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EDIÇÃO

Manica Casa Nova

REVISÃO

Marco Antonio Casanova

CAPA E PROJETO GRÁFICO

Giovana Paape

DIAGRAMAÇÃO DASEINSANÁLISE
Alexandre Sacha Paape Casa Nova
FENOMENOLOGIA E PSICANÁLISE
IMAGEM DE CAPA

Alberto Giacometti - A floresta ( 1950)

D255e

Françoise Dastur e Philippe Cabestan


DASEINSANÁLISE: FENOMENOLOGIA E PSICANÁLISE
Tradução: Alexander de Carvalho; Revisão: Marco Casanova
1 ed. - Rio de Janeiro: Via Verita - 2015

Tradução de: Daseinsanalyse: Phenomenologie et Psychanalise


255 p. ; 14x23 cm. Françoise Dastur e Philippe Cabestan

ISBN:9788564565319

1. Psicologia, Psicanálise. 2. Fenomenologia - I. Título


1ª edição
432C
Rio de Janeiro, 2015
Todos os direitos dessa edição reservados à
VIA VERITA EDITORA/ Instituto Dasein
Rua Sara Vilela 560
Jardim Botânico - Rio de Janeiro, RJ, 22460-180
Tel.: 21 24222109
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institu todasein@insti tu todasein. org
vv

11 111111 o I dade mais


11101 , • llo Igualitária
riativa (1907), que constitui a principal referência filosó- l11w1r de "antropologia fenomenológica" muito mais tarde,
fica de Minkowski. É necessário reconhecer, com Tatos- p111 volta de 1943. E é em 1942 que ele publicou seu livro
sian, que "a impureza da fenomenologia de Minkowski", 1111tl1; importante, intitulado Grundformen und Erkenntnis
da qual ele relembra a "repugnância a todo sistema, foi 1111•11 chlichen Daseins ("Formas fundamentais e conheci-
fenomenológica'v-. 1111 nto da existência humana").
De Binswanger, conhece-se na França principal-
A. A obra fundadora de Ludwig Binswanger (1881-1966) "" 11( o texto intitulado Sonho e existência que foi tradu-
ltln m 1954 por Jacqueline Verdeaux e prefaciado por
11 lt 'l Foucault. Em seguida empreendeu-se, nos anos
Ludwig Binswanger foi o primeiro entre os psiquia- 1-nlintes à morte de Binswanger, a tradução de nume-
tras a se interessar pela fenomenologia. É na crítica ao , 11 o artigos que precedem e, principalmente, seguem a
psicologismo à qual se dedica Husserl no primeiro tomo de p11 r I o de seu livro mais importante e que foram reunidos
suas Investigações lógicas, publicadas em 1900, e em sua 111 du s coleções: Discursos, Percursos e Freud, publicado
definição da consciência em termos de intencionalidade e 111 1970 e Introdução à análise existencial, publicada no
de sentido, que ele encontrou pela primeira vez os motivos 1111 eguinte. Os últimos textos de Binswanger (dentre os
de se opor ao naturalismo e ao biologismo de Freud. Ele 111111 Melancolia e Mania, publicado em 1960 e Delírio,
descobriu em seguida, graças à leitura que fez desde 111 11) 5) esboçam um "retorno a Husserl" e são guiados
1928 de Ser e tempo, que o termo consciência, próprio a 111 Interpretação da fenomenologia husserliana dada
Husserl, assim como vida, freudiano, caracterizavam o ser 11 Wilhelm Szilasi, fenomenólogo húngaro instalado na
do homem apenas de maneira imperfeita. 1 11111nha e autor de uma Introdução à fenomenologia de
Binswanger designou inicialmente sua pesquisa, ,l1111111d Husserl, publicada em 1959 Depreende-se de
1 2
• •

que se abriu à fenomenologia husserliana, "antropologia t 11111 esses textos que Binswanger, homem dotado de
fenomenológica"; e, assim, ele se integrou à longa corrente 1111, rultura enciclopédica, é muito mais um pensador
de mesmo nome que reuniu a partir dos anos 1920, além do 11 11111 médico. É isso que explica que a Daseinsanálise
próprio Binswanger, o neurologista Victor von Weizsâcker, 111 1 ungeriana se caracterize, em oposição à psicanálise
autor de O círculo da estrutura ( 1939), o neuropsiquiatria 11 11 1 e de uma motivação propriamente terapêutica,
Erwin Strauss, autor de Do sentido dos sentidos (1935), o , 11111 uidado antes de tudo científico, proveniente da
psiquiatra francês Eugêne Minkowski e ainda outros que 111 li, ão de ver faltar à psicopatologia um fundamento
invocavam a Psicopatologia geral de Jaspers, e também ti Ir urológico. É, então, com um cuidado inicialmente
obras de outros filósofos, entre os quais Scheller, Kierke- , t11clnl gico que Binswanger se lança ao domínio do
gaard, Brentano, Dilthey, Natorp, Lipps, Bergson, antes 1 t11d11 1 s ciências naturais no campo da psiquiatria.
de se fazerem sentir as influências decisivas de Husserl e , ponto, ele se apoia na "destruição" heideggeriana
Heidegger. De fato, o aparecimento de Ser e tempo em 1927 • 11 Ir< ianismo, isto é, da determinação do homem como

constituiu para Binswanger um verdadeiro acontecimen- ti lt11 ele ua relação com o mundo em termos de relação
to, pois surge a partir daí uma nova definição do homem 1 1111 objeto, relação essa que ele não hesita em chamar
compreendido como Dasein e ser-no-mundo. Binswanger, 1 11,·c·r" da ciência.
porém, decidiu -se por usar o termo "Daseinsanálise" no
,ll11ii, Einji1hrung in die Phiinomenologie Edmund Husserls (Intro-
161. A. Tatossian, "Eugéne Minkowski ou l'occasion manquée", Psychiatri ' ,1 f, 11w11 nologia de Edmund Huseerb, Niemeyer, Tübingen, 1959. A
t xistence, P. Fédida e J. Schotte (editores), p. 15. 111, , 11 d,• t <: texto apareceu em Le Cercle herméneutique no final de 2011.

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1. Elementos biográficos e bibliográficos lo sanatório até 1956. Ele morreu dez anos mais tarde,
110 dia 5 de fevereiro de 1966, deixando uma obra que se
tende por quase sessenta anos e compreende, ao lado
Ludwig Binswanger nasceu no dia 13 de abril d uma dúzia de livros, um grande número de artigos. Os
de 1881 numa família de psiquiatras; Seu avô, também t t s mais importantes de Binswanger foram reunidos em
chamado Ludwig Binswanger, fundara em 1857 em Freu- 1p1ntro volumes editados por Herzog e Hans-Jürge Brain,
zlingen, perto de Constança, uma clínica particular dedi- 11 kl lberg, Roland Asanger Verlag, 1992-1994, sob o título
cada ao tratamento das doenças dos nervos e do espírito, usçeuiãhlte Werke" (Obras escolhidas):
o sanatório "Belleuue". Robert Binswanger (1850-19.10),
seu filho, que se encarregou de seguir a obra de seu pai, Volume I
construiu novas instalações para o sanatório, onde nu-
merosos pacientes foram recebidos, vindos certamente Über ldeenflucht, Zurich, Ore/1-Füssli, 1933; Sur la fuite des idées
( obre a fuga de ideias), trad. fr. de M Dupuis, com a colaboração
de muito longe e pertencentes, a maioria, à classe mais
111• C. von Neuss et M Richir, Grenoble Millon, 2000
culta, como o pintor Ernst Ludwig Kirchner, o bailarino
Vaslav Nijinski e o historiador de arte Aby Warburg=. É 11, / Formen missglückten Daseins. Verstiegenheit, Verschrobenheit,
nesse contexto que cresce Ludwig Binswanger. Decidido Monleriertheit, Tübingen, Niemeyer, 1956; Trais formes manquées de la
a ser sucessor de seu pai, ele escolhe estudar medicina. 111é ence humaine. La présomption, La distorsion, Le maniérisme (Três
/, 11 mas malogradas da presença humana. A presunção, a distorção, o ma-
Ele concluiu seus estudos de medicina em Burghõlzli, no
iwtnsmo), trad. fr. de J.-M Froissart, Paris, Le Cercle Herméneutique, 2002.
hospital psiquiátrico da universidade de Zurique, do qual
Eugene Bleuler foi diretor de 1898 a 1927; deste último, Volume II
aliás, se diz ser o introdutor dos termos "esquizofrenia"
e "autismo" no vocabulário psiquiátrico. Foi aí que ele 1 ,, undjormen und Erkenntnis menschlichen Daseins (Formas funda-
111,•11t·a/s e entendimento do Dasein humano), Zurich, Niemeyer, 1942
defendeu sua tese, escrita sob a orientação de Carl Jung,
/r• cd. Munich, Reinhardt, 1954.
em 1906, período durante o qual Binswanger começa
a estudar os escritos de Freud, a quem ele presta uma Volume III
pequena visita em Viena em março de 1907. Essa visita
deu origem à longa correspondência que eles trocaram / 1 /11111 n, Verstehen, Deuten in der Psychoanalyse (1926); ''Apprendre
111111•xpérience, comprendre, interpréteren psvchanalvse" (Aprender
de 1908 a 1938 Em seguida, ele trabalhou com seu
1
••.
, , 111111 experiência, compreender, interpretar em psicanálise), trad. fr. R.
tio Otto Binswanger, professor da clínica psiquiátrica da 1 wl11trr, Discours, parcours et Freud, Paris, Gal/imard, 1970, p. 155-172.
Universidade de lena, onde teve de se ocupar de Nietzsche
no momento quando ele caiu na loucura. Em 1908, ele ~ lr/11 Weg zu Freud (1957); "Mon chemin vers Freud" (Meu caminho
entrou para o Bellevue como colaborador de seu pai, mas, , . .,,,, I, ud), trad. fr. R. Lewinter, Discours, parcours et Freud, Paris,
,1/ll11wrd, 1970, p. 241-262.
depois da morte repentina dele, em 1910, tomou a direção
/ l/111 l '1,(/nomenoiogie (1922); "De la phénoménotoqie" (Da fenomeno-
163. Ludwig Binswanger - Aby Warburg, La guérison infinite (A cura •u/11), t r od. fr. J. Verdeaux e R. Kuhn, lntroduction à l'anaiyse existentielle
infinita), Histoire clinique d'Aby Warburg, trad. fr. M. Renouard e M. 1111, 11111 ão à análise existecial), Paris, E. de Minuit, 1971, p. 79-118.
Rueff., Paris, Payot e Rivages, 2007.
164. Sigmund Freud-Lugwig Binswanger, Correspondance 1908-1938, trad. /,, 11•,/1111ktion und innere Lebensgeschichte (1928); "Fonctioti vitale
Fr. De R. Menagem e M. Strauss, Paris, Calmann-Lévy. Encontra-se no final vie" (Função vital e história interior da vida),
, /11 t, tlll' lntérieure de la
do volume uma bibliografia bastante completa dos escritos de Binswanger, 1,/ t, I, Verdeaux e R. Kuhn, lntroduction à l'onatvse exlstentietie,
11 /, ri Minuit, 1971, p. 49-78.

