Você está na página 1de 137

HISTÓRIA ANTIGA

ORIENTAL

autor
FÁBIO AFONSO FRIZZO DE MORAES LIMA

1ª edição
SESES
rio de janeiro  2016
Conselho editorial  luis claudio dallier, roberto paes e paola gil de almeida

Autor do original  fábio afonso frizzo de moraes lima

Projeto editorial  roberto paes

Coordenação de produção  paola gil de almeida, paula r. de a. machado e aline


karina rabello

Projeto gráfico  paulo vitor bastos

Diagramação  bfs media

Revisão linguística  bfs media

Revisão de conteúdo  alex da silveira de oliveira

Imagem de capa  chad mcdermott | shutterstock.com

todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida
por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em
qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Copyright seses, 2016.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

L732h Lima, Fábio Afonso Frizzo de Moraes


História antiga oriental / Fábio Afonso Frizzo de Moraes Lima.
Rio de Janeiro: SESES, 2016.
136 p: il.

isbn: 978-85-5548-397-4

1. Egito antigo. 2. Antiga Mesopotâmia. 3. Antiguidade persa.


4. Fenícia antiga. I. SESES. II. Estácio.
cdd 930

Diretoria de Ensino — Fábrica de Conhecimento


Rua do Bispo, 83, bloco F, Campus João Uchôa
Rio Comprido — Rio de Janeiro — rj — cep 20261-063
Sumário

Prefácio 5

1. Paradigmas iniciais 7
1.1  A definição de História Antiga Oriental 8
1.1.1  Pré-história X História 9
1.1.2  Antiguidade x modernidade 11
1.1.3  Oriente X ocidente 12
1.1.4 Conclusão 15
1.2  A História Antiga Oriental e suas fontes 15
1.2.1  As fontes primárias 17
1.2.2  O problema das fontes secundárias na Antiguidade 21
1.3  A História e as outras disciplinas no estudo da Antiguidade
Oriental 25
1.3.1  Arqueologia e História 25

2. O Mundo Pré-histórico na Antiguidade Oriental 31

2.1  O surgimento da espécie humana 33


2.2  A Revolução do Paleolítico Superior 38
2.3  A Diáspora Humana 41
2.4  A economia e a forma de vida do Paleolítico 43
2.5  A Revolução Neolítica 44
2.6  A revolução urbana 47
2.6.1  De aldeias a cidades: a complexificação e a hierarquização
da sociedade 48
2.6.2  Os avanços técnicos e tecnológicos: cerâmica e metalurgia 51
3. Mundos da economia 55

3.1  O que é economia? 56


3.2  As condições naturais e os seres humanos no Antigo Oriente 60
3.2.1  As condições naturais 60
3.2.2  Os seres humanos e o povoamento 64
3.3  O modo de produção asiático 65
3.4  A economia mesopotâmica 67
3.5  A economia egípcia 73
3.6  A economia fenícia 82

4. Mundos da política 87

4.1  O que é a Política? 88


4.2  Centralização e fragmentação do poder no Antigo Oriente 90
4.3  O Poder na Antiga Mesopotâmia 94
4.4  O poder no Antigo Egito 104
4.5  O poder entre os antigos hebreus 118
4.6  O Poder na Pérsia Antiga 125
Prefácio
Prezados(as) alunos(as),

Este material foi desenvolvido para servir como elemento de apoio e leitura
complementar para as aulas da disciplina de História Antiga Oriental. O con-
teúdo que nos diz respeito é vastíssimo e bastante díspar, envolvendo várias
sociedades antigas, que guardam como principal característica compartilhada
o fato de não serem identificadas com aquilo que se convencionou chamar de
Ocidente.
As diferenças entre essas sociedades da Antiguidade Oriental tornam extre-
mamente ingrata a tarefa de escrever um manual que dê conta de todas elas.
Tendo em vista os limites de espaço e profundidade colocados por um material
como este, escolhemos priorizar os eixos econômico e político da história das
civilizações apresentadas, buscando identificar os elementos mais importan-
tes para a formação do profissional em licenciatura.
Tendo em consideração as escolhas apresentadas, dividimos o material em
quatro capítulos. O primeiro é dedicado a discussões teóricas sobre os concei-
tos de História, Antiguidade e Oriente, bem como as características próprias
desta disciplina.
O segundo capítulo aborda os debates acerca daquilo que se convencionou
chamar de pré-história, envolvendo tanto o surgimento dos seres humanos
quanto os importantes desenvolvimentos sociais ligados ao aparecimento das
primeiras civilizações.
No capítulo três, são apresentadas as principais características das estrutu-
ras econômicas das sociedades do Antigo Oriente, destacando uma abordagem
teórica importante e estudos de caso relacionados a sociedades distintas, como
Egito e Mesopotâmia, por um lado, e as cidades fenícias por outro.
Por fim, o último capítulo apresenta os elementos fundamentais de uma
história política de diversas sociedades estudadas. Desta maneira, abordamos
tanto uma perspectiva mais voltada para a síntese da história dos povos na An-
tiguidade Oriental quanto uma explicação de suas organizações sociais e dinâ-
micas de poder.
O estudo das sociedades do Antigo Oriente tem uma importância funda-
mental na construção da perspectiva crítica dos sujeitos na atualidade. Em pri-

5
meiro lugar, a partir do questionamento da própria divisão entre aquilo que se
convencionou chamar de “Ocidente” e de “Oriente”. Além disso, a heterogenei-
dade das experiências sociais naquelas civilizações pode servir como um labo-
ratório de diversidade importante para desnaturalizarmos e criticarmos nossa
própria realidade.

Bons estudos!

6
1
Paradigmas iniciais
1.  Paradigmas iniciais
O que é a História Antiga Oriental? Nosso primeiro capítulo objetiva resolver
esta questão. Para isto, vamos analisar rapidamente cada um dos conceitos que
compõem o título da nossa disciplina, colocando-os em perspectiva.
Uma segunda pergunta a ser respondida é: quais as especificidades do tra-
balho de pesquisa em História Antiga Oriental? Neste sentido, outra parte do
capítulo será dedicada à análise das fontes e métodos utilizados em nosso cam-
po de estudo, acentuando suas características próprias.
Por fim, devemos nos debruçar sobre os contatos interdisciplinares cons-
tantes das pesquisadoras e pesquisadores do Oriente Antigo, destacando a im-
portância do trabalho dos diferentes profissionais no desvendamento do pas-
sado das civilizações que são nosso objeto de estudo.

OBJETIVOS
•  Compreender o debate da diferenciação entre História e Pré-História;
•  Contextualizar conceitualmente a Antiguidade;
•  Entender a dicotomia Oriente x Ocidente;
•  Compreender o conceito de História Antiga Oriental;
•  Situar-se nos debates acerca das fontes utilizadas na História Antiga Oriental;
•  Entender as peculiaridades da área de pesquisas sobre a Antiguidade Oriental;
•  Discutir o aspecto multidisciplinar dos estudos sobre o Oriente Antigo;
•  Criticar o eurocentrismo presente na nomenclatura História Antiga Oriental;
•  Definir as civilizações estudadas no curso de História Antiga Oriental.

1.1  A definição de História Antiga Oriental

O primeiro passo para iniciar o estudo da História Antiga Oriental é a com-


preensão conceitual do significado de cada um dos termos que compõem o
nome da disciplina. À primeira vista, isto pode parecer simples, uma vez que
estas não são palavras extraordinárias de nosso vocabulário. Todavia, a pesqui-
sa mais aprofundada deve ter seu início no que se costuma chamar popular-
mente de “limpeza do terreno” teórico. Ou seja, tendo a compreensão completa
do que cada categoria significa e quais as relações delas com outros conceitos.

8• capítulo 1
A história da Antiguidade Oriental, por ter como foco aquelas sociedades
que são conhecidas comumente como “berços da civilização”, dedica-se ao
período do surgimento das primeiras civilizações humanas. Neste sentido, é a
disciplina dentro da História que tem espaço para se discutirem inúmeros ele-
mentos do período conhecido como Pré-História. Por isso, o primeiro grande
debate a ser travado no processo de “limpeza do terreno” conceitual é a oposi-
ção entre História e Pré-História.
A própria forma de dividir o tempo histórico é uma invenção humana relati-
vamente recente se levarmos em conta toda a nossa trajetória no planeta. Para
além de simples marcos temporais, categorias como “Antiguidade”, “Idade
Média” ou “Idade Moderna” são campos de discussão na disciplina e, portanto,
devem ser analisadas cuidadosamente.
Por fim, deve-se discutir o conceito de Oriente, relacionado diretamente ao
espaço geográfico e imaginário conhecido como mundo ocidental, no qual está
enquadrada a sociedade brasileira.

1.1.1  Pré-história X História

O primeiro homem a usar a expressão “Pré-História” parece ter sido Daniel Wil-
son, em um livro de 1851, chamado The Archaeology and Prehistoric Annals of
Scotland (Os Anais Arqueológicos e Pré-Históricos da Escócia). A noção de um
tempo pré-histórico, todavia, é mais antiga e iniciou-se com a formação, em
1707, da Sociedade de Antiquários de Londres.
Todos os interessados em objetos antigos de diferentes civilizações do pas-
sado eram chamados, a partir do século XVIII, de “Antiquários”. Dedicavam-se
não apenas à aquisição, mas ao estudo, à avaliação e à discussão de tais objetos.
A periodização do passado da maneira que conhecemos hoje foi criada
também no século XVIII. Foram os filólogos, antes mesmo do surgimento dos
historiadores profissionais, que introduziram a ideia da repartição cronológi-
ca entre uma História Antiga, Medieval e Moderna, que apareceu pela primei-
ra vez nos 38 volumes da Universal History from the Earliest Account of Time
(História Universal desde o Início dos Tempos), publicados entre 1736 e 1765.
Somente no século XIX é que a Pré-História entrou como um quarto período
nesta divisão, no mesmo período do aparecimento da História como uma dis-
ciplina acadêmica.

capítulo 1 •9
O que diferenciava, na cabeça desses homens dos anos 1800, a História da
Pré-História? A palavra “história” é normalmente usada em pelo menos três
sentidos, referentes a distintos recortes temporais:
1. Todo o passado desde o surgimento do universo;
2. Todo o passado de experiências humanas neste planeta;
3. O passado de experiências humanas que conhecemos por meio dos re-
gistros escritos.

Como disciplina, a História se diferencia da História Natural, fazendo dis-


tinção entre o primeiro sentido descrito acima e os demais. Portanto, o objeto
da análise histórica refere-se apenas àquilo que é humano. Afinal, segundo a fa-
mosa metáfora de Marc Bloch, o historiador é como o ogro da lenda, está onde
fareja a carne humana.
Considerando que a História surgiu como campo acadêmico durante o
século XIX, foi neste momento que os primeiros historiadores começaram a
restringir o seu âmbito de atuação àquelas experiências humanas do passado
que nos legaram registros escritos. Com a definição da História como o estudo
das sociedades humanas a partir de seus testemunhos escritos, a Pré-História
surgiu, lógica e etimologicamente, com o significado de período anterior à
História, portanto tudo que precedeu a invenção da escrita.
A Pré-História passou a ser objeto de pesquisa da Arqueologia muito mais
do que da História, embora, como veremos, a interdisciplinaridade entre as
duas seja fundamental. O próprio significado da palavra “Arqueologia” vem da
definição grega de “conhecimento das coisas antigas”.
A própria trajetória pré-histórica da humanidade foi dividida pelos pesqui-
sadores europeus entre um período pré-histórico e outro do que seria chama-
do de Proto-história, com esta última se referindo ao estudo das culturas que
não produziram registros escritos, mas que existiam nas franjas das socieda-
des letradas.
A definição de Pré-História, portanto, parte de uma perspectiva europeia da-
tada de um momento histórico específico, no século XIX. Este mesmo período
foi marcado por relações internacionais de força, nas quais as nações europeias
invadiram e exploraram violentamente diversas regiões, em especial na África e
na Ásia. As Ciências Humanas, como a História, a Arqueologia e a Antropologia,
muitas vezes foram usadas para criar as justificativas necessárias para essa ex-
ploração, apontando a inferioridade de povos entendidos como primitivos.

10 • capítulo 1
Um dos elementos que demonstravam uma suposta inferioridade de deter-
minados povos africanos e asiáticos era o fato de serem ágrafos, ou seja, sem
o desenvolvimento de uma forma de escrita. Assim, o conceito de Pré-História
passou a estar associado, de alguma maneira, a uma visão preconceituosa,
como se os povos ágrafos fossem um passo anterior à civilização em uma linha
evolutiva unilinear que tinha a Europa em seu ponto mais desenvolvido.
Tal perspectiva não pode ser sustentada se comparada aos indícios de so-
ciedades que, mesmo após o surgimento da escrita, retornaram ao status de
ágrafas. Há, dessa maneira, exemplos do que poderia ser definido a partir da
lógica da evolução unilinear como um regresso de uma civilização histórica ao
estágio pré-histórico.
Há a necessidade de tratar com cuidado a divisão entre Pré-História e
História, para que não seja atribuído a ela nenhum juízo de valor, muito menos
aquele posto por uma visão eurocêntrica. Portanto, obedeceremos neste livro
ao recorte tradicional que identifica o surgimento das diferentes escritas como
ponto de transição de um período pré-histórico para um período histórico.
Faremos isto para facilitar o enquadramento do leitor nos conceitos estabeleci-
dos historicamente. Todavia, desejamos marcar criticamente a necessidade de
rever essas definições a partir de novos paradigmas que não considerem uma
evolução unilinear. Ainda mais uma que toma a experiência europeia como
central para todos os períodos da existência humana.

