RESENHA DISSERTATIVA O DILEMA DO SOFRIMENTO HUMANO Melissa Hadassa de Paula Silva
Em Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, Yuval Noah Harari relata a
ascensão do homo sapiens até o que conhecemos hoje enquanto um ser em sua organização e complexidade. Segundo Harari, o que garantiu não somente a sobrevivência, mas também a evolução, de homo sapiens enquanto um ser de complexidade social foi a fofoca – isso mesmo, fofoca. Isto porque, a partir dos agrupamentos de indivíduos, iniciaram-se estruturas de comunicação que permitiram ao ser humano indicar possíveis ameaças ao bando, tanto externas quanto internas ao próprio grupo. Atualmente, já temos a compreensão de que o que mais difere o ser humanos dos outros seres vivos é sua capacidade avançada de se comunicar. Nos comunicamos não somente por sons, mas também por símbolos, códigos, expressões corporais, verbal e não verbalmente. A partir disso criamos a religião, a política, as ideologias, a filosofia, e não obstante, a ciência - que nada mais é do que a busca pela codificação e padronização do que entendemos por fato. Certamente, essa habilidade evolutiva nos garantiu muitas outras novas possibilidades de nos reinventarmos enquanto raça e sociedade, nos garantindo, de certo modo, uma vantagem quando comparado a outros seres vivos com os quais coexistimos. Entretanto, até onde nossas incríveis técnicas de comunicação são apenas vantajosas? Em O dilema do Sofrimento Humano, os autores nos propõem essa reflexão. A partir da Acceptance and Commitment Therapy (ACT), passamos a compreender que a linguagem não somente tem o poder de descrever e nomear comportamentos humanos, como também de eliciá-los. Logo, a linguagem não ganha apenas caráter descritivo, mas originador também – ela é capaz de dar origem ao sofrimento. Nosso envolvimento com a linguagem ganhou proporções tão inimagináveis que somos capazes de ligar símbolos verbais e não verbais da comunicação a objetos, mesmo que estes não existam deveras. Assim, conseguimos criar uma realidade que tenha origem apenas no abstrato, no que pensamos ou dizemos, utilizando os recursos da comunicação. Com isto, demos origem, ao longo do nosso desenvolvimento, à idealização de diversos conceitos aos quais na verdade não tivemos acesso, como o futuro ou a morte, por exemplo. O recurso da linguagem é tão poderoso que multidões suprimem seus desejos “carnais” e se entregam à religião, temendo uma ideia de “inferno pós vida” que nenhum ser humano pôde visualizar, mas que é tão real no imaginário coletivo através da simbologia que criamos que muitos o temem. Contudo não somente ao que é místico este processo se refere. Somos capazes de engajar em qualquer atividade simbólica, criar cenários hipotéticos, fantasiar sobre o futuro e o passado, questionar a leviandade da nossa existência, e outras muitas coisas sem fim. Infligimos a nós mesmos sofrimento, nos distanciando do presente. A partir disto, o que vivenciamos é a chamada fusão cognitiva, que ocorre quando tornamos componentes do nosso imaginário conteúdos tão vívidos, que eles confundem nossa noção de realidade, fusionando-se com nossa cognição. Desta forma, pensamentos deixam de serem apenas pensamentos e são tidos como uma leitura da realidade, o sofrimento se torna tão real que o indivíduo não consegue distinguir o que é fruto do seu pensar e o que é mera realidade. Os simbolismos que demos às experiências são tão fortes e reais para nós, que somos capazes de chorar pela morte de alguém que ainda não morreu, por instância. Exemplos que julgo muito comum de fusão cognitiva são frases como “ninguém gosta de mim”, ou “não se pode confiar em ninguém”, que são frutos de uma única experiência que é tida como padrão para analisar todas as outras vividas. Devido à fusão cognitiva, a pessoa pode achar difícil uma pessoa que demonstra tal realmente gostar dela, aliás ela “sabe” que ninguém gosta dela de verdade. Uma frase que muito se relaciona com este processo é uma atribuída a Mark Twain, escritor e humorista americano: “Eu sofri muitas coisas terríveis em minha vida, algumas das quais realmente aconteceram”. Esta frase carrega uma ironia até de certa forma cômica, pois ao dizer “algumas das quais realmente aconteceram” Mark expressa que do tanto que sofreu, muito foi apenas por fruto de seu pensamento. É fácil se relacionar a esta afirmação, visto que sofremos demasiado por preocupações e medos de coisas que nunca se concretizam de fato. A fusão cognitiva ocorre de forma que tornamos pensamentos realidade e não apenas pensamentos, de maneira que o sofrimento