66 67
/11111 11 111 11 d Existenz (1930); Le Rêve et l'Existence (O sonho e a exis- M lancholie und Manie, Phéinomenologische Studien, Pfullingen,
11 neta), trad. fr. J. Verdeaux, introdução de M. Foucault, Paris, Desc/ée Nuske, 1960; Mélancolie et manie (Melancolia e mania), trad. fr.
de Brouwer, 1954. Tradução republicada em lntroduction à l'analyse / M. Azorin e Y. Tatoyan, revista por A. Tatossian, apresentação de Y.
existentielle, Paris, E. de Minuit, 1971, p. 199-226. / 11/cier, Paris, PUF, 1987
1

Wandlungen in der Auffassung und Deutung des Traumes, Berlin, Wahn. Beitréige zur seiner phéinomenologischen und daseinsanalyti-
Springer, 1928. lf tien Erforschungen, Pfullingen, Neske, 1965; Délire. Contributions à
1111 étude phénomenologique et daseinsanalytique (Delírio. Contribui-
Das Raumproblem in die Psychopathologie (1932); Le problême de 1 c'lt•s a seu estudo fenomenológico e dasainsanalítico), trad. fr. J.-M.
/'espace en psychopathologie (O problema do espaço em psicopato- ·\mrln e Y. Tatoyan, revista por A. Tatossian, Grenoble, Million, 1993.
logia), trad. fr. e prefócio de C. Gros, Toulouse, Presses Universitaires
du Mirai/, 1998.
2. A questão do sonho
Geschehnis und Erlebnis (1931).

Über Psychotherapie (1935); "De la psychothérapie" (Da psicoterapia), Se há um fenômeno humano que desde sempre
trad. fr. J. Verdeaux e R. Kuhn, lntroduction à l'analyse existentiefle, , , 1'1'u dever se submeter à interpretação, esse fenõme-
Paris, E. de Minuit, 1971, p. 119-148.
onho; e isso atesta o quão pouco o homem sabe
Über die daseinsanalytische Forschungsrichtung in der Psychiatrie as de si mesmo e se vê obscuramente submetido
(1945); "Sur la direction de recherche ana/ytico-existentiel/e en psychia- que ele não controla. Depois do aparecimento,
trie" (Sobre a direção de pesquisa analítico-existencial em psiquiatria), ço do século XX, da Traumdeutung (A interpreta-
trad. fr. R. Lewinter, Discours, parcours et Freud, Paris, Gallimard, '" ,/11 anho) de Freud, que vê no sonho a "via régia" da
1970, p. 51-84.
11 uuúlise, passou-se a acreditar estar disponível um

Daseinsanalyse und Psychotherapie (1951); "Analyse existentielle et 1 11 qu dro de leitura do universo onírico, não deixando

psycniatrie", trad. fr. R. Lewinter, Discours, parcours et Freud, Paris, p11i_n l nenhuma outra abordagem possível. Mas o que
Gallimard, 1970, p. 85-120. 111 , nnger empreende no estudo histórico e crítico que ele
11 11,-,,rn em 1928, com o título "Variaçôes na apreensão
Über den Satz von Hoffmansthal : Was Geist ist, erfasst nur der
Bedréingte (1948) 1 1l rpretação do sonho desde os gregos até nossos
", , questão do sonho, é precisamente completar a
Über Sprache und Denken (1946) li 1111 ln da literatura científica do sonho" que compôe a
11 1d11ç o da Traumdeutung de Freud. Freud mesmo, a
Volume IV t 111 l linswanger enviou seu livro tão logo fora publica-

Der Mensch in der Psychiatrie (1956).


11n,1 :-; enganou ao admitir, na carta que lhe escreveu
1 1 d1· bril de 1928, que ele ficou "contrariado ao ver
Der Fali Eilen West. Eine anthropologisch-klinische Studie (1944-45). uuuas referências preciosas tinham sido omitidas na
,, vlsào dos sonhos", acrescentando que "não está
Der Fali Suzan Urban. Studien zum Schizophrenie-problem, 1952; Le cas 1111 n tureza ser um homem de estudo", o que lhe
Suzanne Urban. Etude sur la schizophrénie (O caso Suzanne Urban, Estudo
sobre a esquizofrenia), trad. fr. J. Verdeaux, Brionne, G. Montfort, 1988.
, 11iltc- dmirar sem inveja a aplicação de Binswanger
111d1 ilho":», Em suas Recordações de Sigmund Freud,
Einleitung zum Sammelband Schizophrenie, Pfullingen, Neske, 1957. 11111·cligido em 1956, Binswanger, fazendo alusão à
11,1 1 tn a, explica que Freud havia decidido omitir à

1 1111111(1 Freud-Ludwig Binswanger, Correspondence 1908-1938, p. 275.

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t ridade a bibliografia em seu Traumdeutung, decisão 111 o relativamente tarde, ao passo que anteriormente
lhe pareceu tanto mais "incompreensível" quanto mais 1 r compreendido como vindo do céu ou do cosmos,
estivesse consciente de que sua própria bibliografia 1 modo que cabia antes dizer que "algo sonha em mim"
stava incompleta, já que, "nesse domínio, não se podia 11111<> sublinha em seguida Boss, no livro que ele publi-
tr tar de ser exaustívo'v-. ' 11111 1·m 1975 com o título de "Es trãumie mir vergangene
A reação de Freud é, na verdade, bem compreensí- N,11'/11'', traduzido em francês por "Il m'est venu en rêve ... " 1
••

vel, pois isso que Binswanger chama modestamente de seu 1 , lo me em sonho). Também para Binswanger o sonho
"pequeno livro sobre o sonho" é um inventário de rara eru- 111 c·hega, ele não é produzido por nós; e é por isso que
dição do conjunto de textos dedicados no Ocidente a essa IIH: pôde reconhecer um valor "destinal", e mesmo
questão. Mas esse gosto pela literatura, pela poesia, pela 1'11!11 ti o. Eis aí a explicação para Binswanger ressaltar,
arte e pela filosofia sempre demonstrado por Binswanger, 111 , 011 lusão do estudo de 1928, voltando à lei dos três
gosto esse cujo início de meditação tinha sido influenciado t1Hlo de Augusto Comte que lhe servira de esquema
por suas leituras e seus contatos pessoais com filósofos 111, íur, que ela de modo nenhum significou, no domínio
e artistas, não é a única coisa que o separa de Freud, de t, Iutcrpretação do sonho, a vitória definitiva da ciência
quem se conhece a parca estima que tinha pela filosofia. 1111 ll iv t, a qual não conseguiria dar conta da totalidade

É principalmente a conclusão do livro, em que Binswan- l11 11111ndo, um mundo no qual vivemos, agimos e senti-
ger apela a uma metafisica, se não do sonho, certamente "' , ,. que não é um mero objeto de conhecimento para
do espírito como o objetivo das pesquisas científicas, que 111 A1 nas a tomada em consideração, pela filosofia, da
Freud assinala, precisando que ela o "divertiu mais do 11111 11 o espiritual de nossa experiência do mundo pode
que o irritou", justamente porque ela termina com a afir- 1111 uhrir verdadeiramente a porta do sonho.
mação segunda a qual tal metafisica só poderia conduzir onho e existência, que apareceu em forma de
à ideia de Deus, "um Deus destilado através da filosofia", , t 1 , , om 1930 na Neue Schweizer Rundschau, constitui,
comenta Freud, acrescentando que "aqueles que chegam a 111111 diz Foucault na introdução à tradução francesa
se embriagar com alguma bebida sem álcool sempre (lhe) 1 , tc-xto de 1954, "o primeiro dos textos de Binswanger
pareceram um pouco bizarros't=. À embriaguez metafisica 11 pntence no sentido estrito à Daseinsanálise'w, Na
e religiosa que ele descobre em Binswanger, Freud opõe, 111, r-ntação que ele faz, em 1947, para a republicação
assim, sua própria sobriedade científica. E é sobre a questão I, 1, to, Binswanger deixa claro: "No ensaio Sonho e Exis-
da religiosidade, e mesmo da espiritualidade em geral, "' 111, o traço de essência fenomenológico-antropológico
que se separam de maneira decisiva Binswanger e Freud. 1 11 1 ·1·11 ão e da queda e as estruturas de mundo corres-
Isso que se desenha, então, já no estudo de 1928, ! 111d, 11t a essas duas direções do Daseinforam descritas
e que se expressará claramente em "Sonho e existência", l11 p1 lmeira vez e isso incialmente no interior do espaço
ensaio de 1930, é a rejeição de um simbolismo do sonho tal l 1111ilo (gestimmtes Raumes) e do espaço da tonalidade
como o compreende Freud. No esboço de uma história do t d, t1111to na vigília quanto no sonho. ( ... ) A influência da
sonho, da Grécia ao mundo latino e moderno, traçada por 111 , 1 Ir• l leidegger publicada nesse período, Ser e Tempo,
Binswanger, encontra-se, de fato, a ideia de que o sonho 111111lir• ta claramente nesse ensaio( ... ). A influência de
não foi compreendido como uma produção do sonhador
1 l lo s, "Il m'est venu en rêve ». Aspects théoriques et pratiques sur
11 li uulrique (Veio-me em sonho Aspectos teóricos e práticos sobre a
166. L. Binswanger, Analyse existentielle et psychanalyse freudienn 1 l11i/, 1111/rica) (1975), trad. fr. Ch. Bemer e P. David, Paris, PUF, 1989.
Discours, parcours et Freud, p. 348.
1 1 l Iluswanger, "Rêve et existence", Introduction à l'analyse exis-
167. Sigmund Freud-LudwigBinswanger, Correspondence 1908-1938, p. 275. ' 1/1 , p. 199 e sqs.