1.1.2  Antiguidade x modernidade

Como visto anteriormente, a divisão tradicional entre os períodos históricos é


fruto do longínquo século XVIII, embora continue a ser adotada pela historio-
grafia. Divide-se a história entre um período da Antiguidade, uma Idade Média,
uma Idade Moderna, à qual foi acrescida posteriormente uma Idade Contem-
porânea. O conceito de “antigo” toma sempre como referência um determina-
do momento, para caracterizar outro como ocorrido muito antes. Logo, a His-
tória Antiga refere-se diretamente ao período no qual tal conceito foi criado: a
Idade Moderna.
Os homens do século XVIII tomaram como perspectiva uma definição
do tempo histórico tributária das leituras de seus antecedentes renascentis-
tas do século XVI. Durante o Renascimento, intelectuais conhecidos como

capítulo 1 • 11
“humanistas” valorizaram inúmeros aspectos da cultura clássica das civiliza-
ções antigas da Grécia e Roma, resgatando em especial sua literatura, poética
e oratória.
Como supervalorizaram a cultura da Antiguidade greco-romana, os hu-
manistas classificaram o período de seu enfraquecimento com um momento
de declínio cultural, identificado como um “tempo de trevas” ou uma “idade
média” entre os grandes sujeitos do Mundo Clássico e sua retomada pelos
renascentistas.
O movimento dos humanistas fez com que a Antiguidade greco-romana
fosse entendida como o momento de criação do mundo moderno, no qual es-
tavam sendo resgatados os valores clássicos. Grécia e Roma passaram a ser os
parâmetros básicos para os recortes temporais tradicionais da historiografia.
Portanto, a história, surgida com a invenção da escrita, teria seu primeiro recor-
te temporal no fim do Mundo Clássico, tradicionalmente associado à desagre-
gação do Império Romano e o início do período “bárbaro”, que marca a Idade
Média. A data marco para tal processo seria o ano de 476, com a entrega das
insígnias do Império Romano do Ocidente ao imperador oriental pelos povos
germânicos que nele se instalaram.
O que se pode perceber a partir de tais recortes é a repetição de um claro
padrão eurocêntrico. Ou seja, a história da Europa não só é tomada como a
ampulheta que referencia os marcos temporais de toda a história da humani-
dade, como sua cultura também é entendida como raiz para toda a civilização
moderna.
Essa identificação da Europa como ponto de referência para a história mun-
dial e, em especial, para a civilização moderna liga-se ao debate entre as ideias
de Oriente e Ocidente.

1.1.3  Oriente X ocidente

O senso comum percebe Oriente e Ocidente como simples indicações geográ-


ficas, equivalentes a leste e oeste. Hoje em dia, o recorte é feito com base nas
coordenadas longitudinais estabelecidas pelo Meridiano de Greenwich, que se
convencionou tomar como marco para a numeração das linhas verticais imagi-
nárias que cortam o planeta. É, todavia, necessário pensar na conformação de
um mundo ou uma cultura oriental em oposição a outra ocidental.

12 • capítulo 1
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.1  –  Representação da ilha do Meridiano de Greenwich.

Um exemplo claro das contradições entre as coordenadas geográficas toma-


das a partir do Meridiano de Greenwich e as perspectivas acerca das diferenças
culturais entre Ocidente e Oriente é dado se pensarmos que, a partir da lógica
puramente geográfica, a França seria um país oriental. Deve-se, todavia, perce-
ber a dificuldade em associar a cultura francesa a dinâmicas culturais orientais.
Partindo do ponto de vista da identidade e da cultura, Ocidente e Oriente
só podem ser definidos de maneira relacional. Mas é importante entender que
esses conceitos se modificam historicamente. Portanto, devemos esclarecer
que as categorias de Ocidente e Oriente que estão sendo aqui tratadas têm seu
surgimento intelectual na virada do século XVIII para o século XIX.
O contexto europeu do período foi marcado pela lógica expansionista, que
demandou a criação de um conhecimento próprio sobre as sociedades para
as quais as nações europeias estavam se expandindo. Surgiu, assim, o que foi
chamado de um conhecimento orientalista, ou seja, uma elaboração de aca-
dêmicos europeus sobre a história e a natureza de regiões africanas e asiáticas
principalmente.
A base desse conhecimento orientalista foi construída sobre a ideia de in-
ferioridade dos povos conquistados pelos europeus, o que, de diversas manei-
ras, justificava e impulsionava as ações imperialistas, vistas como benéficas.
Foi a partir dessa lógica que o conceito de Oriente foi determinado de forma
negativa, ou seja, como tudo aquilo que não era ocidental. Para isso, buscou-se
englobar, no mesmo conceito, elementos culturais muito distintos, como as
tradições muçulmanas, hindu e chinesa, por exemplo.

capítulo 1 • 13
Tudo que não fosse diretamente ligado à herança cultural europeia acabou
por ser associado à ideia de oriente, enquanto as raízes da Europa foram esta-
belecidas na história Greco-Romana clássica e sua união com o cristianismo,
iniciada no Império Romano e consolidada no período que se convencionou
chamar de medieval.
A partir da tomada da Europa como medida (e mais especialmente do eixo
Inglaterra-França-Alemanha-Península Ibérica-Itália) para o mundo ocidental,
o restante do planeta foi dividido. A América já era um continente cristão que
teve sua conquista executada séculos antes por alguns desses mesmos povos
europeus. Portanto, enquadrava-se na cultura ocidental.
Em contrapartida, as civilizações africanas, asiáticas e até da Oceania foram
classificadas como orientais e localizadas na medida de sua distância em rela-
ção à Europa. Surgiram, assim, os conceitos de Oriente Próximo, para tratar do
que hoje seria a Turquia, a região da Síria-Palestina e a antiga Mesopotâmia;
um Oriente Médio, que acabou sendo vinculado à Península Arábica e ao Irã; e,
por fim, um Extremo Oriente, onde foram enquadrados todos os demais povos,
como indianos, chineses, japoneses etc.
Não é coincidência que a disciplina de História Antiga Oriental tenha sur-
gido nesse momento. Uma prova inconteste disso é que o marco desse orien-
talismo moderno é o Description d’Egypte, produzido pela comitiva científica
de cerca de 160 especialistas (aos quais se somaram aproximadamente 2000
artistas e técnicos) levados pelo exército napoleônico em sua invasão ao Egito
e publicado entre 1809 e 1829 em dezenas de volumes. O mesmo impulso
francês, iniciado por Napoleão, ao estudo da história, geografia e natureza do
Egito Antigo levou à decifração da escrita hieroglífica atribuída a Jean-François
Champollion na década de 1820.
Da mesma maneira, foi no século XIX que a presença europeia na região da
antiga Mesopotâmia despertou a curiosidade acerca das antigas ruínas encon-
tradas por lá e impulsionou os estudos acerca da antiga civilização mesopotâ-
mica e a decifração, em meados do século, da escrita cuneiforme liderada por
Henry Rawlison.
Sociedades privadas e universidades da Europa começaram a patrocinar
missões de exploração no Oriente, que incluíam historiadores, linguistas e ar-
queólogos, fossem eles amadores ou profissionais. Dessa maneira, uma série de
publicações de livros e periódicos impulsionou os conhecimentos orientalistas

14 • capítulo 1
sobre diversas sociedades, e seus vestígios materiais inundaram os museus e as
coleções particulares das grandes nações imperialistas europeias.
Consolidou-se, dessa maneira, o campo de estudos acerca da Antiguidade
Oriental, no contexto do imperialismo europeu e da construção de um conhe-
cimento orientalista.

1.1.4  Conclusão

Pode-se perceber, acima de tudo, que as definições de “História”, “Antigui-


dade” e “Oriente” têm sua historicidade sendo fruto do contexto europeu do
século XIX, marcado pelo avanço da perspectiva nacionalista e da expansão
imperial principalmente sobre a África e a Ásia. Não há, portanto, como negar
o caráter radicalmente eurocêntrico da perspectiva adotada pela disciplina de
História da Antiguidade Oriental. Vários preconceitos decorreram dessa tra-
dição e se perpetuaram neste campo de estudos, que nasceu associado a fins
políticos explícitos.
Cabe aos futuros pesquisadores da área de História Antiga do Oriente a vi-
são crítica sobre a produção nesse campo de estudos, buscando novas formas
de observar as sociedades classificadas como orientais, que se distanciem de
uma leitura pejorativa e marcada pela comparação com a história da Europa.
Seguindo os parâmetros tradicionais da disciplina, o conteúdo exposto nes-
te livro abarcará diferentes civilizações que foram classificadas como parte da
Antiguidade Oriental. Da pré-história até os últimos séculos antes de Cristo, a
disciplina se refere, de forma mais ou menos detida, às seguintes civilizações:
Mesopotâmia, Egito, Hebreus, Fenícios e Persas.

1.2  A História Antiga Oriental e suas fontes

A História é uma forma de conhecimento retrospectiva e mediada, mas o que


significa isto? O caráter retrospectivo é dado pelo fato de que o historiador ou
a historiadora são sempre indivíduos localizados em um tempo futuro ao dos
acontecimentos que pesquisam. Dessa maneira, nossas análises estão sempre
voltadas para o passado, ainda que busquemos nele questões relevantes para o
nosso presente e para a construção do nosso futuro. Em segundo lugar, a His-
tória é uma disciplina que apenas tem acesso ao seu objeto de estudo de forma
mediada, o que, em outras palavras, significa que dependemos dos testemu-

capítulo 1 • 15
nhos deixados, voluntária ou involuntariamente, pelos homens e mulheres do
passado para tentar construir uma explicação sobre o ocorrido.
O conhecimento histórico é, portanto, baseado em diferentes testemunhos,
tendo como elemento fundamental o gênero humano. Na metáfora do famoso
historiador francês Marc Bloch, o (a) profissional de história é como o ogro da
lenda, farejando carne humana, ou seja, buscando os indícios das atividades
das sociedades humanas no tempo (BLOCH, 2001: 54).
Como um detetive que não testemunhou o crime que quer desvendar, os
historiadores encontram-se munidos apenas das pistas deixadas pelos seus in-
vestigados. As evidências podem, todavia, estar direta ou indiretamente ligadas
ao processo a ser desvendado. Na tradição da nossa disciplina, esses dois tipos
de indícios são chamados, respectivamente, de fontes primárias e secundárias.
As fontes primárias são aquelas produzidas pelas sociedades e pelos seus
indivíduos no decorrer do processo que se está sendo pesquisado. Já as fontes
secundárias são aquelas elaboradas posteriormente, mas que se referem ao pe-
ríodo analisado de alguma maneira. Num exemplo simples, pode-se falar que
inscrições nas paredes de templos egípcios são fontes primárias para o período
em que foram gravadas. Referências posteriores feitas tanto por egípcios de ou-
tros tempos quanto por pesquisadores de outras origens e diferentes momen-
tos históricos devem ser classificadas como fontes secundárias.
A principal ferramenta para a construção do saber historiográfico são as
fontes primárias. O estudo de determinada sociedade deve ser feito a partir
dos testemunhos produzidos pelos seus componentes, no contexto analisado.
Dessa maneira, o historiador ou a historiadora são dependentes desses vestí-
gios produzidos no passado. Consequentemente, o conhecimento histórico é
limitado pelos vestígios encontrados, o que significa dizer que há lacunas re-
ferentes à falta de indícios específicos. Por exemplo, a falta de conhecimento
sobre distribuição demográfica em uma sociedade do Antigo Oriente é fruto da
inexistência de censos ou outra documentação material que seja significativa
para compreender tal questão.
A distribuição dos vestígios do passado não é homogênea. Portanto, há mo-
mentos e locais na história que nos legaram uma quantidade maior de teste-
munhos, bem como tipos distintos deles. Nesse sentido, cabe a nós uma análi-
se mais detalhada das especificidades das fontes utilizadas pela disciplina de
História Antiga Oriental.

16 • capítulo 1
1.2.1  As fontes primárias

Considerando o que dissemos acima de que os tipos e quantidades de teste-


munhos deixados pelas sociedades passadas são variáveis, qual é a especifici-
dade da História Antiga Oriental? Logicamente, uma sociedade mais afasta-
da no tempo tende a deixar menos vestígios preservados do que outras mais
próximas. Por consequência, as lacunas do saber historiográfico tendem a ser
maiores.
Essa talvez seja a maior peculiaridade da relação entre o historiador da
Antiguidade e suas fontes: a relativa escassez de documentação quando com-
parada a períodos posteriores. Mas quais são as razões para isso? Destaca-se
principalmente a ação do tempo sobre os materiais que servem de suporte aos
vestígios. Poucas são as atividades humanas que deixam marcas capazes de
resistir à degradação causada por ações naturais ou mesmo por experiências
humanas posteriores. Além disso, é importante ressaltar que, salvo raras exce-
ções, como grandes construções religiosas, por exemplo, a imensa maioria das
fontes não era feita com a intenção de uma durabilidade milenar.
Embora a escassez de fontes seja uma marca da História Antiga (tanto
Oriental quanto Ocidental), Moses Finley ressaltou, já na década de 1980, que
a área dos estudos da Antiguidade passava por grandes transformações em vá-
rios aspectos, como:
1. Um aumento crescente do volume de dados com a publicação tanto de
fontes escritas quanto, principalmente, de relatos arqueológicos;
2. O aprimoramento das técnicas e tecnologias utilizadas na pesquisa,
proporcionando uma evolução em vários aspectos, como a datação dos vestí-
gios, por exemplo;
3 O acúmulo de análises historiográficas que levou à modificação da com-
preensão que temos sobre diversas realidades históricas (FINLEY, 1994: 4-6).

