizam por uma redução na realização das existenciálias, que são a afinação
(“Gestimmtheit”) e o ser-aberto. O quadro clássico da loucura maníaco-depressiva entra
naturalmente nesta categoria. O caminho daseinsanalítico permite, como nenhum outro o
havia feito até o presente, compreender igualmente a constituição fundamental das pessoas
atingidas por essa doença. Esta constituição fundamental foi objeto de uma descrição
detalhada por M. Boss em seu livro “Fundamentos da medicina e da psicologia”. Mas
atualmente, na prática cotidiana, muito mais numerosas do que esses casos de loucura
circular, são as perturbações da afinação que se pode considerar como a forma da neurose
mais representativa de nossa época. Se na época de Charcot e de Freud e até a Primeira
Guerra Mundial inclusive os grandes fenômenos histéricos predominavam entre as neuroses,
foram em seguida as neuroses orgânicas que predominaram. Hoje encontra-se, cada vez mais,
pessoas sofrendo de uma opressão vaga, do absurdo e do tédio de sua vida. Como essas
pessoas não apresentam nem sintomas psíquicos nem distúrbios psicossomáticos evidentes,
frequentemente nem elas nem seus médicos sabem o que fazer. Na verdade, não se trata de
uma doença no sentido comum do termo. Mesmo os padres e os pastores estão desamparados
diante desse mal. Frequentemente esses doentes tentam durante muito tempo mascarar seu
desespero se entorpecendo, seja pelo trabalho, pelas distrações ou pelas drogas. Mas
definitivamente, esta contínua tapeação não atinge sua finalidade e eles mostram então, de
modo evidente, como nessas distimias depressivas tão freqüentes em nossos dias se revelam o
tédio e o absurdo de sua vida. Eles revelam brutalmente qual distúrbio da abertura para o
mundo do ser-aí é em verdade o tédio. Certamente o homem pode sempre estar aberto para o
que vem a seu encontro enquanto um ente, mas somente de um modo tal que tudo, coisas e
seres, só podem mostrar-se a ele como igualmente desprovidos de mensagem. As pessoas que
sofrem do tédio permanecem fundamentalmente indiferentes a tudo. O que se oferece para
elas retira-se imediatamente e, se não desaparece totalmente, pelo menos se afasta a ponto de
não mais lhes tocar. Seu tédio não se limita a certas coisas. De fato, se entediam
permanentemente; sentem o tempo comprido.3 Isto quer dizer que no tédio é principalmente a
temporalidade que é afetada. Não existe mais nem verdadeiro futuro, nem passado rico em
experiência, nem presente cheio de sentido para aqueles que se entediam. Essas 3 dimensões
ou momentos temporais “ek-staticos” tornam-se relações que não lhe dizem mais nada.
3
- Etimologicamente a palavra alemã Langweile, tédio, se decompõe em Lang: comprido e Weile: o
tempo, a duração
doente mais humano e ao mesmo tempo mais desumano. É por isso que diz respeito não
somente ao psiquiatra, mas também ao conjunto dos médicos e mais geralmente ainda a todos
os homens. Justamente porque aqui se manifesta abertamente uma grave perturbação do
caráter fundamental do ser humano, isto é, em seu ser-aberto, esta doença mais do que
qualquer outra coisa lança uma luz sobre a natureza mais profunda de nosso existir e por isso
mesmo sobre sua fragilidade.
Isto explica porque ninguém pode ser considerado esquizofrênico de modo geral e
porque a esquizofrenia não pode ser considerada como uma doença em si mesma. Isolada em
si, ela somente pode ser como abstração dos cientistas. É, portanto, mais conveniente em cada
caso a seguinte pergunta: Esquizofrênico diante de qual situação relacional acima de suas
forças? Por exemplo, uma mulher que enquanto esposa e mãe de três crianças apresenta cada
vez mais distúrbios de comportamento esquizofrênico pode ter todos os sintomas específicos
da esquizofrenia, inclusive um autismo pronunciado, eliminados rapidamente e para sempre
no momento em que ela for liberada desta situação existencial que exige demais dela, tendo
apenas que responder às exigências que a vida coloca pra uma mulher solteira exercendo sua
profissão. Mesmo nos doentes internados muito atingidos, sofrendo alucinações corporais e
idéias delirantes, toda manifestação esquizofrênica pode cessar de um dia pra o outro se o
psicoterapeuta conseguir obter de seu doente que a criancinha abandonada que ele no fundo
permaneceu se entregue em total confiança e se ponha aos seus cuidados numa espécie de
relação criança-pais, à qual ele é ainda capaz de responder enquanto ser-si-mesmo inteiro.
Essas constatações permitem definir o modo de ser-doente esquizofrênico como privação
extrema que consiste em não poder-ser-si-mesmo de modo livre e autônomo, isto é, não mais
possuir senão numa forma reduzida esse traço distintivo do existir humano. Mas isto quer
dizer, ao mesmo tempo, que a esquizofrenia só pode ser definida negativamente. Não existe
nos esquizofrênicos um único modo de comportamento em relação ao que aparece em seu
mundo que não se encontre igualmente nas pessoas sadias. O caráter patológico desses
doentes reside no fato de lhes faltar uma possibilidade de existir em relação aos seres sãos.
Falta-lhes acentuadamente a capacidade de assumir as possibilidades constitutivas de seu ser-
aí para tornar-se um ser-si-mesmo livre e autônomo, cuja abertura para o mundo possa se
manter firme face a tudo que a eles se oferece. São na realidade de modos diversos, presa de
seus semelhantes assim como das coisas inanimadas que os rodeiam. Seu ser-aí é de algum
modo aspirado pelos outros entes nos quais submerge. Assim, pode-se dizer que existem em
grande parte fora deles mesmos. São tão pouco capazes de assumir as suas possibilidades num
ser-si-mesmo autônomo que somente podem sentir o que se mostra a eles como algo estranho
e imposto de fora. É por isso que tão frequentemente têm a impressão de que o que a eles se
oferece é ditado por “vozes” exteriores e que tudo o que fazem e pensam é feito e pensado por
outras pessoas.
Ainda mais do que nos esquizofrênicos, parece haver uma perturbação da liberdade
existencial nos neuróticos obsessivos. De fato, o que existe de mais oposto à liberdade do que
a obsessão? Na realidade, entretanto, a obsessão nunca é o contrário da liberdade. Toda
obsessão é sempre uma forma particular da liberdade, ainda que muito deficiente. Também só
podemos falar de obsessão em relação aos seres que são, por natureza, dotados de liberdade.
Uma pedra, por exemplo, que é uma coisa desprovida de liberdade e de abertura, não poderá
nunca apresentar um comportamento obsessivo mesmo que, conforme as leis da natureza,
caia, sempre, igualmente de cima pra baixo.
As manifestações patológicas da neurose obsessiva e o caráter obsessivo fazem parte
de um comportamento de defesa semelhante à “atitude de afastamento” já mencionada a
propósito dos esquizóides e dos autistas. Nos neuróticos obsessivos igualmente, a liberdade e
a abertura do existir são atingidos: essas pessoas de fato só podem ocupar-se com as coisas
em relações distantes que consistem em reflexões controladas e objetivas sobre aquilo que
percebem. Essa distância controlada é, sobretudo, marcante em relação às coisas que lhes
aparecem como sujas, em decomposição ou patogênicas. Os neuróticos obsessivos são
forçados a se manter rigorosamente à distância dessas coisas e delas se proteger, porque seu
próprio ser-si-mesmo está ameaçado de soçobrar naquilo que eles julgam indigno do homem.