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O tema escolhido, a formação da personalidade, supõe que alguma noção prévia de

personalidade seja dada desde o início do curso. Então nós definimos personalidade como a
forma mais ou menos estável, e mais ou menos reconhecível, que a individualidade humana
adquire perante si mesma e perante os outros numa época indefinida da existência

Isto nos indica desde logo que, em primeiro lugar, a personalidade não é um fator por si
mesmo constante, idêntico ao longo de toda a vida, e não se pode nem mesmo dizer que
exista uma personalidade desde o início da vida. A personalidade se forma pela atuação de um
número enorme de fatores bastante complexos e, não se pode dizer sequer que todos os seres
humanos tenham uma personalidade por igual, quer dizer que existe um fator quantitativo
que tem que ser levado em conta: mais personalidade, ou menos personalidade.

Isto já mostra que o objeto dessa investigação é um objeto sui generis que não pode ser
apreendido corretamente nem pela via chamada humanística, isto é, pela introspecção,
memória etc., etc., nem pelas vias científicas, porque a ciência sempre lidará com conceitos
gerais, classificatórios ou explicativos, portanto tenderá sempre a reduzir o fenômeno
personalidade a um certo número de fatores que possam ser de algum modo quantificados,
como por exemplo, a capacidade de concentração que uma pessoa tem, ou a sua força de
vontade, ou a sua coragem etc., etc. Tudo isso pode até certo ponto ser hipoteticamente
quantificado, de modo que a personalidade se reduziria a uma espécie de quadro estatístico,
mostrando as variações desses vários fatores.

Isto tem um problema que, na medida em que a personalidade é um elemento estritamente


individual e intransferível, não há meio de você captá-la por comparação; as comparações
teriam que ser em número praticamente infinito para você individualizar uma única
personalidade, então isso quer dizer que os métodos científicos têm sua limitação. O método
humanístico também, porque lhe falta toda e qualquer comparação [na verdade – tom de
expressão], quer dizer, você só tem uma personalidade e examinando a sua você certamente
pode tirar algumas conclusões sobre a personalidade alheia, mas você nunca vai ter certeza.
[3:16]

Então quer dizer que, esses dois aspectos, vamos chamar provisoriamente de objetivo e
subjetivo, da personalidade; eles estão em uma permanente tensão e nenhum elimina o outro,
portanto só por uma combinação de métodos se pode falar utilmente da personalidade.

E essa combinação de métodos implica que, por um lado aquele que pretende alcançar algum
conhecimento da personalidade pela via humanística ou da introspecção ou da experiência
pessoal, ele vai ter que prestar alguma satisfação aos dados científicos existentes e que, o
cientista que se ocupa desses quadros classificatórios dos fatores da personalidade, admita
que ele também tem uma personalidade e que não é por este meio que ele se conhece a si
mesmo.

Em terceiro lugar, a personalidade como a defini, é algo que existe perante a consciência do
seu portador e perante a consciência alheia, portanto não é algo que exista em si mesmo como
uma coisa, ela é um conjunto de informações que você passa para os outros e para você
mesmo, então ela é um dado da sua esfera cognitiva e não um elemento fisicamente presente
como cabeça, tronco e membros ou a cor da sua pele etc., etc.,.

Em quarto lugar, a personalidade é altamente vulnerável, altamente influenciável, pelas


decisões próprias que se refiram a ela, ou seja, você pode afetar a sua personalidade
escolhendo que ela seja assim ou que ela seja assado, não que você tenha um poder total
sobre isso, mas [se] existe uma certa margem de manobra, e isso evidentemente torna esse
objeto ainda mais difícil de conhecer e nos obriga a reconhecer uma coisa bastante obvia que é
o seguinte: nem todas as pessoas atuam sobre a sua personalidade de maneira consciente na
mesma quantidade. Alguns tem isso como prioridade nas suas vidas, quer dizer, uma espécie
de construção da sua personalidade. Um exemplo característico, talvez o mais famoso, seja
Goethe, Goethe é um cidadão que passou a vida inteira construindo mais que uma obra
literária, uma personalidade, quer dizer, quem ele queria ser quando crescer. E em outros
casos você vai encontrar pessoas que jamais se preocuparam com isso, e que nem percebem
que exista esta possibilidade. E encontrará também pessoas que acreditam que a sua
personalidade é um fator que veio de fora, ou da hereditariedade ou da sociedade e sobre a
qual ela tem pouquíssima margem de manobra. O individuo se sente uma vitima das
circunstâncias e não conhece o seu poder de interferir sobre si mesmo.