Uma pergunta importante a ser feita é: quais são as principais fontes para
a História Antiga Oriental? Ainda que marcados pela escassez relativa, os estu-
dos sobre a Antiguidade Oriental contam com uma grande pluralidade de tipos
de testemunhos. Adotando a perspectiva clássica associada à pesquisa histó-
rica, como visto acima, podemos começar pelas fontes escritas, que incluem
diferentes espécies de relatos de caráter estatal ou privado, como documentos

capítulo 1 • 17
relativos a atividades econômicas, conjuntos de leis, proclamações reais, textos
religiosos, literatura ficcional, relatos historiográficos e míticos, entre outros.
Misturam-se às fontes escritas os incontáveis tipos de registros da cultura
material analisados pela Arqueologia, indo desde os próprios corpos e utensí-
lios mais simples aos maiores monumentos e até mesmo cidades inteiras.
Cabe ressaltar que, embora os testemunhos que medeiam nossa relação
com a Antiguidade sejam múltiplos, seu caráter é extremamente fragmentado
por conta dos fatores já citados, em especial a falta de intenção de durabilidade
e ação inclemente do tempo. Aquilo a que nós, pesquisadores e pesquisadoras
do passado, temos acesso é apenas uma parte, muitas vezes desconexa e cons-
tantemente incompleta, do total da documentação produzida.
O caráter fragmentado das fontes acaba por desvelar alguns campos da vida
social muito mais do que outros. Soma-se a isso o próprio interesse desigual de
historiadores e arqueólogos pelas diferentes esferas da experiência humana no
passado. Dessa maneira, o resultado é que nós, por exemplo, sabemos muito
mais sobre as grandes atividades religiosas dos egípcios do que sobre sua rea-
lidade cotidiana de trabalho. Em contrapartida, temos muito mais acesso às
concepções mesopotâmicas de propriedade do que aos seus gostos culinários.
Uma diferença marcante entre aquilo que se convencionou chamar de
Antiguidade Oriental e sua contraparte do Ocidente em relação à documenta-
ção é a melhor conservação dos diversos tipos de testemunhos em virtude das
distintas condições climáticas. Enquanto o clima mais frio e úmido da Europa
mediterrânica tende a destruir materiais com mais facilidade, o clima mais
seco do Norte da África, da Síria-Palestina e da Mesopotâmia tende a preservar
matérias orgânicas e de outros tipos por muito mais tempo. Soma-se a isto o
fato de que, no Egito, por exemplo, muitos testemunhos foram deixados em
franjas desérticas, que, além do clima seco, permanecem, muitas vezes, desa-
bitadas por séculos.
Mesmo com todas essas peculiaridades, devemos concordar com a afirma-
ção de que a insuficiência de fontes literárias primárias é uma praga persistente
no que se refere à história da Antiguidade (FINLEY, 1994: 16). Isso não impede
a constatação de que o surgimento da escrita foi um passo extremamente signi-
ficativo no que se refere à produção de testemunhos. Ou seja, sabemos infinita-
mente mais sobre os períodos tradicionalmente caracterizados como históricos
em comparação com nossos conhecimentos sobre os momentos pré-históricos
das mesmas sociedades.

18 • capítulo 1
Não obstante, é importante ressaltar que, durante toda a Antiguidade, as ci-
vilizações tiveram sua composição estruturada pelo contraste entre um peque-
no grupo de membros especializados que dominavam a escrita e uma enorme
maioria analfabeta. Isto significa que grande parte da população continuou a
depender de relatos orais, o que gerou um desequilíbrio no tipo de documentos
escritos que chegaram até nós, refletindo apenas as experiências de uma parce-
la daqueles povos, em geral seus grupos dominantes.
A partir do cenário dessa “praga persistente” da insuficiência de fontes lite-
rárias primárias, como deve proceder o historiador da Antiguidade Oriental para
construir uma imagem sobre o passado? O primeiro passo, é claro, está relacio-
nado aos outros testemunhos primários, e isto envolve um contato muito próxi-
mo com outras disciplinas, como a Arqueologia, a Papirologia, a Linguística e a
Numismática, por exemplo. Marc Bloch dizia que era indispensável ao bom his-
toriador possuir um conhecimento interdisciplinar mínimo para avaliar a docu-
mentação e suas dificuldades, mas que o verdadeiro trabalho deveria ser feito em
equipe, aliando-se a diferentes especialistas (BLOCH, 2001: 81).

Numismática é a ciência que estuda moedas e medalhas, mesclando aspectos de


análise histórica, iconográfica e químico-metalúrgica.

O segundo passo para auxiliar a preencher as lacunas deixadas pela docu-


mentação é a utilização de modelos teóricos construídos a partir de analogias
com realidades sociais semelhantes. Tais realidades podem ser tanto da mes-
ma sociedade em períodos distintos quanto de outras civilizações localizadas
em pontos diferentes do tempo-espaço. Neste sentido, a interdisciplinaridade
também é fundamental, e o contato se dá em especial com ciências como a
Sociologia e a Antropologia.
Ao contrário dos historiadores da Antiguidade, que – em virtude do descom-
promisso com a construção de uma verdade científica – acabavam preenchendo
as lacunas de seus relatos de maneira mais ou menos ficcional, os pesquisado-
res de hoje precisam justificar suas escolhas. Nesse sentido, deve-se concordar
com Moses Finley de que “sem um esquema teórico de base conceitual, o teste-
munho escasso e duvidoso se presta à manipulação em todos os sentidos, sem
qualquer tipo de controle” (FINLEY: 1994: 21).

capítulo 1 • 19
Para exemplificar, podemos tomar o modelo abstrato da sociedade palacial
ou aquele do Modo de Produção Asiático, característicos de inúmeras socieda-
des do Antigo Oriente Próximo. Veremos posteriormente as características re-
lacionadas a esses modelos, mas podemos adiantar a forma como se encaixam
na dinâmica da pesquisa histórica.
Imaginemos que as poucas fontes sobre a organização de uma sociedade
em um determinado período deem indícios da cobrança de impostos execu-
tada por templos ou palácios sobre pequenas comunidades camponesas.
Podemos imaginar apenas alguns tabletes de argila em cuneiforme ou alguns
papiros que se refiram a essas taxações. Somente esses indícios não são sufi-
cientes para desvendar toda a organização econômica da sociedade, que im-
plica localizar as formas de produção, distribuição e consumo dos sujeitos,
além de quais grupos sociais desempenham funções nessa economia. Logo, as
imensas lacunas impediriam de montar um quadro explicativo que situasse as
poucas evidências em um contexto compreensível.
A solução para preencher essas lacunas com uma orientação científica é
a utilização de modelos teóricos. No nosso exemplo, o estudo de sociedades
semelhantes com documentações mais abundantes e amplas favorece as ge-
neralizações, como a do Modo de Produção Asiático. Cabe ao pesquisador de
História Antiga o passo de criar hipóteses que sirvam para testar a aplicabili-
dade deste modelo à sociedade específica que estuda, a partir das fontes dis-
poníveis. Portanto, se um determinado papiro ou tablete de argila se encaixa
e passa a fazer sentido no funcionamento do modelo escolhido, isto auxilia na
montagem de um cenário mais complexo e menos lacunar do passado.
Nesse processo, o contato com ciências como a Antropologia, por exemplo,
é fundamental, uma vez que várias das sociedades de menor complexidade que
são objeto dos estudos antropológicos podem iluminar aspectos de experiên-
cias históricas da Antiguidade. Por outro lado, tampouco é incomum que estu-
diosos de outras áreas, como a Economia, criem seus modelos teóricos a partir
de diferentes realidades e trabalhem para testá-los nas sociedades antigas.
Cabe a ressalva de que esse processo deve ser sempre desenvolvido com cui-
dado, para não forçar as fontes a um modelo pensado a partir de uma sociedade
muito diferente. Não se pode, por exemplo, olhar para a economia do mundo
mesopotâmico ou fenício tendo como base a economia capitalista de mercado,
desenvolvida milênios depois.

20 • capítulo 1
De qualquer maneira, vamos analisar a relação da História Antiga Oriental
com outras disciplinas em uma seção posterior. Antes, todavia, precisamos nos
dedicar aos problemas relacionados ao uso de determinadas fontes secundá-
rias em contextos muito específicos da análise da Antiguidade.

1.2.2  O problema das fontes secundárias na Antiguidade

Como visto, as fontes escritas foram privilegiadas, por muito tempo, na ela-
boração das narrativas historiográficas. Com a consolidação do campo acadê-
mico profissional de História, a construção do cenário do passado partia da
documentação escrita sobre ele, em especial de outros relatos historiográfi-
cos precedentes.
No caso da História Antiga, em razão da escassez de fontes escritas, mui-
tas vezes os historiadores tiveram de tomar a documentação secundária como
principal manancial de informações para alguns períodos. Isto estabeleceu
uma relação particular com determinados relatos historiográficos produzidos
na própria Antiguidade e adotados como principais fontes de informação para
períodos anteriores. Um exemplo análogo pode ajudar a esclarecer a questão.
Imaginemos que um pesquisador futuro queira saber sobre a escravidão
brasileira entre os séculos XVIII e XIX. Suas fontes primárias seriam, logica-
mente, os documentos produzidos no período, como registros de chegada de
escravos nos portos brasileiros, anúncios de compra e venda em periódicos da
época, documentação cartorial de herança das grandes propriedades escravis-
tas ou de batismo dos cativos. Façamos um esforço, porém, para imaginar um
cenário futuro em que todos esses documentos tenham desaparecido. Logo,
nosso amigo pesquisador se voltaria para os livros escritos no século XX sobre
a história da escravidão (portanto, fontes secundárias) para ter alguma ideia do
que ocorreu no passado mais remoto e escrever sua narrativa.
Ainda que seja incomum que isso ocorra com sociedades do nosso passado
próximo, muito mais preocupadas com os registros e sua conservação, este não
é um cenário raro no contexto da análise da Antiguidade. No caso da História
Antiga Oriental, há exemplos clássicos de historiadores antigos que foram fun-
damentais para o estabelecimento dos relatos acerca do seu passado, como o
egípcio Mâneton ou o judeu Flávio Josefo.
Mâneton foi um historiador e sacerdote egípcio que viveu no século III
a.C., no período conhecido como Ptolomaico. Sua principal obra foi intitulada

capítulo 1 • 21
Aegyptiaca (“História do Egito”), escrita em grego aparentemente sob o incen-
tivo do faraó Ptolomeu I. Nela, o autor estabeleceu um relato iniciado na mo-
narquia mitológica dos deuses que primeiro teriam habitado o Vale do Nilo e
seguindo até a XXXI Dinastia. A metodologia utilizada foi principalmente a das
listas reais, ou seja, uma listagem histórica dos monarcas, o que era uma tradi-
ção faraônica. Neste sentido, Mâneton utilizou-se de algumas listas produzidas
anteriormente para informar o seu trabalho. Sabemos através de achados ar-
queológicos que tais listas eram produzidas no Egito desde o Terceiro Milênio
a.C., como comprova a Pedra de Palermo, uma das prováveis fontes do historia-
dor egípcio.

Período Ptolomaico é como é conhecido o período da história egípcia iniciado com


o coroamento de Ptolomeu, general de Alexandre, o Grande, como faraó, em 305 a.C.,
e finalizado com a derrota diante dos romanos no governo da rainha Cleópatra VII, em
30 a.C. Naquele período, o Egito recebeu muitas influências da cultura helênica.
©© G.DALLORTO | WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.2  –  Maior fragmento da Pedra de Palermo, exposto em museu italiano.

22 • capítulo 1
A Pedra de Palermo é uma pedra de basalto que originalmente deveria ter pouco
mais de dois metros de altura e 60 cm de largura, gravada com uma lista dos monar-
cas egípcios desde o período Pré-Dinástico até a V Dinastia, contendo também al-
guns eventos associados aos reinados, como guerras e construções de templos. Seu
nome foi dado pelo fato de que o maior de seus fragmentos encontra-se no Museu de
Palermo, na Sicília, desde 1877.

Outro historiador a trabalhar fazer sua própria Aegyptiaca foi Hecateu de


Abdera, um grego contemporâneo de Mâneton que escreveu uma história egíp-
cia com base em informações locais, mas preenchendo as lacunas do passado
para atender aos critérios estéticos apreciados pelos gregos da época.
O texto original escrito por Mâneton não chegou até nós. Conhecemos seu
trabalho a partir de outros historiadores que o utilizaram, principalmente o ju-
deu Flávio Josefo, que viveu no século 1 d.C.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 1.3  –  Busto atribuído ao historiador Flávio Josefo.

Cidadão romano, Josefo (cujo nome original em hebraico era Yosef bem
Mattityahu) é um dos mais importantes historiadores da Antiguidade, em

capítulo 1 • 23
especial no que se refere à História Antiga Oriental. Além de sua autobiogra-
fia (Vida de Flávio Josefo), escreveu um livro sobre a Guerra dos Judeus, fonte
primária sobre a rebelião na Judeia contra a dominação romana, e outro sobre
as Antiguidades Judaicas, que conta uma história do mundo sob a perspectiva
dos judeus.
A mais conhecida fonte secundária utilizada para a compreensão de diver-
sas sociedades orientais é, todavia, a Bíblia. Em seus inúmeros livros temos não
somente a história dos hebreus e do cristianismo nascente, mas também refe-
rências a outros povos contemporâneos, como os egípcios e os babilônicos, por
exemplo. Até a decifração das escritas próximo-orientais, como os hieróglifos
egípcios ou o cuneiforme mesopotâmico, a maior parte das informações acerca
dessas sociedades era proveniente da Bíblia e de historiadores do mundo anti-
go como Heródoto ou Flávio Josefo.
A historiografia da Antiguidade Oriental, portanto, utilizou-se por muito
tempo de fontes secundárias para tentar montar um cenário compreensível
do passado das suas sociedades. Sabendo-se que a matéria-prima do trabalho
histórico são as fontes primárias, como deve proceder o historiador ou a histo-
riadora nestes casos?
A primeira saída para esse dilema está na já afirmada necessidade das tro-
cas interdisciplinares, em especial com a Arqueologia. Mas sobre isso falare-
mos em seguida. No que se refere aos textos posteriores, escritos pelos histo-
riadores da Antiguidade, são necessários cuidados metodológicos para filtrar
as informações confiáveis referentes ao período que aqueles profissionais bus-
cavam retratar.
O primeiro passo metodológico para a utilização dos relatos historiográfi-
cos do passado como fonte para os objetos que eles buscavam retratar é a análi-
se histórica e literária dessas obras no contexto de sua produção. Isto significa
dizer que, antes de confiar nas palavras escritas por Mâneton no século III a.C.
sobre o passado egípcio do século XXX a.C., é necessário entender os motivos
e os objetivos que o levaram a escrever, bem como as formas literárias por ele
utilizadas e características dos gostos estéticos de seu tempo.
A análise da forma dos discursos historiográficos dessas fontes secundárias
serve para compreender os limites dessas fontes no que se refere ao conheci-
mento que buscam retratar. É necessário entender as escolhas que os autores
buscaram registrar e os silêncios que escolheram produzir. Voltando ao exem-
plo de Mâneton, é importante entender que a forma tradicional dos relatos em

24 • capítulo 1
sua sociedade eram as listas reais e, consequentemente, isto impunha clara-
mente a escolha por não escrever sobre diversos outros temas que não as suces-
sões monárquicas.
O procedimento metodológico inclui, em síntese, uma contextualização da
obra historiográfica, buscando entender: os objetivos pretendidos pelo autor
em sua sociedade; o próprio método de verificação das suas informações sobre
o passado; as formas literárias por ele utilizadas; o diálogo que o texto teve com
seu público; e a sua função na visão de mundo do grupo social no qual o autor
se insere. A partir desses passos, os especialistas de hoje podem garimpar os
grãos de informação sobre aquele passado cheio de lacunas.