70 71
Heidegger se manifesta aqui na tentativa de elaborar uma ír-mática à qual ele dedica dois anos mais tarde, em 1932,
interpretação existencial e biográfica do sonho em ligação 11m artigo importante=, a do "espaço afinado" (gestimmter
com a distinção heraclítica entre sonho e vigília tomada l '<1um), e que ele desenvolverá em 1949 num estudo soberbo
no sentido de uma diferença entre a absorção no mundo de• licado ao dramaturgo norueguês Henrik Ibsen=. Na
próprio e a abertura ao mundo comum'v-. ·c•rdade, é graças a Heidegger que Binswanger descobriu
Para Binswanger, trata-se, na análise wnomenoló- 11 r lação entre o espaço, a tonalidade afetiva e o corpo. O
gica.,do sonho, ao contrário da Traumdeutung freudiana, p ço do Dasein, do existente, se articula, por oposição
de se ater ao conteúdo manifesto do sonho, como ele nota 1111 .spaço estendido e mensurável da ciência, de múltiplas
expressamente em Sonho e existência: "Depois do memo- uumeiras. Para a psicopatologia, consequentemente, não é
rável postulado de Freud com respeito à reconstrução , 1 I iente se referir ao espaço geométrico, mas lhe importa
dos pensamentos oníricos latentes, tem-se fortemente 11111ito mais levar em conta o espaço físico e o espaço
a tendência hoje em dia de relegar ao segundo plano de , 111 peral, o espaço orientado já evidenciado por outros re-
interesse o conteúdo onírico manifesto, pois um estudo 111 e ntantes da corrente fenomenológica em psiquiatria e
aprofundado desse conteúdo nos ensina a reconhecer o ,piilo que Binswanger chama de "e.§.paço afinad.o". Todos
estreito parentesco original entre o sentimento e a imagem, , 1 ~randes textos de psicopatologia de Binswanger dos
o humor suscitado e as imagens das quais o espírito está 1111 trinta a cinquenta, os de seu período "heideggeriano",
repleto":». De fato, o essencial é não separar o que é um: 1 11t uam o problema da espacialidade e permitem melhor
a imagem e a tonalidade afetiva, alegria ou tristeza, que o uupreender essa completa metamorfose da existência
sonho exprime espontaneamente. Comentando dois sonhos 111 : a psicose, pela qual o doente tem, sobretudo, a ex-
relatados pelo poeta alemão Gottfried Keller, nos quais in- 1" 1 I ncia de uma transformação de seu espaço afinado.
tervêm sucessivamente as imagens de uma águia planando 1111 o maníaco, por exemplo, o mundo mingua: para ele,
livremente no ar e de um milhano exausto que termina por 111111 as coisas são mais próximas, e, ao mesmo tempo,
sucumbir, Binswanger declara: "a imagem alegre e a alegria , paço perde sua profundidade. Não há na mania nem
que são ressentidas, a imagem triste e a tristeza que são 11 t I o nem periferia, nem lar nem estadia. Todas as coisas
experienciadas não formam senão uma coisa só: elas são a tonam fugazes, e não há nenhuma possibilidade de
expressão de um única e mesma onda que sobe e desce":». É 11 o que quer que seja a sério. Para a melancolia, é o
o tema que o Dasein se dá no sonho que é importante, não o 11111 irio, Quanto ao esquizofrênico, ele perdeu toda a base
que ele simboliza, e é, então, o conteúdo desse drama, dessa 1 p riência, e se eleva acima do mundo comum. Por
ação que é o sonho, que constitui seu elemento decisivo=. 11 notáveis análises da experiência da espacialidade na
O próprio Binswanger afirma já de início que "o
sonho, tudo somado, não é outra coisa senão uma mo- 1 1 l l nswanger, Le problême de l'espace en psychopathologie ( O proble-
/11 ,, paço em psicopatologia), trad. fr. C. Gros, Toulouse, PUM, 1998.
dalidade particular do ser humano'v-. Ele parte de uma
1 11111 wanger, Henrik Ibsen et le problême de l'auto-réalisation dans
1 ( l/,•11rik Ibsen e o problema da autorrealização na arte). trad. fr. M.
170. L. Binswanger, Ausgewãhlte Vortrãge und Aufsãtze, Francke, Berna, ,, .. ,111 , 1'6 fácio de H. Maldiney, Bruxelles, De Boeck, 1996. Ver também
1947, p. 9. Ver a respeito disso o ensaio de 1935 com o título: "A apreensão 1,,, 1111·, "Tãche vitale et réalisation de soi dans l'art: Binswanger et
heraclítica do homem", Instroduction à l'analyse existentielle, p. 159-198. ,, , 1 at Pathologies au regarde de la phénoménologie et de la psycha-
171. Ibid., p. 208. 1 , ( 1'111· fa vital e realização de si na arte : Binswanger e Ibsen, Arte
172. Ibid. ,1,,/111111 aos olhos da fenomenologia e da psicanálise). Paris, Le Cercle
"' 111111ique, 2005, pp. 45-55. No que concerne à analise binswan-
173. Ibid., p. 206.
11111 d11 .spacíalídede, ver C. Gros, Ludwig Binswanger, Chatou, Ed.
174. Ibid., p. 204. 1 1111111-1parence, 2010, "Corps et espace 1930-1957", p. 2013-281.

72 73
p i ose, Binswanger foi o primeiro a orientar a pesquisa pois os poetas e os sonhadores souberam que esse "nós"
p i opatológica na direção de uma apreensão global do 111 o é algo que se oferece abertamente à vista, mas é o que,
mundo do doente enquanto forma simbólica. 1111 contrário, como a physis heraclítica, se esconde sob
O verdadeiro ponto de partida de Sonho e existên- 11111 formas e não pode ser reduzido ao corpo individual e
ia é, então, a análise da experiência vivida da decepção ,, ua forma exterior=, Compreende-se que estamos por
enquanto imediatamente compreendida como uma queda. 1 unta disso sempre à entrada do sonho, já que o caráter
Há aí uma metáfora? Há aí uma transferência analógica 11 o localizável de nossa "presença", de nosso Dasein, nos
de uma experiência corporal (por exemplo, o relaxamento utoríza a nos reconhecer a nós mesmos nos outros entes
do tônus muscular dentro da pele) à esfera psíquica ou 11 nos identificar na recitação poética: "trata-se de mim:
o corpo seria a expressão da alma que lhe constituiria 11 ou (ou eu poderia ser, o que aqui dá no mesmo) esse
o sentido? Binswanger recua de suas concepções teóri- p11 saro indefeso ferido mortalmente'w.
cas demais para se voltar para Husserl e Heidegger que O sonho não é, então, um domínio particular se-
propõem uma compreensão da existência humana que i' r do do~do habitual de vigília, mas uma modali-
não parte da distinção entre o corpo e a alma, mas da de particular do ser-no-mundo. O que é essencial no
existência em si mesma, a qual se pretende compreender, 1111ho para Binswanger é a objetivação em imagens de
no caso presente, a partir do existencial que é a espacia- thnunqen, de tonalidades afetivas. De um ponto de vista
lidade, estrutura a priori da existência humana, como p lcopatológico, os sonhos que inquietam os psiquiatras
Heidegger o mostra em Ser e tempo, assim como a partir o precisamente aqueles nos quais o movimento dramá-
do ser-jogado na tonalidade efetiva e também a partir da lh o do sonho se desenrola para deixar todo o espaço ao
explicitação do compreender.v- Ascensão e queda têm, , 1111t údo tonal-afetívo=. Aqui, aquele que dorme se deixa
assim, para o Dasein, uma significação existencial e não , tivar pelo charme estético puramente subjetivo de seu
somente somática ou espiritual que provém da estrutura 1111ho, isto é, se deixa ir pelo caminho da perda do sentido
ontológica do Dasein, e é essa estrutura que constitui 1 vida "que é sempre algo de intersubjetivo, de geral,
a fonte da qual se retiram a linguagem, a imaginação 1 objetivo e de impessoal'w. O puro "afeto" representa
poética e o sonho=. Isso porque a queda e a ascensão não 111 o-limite de tal dissolução da existência, pois, como
são derivadas de outra coisa, explicáveis por outra coisa, 1111111 Binswanger, tal dissolução na pura subjetividade não
não são "símbolos" de outra coisa, pois, como o sublinha t 1 , em sentido estrito, "enquanto o homem é homem",
Binswanger, "aqui, ontologicamente falando, tropeçamos 11 qu implica que a existência não pode ser definida senão
no fundo":». Mas se queda e ascensão são existenciais, o 111110 tensão entre o subjetivo e o objetivo, entre mundo
que é, então, que existe? Essa questão: "nós os homens, 11 ívndo' e mundo comum, entre sonho e vigília.
quem somos nós e o que somos nós?, orienta, de fato, todo Na segunda parte de seu artigo, Binswanger se
o texto, como mostra a citação de Kierkegaard apontada t 111 a considerações históricas e mostra que lá onde se
por Binswanger em Sonho e existência: "convém antes se 1111 titui, segundo a perspectiva do humanismo moderno, a
ater a isso que significa: ser um homem". A resposta deve runpreensão e a elaboração do si enquanto estrutura fun-
ser buscada, para Binswanger, mais do lado da poesia, do 1 1111 ntal do homem, a saber, na Grécia, acha-se também a
mito e do sonho do que do lado da ciência e da filosofia,
li tuid., p. 203.
177. L. Binswanger, Introduction à l'analyse existentielle, p. 201. lbiá., p. 204.
178. Ibid., p. 202. lhid., p. 210.
179. Ibid., p. 203. tinâ., p. 212.

74 75
(', trutura ontológica da ascensão e da queda, não referida 1111111 ira de Hegel, que também considera que a individu-
n indivíduo, mais àqueles que são ligados pela raça ou pela lnlude não tem significação espiritual. Isso porque tanto
família a um destino comum, pois "o indivíduo, a raça, o p11, 11 Heráclito quanto para Hegel, o indivíduo isolado é
d stino e a divindade se misturam aqui intimamente num 111 lvndo da universalidade que lhe propicia o seu ser em
paço único">. O ocaso do mundo antigo tem como resul- , 11111um com os outros e que constitui a base de sua espi-
tado a distinção de interior e exterior, de sujeito e objeto, , t uulidade. Para Heráclito, a vigília é o despertar fora do
ao passo que, na Grécia, reina apenas a oposição do dia I' 11 amento individual subjetivo, fora da doxa, é a vida
e da noite, da clareza e da obscuridade e que os sonhos Hllindo as regras do universal. Sonhar é, portanto, se
mesmos pertencem ao lado noturno da existência. E se 1 t II ar do todo: "Sonhamos apenas porque não estamos
Binswanger vê na ideia expressa por Petrônio, o célebre 11 r .lação com o todo", explica Hegel em sua exposição
autor de Satyricon, de que os sonhos não vêm do céu, do 1, Ir-cria de Heráclito.
cosmos, mas que cada um os elabora por si mesmos, o signo O mal e o erro residem, assim, na separação do
patente da queda do mundo antigo e da hybris da individu- uuversal e nessa particularização do pensamento que
ação que caracteriza a era moderna=, é então porque ele 1111 urna precisamente essas coisas que o indivíduo só pode
considera implicitamente ao mesmo tempo que ser homem h r azinho, como o sonho, o sentimento e a imagina-
não pode ser compreendido como uma parte destacável º· Trata-se, portanto, para o homem e, em particular,
do todo e que o sonho manifesta de certa maneira essa 1 111 homem doente, de saber se ele quer manter seu
não-autonomia do homem. É essa compreensão do sonho 1 11 nmerrto individual, "seu teatro interior", como diz
como fenômeno ontológico e não simplesmente psicológico 1111 tio pacientes de Binswanger, ou se ele quer acordar
que ele vai desenvolver na terceira e última parte do artigo. 1 r11 sonho e tomar parte na vida universal. O médico
Nessa terceira parte, Binswanger põe em evidência 11 111 diador entre esses dois mundos e curar significa
o fato de que é sob o reino da distinção (Unterscheidung) 111,ur, com sua ajuda, na espiritualidade da comunida-
que se elabora a concepção do sonho: distinção do ego e do 1 Hlnswanger cita Goethe a esse respeito, sua fonte de
idem Freud, do inconsciente individual e do inconsciente 11 p rução habitual, que fala em encontrar em si mesmo
coletivo em Jung, mas, sobretudo, entre o pensamento 1111 nito. Isso é possível pela submissão à autoridade
subjetivo (imaginação e doxa) e a verdade, pensamento ob- 111p soal do médico e é necessário, nessa perspectiva,
jetivo (épistémé), entre indivíduo (ekastos) e a proximidade 1111 pr ender a transferência como o que torna possível
homens-deuses (logos). O indivíduo, compreendido como 111111 r-spiritualização autêntica. Binswanger pode a partir
o faz Petrônio, como o criador de seus próprios sonhos, se 1 1 ult r ao seu problema inicial. O sonho é da ordem do
torna um modo de ser do homem, uma maneira por meio da 111111· imento e não da ficção, e ele se apresenta ao indiví-
qual se pode ser um homem, a saber, a possibilidade não 11111 1•m que ele saiba como. O indivíduo não é o que está
espiritual do ser humano=. Heráclito diz que os acordados 111 IK m do sonho, mas é ele que o sofre passivamente.
compartilham apenas um mundo, ao passo que cada um 11 homem acordado jorra do que sonha no momento em
que dorme tem um mundo privado. E Binswanger quer li tlt 'ide saber o que lhe acontece e intervir na marcha
compreender essa oposição entre o koinori e o idion»: à I 11 111 uutecimento. Isso que ele faz é uma questão histórica,

1 11 1 ,lo lógica: "o homem que sonha 'é' uma vida biológica,
184. Ibid., p. 215.
, I '" o que o homem acordado 'faz' uma vida histórica",
185. Ibid., p. 217.
1 r n conclusão de Binswanger.
186. Ibid., p. 218.
187. Comum e particular em grego antigo. N. T.