também se concretiza e se exterioriza. Ao passar pela experiência de fusão cognitiva, o sujeito se encontra tão preso às suas próprias percepções, que é mais fácil para ele aceitar o que pensa enquanto uma verdade do que questionar sua abstração. A esquiva experiencial, portanto, é uma consequência direta deste processo, pois buscamos nos esquivar de experiências aversivas com o objetivo de controlar respostas comuns e demasiadamente humanas: como o medo, a ansiedade e a tristeza. É mais fácil controlarmos nossa exposição a estas situações do que nossas respostas emocionais a elas, tal como compreender que o sofrimento pode ter origem no irreal. Mas por que é tão difícil para nós lidarmos com a tristeza e o sofrimento, a ponto de paralisarmos atividades cotidianas a fim de evitá-los? Isso a comunicação também explica. Com o passar do tempo, nós fomos classificando experiências como boas ou ruins em sua totalidade e transmitindo essas ideias por diversos meios. Somos o tempo todo lembrados de que devemos ser sempre positivos, estarmos animados, motivados e encorajados a fazer tudo, mesmo que apenas no nível do superficial. O próprio campo da medicina prega uma abordagem absurdamente curativista a respeito da vida: todo e qualquer sintoma deve ser tratado e eliminado. Sentir-se mal, cansado, desanimado deixa de ser um processo orgânico e se torna inaceitável, é preciso ser sempre produtivo. É inegável a forte influência do sistema capitalista nesta forma de pensar. Em 1929, com a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, as pessoas estavam devastadas com a forte desvalorização do dólar. Indivíduos que prestavam a sua vida a trabalhar viram todo o trabalho de suas mãos se esvaírem a números cada vez mais baixos. O mercado precisava se reinventar para sobreviver! A partir deste momento, começou a ser instituída a Escola das Relações Humanas, que dizia defender a teoria de que as pessoas não eram apenas engrenagens numa grande fábrica, mas sim seres humanos que tinham necessidades sociais e psicológicas. Começaram-se então vários testes de ambiente, iluminação, supervisão, entre outros fatores, para analisarem sob quais condições os operários produziam mais. As necessidades humanas? Bom, eram apenas um pretexto. Para produzir, é preciso estar forte, saudável, alimentado. O que vivemos hoje, nada mais é uma modernização da teoria das relações humanas. Vemos nossa saúde se deteriorar e quadros de ansiedade e depressão surgirem aos montes em prol de uma ilusória noção de saúde. Laudos e mais laudos de doenças psiquiátricas são escritos, buscamos em vão pela origem patológica de sintomas naturais do nosso corpo, como uma reposta quase que imediata à realidade que vivemos. Nomeamos e classificamos doenças psicológicas a fim de trata-las, mas como em O Alienista, de Machado de Assis, todos poderíamos ser internados – impossível não ser afetado pelo ritmo de vida que criamos - porque na verdade, o que temos não é um corpo doente, mas sim, um sistema doente. Se compreendermos que não há um corpo doente (aliás, não há indícios o suficiente para alegar tal coisa), onde devemos remediar? A Terapia de Aceitação e Compromisso vai agir justamente na origem do sofrimento: a linguagem. Desmistificar os conceitos do que é certo e errado em matéria de pensar e sentir. É mais importante compreender o que é linguagem e o que é a realidade, do que evitar de sentir “coisas ruins”. O que é ruim é dito pelas circunstâncias – medo, raiva e tristeza são processos normais e saudáveis, uma vez que podem inclusive colaborar com nossa sobrevivência. Não devemos questionar a existência sentimentos e pensamentos dolorosos, uma vez que eles apenas o são, mas sim a funcionalidade deles. Ao invés de patologizá-los, aceitá-los e compreendê-los pode colaborar muito mais com a diminuição do impacto que temos sobre eles. É necessário negar o pressuposto do bem-estar constante e da normalidade saudável que nos aprisiona a um ideal de produtividade e abraçar as respostas do nosso corpo às experiências, isto é, aprendendo a lidar com elas de forma saudável. Aprendi com o texto que o grande dilema do sofrimento é que nós o criamos e nós mesmos o repudiamos. Entretanto, a melhor forma de lidar com este paradoxo é criando consciência da nossa própria contradição, buscando compreender os limites entre o que é intrapsíquico e o que é externo. Diferenciar o que é meu do que é a realidade e valorizar nossos pensamentos enquanto pensamentos e sentimentos enquanto sentimentos, mas não mais do que isto. Sentir-se bem é sentir. Agir bem é aprender a aceitar isto.