1.3  A História e as outras disciplinas no estudo da Antiguidade


Oriental

Como visto, em virtude das peculiaridades de suas fontes, o estudo da Histó-


ria Antiga necessita de um forte contato interdisciplinar com áreas contíguas
do conhecimento, como a Antropologia, a Linguística, a Papirologia, a Numis-
mática e mesmo áreas mais distantes, como a Medicina Forense, a Geologia, a
Física e a Química, no caso de estudos laboratoriais. Entretanto, o diálogo mais
constante e mais próximo é, sem dúvidas, com a Arqueologia.
Mas que forma têm os diálogos entre a História e a Arqueologia e por que
eles são fundamentais para a construção de um quadro mais completo sobre
o passado das sociedades do Antigo Oriente Próximo? Para chegar a essas res-
postas, vamos nos dedicar a entender um pouco da história e das formas de
trabalhar da Arqueologia.

1.3.1  Arqueologia e História

A partir da década de 1980, o imaginário popular sobre a Arqueologia foi toma-


do pela figura aventuresca daquele que se tornou o mais famoso profissional
dessa área em nosso tempo: Indiana Jones. Com seu inconfundível chapéu e
sempre armado de seu chicote, o personagem intercalava uma pequena quan-
tidade de tempo dedicado às salas de aula e às bibliotecas, com uma enorme
quantia de aventuras em locais pitorescos e perigosos, em busca de objetos sa-
grados, como a arca dos Dez Mandamentos ou o cálice usado por Jesus Cristo
na última ceia com seus apóstolos.

capítulo 1 • 25
Uma visão romantizada como essa fala muito pouco sobre o atual trabalho
de arqueólogos e arqueólogas. A Arqueologia surge como prática acadêmica no
mesmo contexto europeu oitocentista que a História, mas tem suas raízes fin-
cadas em séculos anteriores.
Com o interesse dos intelectuais renascentistas do século XV pelo Mundo
Clássico Greco-Romano, iniciou-se uma busca por objetos de arte daquele pe-
ríodo da Antiguidade. No final daquele século, homens poderosos, como os
papas Paulo II, Alexandre VI e outros membros da nobreza colecionavam e exi-
biam obras de arte antigas, além de patrocinar buscas sistemáticas por tais ob-
jetos. Assim, a finalidade inicial das escavações era a procura por itens de valor
estético e comercial.
A Arqueologia tem seu nascimento, portanto, associado à História da Arte.
No século XVI, as grandes monarquias europeias já nomeavam “antiquários”
oficiais e os nobres disputavam amistosamente para ver quem conseguia mais
relíquias do passado.
O século XVIII foi o momento de expansão das escavações, com o surgimen-
to de sociedades privadas dedicadas ao estudo dos objetos artísticos antigos.
A partir desse modelo de exploração das relíquias clássicas greco-romanas,
iniciou-se também o interesse pelas antiguidades orientais. As culturas do
Oriente Próximo até então eram conhecidas basicamente através da Bíblia, já
que os manuscritos e monumentos das civilizações egípcia e mesopotâmica
ainda não podiam ser lidos.
Como vimos, a pesquisa mais sistemática sobre a história egípcia iniciou-
se com o esforço da missão napoleônica, que culminou na publicação da
Description de l’Egypte e a decifração da escrita hieroglífica por Champollion.
Naquela época, o que viria a ser a Arqueologia ainda estava muito associa-
do à aventura de homens europeus por aquele mundo oriental que eles viam
como um espaço do maravilhoso. Um dos homens reconhecidos como grandes
precursores da Egiptologia foi, por exemplo, o aventureiro Giovanni Belzoni,
que cruzava o Egito em busca de antiguidades com o propósito de abastecer as
coleções europeias.

26 • capítulo 1
Figura 1.4  –  Giovanni Battista Belzoni.

Giovanni Battista Belzoni fugiu da Itália para a Inglaterra, em 1803, para evitar o
alistamento no exército. Com um tamanho incomum para a época (quase dois me-
tros), viveu e viajou durante alguns anos trabalhando como ator e homem forte em cir-
cos. Um tempo após chegar ao Egito, Belzoni acabou contratado pelo cônsul britânico
no Egito para descobrir, coletar e transportar antiguidades, como estátuas colossais
de Ramsés II. Entre suas muitas descobertas, o “gigante italiano” foi responsável por
encontrar a tumba de Seti I no Vale dos Reis e a entrada para a pirâmide de Quéfren,
no interior da qual permanece gravada sua assinatura.

Segundo Bruce Trigger, a Arqueologia moderna diferenciou-se do


Antiquarismo no século XIX, a partir de dois movimentos. Por um lado, a in-
venção, na Escandinávia, de novas técnicas de datação para achados arqueoló-
gicos e, por outro, a ampliação dos estudos sobre Pré-História na Inglaterra e
na França, na esteira dos debates sobre A Origem das Espécies, publicada por
Charles Darwin em 1859 (TRIGGER, 2004: 71).

capítulo 1 • 27
A Arqueologia tornou-se uma ciência voltada para a compreensão do pro-
cesso pelo qual se criou o mundo em que vivemos, tendo como principais ob-
jetos de estudo todas e quaisquer modificações no mundo material resultantes
da ação humana (CHILDE, 1977). Em outras palavras, os arqueólogos e as ar-
queólogas buscam explicar as sociedades a partir das suas culturas materiais.
Embora o sentido original da palavra seja relacionado às coisas antigas, a
Arqueologia volta-se também para as sociedades contemporâneas, tendo como
principal particularidade seu ponto de partida nas paisagens e nos objetos mo-
dificados pelos seres humanos.
Um dos mais famosos arqueólogos do século XX, o australiano Vere Gordon
Childe, afirmava que qualquer coisa feita ou desfeita por uma ação humana de-
veria ser considera um artefato. Objetos móveis que poderiam ser recolhidos e es-
tudados em laboratório seriam considerados “restos”, enquanto os muito gran-
des ou completamente ligados a terra seriam designados como “monumentos”.
Artefatos teriam significados sociais decifráveis pelos arqueólogos primordial-
mente através do contexto nos quais foram encontrados (CHILDE, 1977).
Para entender o papel dos artefatos da cultura material e sua relação com
as fontes escritas no estudo da Antiguidade Oriental, é preciso discutir quais
são as relações entre a Arqueologia e a História. Já vimos que os historiadores e
historiadoras devem ser capazes de trabalhar com diferentes tipos de testemu-
nhos, que incluem também os vestígios materiais. Ressaltamos também a im-
portância do trabalho conjunto e interdisciplinar com diferentes especialistas
para a construção de um quadro mais complexo sobre o passado.
Devemos, portanto, rechaçar a perspectiva, que foi adotada por muito
tempo, de que a Arqueologia seria apenas uma espécie de ciência auxiliar à
História, dedicada a datar e compreender o processo de produção material dos
objetos. Muitas vezes, a única janela para o passado são os artefatos encontra-
dos e, consequentemente, sua interpretação no contexto das sociedades que os
produziram é elemento fundamental para responder às perguntas que fazemos
àquele tempo.
O primeiro elemento importante a ser destacado acerca da relação entre
testemunhos escritos e registros da cultura material é sobre a materialida-
de do suporte das fontes escritas, ou seja, o fato de que palavras são escritas
em alguma coisa. Portanto, principalmente para a História Antiga Oriental, a
Arqueologia é fundamental na descoberta, análise e compreensão da própria
documentação escrita, seja ela encontrada em monumentos, papiros, tabletes
de argila ou outros meios.

28 • capítulo 1
Em segundo lugar, a centralidade de um ou outro tipo de testemunho de-
pende sempre de duas questões fundamentais:
1. Quais são os tipos e quantidades de fontes disponíveis;
2. Quais são as perguntas ou questões a serem respondidas por tais tes-
temunhos. Isto significa que os registros arqueológicos são mais importantes
para determinados períodos ou para algumas questões do que as fontes escri-
tas, relação que se inverte em outras situações.

A primeira questão levantada acima é mais fácil de ser compreendida.


Quando há uma abundância de cultura material e pouquíssimos documentos
escritos, a Arqueologia se torna mais central para a compreensão do passado.
Em determinados casos, há apenas testemunhos materiais e, nessas situações,
Pedro Paulo Funari destaca que, uma vez que os artefatos não falam por si mes-
mos, é necessária a utilização de determinados modelos construídos a partir de
outras experiências e com a ajuda de outras disciplinas, como a Antropologia
(FUNARI, 1988).
A segunda questão, sobre as perguntas feitas aos testemunhos, pode ser
exemplificada da seguinte maneira. Imaginemos que um pesquisador ou pes-
quisadora interessado nas relações comerciais entre os antigos egípcios e os
gregos do período micênico. Neste caso, a análise das cerâmicas que eram uti-
lizadas para fazer o transporte dos bens trocados ou mesmo o estudo dos itens
estrangeiros encontrados em enterramentos pode falar muito mais do que a
documentação escrita, muito pouco interessada em relatar os pormenores das
trocas comerciais.
A relação entre História e Arqueologia, em síntese, é uma relação de com-
plementaridade. Em especial no estudo da Antiguidade Oriental, as duas dis-
ciplinas são os eixos fundamentais para a construção de um cenário complexo
do passado.

ATIVIDADES
01. No que tange às fontes, apresente as principais peculiaridades do estudo da História
Antiga Oriental.

02. Relacione o estudo da História Antiga Oriental com o seu contexto de surgimento como
parte do interesse de diferentes disciplinas acadêmicas na Europa do século XIX.

capítulo 1 • 29
03. Disserte sobre a relação entre Arqueologia e História na análise da documentação es-
crita e da cultura material da Antiguidade Oriental.

REFLEXÃO
Neste capítulo buscamos definir os principais conceitos envolvidos no estudo da Antiguidade
Oriental, atentando para o caráter eurocêntrico desta definição. Em seguida, discutimos as
peculiaridades das fontes utilizadas nas pesquisas desta disciplina, ressaltando a importância
do uso de diferentes tipologias de registros entendidos como fontes primárias. O trabalho
com um conjunto diversificado de fontes visa complementar um quadro de análises no qual
muitas vezes os registros são escassos, em especial se comparado o caso da Antiguidade
oriental com o de períodos históricos posteriores. Nesse sentido, buscamos ressaltar a im-
portância da utilização de modelos teóricos para a decifração das lógicas de funcionamento
do passado, com o auxílio de outras disciplinas, como, por exemplo, a Antropologia. No que
se refere às fontes secundárias, que são muitas vezes os únicos registros escritos sobre de-
terminados períodos, lembramos do exercício metodológico fundamental em sua utilização.
Por fim, discutimos a relação entre Arqueologia e História na compreensão dos registros
referentes à História Antiga Oriental.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CHILDE, V. Gordon. Introdução à Arqueologia. Nem-Martins: Europa-América, 1977.
FINLEY, Moses. História Antiga. Testemunhos e Modelos. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Ática, 1988.
TRIGGER, Bruce. História do Pensamento Arqueológico. São Paulo: Odysseus, 2004.

30 • capítulo 1
2
O Mundo
Pré-histórico
na Antiguidade
Oriental
2.  O Mundo Pré-histórico na Antiguidade
Oriental

Como surgiram os homens e as mulheres? Como começamos a nos organizar


e produzir da forma que fazemos hoje? Estas são algumas das perguntas às
quais buscaremos responder neste capítulo dedicado à Pré-História humana
no planeta.
Nos últimos seis milhões de anos, a evolução de diferentes espécies desem-
bocou no aparecimento dos seres humanos como conhecemos hoje. Este lon-
go processo é marcado pelo desenvolvimento lento de inúmeras características
fundamentais para a conquista humana da Terra.
A humanidade foi capaz de se reinventar, criar novas formas de organiza-
ção e interferir diretamente no mundo natural com uma intensidade crescente.
Através da tradição social, possibilitada principalmente pelo desenvolvimento
da linguagem complexa, foi possível garantir que, em alguns milhares de anos,
nós passássemos de ferramentas de pedra a computadores e naves espaciais,
de pequenos grupos de caçadores-coletores a cidades de milhões de habitantes.
Vejamos alguns dos pontos principais desse longo processo de domínio
humano.