76 77
3. As Grundformen de 1942 111pr endem análises extremamente detalhadas e precisas de
11111 1 s partes de Ser e Tempo. Não se pode, portanto, sem
111111 cusar Binswanger de não ter compreendido nada da
Se a obra de Ludwig Binswanger é ainda hoje, mais 11111/li a existencial. É, no entanto, o que parece afirmar o
de quarenta anos depois de sua morte, uma fonte de inspi- 111, 1111 i Heidegger, que fala da "compreensão completamente
ração para toda a corrente da psiquiatria fenomenológica, 1 11111'' de seu pensamento por Binswanger nos Zollikoner Semi-
isso se dá graças aos numerosos trabalhos que precederam , 1, 11, • (H minários de Zollikon) No prefácio de 1962 à terceira
1 1
• •

e, sobretudo, se seguiram à publicação em 1942 de sua dl o de seu livro, Binswanger mesmo reconhece que lhe
obra maior, Grundformen und Erkenninis menschlichen , 111, 11 ram com justiça por não ter compreendido a ontologia
Daseins (Formas fundamentais e conhecimento do Dasein nuulum ntal heideggeriana=, e ele admite "estar consciente da
humano). Esse livro espesso de mais de 600 páginas, que 11 , 1111 idade da crítica que ali se faz a Heidegger":». Todavia,
teve quatro edições sucessivas, e que, por confissão de seus 1, 111 una que essa má compreensão de gênero antropológi-
últimos editores, contém mais uma compilação de textos , "pr dutíva">. É isso que explica que se ache, desde as
que um ensaio uniforme, permanece ainda um material 11111,r rns páginas do livro, a afirmação segundo a qual "é a
muito pouco explorado da obra de Binswanger=, apesar de ,1111 cl Heidegger que faz nossas pesquisas avançarem'v-,
sua reedição recente=. Numa carta a Schroeder datada de !li 111()2, Binswanger não hesita em novamente dizer que
Janeiro de 1946, Binswanger explicou que um dos objetivos , 111 wn te o horizonte do Dasein posto em evidência pela
fundamentais que ele buscou em seu livro foi "mostrar a que 1 o do ser e o projeto do ser de Heidegger que abriu o
ponto o homem é e aparece completamente outro quando 11 q n, possibilidade de uma interpretação fenomenológi-
é interpretado a partir do amor e não da existência'v=. É 11 , 1 u li do amor">, A conclusão desse último prefácio é a
o amor que constitui, aos olhos de Binswanger, a forma 11l11t1·: "o objetivo das Grundformen não é o de ser uma
fundamental maior sobre o fundo da qual todo o conhe- 111111, o de Ser e Tempo, mas umafenomenologi,a do amor»:
cimento e toda compreensão do ser do homem devem s N ida obstante, essa fenomenologia do amor, se ela
edificar, o que o leva a opor de maneira diametral o amor d, , 11v lve por um lado sobre o fundamento da análise
ao cuidado e à existência como Heidegger os compreende. Ir 1wi11I heideggeriana, embora interpretada de maneira
O surgimento em 1927 de Ser e Tempo foi, no entanto, 111 'I u 1lop;ica, obedece por outro a outras influências com-
um acontecimento determinante para Binswanger, cujo pen- i 11111 11 t diferentes, em particular àquelas exercidas
sarnento daí em diante vai se situar no interior da problerná- 11, li nswanger pelos escritos de Martin Buber=; além
tica do que Heidegger chamou de "Dasein". As Grundformen, 11, , 111 1-1 nutre grandemente de fontes poéticas, no que
que utilizam do começo ao fim a nomenclatura heideggeriana,
1 l lt ltl<'gger, Seminários de Zurich, p. 315; ver igualmente p. 177.
188. Ver o livro de M. Coulomb, Phénoménologie du naus et psychopo 11111 wnnger, Grundformen, Prefácio, p. 5.
thologie de l'isolement, La nostrié selon L. Binswanger (Fenomenologia d"
nós e psicopatologia do isolamento, A nostridade segundo Binswanger), /'~rhfr
Paris, Le Cercle Herméneutique, 2009. - f}u13 6/l
189. L. Binswanger, Ausgewéihlte Werke, Band 2, Grundformen und E,
kenntnis des menschlichen Daseins (Obras escolhidas, Volume 2, Formti ,,1 p !i. '"'-... 60é1-;, t
f
5 11, ae«, a, ll 1a
fundamentais e conhecimento do Dasein humano), ed. M. Herzog e 11 I /, 11 li.
--J. Braun, Asanger, Heidelberg, 1993 (Referido doravante apenas como t "1111l1•111os que Martin Buber (1878-1965), contemporâneo de
Grundformen), prefácio dos editores, p. XLIV. 1 11111 wunger (1881-1966) publicou seu famoso livro Ich und Du
190. Ibid., p. XVII. 11111 Ili 11)2 .

78 79
os poetas - de Goethe, Schiller e Rilke a Elizabeth Barret- 1 o que Heidegger tratou, no parágrafo que abre a primeira
-Browning- se mostram testemunhas e guardiões de uma c·~:ão do livro=, de delimitar cuidadosamente a analítica do
ompreensão autêntica do amor. Binswanger pode, então, I 1,,., in em relação à antropologia, à psicologia e à biologia,
legitimamente afirmar que "o interesse de Heidegger é de 1pni ndo-se esses domínios de pesquisa sobre fundamentos
todo modo diferente do nosso">, partindo do fato de que suas 1111lológicos não esclarecidos e não respondendo claramente
pesquisas são antropológicas, distinguindo-se, assim, "da q11 ·stão do modo de ser do ente que nós mesmos somos.
intenção puramente ontológica de Heidegger"=, Encontram- Binswanger, a despeito de algumas afirmações
-se repetidas vezes alusões a essa diferença fundamental l111prudentes, não desconhece a diferença entre o nível
de ponto de vista, sendo o ponto de partida da análise «utológico das análises heideggerianas e o nível propria-
existencial de Heidegger a Jemeinigkeit, a qualidade do que 1111111 antropológico onde ele situa as suas. Sua oposição
é sempre a cada vez meu, ao passo que o da antropologia nuulntnental ~idegger advém, como ele mesmo explica,
binswangueriana é a Unsriqkeit, a nostridade=. Binswanger il11 111! de que ele-fala "não do Daseiri enquanto a cada vez
está plenamente consciente de que o objetivo buscado em 111 11, eu ou seu, mas do Daseiri humano em geral, ou do
Ser e Tempo não é a elaboração de uma antropologia, e ele / 1,1 oin: como "humanidade">, Eis aí o núcleo da questão.
reconhece mesmo que a maneira como Heidegger desenvolve 111 mente isso que Binswanger considera como o ponto
o fundamento oculto da historicidade do Daseiri no ser para 1 p11rtida da análise existencial, a saber, a Jemeiniqkeit
a morte, a saber, a finitude da temporalidade, "é de uma 111 "" eiri à qual, ele confessa, ainda em 1962, não ter
consequência e de uma demonstratividade admiráveis", à li H1tclo a se adaptar=. Vem daí as reiteradas críticas a
altura da qual não se eleva seu próprio propósito, "bem mais 11 1c I gger por descuidar da nostridade= e por, a despeito de
modesto, isto é, somente antropológíco'v=. Ele chega a uma 1111 nsistência em fazer do Mitsein, do ser com os outros,
verdadeira autocrítica, reconhecendo que sua afirmação, p 1 ronetitui originalmente o ser-no-mundo do Dasein,
segundo a qual "o amor se manteria, paralisado, no exterior 111tli111ar a acentuar, do ponto de vista existencial, o ser
da imagem heideggeriana do homem", repousa sobre um 111 mo=, como é o caso em Kierkegaard, de quem ele
mal-entendido, já que Heidegger nunca teve como objetivo a 111 klcra que Heidegger apenas secularizou o ideal reli-
elaboração de tal imagem=. Com relação a isso é necessário " , 1 du existêncía=: Para Binswanger, ao contrário, "é
recordar, como o faz Binswanger em seu prefácio de 1962, 1 1111 ela nostridade que 'nasce' a ipseidade", a Wirkeit, a
que Heidegger havia deixado bem claro em Ser e Tempo qu 1 t 1 klnde, sendo "anterior" tanto ao eu quanto ao teu=.
a analítica do Daseiri não tem como objetivo estabelecer as
bases ontológicas da antropologia, mas tem unicamente por
fim a ontologia fundamental=, a saber, o estabelecimento /1111/., ~10.
da base ontológica, sobre o fundamento da qual as onto- 1 Iuuswanger. Grundformen, p. 197. Ver também p. 433 onde
logias regionais podem em seguida se estabelecer2°s. É por xplica que se trata, para Heidegger, "do Dasein no homem",
11111-1,•r
1111111 se pode encontrar em Kant e o problema da metafisica, e
q111·
199. Ibid., p. 24.
t1,1 l l111win humano".
200. Ibid. p. 24.
1 l ll111Jwanger, Grundformen, Prefácio, p. 6.
201. Ibid., p. 49.
11,,,/, p. 217.
202. Ibid., p. 223. 11,,,,, p. 113.
203. Ibid., p. 5. Ver também p. 43.
11,,, /, 1 11. Ver também p. XXVII onde se encontra citada uma pas-
204. M. Heidegger, Ser e tempo, §42. 111 11,1 1·11r1 de Binswanger escrita a M. Buber em 1936.
205. Ibid., §4, p. 13. ,,,,,,, p, 113.