Então essa variação já nos mostra que o estudo da personalidade é uma coisa bastante
complexa e sutil, onde o lado descritivo, objetivo, tem de ser complementado por uma espécie
de conhecimento por atividade, ou seja, conhecer a nossa personalidade na medida em que a
afetamos, na medida em que tomamos decisões com relação a ela e escolhemos ser desta ou
daquela maneira e nos esforçamos para isto.[6:49]

Sem essa complementação desses dois lados, objetivo e subjetivo por assim dizer – estes
termos não são exatos mas bastam para vocês entenderem o que estou querendo dizer. Sem
essa complementação é impossível entender qualquer coisa a respeito da personalidade.

Por fim, se a personalidade se forma no decurso do tempo, e se ela é o resultado de várias


influências, inclusive do seu próprio portador, então ela é um elemento histórico, e se ela é um
elemento histórico a estabilidade que ela possa ter é uma estabilidade mutável, quer dizer,
você pode falar também de diferentes personalidades conforme a idade do indivíduo, quer
dizer, a idade a modifica a personalidade.

[Muito bem] seria absolutamente impossível estudar a personalidade com toda a sua
mutabilidade, com toda a sua historicidade, se não houvesse no ser humano nenhum
elemento fixo ou permanente que formasse o pano de fundo sobre o qual estas modificações
se dão. [8:10]

Se nós procurarmos esse plano de fundo no corpo do indivíduo, olha, ele permanece
fisicamente o mesmo ao longo de toda a sua existência, isto também não é verdade porque o
corpo se modifica quase tão profundamente quanto a personalidade; as células vão sendo
trocadas, inclusive as células cerebrais, células morrem, outras células aparecessem, o
individuo muda tamanho, muda de peso, muda de aparência, ele melhora, piora. Ou seja, o
corpo não tem essa estabilidade que nos permite usá-lo como rega permanente sobre a qual
aferir as mudanças da personalidade.

Então, diante disto [já que] a personalidade é mutável e o corpo também é, parece que
ficamos sem essa régua, esse ponto de referência fixo com o qual aferir as mudanças. Então
nós temos que recorrer a um conceito, que é um conceito de Kant, que chama-se a identidade
transcendental. Se você existiu historicamente, você existiu no tempo e você sofreu mudanças,
bem, algo você é, e esse algo dever uma essência permanente que permita, ou que admita,
todas essas modificações, assim como por exemplo a essência de um gato é compatível com o
seu crescimento, degenerescência e morte. Ele tem que passar por todas essas etapas sem
que isso o impeça de ser gato. [9:47]
INTENÇÃO RETA E SIMPLES. VER DE ONDE SURGIU ESSA VONTADE. DESSA ZONA PRÉ-
CONCIENTE QUE É A ALMA, ESSA FORMA INICIAL E INICIAL DA INTENÇÃO TEM ALGUNS
ESTÁGIOS, NA ALMA AS MUDANÇAS SÃO DE POUQUINHO EM POUQUINHO. A CONSCIENCIA
DÁ SALTOS COMO CAVALOS. TER OS PES LIMPOS É RETRAÇAR DE ONDE VEIO NOSSAS
INTENÇÕES. A ALMA TINHA UMA INTENÇÃO. AÍ O O PENSAMENTO JUNTA COM A INTENÇÃO
GENUINA E GERA OUTRA COISA QUE VOCE VAI CHAMAR DE INTENÇÃO. Intenção pura é
aquela sem malicia e sem ignorância, e Deus sempre atende uma oração com intenção pura.