OBJETIVOS
•  Compreender o processo de evolução que levou ao aparecimento do gênero humano;
•  Contextualizar as críticas às concepções do senso comum sobre a evolução humana;
•  Entender as principais características que permitiram a superioridade da nossa espécie;
•  Discutir a importância do surgimento da abstração para o desenvolvimento humano;
•  Analisar o processo da diáspora humana e do domínio do planeta;
•  Compreender o conceito de Revolução Neolítica e os processos de invenção da agricultura;
•  Entender o conceito e Revolução Urbana, o surgimento das estruturas de classe e da for-
ma de organização estatal;
•  Contextualizar o processo de invenção da escrita na realidade mesopotâmica do Quarto
Milênio a.C.

32 • capítulo 2
2.1  O surgimento da espécie humana

Já observamos, no capítulo anterior, que a diferença entre História e Pré-Histó-


ria é fruto de um contexto específico do século XIX, em que a profissionalização
da disciplina historiográfica reivindicou para si apenas o trabalho com fontes
escritas. Isso ressaltou um preconceito eurocêntrico com diversas comunida-
des ágrafas que entraram em contato com o neocolonialismo. Em todo caso,
vimos que o historiador, assim como o ogro da lenda, fareja carne humana e,
então, devemos traçar o surgimento de nosso objeto.
No entanto, quando nós, seres humanos, surgimos na Terra? Até o século
XVII, esse assunto era tratado praticamente só por teólogos, que buscavam tra-
çar o surgimento da humanidade através do estudo do texto bíblico do Gênesis.
Um dos resultados foi apontado pelo Dr. John Lightfoot, da Universidade de
Cambridge, em seu livro publicado em 1642. Nele, o autor afirmava que o ho-
mem foi criado pela Trindade em 23 de outubro de 4004 a.C., às nove da manhã
em ponto.
A partir dos trabalhos de Charles Darwin e da repercussão do seu livro A
Origem das Espécies, compreendeu-se que os seres humanos não apareceram
repentinamente no planeta. Pelo contrário, nós somos a culminação de um
processo de evolução muito longo e ainda em andamento. De um ser unicelu-
lar, desenvolveram-se milhões de espécies, por meio de uma dinâmica de mu-
tação genética e seleção natural.
As espécies que nos antecederam no processo evolutivo não existem mais.
Sabemos delas basicamente por seus vestígios materiais fossilizados. Isto sig-
nifica que, ao contrário do que é afirmado pelo senso comum, os humanos não
evoluíram dos macacos. Nós e os símios (orangotangos, gibões, gorilas e chim-
panzés) somos descendentes de um antepassado comum, que habitou nosso
mundo há milhões de anos.

capítulo 2 • 33
©© PIXABAY.COM

Figura 2.1  – 

Imagens como essa são muito comuns para representar a evolução do ho-
mem. No entanto, não estão corretas. Primeiro, por mostrarem o processo evo-
lutivo como uma lógica linear, enquanto ele é cheio de ramificações e espécies
desaparecidas, sendo mais bem representado por um gráfico em forma de raí-
zes. Em segundo lugar, ilustrações assim deixam de lado as mulheres, como se
não fizessem parte desse mesmo processo.

Os procedimentos de datação que estabelecem os períodos nos quais as diferentes


espécies ocuparam o planeta são procedimentos científicos aproximados. Para isso,
os pesquisadores e pesquisadoras têm de partir dos vestígios materiais fósseis que
nos restaram. Em sua análise, estão disponíveis métodos de datação relativa, como
a estratigrafia (que parte das camadas de sedimentação da terra) e a seriação (uma
comparação com as características de outros itens reconhecidos como de determi-
nado período). Ou, por outro lado, métodos de datação absoluta, como, entre outros,
aqueles que usam a radioatividade (contada pelo decaimento da taxa de alguns
isótopos radioativos em minérios, como o Carbono-14) e os que partem de processos
químicos (como a quantia de flúor absorvida por restos mortais). Todavia, é importante
ressaltar que a análise parte do que foi encontrado e, dessa maneira, não é definitiva,
já que novos vestígios podem mostrar a existência de novas espécies em períodos an-
teriores. O estudo da Pré-História humana está em constante evolução, assim como
os próprios seres humanos.

34 • capítulo 2
O surgimento da primeira espécie
do gênero Homo deu-se por volta de
©© WIKIMEDIA.ORG

2,5 milhões de anos atrás, com o apa-


recimento do Homo habilis, que ha-
bitou a África Oriental e desapareceu
cerca de um milhão de anos mais tar-
de. Esses indivíduos ainda não eram
bípedes obrigatórios, mas já andavam
sobre duas pernas no solo. Ainda que
seus antepassados utilizassem ele-
mentos naturais como ferramentas
(como hoje sabemos que muitos ani-
mais fazem), a maioria dos paleoan-
tropólogos defende a hipótese de que
os Homo habilis foram a primeira es-
Figura 2.2  –  Reconstrução de um Homo pécie a fabricar seus utensílios. A téc-
habilis. Fotografia feita pelo Westfälisches nica empregada ficou conhecida como
Museum für Archäologie. . cultura olduvaiense, a mais antiga ma-
neira de lascar pedras para criar lados
afiados.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.3  –  Reconstrução de uma fêmea da espécie Homo erectus, exibida pelo
Smithsonian Museum of Natural History.

capítulo 2 • 35
Entre 1,9 milhões e 50 mil anos atrás, o Homo erectus, um provável descen-
dente do Homo habilis, habitou toda a África, uma parte da Europa e quase a
metade da Ásia, sendo, portanto, o primeiro do gênero Homo a migrar para fora
de nosso continente materno africano. Isto foi possibilitado por características
físicas diferentes das espécies anteriores, como pernas mais longas e braços
mais curtos.
A maior conquista dos Homo erectus, também importante para sua expan-
são territorial, foi o domínio do fogo, que permitiu:
1. Iluminar a noite e diversos abrigos;
2. Afastar predadores;
3. Cozinhar alimentos. A cozinha com fogo é uma característica própria
do gênero humano e que nos proporcionou, por um lado, maior absorção de
determinados nutrientes e, por outro, maior durabilidade dos alimentos.

Os Homo erectus também desenvolveram novas técnicas de fabricação de


ferramentas de pedra, possibilitando equipamentos mais eficientes, com dois
lados lascados em vez de apenas um. Isto garantiu o uso de pontas afiadas,
além das lâminas anteriores.

O último ancestral conhecido do


©© WIKIMEDIA.ORG

Homo sapiens foi o Homo heidelber-


gensis, que habitou basicamente as
mesmas regiões do Homo erectus,
entre 800 e 200 mil anos atrás. Esta es-
pécie foi responsável pelos primeiros
vestígios de lanças de madeira e fer-
ramentas compostas, possibilitadas
pelo desenvolvimento da técnica que
ficou conhecida como cultura mus-
teriense, que garantia equipamentos
de pedra de formatos e tamanhos va-
riados. Há também indícios frágeis
de que os Homo heidelbergensis te-
Figura 2.4  –  Reconstrução de um Homo riam construído habitações e obje-
heidelbergensis. tos decorativos.

36 • capítulo 2
Alguns pesquisadores defendem a tese de que o Homo heidelbergensis afri-
cano foi o ancestral direto do Homo sapiens, enquanto os indivíduos desta es-
pécie localizados na Europa teriam dado origem aos Homo neanderthalensis.

©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.5  –  Reconstituição de um Homo neanderthalensis exibida pelo Smithsonian


Museum of Natural History.

Além da Europa, o Homo neanderthalensis (ou Homem de Neandertal) ha-


bitou também uma pequena parte da Ásia no espaço de tempo entre 200 e 25
mil anos atrás. Esta foi a primeira espécie ancestral no gênero Homo descober-
ta pelos humanos modernos. Seus primeiros fragmentos corpóreos foram en-
contrados em meados do século XIX, antes mesmo da publicação de A Origem
das Espécies por Darwin.
Os neandertais tinham seus corpos mais bem adaptados ao frio e utilizaram
sua grande habilidade na produção de ferramentas com a técnica da cultura
musteriense para produzir as peças de couro com as quais se protegiam no pe-
ríodo que ficou conhecido como a última Era do Gelo. Outra invenção para isso
foram os abrigos construídos com carcaças de mamutes.

capítulo 2 • 37
Os contextos nos quais seus vestígios foram encontrados mostram que os
neandertais já tinham um forte comportamento social baseado na dinâmica
familiar, o que deveria ser demonstrado nas atividades coletivas de caça e nos
cultos funerários, por exemplo. A existência de crença na vida após a morte e
os registros do uso de adornos demonstram claramente a existência de uma
capacidade simbólica, mesmo que limitada.
O Homo neanderthalensis era normalmente considerado um ponto final
evolutivo. Em contrapartida, sabe-se com certeza que parte da população nean-
dertal conviveu com os Homo sapiens por pelo menos alguns milhares de anos.
Tal convivência pode ter sido responsável pela eliminação dos Homo neander-
talensis, já que nossa espécie teria sido mais capaz de se adaptar e garantir a
vitória na competição pelos mesmos recursos necessários aos neandertais.
Recentemente, todavia, estudos genéticos têm demonstrado que parte da po-
pulação neandertal foi absorvida pelos Homo sapiens europeus, através de re-
produção mista.
Os mais antigos fósseis dos humanos modernos foram encontrados na atual
Etiópia e datam de aproximadamente 200 mil anos atrás. Anatomicamente nos
diferenciamos de outras espécies de hominídeos pelo formato do crânio (em-
bora os neandertais apresentassem a mesma capacidade craniana), além de
uma menor robustez corporal.
Considerando a coexistência com outras espécies do mesmo gênero Homo,
quais foram as vantagens adaptativas que garantiram ao ser humano moder-
no a continuidade de sua espécie em detrimento das outras? Esta pergunta
está relacionada a uma série de capacidades desenvolvidas por volta de 60 mil
anos atrás, no contexto que ficou conhecido como “Revolução do Paleolítico
Superior”.

2.2  A Revolução do Paleolítico Superior

A análise da cultura material de nossos antepassados Homo sapiens demons-


tra claramente uma espécie de “grande salto para a frente” entre 70 e 50 mil
anos atrás na África. Esse foi um momento de explosão criativa que proporcio-
nou uma diversidade inédita nos vestígios arqueológicos. Pesquisas genéticas
têm apontado para uma modificação no genoma humano, permitindo uma
enorme expansão de nossa capacidade de abstração e simbolismo e o surgi-
mento de uma linguagem complexa. Alguns estudiosos defendem a ideia da

38 • capítulo 2
aplicabilidade do conceito de exaptação, ou seja, do desenvolvimento de uma
capacidade cerebral latente a partir de algum estímulo, que, neste caso, seria a
própria linguagem, abrindo as portas para toda a complexidade simbólica que
alcançamos.
O uso da linguagem complexa possibilitou o desenvolvimento de formas
mais eficazes de passagem social dos conhecimentos, garantindo um progresso
mais acelerado das técnicas e das tecnologias produtivas. Consequentemente,
os seres humanos passaram a poder contar com ferramentas cada vez mais
bem acabadas. Além das pedras lascadas, os utensílios começaram a utilizar
madeira, ossos, cerâmica para fabricar anzóis, redes, arpões e embarcações.
Em comparação com as espécies anteriores, os enterramentos dos Homo
sapiens mostram a presença de um culto funerário mais intrincado, com pa-
drões de sepultamento que incluíam mais objetos, fossem adornos ou utensí-
lios diários.
O aspecto mais impactante desse processo revolucionário do paleolítico su-
perior foram certamente os frutos artísticos dessa evolução na capacidade sim-
bólica dos seres humanos. As representações simbólicas devem, logicamente,
ter-se iniciado com processos simples de abstração relativa a elementos natu-
rais, como os desenhos em paredes de cavernas de vários locais do mundo.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.6  –  Animais representados nas cavernas de Lascaux, na França, conhecida como
“Capela Sistina da Idade da Pedra”.

capítulo 2 • 39
A presença de diversas representações de diferentes animais
e de cenas de caça inicialmente fez com que os pré-historiado-
res considerassem essas imagens como retratos de cenas do coti-
diano dos homens e mulheres daquele período. Uma pesquisa mais
aprofundada começou a mostrar níveis de abstração mais profundos que

©© WIKIMEDIA.ORG
não eram imediatamente derivados da na-
tureza observável, como seres antropomór-
ficos (humanos com cabeça de pássaro, por
exemplo), entre outros. Essa constatação ge-
rou outra interpretação, na qual as pinturas
rupestres deveriam ter também significado
mágico-religioso.
Outros exemplos dessas formas mais abs-
tratas são as representações figurativas de
humanos, como as famosas Vênus (figuras
femininas ligadas ao culto da fertilidade) ou
esculturas antropomórficas, como o homem-
leão de Hohlenstein (também associado à ado-
ração de aspectos naturais). Figura 2.7  –  Vênus de Willendorf,
achada na Áustria.
©© WIKIMEDIA.ORG

Ao trabalhar com o argumento do desenvolvimento


da capacidade de abstração humana, Gordon Childe
(1966) mostra a sua importância para a evolução e adap-
tação humana, identificando o simbolismo como uma
espécie de equipamento imaterial. Além de permitir,
em conjunto com as modificações morfológicas na la-
ringe, o surgimento da linguagem complexa e garantir
uma comunicação melhor e uma passagem mais efi-
ciente da tradição social, a abstração acaba tendo papel
fundamental na construção da visão de mundo, das ex-
plicações da realidade e das motivações sociais. O autor
chega a afirmar que, a partir de determinado momento,
objetivos abstratos, como o amor e a liberdade, acabam
Figura 2.8  –  Homem-
por se tornarem mais importantes que outros mais ma-
leão de Hohlenstein,
teriais, como a fome e o medo. A partir disso, localiza-se
encontrado na Alemanha.

40 • capítulo 2
o papel da ideologia na produção e se entende toda a sua importância como
elemento integrador da sociedade.