80 81
Vem daí o fato de "a questão cardinal" colocada por Vemos, portanto, que não se trata, com as Gru.ndfor-
inswanger ser a de saber se o amor deve ser compreen- men, nem de uma réplica à análise existencial, nem de uma
dido a partir da temporalidade no sentido heideggeriano e, imples extensão dela, mas sim de sua subversão interna
ntão, a partir da estrutura do cuidado ou se, ao contrário, 11 partir da noção fundamental de nostridade, com a qual
le não se temporaliza de modo nenhum=. Se o amor não l linswanger acha que faz quebrar o quadro "solipsista"
pode ser compreendido a partir do cuidado, o que para d,·mais da concepção heideggeriana da existência. A opo-
Binswanger deriva de seu próprio ponto de partida que é lção maior está consequentemente entre a Jemeinigkeit,
a nostridade, isso não quer dizer que ele esteja de algum 11 sempre a cada vez meu heideggeriano, e a Wirheit, a

modo "para além do tempo", mas que sua temporalidade unatridade binswangeriana, que deve muito ao Je et tu
"deve ser interpretada não a partir da finitude do Dasein, dr Buber=, distinguindo-se dele, porém, pelo fato de que
mas a partir da infinitude'w, a infinitude e a eternidade do li1 resulta imediatamente do encontro amoroso não pre-
amor, das quais encontramos testemunho nos poetas, e das 1 d ido por nenhuma busca por um tu. Tal nostridade não
quais a "pressuposição" é, segundo Binswanger, fenome- 1 m te a um nós plural, mas a um nós dual, no sentido
nologicamente atestável e imediatamente comprovável no ll1tKUístico do termo=, e ela não resulta da dualidade do
encontro amoroso=. A "divergência" que, assim, o separa 11 do tu, mas, ao contrário, a precede, na medida em
de Heidegger concerne ao estatuto do amor, que, de uma q11r um não existe sem o outro, de sorte que ela consiste
parte, transcende o cuidado, e de outra, se revela como 1111111 a verdadeira communio=, Tal nostridade constitui
um a priori», como o que torna possível a Erschlossenheit I• r I Binswanger uma unidade originária que não pode
mesma, a abertura do Dasein ao ser=. O que Binswanger t modo nenhum ser derivada do si mesmo, mas que, ao
afirma sem ambiguidade é "o primado fenomenológico mtrário, torna possível todo si mesmo e toda ipseidade.
do amor sobre o cuídado'v=, sem, contudo, renunciar a sa unidade do eu e do tu no amor que Binswanger
pensar ontologicamente o amor, sua transcendência não l1111na de "coração" (Herz), no que essa palavra significa
remetendo a nenhum "além" no sentido metafísico ou 11 p rabundância (Überschwang) mesma do amor, o que
religioso=. No entanto, o primado do amor só se pode 11 1 transcende (überschwingt) o mundo do cuidado=.
compreender, paradoxalmente, sobre o fundamento da Há, de fato, para Binswanger uma "realidade do
análise heideggeriana do Dasein como cuidado, nunca 1111,r" sobre a qual ele afirma sem rodeios que constitui
estando o amor na vida cotidiana senão "em união" com 1 11111is real de 'nosso' Dasein", rompendo, assim, tanto
o cuidado, pois "o Dasein só pode ser enquanto infinito 1111 F uerbach, de quem ele se sente, por outros motivos,
na medida em que ele é finito==.

11 11 cessário notar que mais ainda que Martin Buber é Karl Lõwith
213. Ibid., p. 46. 11 mais frequentemente invocado por Binswanger, enquanto aquele
214. Ibid. 11 11111) pôr em evidência a reciprocidade do Miteinandersein (o ser-

215. Ibid. p. 240, nota 1. ' 111111 o-outro) em seu livro de 1928 Das Individuum in der Rolle des
'"'' li' rheri (O individuo no papel do próximo).
216. Ibid., p. 88.
1 lllnswanger, Grundformen, p. 237. Binswanger se apoia aqui na
217. Ibiâ., p. 87. 1111 ri ução que Humboldt dá do dual, não como um plural reduzido
218. Ibid., p. 76. 1111 , 11111s como um "singular coletivo".
219. Ibid., p. 87. 1 1/1/,I,, p. 166.

220. Ibid., p. 131. t 1/irtl .. p. 177 e 138.

82 83
muito próximo=, quanto com Freud, que vê todos os dois, Mttrlasein, coexistente, que ele declara que ela "arrasta
o eu e o tu, no amor como estando numa ilusão=. Não se ( ) ntrás de si ainda hoje um enredamento de questões
trata certamente de ver na libido a origem do fenômeno 1 e I r solvidas==.
amoroso, mesmo que se possa encontrar no amor sexual A "minhidade" da existência não é, então, de modo
a sua realização mais elevada - e há nesse ponto uma 11 uhum incompatível com o ser-com-os-outros, pois o iso-
"diferença imensa" entre o ponto de vista genético da psica- 1 111r•11to extremo, o do ser-para-a-morte, não é a negação,
nálise e o ponto de vista antropológico de Binswanger que 1 n pressuposição do ser com os outros em geral. Isso
"impede comparar sua concepção com a da psicanálise==. 111 rnda um tem em comum com os outros é precisamen-
O verdadeiro pomo da discórdia entre Binswanger e 111\ Jeuieiliqkeit, de modo que a diferença insuperável
Heidegger concerne, então, à noção de Jemeiniqkeit, o ser 11111• eu e o outro é o que me torna igual a ele, e o que
a cada vez meu, com relação à qual é preciso lembrar que rpara dele é precisamente o que eu posso compartilhar
constitui uma estrutura distributiva que Heidegger nomeava 1111 ri . O erro consiste, portanto, em pensar que Heidegger
inicialmente em 1924 como Jeuieiliqkeit, o ser cada vez 1 t do homem "isolado" para lhe atribuir apenas depois
transitório do Dasein=. Pela noção de Jemeiniqkeit, de 1 111 'lo com o outro. É a razão pela qual ele insiste sobre
minhidade (miennetéj=, não é a "essência" do Dasein que nlido existencial-ontológico do Mitseiri que é "uma
é definida, mas a sua maneira eminentemente temporal d r minação do Dasein a cada vez própria'v=. O ser do
ser. Abandonar o pensamento da essência implica que s 111 o ser-com-os-outros e não a egoidade individual do
perceba ao mesmo tempo a finitude do tempo e a estrutur fio isolado, de modo que cada vez que Heidegger usa o
plural da existência. Ser-no-mundo e ser-com-os-outros 1111 Dasein, o ser-com-os-outros está coimplicado, Sendo
são existenciais cooriginários, de modo que não se pod 1111 não se pode compreender nada de Ser e tempo se
1

ter um sem o outro, o que Binswanger não negligencia, 110 Dasein um simples nome diferente do "sujeito" ou
1
mas que ele não pode aceitar, pois ele vê aí um "salto" 11 ' • se não se leva em consideração o fato de que "o
ilegítimo: é sobre a tese segundo a qual o Daseiri é sempre /11 • ssencialmente nele mesmo ser-corn-os-outros=.
I' ra Binswanger, Heidegger não chegou a dar
1 ,w amor em sua concepção da relação com o outro,
225. É enquanto autor de Gedanken über Tod und Uristerblichkclt
111 1 o compreende, sobre a base do cuidado, como
(Pensamentos sobre a morte e a imortalidade) de 1830 que Feuerbach
interessa particularmente a Binswanger, pois ele é "o único que viu fll• 1 upnção (Fürsorge), termo que pode ser traduzido
morte um fenômeno erôtico e relacionou sistematicamente o amor 11 11111w s, como o faz o tradutor de Être et temps (Ser e
morte", Grundformen, p. 162. O que configura toda a originalidade d, 1111), F. Vezin, por "souci mutuel" (cuidado mútuoj=,
Feuerbach nesse texto é o fato de ele abordar o problema da mort 11
partir da relação entre o eu e o tu.
""K r, diferentemente de Boss, não viu o interesse
p111lr lrazer para um psiquiatra a distinção heidegge-
226. L. Binswanger, Grundformen, p. 140.
, 111r duas formas "positivas" de preocupação, por
227. Ibiâ., p. 235. 1 1 e I nos modos cotidianos de nossa relação com o
228. M. Heidegger, Der Begriff der Zeit, Niemeyer, Tübingen, 1989, li , q111· ão de uma preocupação deficiente ou indife-
13. Ver a tradução francesa Le concept de temps (O conceito de tempo),
q11r· não visa realmente ao outro enquanto tal, mas
em Heidegger, Paris, L'Herne, 1983, p. 30. Jeweiligkeit não tem aqul 11
sentido de "perpetuidade", termo proposto pelos tradutores, mas remou
11111 iwnnger, Grundformen, p. 6.
ao contrário, ao caráter essencialmente temporal e transitório do "eu s011"
l lt ld<·gger, Ser e tempo, § 26.
229. M. Heidegger, Être et temps, §9, p. 42. A tradução de F. Vézi11 tlt
Jemeinigkeit por "ser-a-cada-vez-meu" se mostra aqui mais precisa q111 1 1 ll'J.(>, p 120.
a de minhidade. 11, lfif'..-\ger, Être et temps, §26.

84 85
o identifica mais ou menos com o conjunto de utensílios pnrecímento de Melancolia e Mania, um estudo na coletâ-
de que se compõe o Umuieli= (mundo circundante) C_?- 11 n de homenagem que lhe é dedicada pelo seu septuagé-
tidiano. A primeira dessas formas é a da preocupa ao
"substitutiva", não isenta de certa violência, que consiste
7 1, no aniversárío=, e cuja interpretação da fenomenologia
husserlíana e heideggeriana= ele sempre considerou como
em ajudar o outro, tomando a responsabilidade d: s~u 1 r mamente esclarecedora.
cuidado e o reduzindo a uma posição de dependência. Mas se é uma volta à análise intencional e ao trans-
A segunda é a de uma preocupação, ao contrári?, "an- 1 , tdentalismo husserliano que marca a última década da
tecipadora" que consiste em ajudar o outro em vista de hln de Binswanger, este, longe de abandonar o ponto de
lhe permitir tomar ele mesmo responsabilidade de sua 1 1 n da Daseinsanálise, tenta, ao contrário, conjugar os
própria existência. Binswanger considera essa segunda 11lo [ues de Heidegger e Husserl, a intencionalidade com
forma de preocupação como oriunda ainda do mundo do r-no-mundo e o transcendental com a consideração do
cuidado, já Boss vê aí, ao contrário, a descrição da relação e t 11 1, como o próprio Binswanger ressalta em Melancolia
terapêutica ideal, que Heidegger, além disso, aproxima uuuiia, dizendo que sua abordagem "se ancora de um
nos Zollikoner Seminare da maiêutica socrática 235• Desse dn 11 doutrina fenomenológica husserliana e szilaziana
modo é nesse deixar-ser o outro como cuidado autêntico 1 l11t ncionalidade e na heideggeriana do descolamento
que Heidegger vê a forma mais elevada da ~e:ação com 111 lortstico do Daseiri humano ou ser-no-mundo, e de
o outro. Eis porque, a Binswanger, que o critica por ter 111 11 >, nas formas psiquiátricas do Dasein como facticidades
esquecido o amor, ele responde nos Zollikon~r Semin<:r~,. 1 h upntológioas empíricas'>-. No prefácio, Binswanger tem
que é sobre o cuidado, compreendido no sentido ontológico 1 uklndo de indicar que o subtítulo "Estudos fenomenoló-
de abertura fundamental do existente ao futuro, que se 111 "merece explicação e não o "Daseinsanalíticos", pois
funda o amor assim como o ódio. Ele acrescenta ainda: 1 mpre parte da ontologia heideggeriana - pelo menos,
"pode-se mesmo esperar que a determinação essencial 11 l, 1 /11 mos acrescentar, depois de 1930 - a fim de "descre-
do amor, que busca um fio condutor na deter!'I1;inaç~o 1 t d nças mentais em sua constituição de ser'', noutros
do Dasein possível pela ontologia fundamental, seja m~is 111111 , orno modalidades particulares da existência. O
essencialmente profunda e de uma estatura bem maior
l >11• Philosophie Wilhelm Szilazis und die psychiatrische Forschung''
que essa (a de Binswanger) caracterização do amor que
111,, 111111 ele Wilhelm Szilazis e a pesquisa psiquiátrica) em Festschrift
vê nele algo mais elevado que o cuidado=: zllnzi (Publicação comemorativa para W. Szilazi), Munique, 1960.
N11 rido em 1889 em Budapeste e morto, ele também, em 1966,
1 , 111rlou inicialmente química e filosofia na Hungria, onde ele se
4. A volta a Husserl 1111 11111lh1sor. Depois conheceu Husserl nos anos de mil, novecebris
,, 1t , 1· tornou em 194 7 professor em Freiburg. Seus principais
11 Wi senschaft ais Philosophie (Ciência como filosofia) (1945),
Os últimos textos de Binswanger esboçam u111 1 11111/ Ohnmacht des Geistes (Poder e impotência do espírito) (1946)
retorno à fenomenologia husserliana, em parte sob grande 1/fl/111111y in die Phãnomenologie Edmund Husserls (Introdução à
influênica da interpretação que lhe dá seu amigo Wilhehu 11111111l11Kln de Edmund Husserl) (1959). Um capítulo de outro livro,
1
11/ir,, 111td Natunuissenschaft (Filosofia e ciência natural) (1961),
Szilasi, a quem ele dedica precisamente em 1960, ano th• ,1,, 11111 para o francês por A. Fournier, C. Maci e Y. Totoyan com
234. Entorno (N.T). 111 1, uases d'expérience de la Daseinsanalyse de Binswanger",
235. M. Heidegger, Séminaires de Zurich, p. 333. Ver também p. 57 e l <)li 11, ,1111111Y'rtdre, Etudes de Daseinsanalyse, ("As bases da experiência
111 1111 ilise de Binswanger", A arte do compreender, Estudos de
236. Ibid. p. 316. ltl 11111111 r) nº5/6, Dezembro 1996, p. 155-176.
237. Ibid. 262.