Então, essa essência permanente humana ela é inapreensível em si mesmo, nós não podemos
transformá-la num objeto do nosso pensamento, não há um jeito d´eu apreender a essência
dessa pessoa ou daquela pessoa, mas eu sei que essa essência tem que existir, senão as
modificações seriam impossíveis: aquilo que não é nada, de modo permanente, também não
pode sofrer modificações. Se num ente qualquer tudo se modifica, absolutamente tudo se
modificasse, nós não poderíamos dizer sequer esse ente existe, porque nós não perceberíamos
nele nenhuma unidade. As suas transformações seriam em número tal que ele se
transformaria em uma multiplicidade e não teria nem como nem sequer ser apreendido.

Portanto, nós sabemos que tudo que existe tem uma essência, ainda que essa essência nos
seja incognoscível, às vezes é e às vezes não é. Porém, a certeza da existência dela nós temos.
Então, foi isso que numa outra ordem de estudo que eu me dediquei eu chamei o caráter.

O caráter é uma forma fixa sobre o qual podem se desenvolver várias personalidades
diferentes. É como se fosse um algoritmo, uma matriz de transformações.

Algo do caráter podemos saber, porém não na mesma linguagem descritiva que nós usamos
para a personalidade. Todos os traços de personalidade são descritíveis porque são mutáveis,
ou seja, admitem comparação. Eu posso saber, por exemplo, como uma pessoa se tornou mais
inteligente, ou menos inteligente, que ela se tornou mais aplicada, ou menos aplicada, mais
honesta ou mais desonesta com o [no passar do] tempo. Então é justamente porque a pessoa
muda que nós podemos fazer esse tipo de descrições, que a comparam seja com ela mesmo,
seja com outras pessoas. Porém, o caráter se ele é imutável, ele não tem como ser descrito
assim, a ele não corresponde nenhuma qualidade concreta que nós possamos observar na
vida, ele é uma espécie de [vamos dizer] estrutura quase indizível que, para descrever ou falar
dele, nós teremos que descobrir uma linguagem específica. Eu fiz algo do esforço de encontrar
essa linguagem no curso das astrocaracterologia , onde, sem a presunção de descrever o
caráter inteiro, mas apenas de destacar alguns traços que fossem mais facilmente descritíveis,
eu tive de descrevê-los como chaves cognitivas que permanecem as mesmas ao longo do
tempo por baixo de todas as modificações que o individuo sofra. E pra isso é necessário então
realmente criar uma linguagem totalmente nova para descrever um objeto que a linguagem
seja cientifica, seja literária ou humanística, com a qual nós descrevemos a personalidade, não
pode captar. [13:16]

Mas partimos deste ponto “cada um de nós é alguma coisa” e o é de forma permanente. Nós
podemos dizer usando uma figura de linguagem, que nosso caráter permanente é aquilo que
Deus sabe de nós. Tem de ser permanente porque se Deus tem a previsão, Ele tem o
conhecimento antecipado do que vamos fazer, então, certamente, Ele não pode nos conhecer
só pela nossa personalidade porque ela é mutável, Ele teria de conhecer algo que é
permanente e que transcende as mudanças sofridas pela personalidade.
O que quer que nós examinemos sobre a personalidade sempre terá esse pano de fundo. Em
um outro curso, que não visava a personalidade, mas a consciência, o eu, então eu disse: “isto
é o eu substancial”, é aquilo que você é mesmo; e, se não existisse esse elemento permanente,
os elementos mutáveis não seriam apreensíveis.