2.3  A Diáspora Humana

A Revolução do Paleolítico Superior, a complexificação dos níveis de abstração


humana, o surgimento da linguagem complexa, das expressões artísticas e de
ferramentas (materiais e imateriais) cada vez mais sofisticadas de produção ge-
rou uma capacidade inédita de expansão e adaptação para o gênero humano.
Não foi coincidência que simultaneamente os Homo sapiens tenham iniciado
grande diáspora que levou à ocupação de todo o planeta a partir da África.
©© WIKIMEDIA.ORG

15 000 4500

25 000
40 000

12 000
100 000
70 000

200 000 30 000

1500

50 000

Homo sapiens 1500


Homo neanderthalensis
Homo erectus

Figura 2.9  –  Os caminhos das migrações dos seres humanos modernos na Pré-História.

A diáspora do Homo sapiens pode ser traçada tanto a partir da descoberta


de fósseis quanto do mapeamento genético das populações atuais (indicando
sua maior ou menor proximidade com os ancestrais africanos dos quais todos
e todas são descendentes).
Da África, os humanos modernos viajaram pela Síria-Palestina e se dividi-
ram entre grupos que rumaram para Leste, em direção à Península Arábica e
Ásia, enquanto outros se dirigiram para a Europa. Nesse processo, os Homo
sapiens conviveram com outros descendentes de espécies anteriores, como os
Homo heidelbergensis e os neandertais.

capítulo 2 • 41
Mesmo que haja um razoável consenso sobre a dispersão para a Ásia, Europa
e Oceania, a ocupação da América envolve um debate com mais possibilidades
em diálogo. A teoria mais difundida é a da “Ponte da Beríngia”, segundo a qual
os seres humanos chegaram à América, há cerca de 10 mil anos, através da Ásia,
cruzando o estreito de Bering a pé durante uma baixa no nível do mar, decor-
rente de um período de glaciação. Com o aumento no nível das águas, esta pon-
te permanece até hoje submersa.
Outra das teorias de ocupação da América começou a ser elaborada com
a descoberta, a partir da década de 1920, de sítios na América do Norte com
uma cultura lítica que ficou conhecida como “cultura Clovis” e manteve duran-
te bastante tempo o título de mais antigos vestígios humanos do continente.
Como a datação desta cultura Clovis a localizou num período entre 11 e 9 mil
anos atrás, isto deveria significar que a travessia pela Beríngia teria ocorrido
alguns milênios antes, por volta de 14 mil anos atrás.
Descobertas mais recentes de sítios cada vez mais antigos tanto na América
do Sul quanto na Central e na do Norte têm colocado em questão essas hipóte-
ses. Partindo de indícios linguísticos, etnográficos e biológicos, desenvolveu-
se uma teoria que aponta para uma migração transpacífica para o continente.
Além da rota da Beríngia, os seres humanos teriam chegado aqui também na-
vegando pelo oceano Pacífico, o que explicaria sítios tão antigos na América do
Sul. Outra hipótese levantada foi que a migração para o continente teria se dado
pelas águas congeladas do Atlântico Norte.
Os mapeamentos genéticos atuais têm apontado questões interessantes.
Primeiramente, confirmam que boa parte da população nativa do continente
americano é descendente de povos asiáticos. Em contrapartida, os mesmos
estudos apontaram que deve ter havido uma forte migração europeia para a
América do Norte.
Por fim, o Brasil se insere nessas discussões a partir dos vestígios encon-
trados no sítio da Pedra Furada, localizado no Parque Nacional da Serra da
Capivara, no Piauí. As escavações dirigidas pela arqueóloga Niede Guidon mos-
tram indícios de uma ocupação humana na região que data de 25 mil anos atrás.
Esta datação é, hoje, razoavelmente aceita nos meios acadêmicos. Há, todavia,
mais questionamentos sobre a afirmação de que determinadas ferramentas
encontradas na Serra da Capivara teriam aproximadamente 100 mil anos, ou
seja, período em que o ser humano moderno ainda nem teria deixado a África.

42 • capítulo 2
Os debates sobre as diásporas dos Homo sapiens são calorosos e há, como
visto, inúmeras hipóteses. Por mais que os estudos genéticos estejam apresen-
tando um panorama bastante confiável, cabe lembrar que essas discussões
envolvem questões do nosso presente. A reivindicação de ocupações humanas
mais antigas é um título em disputa por arqueólogos de todo o mundo, inclusi-
ve por orientar financiamentos de pesquisa e até mesmo dinheiro de turismo.
Devemos, portanto, analisar cuidadosamente cada uma das teorias e, em al-
guns casos, esperar por confirmações mais sólidas e consensuais.

2.4  A economia e a forma de vida do Paleolítico

Como viviam os seres humanos no planeta durante seus primeiros quase 190
mil anos? É claro que isso é muito tempo e, consequentemente, inclui muitas
diferenças. Uma comparação importante deve ser feita para mostrar que mes-
mo a agricultura é uma invenção relativamente recente na história da trajetória
dos seres humanos modernos. Durante a imensa maioria de nossa presença
neste planeta, vivemos basicamente como caçadores-coletores.
Em nossos primeiros 190 mil anos, nós, seres humanos, vivemos basicamen-
te da coleta de vegetais e da caça de animais (ou eventualmente do aproveitamen-
to de alguma carcaça abandonada por outro animal caçador), ou seja, homens e
mulheres eram dependentes do mundo selvagem, tanto animal quanto vegetal.
As sociedades naquele período se estruturaram em grupos que tinham
como um importante aspecto de união a participação conjunta nos trabalhos
de coleta e caça. A organização em grupos pequenos garantira uma mobilida-
de maior e uma capacidade mais efetiva de suprir todos os membros. Por isso,
imagina-se que as sociedades se organizavam em grupos de até 50 pessoas. Não
há nenhum indício, para aquele período, de hierarquias sociais ou poderes acu-
mulados que mantivessem quaisquer diferenciações relativas, seja em relação à
produção, seja a outro fato, ainda que existam registros que sugiram a presença
de especialização do trabalho (como a alta qualidade de algumas ferramentas).
A igualdade social era mantida com o auxílio da fartura relativa aos bens
disponíveis na época. Ao contrário do que se imagina, os caçadores e coleto-
res não viviam com grandes dificuldades, empenhados sempre numa luta pela
conquista de alimento. Em contrapartida, pesquisas indicam que a quantidade
de horas de trabalho necessárias ao sustento das sociedades humanas subiu
com a introdução da agricultura.

capítulo 2 • 43
Outra tendência muito forte no senso comum é a projeção da desigualda-
de e da violência e da dominação executada pelo gênero masculino sobre as
mulheres na grande maioria das sociedades dos últimos 15 mil anos para as
populações humanas anteriores. Isto significa dizer que a ideia de um homem
das cavernas dominador e violento, arrastando sua fêmea, está cada vez mais
distante do que apontam os estudos mais recentes. As últimas análises de gru-
pos caçadores-coletores têm demonstrado uma forte tendência à igualdade de
gênero, necessária para a conformação de redes sociais extrafamiliares. Tais
redes aumentavam consideravelmente as possibilidades de sobrevivência dos
grupos. Um estudo mais simbólico complementa esse quadro, ao apontar que a
maioria das mãos pintadas nas paredes de caverna pertencia a mulheres, o que
talvez indique o início de uma especialização do trabalho e, talvez, até um papel
acentuado do gênero feminino nas perspectivas mágico-religiosas nascentes.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.10  –  Cueva de las Manos, pintura rupestre localizada na Província de Santa Cruz,
na Argentina.

2.5  A Revolução Neolítica

Entre 10000 e 5000 a.C., os seres humanos passaram por mais um proces-
so que determinou uma mudança completa nas suas possibilidades de futuro.
Em diferentes locais, muitas vezes de forma independente, deu-se um enorme
passo no processo humano de controle da natureza, com a domesticação de
plantas e animais e a consequente invenção da agricultura.

44 • capítulo 2
Por mais que possa haver um primeiro estranhamento com a ideia de uma
“invenção” e não uma “descoberta” da agricultura, devemos ser precisos ao in-
dicar que essa nova forma de produção é uma invenção humana. Foi um proces-
so longo, com milênios de anos de observação da natureza e experiências, que
culminou na revolução neolítica. Foi necessário descobrir quais das espécies de
animais e vegetais eram domesticáveis, o que, no caso dos primeiros, depende da
adaptação a dietas mais pobres e da capacidade de reprodução rápida, enquanto
no caso dos vegetais estava ligado a um ciclo produtivo mais estável e a uma pro-
dutividade alta. Em seguida, iniciou-se o trabalho de seleção artificial dos melho-
res indivíduos entre o gado e as plantas para serem usados na reprodução.
O historiador italiano Mario Liverani (1995) aponta que, entre 10000 e
7500 a.C., os passos iniciais dessa nova forma de produção, que está em desen-
volvimento, começam a proporcionar suas primeiras grandes consequências.
Os grupos humanos deixam as cavernas e passam a habitar pequenas vilas com
casas redondas e é possível observar as primeiras diferenças entre acampamen-
tos fixos, voltados para a agricultura, e outros sazonais, usados para a caça e
o pastoreio. Nesse contexto, são encontrados os primeiros silos de armazena-
mento de grãos e se notam enterramentos coletivos e individuais.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.11  –  Vestígios de uma casa natufiana.

capítulo 2 • 45
Os indícios mais antigos dessa nova organização foram achados na Síria-
Palestina, nos grupos que compuseram a cultura natufiense, marcada pela
produção de ferramentas de pedra específicas para uso na colheita. A crono-
logia da invenção da agricultura não é algo simples e preciso, pois depende ba-
sicamente da análise de ossos de animais ou estudos laboratoriais dos corpos
humanos que apontem as principais formas de alimentação dos indivíduos.
Dessa forma, é difícil definir exatamente quando isso ocorreu em cada um dos
lugares do mundo.
O que sabemos com certeza é que boa parte das leituras tradicionais do
processo evolutivo das formas de organização e produção humanas está erra-
da. Como observado no Capítulo 1, durante o século XIX, os pré-Historiado-
res incorporaram uma série de preconceitos característicos da perspectiva im-
perialista da superioridade europeia diante de sociedades menores e menos
complexas na África e na Ásia. Isto levou à adoção de uma perspectiva linear e
vetorial de progresso, na qual os povos passariam por melhorias praticamente
irreversíveis nas suas condições de vida ao progredir de uma organização nô-
made caçadora e coletora para outra sedentária, possibilitada pela invenção
da agricultura.
Hoje sabemos que a situação é um tanto mais complexa. Em primeiro lugar,
observamos que alguns povos podem optar pelo retorno ao nomadismo após
já conhecerem a agricultura e terem, inclusive, vivido de maneira sedentária.
Em segundo, refutou-se a concepção de que o sedentarismo é consequência
da invenção da produção agrícola. Pelo contrário, constatou-se que uma vida
sedentária é fundamental para a conclusão do longo processo de experimenta-
ção e seleção artificial que possibilita a agricultura. Assim, a produção agrícola
humana foi iniciada em locais com uma abundância de alimentos disponíveis,
possibilitando o assentamento de grupos de caçadores e coletores que, em se-
guida, investiram no desenvolvimento da produção agrícola.
Outro elemento de crítica à visão tradicional da evolução das formas de or-
ganização humanas é a contestação da perspectiva que identifica a caça e a co-
leta como um modo de vida obviamente inferior à agricultura, cuja invenção
teria sido resultado dos esforços de homens e mulheres por maior garantia na
aquisição de alimentos.
Pelo contrário, pesquisas recentes apontam para uma alimentação mais
diversificada e conquistada com menos tempo de trabalho num modo de
produção caçador-coletor do que com a agricultura primitiva, que deixava as

46 • capítulo 2
populações mais vulneráveis a crises alimentares decorrentes das variações na-
turais nas colheitas. Isto significa que a invenção da agricultura não foi um cál-
culo matemático referente ao maior benefício com o menor esforço, mas um
processo bastante longo de adaptação a novas formas de reprodução da vida
humana.
Hoje sabemos que a produção agrícola foi fundamental para criar as bases
que possibilitaram os desenvolvimentos civilizacionais posteriores. A agricul-
tura possibilita, na presença de algumas características naturais, uma incrível
produtividade, em especial o cultivo de cereais, que gera muitas sementes a
cada uma plantada. Ademais, o trabalho agrícola abriu as portas para a ação de
estratos sociais que antes não eram produtivos, como as crianças, por exemplo.
Por fim, a armazenagem dos grãos é muito mais durável do que dos principais
alimentos conquistados por meio da caça e da coleta, que, é importante ressal-
tar, nunca deixaram de ser realizadas como atividades complementares.
O aumento da produtividade, mesmo que demandando maior quantidade
de trabalho da sociedade, gerou um crescimento demográfico considerável,
apoiado pelo fato de que a sedentarização diminuiu a mortalidade infantil. Em
contrapartida, a intensificação da densidade populacional acabou tendo o efei-
to colateral da propagação mais rápida de doenças, assim como o aumento dos
conflitos sociais em decorrência das disputas territoriais. Consequentemente,
as taxas de mortalidade também cresceram.
O regime demográfico da humanidade, portanto, mudou consideravelmen-
te com altas taxas de natalidade e mortalidade, acrescidas pela sazonalidade
das epidemias e crises de colheita referentes a mudanças naturais e climáticas.

2.6  A revolução urbana

Uma das consequências da consolidação do sedentarismo e do crescimento de-


mográfico foi o aumento dos conglomerados habitacionais. As maiores comu-
nidades assentadas do início da Revolução Neolítica tinham até 250 pessoas,
mas, entre o ano 7000 e o 3000 a.C., com a Revolução Urbana, surgiram cidades
amuralhadas de até 45 mil habitantes.
A partir do Sétimo Milênio a.C., as necessidades da produção agrícola e da
vida em geral levaram as pessoas a se assentarem nas proximidades de grandes
reservas de água, em geral nos leitos de rios. Com o crescimento da população,
diminuiu gradualmente o isolamento entre as comunidades camponesas, que

capítulo 2 • 47
se integravam por meio das mais diversas trocas materiais e culturais. Os con-
tatos mais constantes favoreceram o desenvolvimento de meios de transporte,
assim como o uso da força animal. Este é, por exemplo, o contexto no qual, al-
guns milênios mais tarde, foi inventada a roda.
Outro fator fundamental para a eclosão do processo que ficou conhecido
como Revolução Urbana foi a capacidade constante de gerar excedentes da pro-
dução. Isto influenciou não apenas nas trocas com outras comunidades, mas
também na divisão social do trabalho.