86 87
11
objetivo que se bucas ali é mais claramente teórico, e não d11i, que Binswanger considera a intencionalidade objetiva
somente descritivo, precisamente porque não se trata de hu serliana ao situá-la sobre a base da transcendência do
proceder a estudos clínicos da melancolia e da mania, mas "" ein, compreendido como ser que projeta o horizonte
de permitir "uma contribuição à metodologia psiquiátrica", dr um mundo; e que se trata para ele de compreender a
colocando, a esse propósito, a questão do fundamento 1 unstituição particular dos mundos psicótico, esquizofrê-

teórico da psiquiatria e a da elaboração de seu método=. 11lc o, melancólico e maníaco por meio da investigação dos
É preciso sublinhar que esse método não é 111111 entos estruturais desses universos a partir da "corre-
fenomenológico no sentido apenas da psicologia "descritiva" " que eles pressupõem entre a Leistunq=, a produção
brentaniana da qual o primeiro Husserl ainda estava 111111 endental do sujeito, e a objetividade assim cosntituída,
próximo, mas no sentido forte de ciência transcendental 11 produto transcendental intramundano que o sujeito se dá.

concernente à estrutura a priori da experiência, no sentido, Realmente não se pode em psicopatologia tentar
portanto, onde a doutrina husserliana da consciência inten- 1 ulnr as supostas "causas" da alteração do comportamento,
cional constitui, como o declara Binswanger, "a única ciência 111 1 qu cada elemento do comportamento está em inte-
que nos permite realizar o que as doutrinas do organismo o com todos os outros. Pode-se, entretanto, segundo
ou a biologia realizam para a medicina do corpo'v=; e isso 111 w nger, considerar a doença mental como uma Natu-
porque do ponto de vista metodológico, a psiquiatria deve, ' 11,·riment, uma experiência que a natureza faria, e que
enquanto terapia, se apoiar na ciência, do mesmo modo 111 1 rnria às claras aquilo que costuma restar dissimulado

que a medicina se apoia na biologia, e porque, segundo 11 1 omportamento não patológico no que esse se define

Binswanger, é a doutrina da consciência transcendental, 111111 n capacidade de articular a "trama" das operações
isto é, a ciência husserliana, que "realiza para a psiquiatria 11 e·< ndentais sobre o que poderíamos chamar, de algum
o que a biologia realiza para a medicina somática", tal com 111111, de a "cadeia" do horizonte de mundo projetada pelo
ele repete na conclusão do mesmo livro=. É necessário, 1 ,•/11. Eis a razão pela qual a doença mental realiza um
então, precisar de novo que não está em questão par 11 de• phokê espontânea, isto é, ela coloca entre parên-

Binswanger nessa última fase de sua obra renunciar à Da- 11 mundanidade que permite considerar apenas os
seinsanálise, mas sim basear a constituição transcendent 1 111 11! s constitutivos fenomenológicos ou "elementos
e intencional das objetividades do mundo no fundamento 11 Ili uintes do mundo'>«. Desse modo, Binswanger pode
da ontologia do Dasein. Trata-se de procurar os momentos 1 1111: "A 'trama' dos 'fios' das operações transcenden-
responsáveis pela falha da organização estrutural dess 1 1 11 o se deixa compreender em nenhum lugar mais
formas do Dasein que são as psicoses, interrogando li 11111 11I do que na falha dessas mesmas operações, nas
constituição transcendental da experiência e, por m iu 11 1 I 11 ias da natureza' que se chamam psicoses==.
disso, como sublinha Binswanger, "voltar à constituiç (1 V i-se bem, entretanto, que não se trata de modo
do mundo considerado em seus momentos estrutur i 1111111 para Binswanger de se manter numa simples
constitutivos ou remeter cada objetividade constituída t 1 dns "vivências de consciência", mas de ir, como
uma forma essencial correlativa da intencionalidade, 11 11 pr prio Husserl desde suas Lições para uma fe-

que é para ele a forma constitutiva">'. Está claro, a parti, l 11,i/11yia da consciência íntima do tempo, até as pro-
l h iléticas da consciência para pôr às claras ali
241. lbid. ,p. 15.
242. Ibiâ .. , p. 82. 111111 ldnde, desempenho (N.T.).
243. lbid., p. 135.
244. lbid.,p. 23.

88 89
a articulação desse projeto que Husserl chama de dupla produção da experiência se vê aniquilada nesse "fim do
intencionalidade, constituindo ao mesmo tempo, de um mundo" que vive o esquizofrênico, muito parecido com
lado, o objeto e, de outro, o sujeito. É essa a razão pela nquele descrito por Husserl no§ 49 das JdeiaS2 1, ela se vê 5

qual Binswanger sublinha com rigor que, "desse ponto de Inmbém profundamente alterada no sentido daquilo que
vista, a 'experiência íntima' não é um privilégio com relação , zilazi chama de "relaxamento da trama" da organização
à experiência exterior", pois a ciência à qual ela recorre strutural transcendental da experiência na mania e na
aqui "não é uma 'psicologia da experiência íntima", não é Ili lancolia que constituem, assim, segundo Binswanger,
uma psicologia da vivência (psíquica) (Erlebnispsychologie) dois tipos diferentes de alterações da estrutura temporal
e não é uma fenomenologia do tempo vivido ou do espaço Intencional.
vivido, mas a fenomenologia transcendental==. Trata- Binswanger apresenta a melancolia e a mania como
-se, na verdade, de se situar no nível do que Binswanger ln lhas diferentes da constituição temporal=, a melancolia
e Husserl chamam de "pressuposição transcendental", "urdindo" ou "organizando" a retenção com a protenção= de
ou seja, no nível da "confiança transcendental" que nos uumeira tão "relaxada" que não chega a alcançar o presente,
remete a essa Urdoxa, a essa fé primordial, que neutraliza o passo que, com relação ao maníaco, esse relaxamento
ou suspende a epokhê e que se encontra espontaneamente ct strutura temporal se caracteriza, ao contrário, pelo de-
nadificada na esquizofrenia= e fortemente alterada no dis- parecimento de toda retenção e protenção, e pelo fato de
túrbio maníaco-depressivo. Binswanger parte de uma frase 1 viver apenas na "momentaneidade". Tal caracterização
da Lógica formal e lógica transcendental que ele já tinha it11 diferença entre mania e melancolia como diferença de
citado em seu trabalho sobre A.fuga em direção às ideias, 1 mporalízação poderia, como nota Binswanger, conduzir a
de 1933: "o mundo real reside apenas na pressuposição 1111111 análise existencial dessas psicoses, nos moldes da que
constantemente prescrita de que a experiência continuará 11111Cluz Tellenbach a respeito da melancolia. Os trabalhos
constantemente a se desenrolar segundo o mesmo estilo it 'l'ellenbach, que publicaria seu livro sobre A melancolia
constitutivo'v=. Desse modo, a consciência de realidad 111 1 61, um ano depois de Melancolia e Mania, evocam
repousa sobre uma pressuposição ou expectativa de um 1111111 o próprio trabalho de Binswanger=. No entanto,
identidade de estilo constitutivo da experiência, isto é, sobr 1 llr nbach não faz nenhuma diferenciação essencial entre
o postulado da persistência da correlação entre o que s , :f'/1,uermut, o humor sombrio existencial, e a melancolia
apresenta no mundo e o que é antecipado pela consciência- 1111 r ntido clínico do termo. Binswanger nota que a con-
noutros termos, talvez mais claramente heideggeriano e qu 1' 1 que ele sustenta em seu livro é "diametralmente
Binswanger não usa - entre o horizonte de mundo projetad 1111 tn àquela de Tellenbach'i=. Isso porque Verstimmung
e o ente que aparece nele, entre a estrutura ontológica do 11 d l timia, isto é, a alteração do humor que se torna
existência e seu conteúdo ôntico. Não é nenhuma surpresa
1 li, 11C' essário esclarecer que o que Husserl chama nesse § 49 de
constatar que as falhas de tal "confiança transcendental",
1 11111~·1 o do mundo" não é o desparecimento dele, mas a generalização
falhas essas que põem em questão a consequência ou n , 11111111 o interno à experiência singular e a ausência de coerência do
continuidade da experiência nas psicoses, concernem d<• ,uh 111n nto dele.
modo essencial à forma temporal dessa mesma experiênci 1 us«, p. 115.
no seu próprio engendramento: se, de modo penetrante, 1 1 1 ormo em francês é protention. Trata-se de um neologismo que
1, 111110 base o termo rétention, (retenção), cuja etimologia remete ao
248. Ibid., p. 23. 111111111110 retineo (reter) (N.T.).
249. Ibid., p. 22. f /11(,/,, p. 54.
250. Ibid. 11,,,1,. p. 115.