Embora o caráter não possa ser apreendido em si mesmo, nós sempre o temos como
referência, nós sabemos que uma pessoa é a mesma ao longo das suas idades, ao longo das
suas transformações. Esse ele elemento permanente, nós não o apreendemos, mas sabemos
que ele está lá de algum modo. Se não tivéssemos essa referência, não poderíamos reconhecer
a permanência da mesma pessoa ao longo das suas idades. Então é incrível, porque é algo que
nós não apreendemos, mas que é o quadro de referência daquilo que apreendemos. E é por
isso mesmo que Kant chama isso de identidade transcendental. Transcendental para Kant é
aquilo que é prévio à experiência, e que determina, dá a forma da experiência; mas que só se
torna conhecido, e mesmo assim parcialmente, no curso da própria experiência, como se você
retornasse sobre tudo o que você experimentou, do que você viveu, para você apreender
algum elemento que estava no começo e que serviu de moldura para tudo aquilo. [15:46]

Essa moldura evidentemente não é uma experiência, se ela é prévia ela pré-determina a
experiência e ela não faz parte da própria experiência, mas de algum modo algo dela se revela
no curso da experiência. Então, como nós mesmos temos algum poder de influência sobre a
nossa personalidade, então não há meio de você abordar a questão da personalidade sem
você abordar a questão da consciência e do “eu”, porque a personalidade existe
eminentemente para a consciência, ela é algo que se apresenta à consciência, ou seja, eu sei
mais ou menos como eu sou e sei mais ou menos como as outras pessoas são, e elas sabem
mais ou menos como eu sou. E é nesta esfera de conhecimento que existe a personalidade,
portanto a personalidade não é uma presença física, é uma presença cognitiva.

Então, o que exatamente chamamos de “eu”? Num outro curso que eu dei sobre a questão da
consciência eu mostrei que essa palavra tem vários significados diferentes. Tem em primeiro
lugar - existe - um “eu” que se identifica com o seu papel social, quer dizer, você fala em nome
de uma profissão que você exerce de uma função que você tem, mas você sabe ao mesmo
tempo que a palavra “eu” quando usada neste sentido não se refere a você inteiro. Também
existe um ”eu” que é o das suas memórias, quer dizer, aquilo que você conta ao longo do
tempo, e aí, ao ver esse aspecto nós notamos que o “eu” de algum modo ele se alimenta das
suas memórias, e ele se torna mais intensamente resistente quanto mais consciência ele tem
da sua própria história. Você se reconhece mais claramente porque você vê alguns elementos
constantes e mutáveis na sua própria conduta, não é isso? E, existe também uma outra
acepção do “eu”, que é o do “eu” como autor de atos e responsável por eles. Quando alguém
o acusa de alguma coisa e você diz: “Não fui eu!” você tem consciência dos seus atos e,
portanto, você conhece aqueles que você não praticou de maneira alguma; é uma espécie de
“eu” jurídico, ou “eu” moral. Existe também o “eu” ideal, aquilo que você gostaria de ser,
aquilo que você gostaria de apresentar para os outros. E por baixo de tudo isso existe algo que
você é mesmo que eu chamo o “eu substancial”, que é por assim dizer, o aspecto cognitivo da
identidade transcendental.

Se você fizer a imagem do juízo final – o juízo final é quando você sabe tudo ao seu respeito – e
aquilo está mostrado tudo de uma vez, como uma figura estática. Aquilo que se passou agora
está disposto numa ordem, por assim dizer, espacial, na qual você pode ver tudo como se
fosse em um quadro.
Este quadro ele existe necessariamente, por pouco que possamos saber dele, nós sabemos
que no instante em que uma pessoa morre a série dos seus atos terminou, ela não vai mais
sofrer transformações, portanto, tudo que o que transcorreu na sua vida se fechou num
esquema estático que pode de algum modo ser observado – não digo em um relance -, mas
observado como um quadro. E isto é o que a pessoa realmente é, e isto é o que ela realmente
foi, é o famoso verso do Stéphane Mallarmé: Tel qu`em lui-même enfin I`éternité le change”,
quer dizer, a eternidade o transforma finalmente naquilo que ele sempre foi, mas isto só
aparece depois do fim, porque não há mais possibilidade de transformações. Quando a Igreja
ensina por exemplo que o individuo pecou muito ele pode se arrepender na hora da morte e ir
pro céu, isso subentende que quando ele se arrepender ele ainda está vivo, portanto ele pode
modificar algo, mas a partir do momento que morreu nada muda mais, a coisa se fechou numa
figura estática e esta figura estática corresponde ao seu “eu substancial” ou à sua identidade
transcendental. [20:55]

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