2.6.1  De aldeias a cidades: a complexificação e a hierarquização da sociedade

Há grandes vestígios de uma primeira aglomeração amuralhada, com cerca de


2000 habitantes e datada do ano 7000 a.C., no que hoje é a cidade de Jericó.
Sua escavação não pode ser feita completamente, porque as ruínas estão sob
as habitações da cidade atual, mas presume-se uma grande estrutura. Alguns
séculos mais tarde, por volta de 6700 a.C., havia, na atual Turquia, a cidade co-
nhecida hoje como Çatalhuyuk, que contava com cerca de 5.000 habitantes.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.12  –  Escavações da cidade conhecida como Çatalhüyük, na atual Turquia.

48 • capítulo 2
Mas o que diferencia uma grande aldeia de uma cidade?
Gordon Childe (1950) estabeleceu dez critérios para diferenciar uma aldeia
de uma cidade. Alguns eram aumentos quantitativos, mas outros eram referen-
tes a mudanças qualitativas, ou seja, ao aparecimento de determinadas carac-
terísticas inéditas na história humana.
Entre as mudanças quantitativas levantadas pelo arqueólogo, estavam o
crescimento da densidade populacional e o aumento dos assentamentos, mas
isto não era suficiente para saber se uma aglomeração de 5.000 habitantes,
como Çatalhüyük, poderia ser considerada uma cidade.
As mais importantes modificações, todavia, eram aquelas que estavam ge-
rando novas formas de organização social. A população estava cada vez mais di-
vidida em dois grandes grupos, que podem ser classificados sociologicamente
como classes sociais, porque estão relacionados a diferentes papéis no sistema
econômico de produção. A sociedade era formada, por um lado, por uma imen-
sa maioria de produtores (agrícolas ou artesanais) e, por outro, por um grupo
bastante reduzido que não produzia e, consequentemente, vivia da cobrança
do excedente da produção dos trabalhadores na forma de tributos.
Essa divisão entre uma classe de produtores e outra de apropriadores da
produção (isto é, uma classe subalterna e uma classe dominante) rompeu com
a organização produtiva das aldeias, nas quais os frutos do trabalho eram mais
coletivizados e onde havia um grau muito pequeno de especialização do traba-
lho. Em outras palavras, a aldeia camponesa surgida com a Revolução Neolítica
era autossuficiente, produzindo em seu interior o necessário para suprir suas
necessidades agrícolas e artesanais.
A Revolução Urbana implicou obrigatoriamente em uma maior divisão
social do trabalho, na qual determinadas funções, como algumas artes arte-
sanais, eram exercidas por trabalhadores (as) especializados (as) sustentados
pelos excedentes dos produtores agrícolas.
Isso não significa dizer que no interior das aldeias não houvesse algum tipo
de hierarquização social. O mais importante é ressaltar que essas formas de di-
ferenciação da sociedade não estavam ligadas incialmente a grupos diferentes
exercendo funções distintas na produção. A hierarquia se dava por elementos
de prestígio e força, com líderes espirituais ou guerreiros, e não com a separa-
ção entre produtores e apropriadores.
O controle de uma pequena minoria sobre o excedente produtivo da so-
ciedade garantiu que a classe dominante o empregasse no pagamento de

capítulo 2 • 49
trabalhadores especializados, como os artesãos de tempo integral. Isso gerou
um enorme desenvolvimento na cultura material e nos padrões artísticos. De
maneira conjunta, a cobrança de tributos em gêneros agrícolas e tempo de tra-
balho possibilitou a construção de edifícios monumentais de caráter coletivo,
como grandes templos ou as próprias muralhas fortificadas das cidades.
Outra parte dos tributos era utilizada para manter o padrão de vida da classe
dominante, que se consolidava como uma elite ou nobreza. Este padrão de vida
implicava a posse de bens de prestígio e eles eram conseguidos com o trabalho
artesanal especializado, abastecido por matérias-primas importadas acessíveis
por meio da troca de parte do excedente coletado dos trabalhadores e trabalha-
doras camponeses.
A mitologia e a religião têm papéis fundamentais nesse contexto. Grande
parte dos edifícios de caráter coletivo dedicava-se à adoração de divindades.
Nesse sentido, o culto às divindades servia, naquela visão de mundo, como uma
das justificativas para o pagamento de tributos para a classe dominante, já que
ela se colocava como a intermediária da coletividade diante do sobrenatural.
A nova forma de organização social característica da Revolução Urbana é
aquela marcada pelo surgimento do Estado. Diferentemente de uma perspec-
tiva de base liberal, que identifica o aparecimento da estrutura estatal como
resultado de um contrato social no qual todos os cidadãos entram em acordo
visando ao benefício coletivo, a visão que defendemos aqui é a do Estado como
uma forma de organização que surge para garantir a exploração da elite sobre
os produtores e produtoras. Para isso, monopolizam não só o exercício da vio-
lência, mas também outros elementos, como o comércio externo, o fluxo de
bens de prestígio e o protagonismo na relação oficial com o mundo sagrado.
O Estado aparece incorporado por templos e palácios, que usam o tributo
para o pagamento de trabalhadores especializados e a conquista de matérias-pri-
mas. Surge, portanto, um grupo de funcionários estatais que dá corpo a esta elite
dominante e garante o funcionamento diário dessa forma de organização social.
A Revolução Urbana, portanto, foi marcada pelo surgimento de uma nova
dinâmica social, o Estado, e uma estrutura característica, as cidades. Um dos
primeiros exemplos comprovados desse processo se deu na cidade de Uruk,
no sul da Mesopotâmia. No Quarto Milênio, essa região do atual Iraque deixou
de ser ocupada por uma aldeia e se tornou uma grande cidade, controlada por
uma elite estatal que explorava várias aldeias camponesas ao seu redor. Por volta
de 3200 a.C., estima-se que Uruk tenha alcançado o número aproximado de 45
mil habitantes.

50 • capítulo 2
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 2.13  –  Sítio com as ruínas da cidade de Uruk, em Warka.

A Revolução Urbana se deu de forma independente em diferentes momen-


tos e lugares na história, não apenas no Oriente, mas também na Europa e na
América, por exemplo. No caso da Antiguidade Oriental, destacam-se os exem-
plos da Suméria, na Mesopotâmia, por volta de 3500 a.C., no Egito, aproxima-
damente na virada do Quarto para oTerceiro Milênio a.C., e no Vale do Indo,
mais ou menos em 2600 a.C..

2.6.2  Os avanços técnicos e tecnológicos: cerâmica e metalurgia

A nova organização social decorrente da Revolução Urbana possibilitou um de-


senvolvimento enorme nas técnicas e tecnologias, com o uso de conhecimen-
tos aplicados de matemática, arquitetura, astrologia e outros.
A concentração dos excedentes, ocasionada pelo pagamento dos tributos,
garantiu um sistema de estímulo ao trabalho especializado no artesanato. Com
isso, houve uma evolução considerável tanto na produção de cerâmica quanto
na metalurgia, que já haviam sido descobertas anteriormente. Contribuiu pra
isso a velocidade mais rápida na difusão dessas técnicas e tecnologias, caracte-
rística de sociedades mais integradas.
As cerâmicas eram muito menos úteis aos povos nômades, em razão da sua
fragilidade e peso. Todavia, com a agricultura e, especialmente, a necessida-
de de armazenagem, passaram a aparecer diferentes tipos de recipientes de

capítulo 2 • 51
cerâmica, usados para líquidos, grãos e outros materiais. Além disso, esse tipo
de artesanato também se tornou elemento decorativo, ganhando, em certos ca-
sos de trabalhos de alta qualidade, status de indicador de prestígio.
A cerâmica é fundamental especialmente para nós, pesquisadores e pesqui-
sadoras do passado, uma vez que constituem parte significativa dos indícios
que diversas civilizações nos legaram. Mesmo quando despedaçados e frag-
mentados, são índices muito informativos sobre o passado.
A metalurgia foi dedicada basicamente ao trabalho com o cobre e o bron-
ze (uma liga de cobre com estanho ou arsênico), de maneira que os arqueólo-
gos nomeiam o período a partir do final do Terceiro Milênio a.C. até finais do
Segundo Milênio a.C. como Idade do Bronze.
O trabalho com o cobre já é constatada desde o Quinto Milênio a.C., mas a
metalurgia propriamente dita (conjunto de técnicas para purificar o minério e
moldar o metal) se difunde no milênio seguinte, no Oriente Próximo, inician-
do-se com técnicas de batida e flexão e evoluindo para o derretimento e os mol-
des, difundindo o uso da liga de bronze.

ATIVIDADES
01. Disserte sobre a Revolução Neolítica.

02.

52 • capítulo 2
Zona sagrada de Eanna dedicada à deusa Ishtar, na cidade de Uruk. Disponível em: LIVERA-
NI, M. El Antiguo Oriente. Historia, sociedade y economía. Barcelona: Crítica, 1995. p. 104
“No centro [da cidade] se destacam os edifícios dos templos e palácios, com um aspec-
to exterior muito cuidado, para impressionar a população”. (LIVERANI, M. El Antiguo Oriente.
Historia, sociedade y economía. Barcelona: Crítica, 1995. p. 104)
A estrutura retratada acima é fruto de um processo histórico que culmina por volta de
3000 a.C.. Disserte sobre este processo.

REFLEXÃO
Iniciamos o capítulo observando o processo de milhões de anos pelo qual as espécies do
gênero Homo passaram até desembocarem no surgimento do homo sapiens. Em seguida,
apontamos as características do modo de vida caçador-coletor e as enormes modificações
introduzidas a partir da Revolução Agrícola. Por fim, discutimos o aparecimento do Estado, da
hierarquização e da exploração de classe, cujo surgimento ficou cristalizado com o conceito
de Revolução Urbana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHILDE, V. Gordon. “The Urban Revolution”. The Town Planning Review, v. 21, n. 1, p. 3–17, 1950.
CHILDE, V. Gordon. O Que Aconteceu na História. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1966.
LIVERANI, Mario. El Antiguo Oriente. Historia, sociedade y economía. Barcelona: Crítica, 1995

capítulo 2 • 53
54 • capítulo 2
3
Mundos da
economia
3.  Mundos da economia
Nos capítulos anteriores, fizemos tanto uma análise mais conceitual e me-
todológica quanto um estudo atento sobre o surgimento do gênero humano
e a organização das sociedades no que se convencionou chamar de período
pré-histórico.
A partir deste capítulo, iniciaremos uma análise de corte temático, visan-
do congregar informações sobre distintas sociedades da Antiguidade Oriental,
trazendo exemplos variados de formações históricas.
Dentre as diversas esferas que compõem a vida social, a economia talvez seja
aquela mais diretamente ligada às necessidades naturais primárias dos seres hu-
manos, como a alimentação, por exemplo. Por isso, escolhemos as estruturas eco-
nômicas para iniciar nosso conhecimento temático sobre a Antiguidade Oriental.

OBJETIVOS
•  Compreender o conceito de Economia;
•  Analisar as diferenças naturais entre as distintas realidades geográficas que enquadram as
sociedades da Antiguidade Oriental;
•  Entender o conceito de Modo de Produção Asiático;
•  Compreender os principais elementos da economia do Egito faraônico;
•  Compreender os principais elementos da economia da Mesopotâmia;
•  Analisar as peculiaridades das estruturas econômicas fenícias.

3.1  O que é economia?

Para estudarmos o que chamamos de os “Mundos da Economia” na Antigui-


dade Oriental, é necessário antes compreender corretamente o que é entendi-
do como “Economia”. A palavra tem sua origem no termo grego oikonomia,
integrado por oikos (“casa”) e nomos (“administrar” ou “gerir”), significando
originalmente “administração doméstica”.
Na realidade, observando corretamente a tradição grega, o oikos era mais
do que hoje compreendemos como casa, referindo-se a toda uma célula produ-
tiva, composta por terras, animais, pessoas, construções etc. Dessa maneira, o
significado derivado do sentido original da palavra está ligado à gestão da pro-
dução de um grupo humano.