90 91
sombria no sentido da tristeza do melancólico, nunca se 111 o advém de uma compreensão inadequada do caráter
deixa compreender, segundo Binswanger, a partir da dis- trutural" dos existenciais do Dasein. Isso iria, aliás,
posição efetiva ou do existencial que Heidegger chama de 110 mesmo sentido das críticas de Heidegger à aplicação
Befindlichkeit Segundo ele, a alteração é mais profunda:
256
• 11 nswageriana da analítica do Dasein à psiquiatria, como
não se trata de uma alteração da temporalização, isto é, , d< que ela se mantém no simples nível "existenciário",
do "jogo" recíproco das ekstases temporais entre elas, mas p, 11· [ue Binswanger compreendeu de modo radicalmente
de uma alteração da constituição temporal apriorística, da , qt I ivocado o que constitui o caráter essencial do Dasein,
intencionalidade constitutiva de seu tema atual, de seu , nber, a compreensão de ser, para considerar apenas
Won1ber"'' que, porém, nunca é redutível a um presente
7
, t t :-; r-no-mundo, isto é, sua facticidade, já que ele tinha
pontual. Esta é a razão pela qual a distimia melancólica 1 rlhndo em compreender essa facticidade à luz daquela
não é a origem da melancolia, mas, ao contrário, é sua 1111111 reensão. É, de fato, a compreensão de ser ou, para
expressão=. O distúrbio geral da temporalização repousa, dl,, lo mais concretamente, empregando a palavra de
então, no relaxamento geral da síntese temporal, de seus 1 t teles, o fato de que o Dasein é de algum modo um
"fios de trama", cujo estilo próprio à melancolia é o da 11lr 1"', aberto aos entes e coimplicado no ser que ele lhes
perda, precisamente porque, como veremos, a protenção , unhece, que o impede de ser definido como uma simples
está infiltrada de momentos retentivos ou, noutros termos, 111' 1 ioridade, e não o contrário, a ausência de interioridade,
o futuro é percebido como já realizado, independentemente 1111 o bre ao ser em geral. E isso porque as estruturas
dos desmentidos que a experiência real possa trazer=. 1 11ft existência, os existenciais, são ao mesmo tempo
Distinguir o humor sombrio existencial da melan- 111 111 da constituição dos entes mesmos. No entanto,
colia no sentido clínico é essencial para o objetivo buscado 111 <' a impressão de que Binswanger volta a Husserl,
aqui por Binswanger no sentido metodológico: pois seu 1" 111 ··m da existência, para se assegurar de uma tomada
trabalho reside "na busca de um método, de uma via qu '111tlidade", uma realidade que, entretanto, lhe escapou.
permita abordar a essência das modificações de humor É: verdade que inicialmente Binswanger apresenta a
melancólico e maníaco como tais e sua antinomia, a es , 11111 menos como um distúrbio da constituição temporal
sência e não apenas a intensidade dessas modificações'w, 11 , orno uma falha da co-apresentação=, porque ela se
Essa distinção feita entre a essência e a intensidade, (• t II l1·riza, aparentemente, pela falha da estrutura inten-
que recupera aquela feita entre o intencional e o existen 11111! do ego e do alter ego, como o manifesta a declaração
cial, é ela mesma problemática, já que Binswager pare <' 1 IIKII Blum, paciente de Binswanger, cujo caso é exa-
estar dizendo aqui que considerar a melancolia como 1t111do qui. Nessa declaração, Olga explica que "ela está
um distúrbio da Befindlichkeit significa considerá-la do 1111,, k-liz que Goethe tenha vivido antes dela, se não, ela
ponto de vista da intensidade afetiva e não do ponto d<· 1 d,· screver tudo aquílo==. Tal declaração supõe uma
vista estrutural da relação com o objeto, do Wornber. A tl11 do nível constitutivo da relação intersubjetiva, que se
esse respeito pode-se perguntar se o "retorno a Husserl" , li, 1 no nível da coisidade, cuja propriedade mais íntima
que é assim esboçado na última fase de seu trabalho
,1 1 1 les, Peri Psychés, 431 b 21. Essa passagem é citada por
256. Ibid., p. 39. , 1 rrn Etre et temps, p. 37 (14).
1 11•1 mo em francês é apprésentation, tradução inicialmente de
257. Ibid., p. 31.
h, 1r11 r para o termo alemão usado por Husserl Apprêsentation. Na
258. Ibid., p. 51.
,, 111• Mi ditações cartesianas de Husserl, Maria Goreti Lopes e Souza
259. Ibid., p. 50. oi li 11110 porco-apresentação. Seguimos a tradução de Lopes e Souza.

260. Ibid., p. 116. 1,,/, p. LOO.

92 93
é a substituibilidade, a intercambiabilidade indiferenciada, 41111· trata desse assunto, ele aponta para as Leçons sur la
manifestando a dissolução dos liames constitutivos n? 11l11 noménoloqie de la conscience intime du temps (Lições
maníaco que se volta, assim, na direção do descuid~. E 11l11(' a fenomenologia da consciência íntima do tempo) de
necessário, porém, delinear essa oposição entre m~n~a e 1' I()!) ·•1, curso editado em 1928 por Heidegger que vê aí
melancolia, pois, na melancolia também, o pap~l do proxrmo 1111111 centuação do caráter intencional da consciência=-
é nivelado mesmo suprimido, deixa claro Bmswanger, e 111 t•s ão retomada em parte pelo próprio Binswanger
não há aqui possibilidade de relação autêntica com o outro. 111, 1111 a respeito do mesmo curso de "esclarecimento da
Para o melancólico, sublinha Binswanger, "o outro é antes 111, 1H'i nalidade em seus fundamentos". O que é tratado
de tudo o destinatário de suas queixas infatigavelment , curso, na verdade, é a constituição dos "objetos tem-
repetidas, o ouvinte passivo de suas autorrepro~ações, 11111 "(Zeitobjeckte), que, em oposição ao objeto espacial,
de seus medos e de suas angúsfias=. E se o mamaco s 11 tnlrinsecamente determinados pelo tempo, como é o
dirige em seguida, diferentemente do melancólico, pa_ra .º 11 d11 melodia, e isso exige que eles se situem no tempo
alter ego, é necessário perceber que o que sua constit:11 11,1111c•nte imanente e que se ponha entre parênteses o
ção do alter ego tem de falho não pode ser c?m~reend1do 11111 objetivo da natureza=, do qual é impossível partir
senão a partir daquilo que _a estrutura constit:1-t~va de s li 1 , lucidar a essência do tempo. Trata-se, então, para
próprio ego tem de falho. E, portanto, necessano, _em V("/, , 1 I, c-1 reiterar o gesto filosófico mais fundamental
de se permanecer numa concepção da melan~oJ1a e 111 Ir ti I redução de todo o transcendente, de todos os'
mania compreendida como uma simples oposiçao ent: t p11rn. fazer aparecer o puro fenômeno do tempo: "a
introversão e extroversão, determinar a diferença entu 1 r 111, mundo real, não são um Datum fenomenoló-
elas como sendo de essência eminentemente tempor 11 111111os ainda é um Datum fenomenológico o tempo do
não como estabelecendo originariamente uma altera 11 d11, n I mpo coisal, o tempo da natureza no sentido
da relação com o outro. Compreende-se, a partir daí, q111 t 111 lns da natureza, nem, consequentemente, o da
Binswanger ressalte que "lá onde falamos de uma f 111 1 111 111 i•nquanto ciência da natureza que tem por objeto
da co-apresentação, trata-se naturalmente, como na f8ll111 11111111"" O que é um Datumfenomenológico é unica-
11

da presentação (própria à melancolia), de um mom ·11111 1 11/11 ncia (Erlebnis) na qual aparece o temporal:
de temporalização. Do mesmo modo que uma presenta 11 1(11 li•nomenológicos as apreensões de tempo, as
não é possível sem apoio sobre os momentos re:en1 v11 1111 quais aparece o temporal no sentido objetivo
e protentivos, assim também uma co-apresentaçao n 11 11111do nenhum, porém, isso é o tempo objetivo. A
possível sem esses apoios'v=. r, 1111111 nológica não permite encontrar nenhum
A co-apresentação de si mesmo ou do alt 1· 1 '" 1 qu r de tempo objetívo==. De acordo com
se funda, então, na estrutura temporal fundamental 1p1 Hinswanger também marca claramente o
conjuga retenção e protenção. Cons~quentem~nt 11 e· ndental e não psicológico da investigação
que é preciso inicialmente elucidar. Ainda que Bms~ 111 '
se baseie, sobretudo, na obra de Szilazi, Iniroduciiono '
phénoménologie de Edmund Husserl (Introdução àfi·1111111 r-r], Leçons pour une phénoménologie de la conscience
nologia de Edmund Husserü, um livro de 19592••, 1111 li 1 •11 1, 11<1. Fr. H. Dussort, Paris, PUF, 1964, Considerações
,

d11111, p, XII.
264. Ibid., p. 71.
265. Ibid., p. 102.
266. lbiâ., p. 22.

94 95
·~ nomenológica: "A ciência que trabalha com esse método
11a presentação, já tenho protenções, caso contrário não
não é uma 'psicologia da experiência íntima", r_ião é 1:m~
poderia jamais terminar a frase; do mesmo modo, ponho
psicologia vivida (psíquica) (Erlebnispsychologie) e 1:18:º e 110 'enquanto' da presentação igualmente a retenção, caso
uma fenomenologia do tempo vivido ou do espaço vivido,
• ontrário não saberia a respeito de que eu falo'v-. Mas a
mas apenas a fenomenologia transcendental==. . .
dll1 uldade da análise de Husserl é precisamente que ela
É sobre a base de tal epokhê do tempo objetivo
r situa num nível abstrato, aquele do "puro dado hilético"
que pode aparecer a estrutura temporal fundamental que
1111 da sensação, pois é apenas nesse nível que pode apare-
Husserl representa em seu famoso diagrama do tem1:~ 21
'.
i r I ssa "intencionalidade longitudinal" que é a retenção,
Porque para isso, é necessário empreender uma analise
•P ir une as vivências entre si, ao passo que a intencio-
mais "profunda" que aquela da "psicologia descritiva" cara
1111llcl de transversal é, ao contrário, dirigida em direção
a Brentano, a qual compreende a consciência do tempo
11 objeto. E preciso, na verdade, abandonar o percebido
a partir da "associação" do passado e do presente por
li I H dá sempre em sua identidade já conquistada para
intermédio da imaginação, ao passo que, para Husserl,
f I parecer a temporalidade da percepção: é preciso de
trata-se de fazer aparecer a retenção contínua do passado
1 11111 modo olhar "por trás" das vivências, nos bastidores
no presente, retenção essa que Husserl chama de "l~~-
• onsciêncía, ainda que a vivência, o percebido, e seu
brança primária" por oposição à lembrança secundan
111 leio permaneçam constantemente pressupostos, mas
que é a rememoração, a qual supõ~ um passado ~vocad
11 , nssim, seriam de algum modo "neutralizados" nessa
no presente e não simplesmente retmo nele, como e ocas I 11hl11 mais "profunda".
na percepção "estendida" descrita por Husserl no §8 d<·
Essas "alterações" da estrutura intencional da
suas Lições: "Eliminamos agora toda apreensão e toda teso
l 1 1 idade que são a melancolia e a mania não podem,
transcendental, e pegamos o som como puro dado hiléti
11 11, <'r compreendidas a partir da intropatía=, isto é, da
co. Ele começa e cessa, e toda unidade de sua duração, 11
111 111 mesma e de seu sentido. O que não quer de modo
unidade de todo o processo no qual ele começa e terminn,
111111111 dizer que elas sejam explicáveis causalmente ou
'cai' após seu fim no passado sempre mais dista~te. Ne~. ','
11 llt um nte=. Não é preciso, assim, escolher entre uma
recaída, eu ainda o 'retenho', eu o tenho numa reter_içao,
, d11,-:/11 descritiva intropática e uma psicologia genética
e tanto que ela se mantém, e ele tem sua ternporalidadr
t 111111/v l. É preciso, sim, engajar-se numa "elucidação"
própria, ele é o mesmo, sua duração é a mes:11~21•. E 111
11111 uológíca que não se situe mais no nível perceptivo,
é a razão pela qual Binswanger fala, a pr~pos:to ~a n
111, 1c• nível mais abstrato da constituição da própria
tenção e da protenção, de momentos que se mtrm n111
, 1 ntin. É nesse nível que se esclarece a autoacusa-
constantemente entre si"m, retomando o exemplo favorll«
111 11111<· lica do tipo da de Céline Münch, paciente de
de Szilazi, aquele da frase que, para ser pronunci <111
1111,-:c•r, que perdeu seu marido num acidente ferro-
exige o concurso da protenção e da retenção, a protenç 11
. r eu não tivesse feito esta ou aquela coisa, meu
sendo a recíproca da retenção com relação ao futuro:" 111 1
111, Iuri ainda vivo" No discurso do "se eu tivesse"
21
'.
usar um exemplo favorito de Szilasi: enquanto falo, e1 1 11

272. L. Binswanger, Mélancolie et Manie, op. Cit., p. 23. 1,,,,1,1//1/(,. Trata-se de um neologismo introduzido na língua
273. E. Husserl, Leçons pour une phénoménologie de la conscience i11tr11 I'"' 1'1111I Ricoeur. Com ele, Ricoeur procurou traduzir o termo
, I oi, l Iusserl, que poderia ser traduzido em português também
du temps, § 1 O. 11111" (N.'I').
274. tua, §8, p. 37. I',
275. L. Binswanger, Mélancolie et Manie, p. 31. 1/

96 97
ou do "se eu não tivesse", trata-se de possibilidades vazias, m_ineral =. que ~le tende, por exemplo, na catatonia).
1•,ts porque e preciso ver nelas modos de constituição da
de protenções puras que se arrancam do passado: a pro-
tenção se autonomiza, na medida em que não tem mais ronsciência humana, ainda que transformados numa "sel-
"a propósito de que", "Won1ber'. A melancolia não é mais vugeria", numa ausência de regras que a faz funcionar de
capaz de "presentação" precisamente porque, para ela, "a umneíra abstrata, como "no vazio": "mania e melancolia
retenção se confunde com a protenção", o que implica que modos de constituição da consciência humana no
.
rntido mais amplo desse termo, que se desenvolvem sem
'
o caráter de fluxo ou de continuidade da temporalização
e, assim, o fluxo do pensamento sejam alterados=. A este 1 gras, modos amplamente privados do controle do puro
respeito, como sublinha Binswanger, a melancolia é bem w> , nessa medida, sem lei=.
mais grave do que nós supomos habitualmente em vista Binswanger se apoia aqui uma vez mais em Szilazi
de sua curabilidade, pois ela consiste numa alteração da 1111 importância que ele dá à doutrina husserliana do ego
própriafonna da subjetividade e não apenas de seu con- p11ro compreendido como o que constitui a unidade do eu
teúdo. É possível, então, distinguir mais precisamente as nrplrico mundano e do eu transcendental=. Szilazi de fato
diferenças constitutivas sobre as quais repousam os modos I'' 11p e em sua Introdução à fenomenologia de Edmund
de humor maníaco e melancólico, que são diferenças na ll11 s rl uma interpretação da teoria husserliana do ego
falha da constituição temporal. Para o melancólico, como 111 n [ue não deixa de lembrar a teoria dos três eus desen-
acabamos de ver, trata-se do relaxamento da organiza- 1lvlcl por Eugen Fink na Sexta meditação cartesiana=. Ele
ção da estrutura intencional da objetividade temporal li Ilugue não apenas o eu empírico do eu transcendental
que conduz a "tecer" os momentos retencionais com os 1 ínmbém o ego puro do eu transcendental enquanto
momentos protencionais na autorreprovação melancólica 1111 polo, devendo assegurar a unidade do eu empírico
e momentos protencionais com momentos retencionai. 1111cl11no e do eu transcendental=. Mas se o ego puro é a
no delírio melancólíco=. Desse modo, o melancólico vive ttlr última de toda constituição, ele não está, entretanto,
num passado ou num futuro alterado na sua constituição 11 pr nso no ar", mas também só tem realidade na expe-
intencional e não alcança nenhum presente, isto é, ocorre 111 l11 singular que o eu empírico pode fazer dele. Essa
um defeito de presentação. Para o maníaco, no entanto, o I' 111 n ia de fato é sempre não a do constituinte puro
relaxamento da estrutura temporal do mundo próprio elo 11 «go, mas do ego já constituído, em relação ao qual o
ego é responsável pela retirada de momentos retencionai p1110 onstitui um instante regulador ou de controle=.
e protencionais e, assim, de co-apresentações em proveito 1111 rxperiência melancólica e maníaca é diferente, pois
de uma pura atualidade, o que implica que o rrianíarn 1 11 r·~o puro, em vez de realizar sua função constitutiva
esteja apenas no instante, seu modo de temporalizaç111 1 unfundindo com o eu empírico, se encontra "numa
sendo a momentaneidade Não obstante, essas alter 1
2•2• t > c1 ansiedade ou de constrangimento" e não pode
ções da forma da subjetividade que são a melancolia • 11
mania não se configuram em pura e simples destruiç 11,
pois isso implicaria que o psicótico perdesse totalmenlt 11111 , Sixiême Méditation cartésienne, trad. Fr. N. Depraz, Gre-
sua humanidade e se tornasse um vegetal ou mesmo u111 11111111, 1994, p. 95. Ao eu empírico absorvido em sua crença no
• 1 1111 <'li transcendental constituinte de mundo, Fink acrescenta
11 11 11lli11 a epokhé, o "espectador fenomenológico".
280. Ibid., p. 33.
281. Ibid., p. 49. Trata-se aqui do delírio de perda no qual o do(•111 1111:1:i, Einführung in die Phiinomenologie Edmund Husserls
considera a perda como já realizada, como "fato realizado". 1, 11 11 li•nomenologia de Edmund Husserl), p. 86 e 92 sqs.

282. Ibid., p. 107.


1111111 1111g r, Mélancolie e manie, p. 119.

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hegar a uma plena constituição=. Binswanger considera
que as distimias provêm da incapacidade do ego de realizar ;-~~:iiê::;2•0. ~ tnálise intencional husserliana aparece
sua tarefa constitutiva. Tudo se passa como se o instante 11 tur~za faz ::~r~g:iaª ;.::~experiência ~ue a vida ou ~
supremo da constituição não conseguisse mais governar c·ssência da d a, na qual Bmswanger vê a
oença mental.
as tarefas inferiores, como se o ego puro não estivesse mais
em condições de exercer sua função reguladora na expe- lid de e~::!!:~i~:~i:e;~:~~~~:usserliana da tempora-
riência. No entanto, ele continua a cumprir uma função, d1t Urkonstituition é eh d d_o eu, a fenomenologia
aquela do pertencimento-ao-eu, pois, como o sublinha 11 análise das p~icose~~:s:~~ Bmswanger e:n:i- apoio à
Binswanger, "o eu empírico, o indivíduo, realmente não , nmo distúrbios da sub· t' 'd dparecem essencialmente
poderia se consumar em sofrimentos e em tormentos, nem t ,n 1 ~e rvi a e e de sua constituição
pora . Parece ter-se regressado d D . . .
se lançar no caos da excitação alegre e colérica e se evadir t11111scendental e ao ego pu E o asem ao sujeito
de si mesmo nessa queda, se no fato de se consumar e se ro. ssa regressã
l111 nou-se necessária segund B' o ou _essa volta
evadir o eu ainda não se mantivesse. Quando não há mais lülnde de dar conta d . o mswanger, pela nnpossíbí-
ego puro, nem constituição de pertencimento-ao-eu, não 111 ri de uma análi as psicoses quando se permanece no
ise apenas da mu d ·d d
há mais espaço para um destroçamento doloroso do eu il Delirio, seu último livro 1 d n aru a e. No prefácio
para uma fuga alegre para longe do eu"2••. Se nas distimias Ir novo que sua volta a H' ançal o em 1965, ele sublinha
se manifesta um desamparo do ego puro, ele não deve ser usser não sig ifi
", i1c•nhum abandono d D . , . m ca, entretan-
unilateralmente compreendido como uma impotência, ma, 1111111 nolo ia a aseznsanalzse em proveito da
como uma afirmação do ego no sofrimento melancólico, no t 1111 ação ~u;a:.:~t~:~s~~::ixeensão aprofundada da
triunfo maníaco e até na decisão do suicídio, e está aí o que 11111 ,q licação à ciência psiquiát~:i~!ologia de Heidegger,
garante uma cura possível dessas psicoses. Isso porque '"' problemática do _e parece doravante
o que elas manisfestam, cada uma do seu modo, é n o 1 1
apenas a impossibilidade da adequação entre experiên i11 ' :, :~;~eia transcende~:l.À do~!~:;~::i~:;;;/!~:~~:
empírica e experiência transcendental que caracteriza 1 11111 l~;:~:;õ:~sºe~:;:~~~oh~:::~~tura existencial
situação "normal" da experiência natural, mas também 1 l1111d111nento a partir d 1 - iana que fornece
consciência dessa inadequação pelo ego puro que, apeR111 o qua o fenomeno t 1, .
,1 r-r ompreendido como altera ão p~ o ?gi~o
de sua própria falha em assegurar sua função constitutivn 11, 11" inl. É precisamente na medid~ e de uma i~st~nc1a
se mantém. Para dizer a verdade, não se sabe mais mull« 1"11 ,, trabalhar com . d' . m _que O psiquiatra
bem se a teoria husserliana do ego puro é particularmcn 1 casos m ívíduaís ou seja com
te bem adaptada à compreensão do que acontece 1111 1 ,' 1 ';., o_ com estruturas da existência'. isto é, ~om o
, , ai que ele pode encontrar um . ·- .
psicoses melancólicas e maníacas ou se, ao contrário, 1 " uulsmo de consciência que é a t ªJ?ºlh o na c1e:ncia
experiência da transcendentalidade de um ego puro ru 1, ,t 11,·i nalidade. eona usserhana
já nela mesma um fenômeno patológico. Não é indífercuu
notar com relação a isso que a última frase de Melancou«
e Mania seja uma citação de Eugen Fink comparan 111
doutrina de Husserl a uma "gigantesca vivissecção il

288. Ibid., p. 120.


289. Ibid., p. 121. 1 1, 1().

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