56 • capítulo 3
Uma definição de “Economia” mais formal, defendida por economistas
desde o século XIX, é aquela que a identifica como o estudo do comportamento
dos indivíduos diante de meios escassos de conseguir determinados fins. É a
partir de uma definição como esta que se dá o significado, por exemplo, do ver-
bo “economizar”, ou seja, os indivíduos têm de competir entre si, por exemplo,
para saciar sua fome em um meio em que os alimentos sejam escassos.
Os estudiosos que defendem essa definição formal de Economia afirmam
que é da natureza humana competir pelos meios escassos. Seguindo essa ló-
gica, a natureza da competição só se realizaria plenamente numa sociedade
em que não houvesse nenhum tipo de intervenção nessa relação entre meios
escassos e fins. A história humana seria a trajetória do progresso econômico
na qual as diferentes formas de intervenções políticas e culturais na racionali-
dade econômica vão sendo dissipadas até o surgimento do reino da livre oferta
e procura.
Mais do que uma análise cuidadosa da história, a perspectiva formal trans-
porta para a natureza humana a lógica da competição, que é característica das
formações econômicas capitalistas. Consequentemente, o sistema capitalista
é visto como o ápice do progresso da humanidade, numa visão extremamente
apologética do capitalismo.
Outra definição de economia foi desenvolvida a partir da área do conheci-
mento chamada Economia Política. Segundo essa perspectiva, o econômico
seria visto como o campo das atividades relacionadas à produção, repartição e
consumo de objetos materiais e, ao mesmo tempo, pelos mecanismos dessas
ações. Logo, seguimos a definição do antropólogo francês Maurice Godelier:
“Por economia, entendemos o conjunto das estruturas da produção e da circu-
lação dos bens materiais que caracteriza a base econômica de uma determina-
da sociedade” (GODELIER, 1988: 152).
Partindo da perspectiva da Economia Política, o estudo do que chamamos
de “Mundos da Economia” refere-se aos frutos do trabalho humano, sua forma
de produção, distribuição e consumo. Diferentemente da definição formal, isto
não implica em projetar no passado um comportamento econômico típico das
sociedades capitalistas. Significa apenas entender as estruturas sociais através
das quais os homens e as mulheres satisfazem suas necessidades materiais
partindo da relação entre os seres humanos e a natureza.
As diferenças entre essas duas definições de economia se refletem no deba-
te acerca da Economia Antiga, travado há mais de um século entre os e os pro-
fissionais dessa área e bastante influenciado pelos trabalhos da Antropologia

capítulo 3 • 57
Econômica. Os marcos iniciais dessa discussão foram estabelecidos pela polê-
mica entre dois historiadores alemães do século XIX que ficou conhecida como
debate Bücher-Meyer.
Karl Bücher foi professor em universidades com Basileia e Leipzig, onde
ficou conhecido como patrono da carreira de jornalismo. Todavia, havia lecio-
nado Economia boa parte de sua vida e teve sua tese defendida sobre História
Clássica. Em seu trabalho, defendeu a ideia de que as economias antigas eram
diferentes do capitalismo moderno, sendo pouco desenvolvidas e rudimen-
tares. A corrente de pensamento derivada dessa ideia ficou conhecida como
primitivismo.
No outro lado do debate está a posição defendida por Edward Meyer, que
também lecionou em Leipzig e em outras universidades. Este outro historiador
alemão do Mundo Clássico afirmava que a economia da Antiguidade obedecia
às mesmas dinâmicas do capitalismo moderno, diferenciando-se apenas por
uma questão quantitativa. Nessa perspectiva, parte-se de uma definição forma-
lista para defender a ideia de que a economia se articula, em qualquer momen-
to histórico, pelas leis de mercado e pela racionalidade de disputa por meios
escassos. Esta corrente foi chamada de formalismo ou modernismo.
A partir das posições iniciais de Bücher e Meyer, outros trabalhos foram
desenvolvidos em diversos campos dos estudos sobre as estruturas econômi-
cas da Antiguidade. Um dos autores mais influentes foi o antropólogo e eco-
nomista político húngaro Karl Polanyi, que criticou o formalismo, afirmando
que as economias das sociedades antigas eram qualitativamente diferentes da
dinâmica do capitalismo. Ele considerou um conceito de Economia partindo
da lógica da Economia Política, afirmando uma definição substantiva, que,
diferentemente da definição formalista, considerava as formas de produção e
distribuição do trabalho humano. Dessa maneira, fundou a corrente de estudo
da Economia Antiga conhecida como substantivismo.

CONCEITO
Toda tentativa de esclarecer o lugar que a economia ocupa na sociedade deve partir do
fato de que o termo econômico, tal como habitualmente usado para descrever um tipo de
atividade humana, contém dois significados, com raízes distintas e independentes uma da
outra. Não é difícil identificá-las. O primeiro significado, a forma, provém do caráter lógico da
relação meios-fins, como em economizar ou conseguir algo a baixo do preço; desse signifi-

58 • capítulo 3
cado provém a definição de econômico pela escassez. O segundo, o significado substantivo,
aponta para a realidade elementar de que os seres humanos, como quaisquer outros seres
vivos, não podem existir sem um meio físico que os sustente; eis a origem da definição subs-
tantiva de econômico. Os dois significados, o formal e o substantivo, nada têm em comum.
O conceito atual de econômico é, portanto, uma composição de dois significados. Embo-
ra dificilmente alguém possa contestar isso, suas implicações para as ciências sociais (exce-
tuando-se sempre a economia) raras vezes são abordadas. O termo econômico é presumido
sempre que a sociologia, a antropologia, ou a história lidem com assuntos pertinentes à sub-
sistência humana. Mas é usado de maneira imprecisa: dependendo do quadro de referência,
ora aparece com a conotação de escassez, ora com a conotação substantiva. Assim, oscila
entre dois polos de significação não relacionados entre si.
POLANYI, K. “Os Dois Significados do econômico”. In: LEVITT, K. (Org.) A subsistência
do homem e outros ensaios. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 63

Para Polanyi, a principal distinção entre as economias antigas e modernas


estaria no fato de que as estruturas econômicas pré-capitalistas estariam “en-
raizadas” em outras esferas da sociedade. O mercado e suas leis formadoras
de preços não eram determinantes num cenário em que o econômico estava
sempre incrustado numa realidade social que englobava elementos políticos e
culturais. Somente no capitalismo é que surge um sistema econômico institu-
cionalmente separado.
Segundo essa perspectiva substantivista, nas sociedades antigas haveria
outras formas institucionalizadas de circulação, como a reciprocidade e a re-
distribuição. Assim, o comércio tinha sempre papéis secundários diante das
demais formas de organização de distribuir a produção.
O marxismo foi outra corrente interpretativa que apontou uma diferença
radical entre as formações socioeconômicas da Antiguidade e as dinâmicas
capitalistas, também apontando o fato de que apenas no capitalismo é que a
Economia é vista como separada de outras esferas da vida social, como a cultu-
ra ou a política. A explicação disso se dá por meio da demonstração de que os
modos de produção pré-capitalistas contam com formas extraeconômicas de
exploração do sobretrabalho, ou seja, os trabalhadores eram obrigados a pagar
parte da sua produção e seu esforço produtivo por vínculos, como tributos por
meio de vínculos religiosos, políticos e jurídicos. Enquanto, no capitalismo, a

capítulo 3 • 59
extração se dá por mecanismos puramente econômicos, como a produção de
mais-valor no âmbito da venda da força de trabalho.
Partindo de uma posição crítica à corrente Formalista ou Modernista, va-
mos pensar a Economia a partir de sua definição mais substantiva, envolvendo,
por um lado, a relação entre os seres humanos e a natureza e, por outro, as re-
lações entre os próprios seres humanos em sociedade, visando à satisfação de
suas necessidades.

3.2  As condições naturais e os seres humanos no Antigo Oriente

3.2.1  As condições naturais

De maneira geral, pode-se diferenciar duas grandes zonas geográficas no An-


tigo Oriente Próximo: as terras mais altas e montanhosas (norte e leste) e as
regiões mais baixas (sul e oeste).
As regiões mais altas incluem montanhas e planaltos com altitudes que al-
cançam até 2.000 m acima do nível do mar no Norte, incluindo as cadeias mon-
tanhosas da Anatólia e da Armênia, além dos montes Zagros. A ecologia desses
ambientes, conformada por vales e planaltos secos e salinos, é menos variada
que aquela das áreas mais baixas.
Embora também contem com montanhas (especialmente na região do
Levante, composta por Síria, Fenícia e Palestina), as áreas mais baixas são mar-
cadas por colinas, planaltos baixos e planícies com grandes vales, como o dos
rios Nilo, Eufrates e Tigre, fazendo fronteira com desertos. A região marcada
pela presença dos grandes rios ficou conhecida como Crescente Fértil, esten-
dendo-se da Mesopotâmia até o Egito, mas incluindo também a Síria-Palestina.
Mais distantes desse quadro, há também planícies irrigáveis no vale do Indo.

60 • capítulo 3
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 3.1  –  Mapa do Crescente Fértil na Antiguidade.

As condições climáticas variam nas diferentes formações geográficas, mas,


em geral, são marcadas pelo regime de chuvas de inverno do Mediterrâneo
(excetuando-se áreas com a pluviosidade reduzida, como o Egito, no sul do
Levante, no deserto arábico e nas partes centrais dos planaltos da Anatólia
e Irã).
O calendário agrícola era comandado por essas características do clima.
Semeava-se entre outubro e dezembro para colher entre abril e junho. Os prin-
cipais alimentos cultivados (cevada, trigo e leguminosas) não suportavam o ca-
lor, que em agosto chega a 50° C à sombra em algumas regiões, bem como a
amplitude térmica, que faz a temperatura cair bruscamente à noite.

capítulo 3 • 61
3.2.1.1  O Antigo Egito

A primeira questão a ser levantada sobre a geografia do Egito pode parecer ób-
via, mas é muito pouco acentuada pela Egiptologia tradicional: a civilização
egípcia localizou-se no continente africano. Embora seja normalmente enqua-
drada, de maneira racista, no que se convencionou chamar de “Oriente Próxi-
mo”, devemos compreender que o Egito tem suas raízes na África e isto leva a
diferenças em relação a outras sociedades orientais.
A hidrografia do Nilo mantinha o ciclo anual de cheias de forma bastante
regular. No verão, as águas subiam de nível com as chuvas e degelo na nascente,
inundando e fertilizando a planície no seu entorno com os sedimentos orgâni-
cos revirados do fundo do rio. A cheia se alongava entre julho e novembro, for-
mando diques naturais nas duas margens e penetrando pelos canais e bacias
naturais de extensão variável.
A vazante dessas águas também se dava naturalmente, fosse por corrente-
zas ou por evaporação, ainda que em algumas regiões, em especial no delta do
rio, mantivesse a característica pantanosa em razão da menor inclinação do ter-
reno. Deve-se destacar que, em sua história, o Nilo mudou de leito muitas vezes,
levando a flutuações cíclicas entre cheias mais ou menos abundantes.
A riqueza mineral do Egito também é bastante conhecida. As colinas que
delimitavam o vale do rio forneciam pedras abundantes para a construção,
como o calcário. As margens do Nilo também eram ricas em sílex, principal
matéria-prima para a produção das ferramentas cotidianas.
Em oposição aos minérios, a madeira de qualidade era escassa, levando à
necessidade de importação para o abastecimento da indústria da construção
tanto civil quanto naval.

3.2.1.2  O Levante: Palestina, Fenícia e Síria

O Levante conta com uma diversidade geográfica maior do que a do Egito. A


região do Sinai dá origem a uma planície seca ao sul (arredores de Gaza), mas
torna-se mais estreita e irrigada por chuvas ao norte, na faixa entre a costa e as
montanhas. Nessa região com maior pluviosidade, há os bosques de carvalhos,
pinheiros, cedros e outras árvores de madeira nobre.
Após as montanhas, em direção ao interior do continente, há mais ao norte
o Vale do Beqaa, na antiga Fenícia, e, ao sul, o Vale do Jordão. Seguindo a leste,

62 • capítulo 3
há planaltos baixos e progressivamente mais quentes e áridos, com savanas
próprias para a criação de gado nas pastagens de verão. A fertilidade termina
na fronteira com o grande deserto da Arábia e da Síria que separa essa região
da Mesopotâmia.
O território sírio é cortado do sul ao norte pelo Rio Orontes, que nasce no
Vale do Beqaa e desemboca no Mediterrâneo. Os afluentes do Eufrates na
Síria só fluem ocasionalmente com as chuvas, o que faz com que a navega-
ção na região do Levante se dê especialmente através da cabotagem na costa
mediterrânica.

3.2.1.3  A Ásia Menor e Armênia

A noroeste da Síria, encontra-se a península da Ásia Menor, limitada a norte


e oeste pela região costeira, região de bacias abastecidas por chuvas e cortada
por pequenos rios. Sua vegetação característica incluía bosques abertos e mais
pujantes nas proximidades úmidas do Mar Negro.
No interior da Ásia Menor, o planalto da Anatólia é cercado pelos Montes
Pônticos, ao norte, e pelos montes Tauros, ao sul. Essa região é recortada em vá-
rias bacias entre as montanhas, tendo no centro delas um deserto e um lago sal-
gado. O oeste da zona montanhosa era ocupado por florestas e vales férteis, en-
quanto as encostas eram usadas para pastorear rebanhos no outono e no verão.
Em seu conjunto, a região montanhosa ao norte da Síria e da Mesopotâmia
era, todavia, limitada em seus recursos agrícolas, mas rica em madeira, pedra
e metais.

3.2.1.4  Mesopotâmia

Os rios Eufrates e Tigre nascem nas montanhas da Anatólia e correm para desa-
guar juntos no Golfo Pérsico. Enquanto o Eufrates é abastecido pelo degelo de
primavera e por seus afluentes, o Tigre depende das chuvas nos Montes Zagros
e dos diversos rios tributários. Ambos fertilizam as terras em suas margens com
suas inundações, o primeiro em abril e o segundo em maio, alcançando seu limi-
te respectivamente em setembro e outubro. Isto faz com que as cheias estejam
localizadas muito próximas do período da colheita e, consequentemente, obras
hidráulicas eram fundamentais para proteger as plantações da irregularidade
dos rios que transbordavam de maneira mais intensa que o Nilo, por exemplo.

capítulo 3 • 63
A “terra entre rios” (meso potamus) pode ser dividida em dois, limitada
pela região onde os Eufrates e o Tigre correm mais próximos. Ao norte, a Alta
Mesopotâmia é uma região mais elevada e, portanto, com irrigação mais difícil,
mas que tem sua agricultura facilitada pelas chuvas e complementada pela pe-
cuária e pelos recursos florestais.
Ao sul, a Baixa Mesopotâmia é mais plana e muito fértil em razão da inun-
dação, mas carente de madeira de qualidade e minérios. Este cenário impul-
sionou as trocas na região, tanto por terra quanto por mar e rios. A pecuária era
favorecida pelas áreas de pastagem das estepes do sul.
Diferentemente do Nilo, as cheias do Eufrates e do Tigre eram mais irregu-
lares e intensas. Como a região da Baixa Mesopotâmia era mais plana, o escoa-
mento da água das cheias era, muitas vezes, um problema, que acabava ocasio-
nando a salinização do terreno por conta da drenagem insuficiente.

3.2.1.5  Os Zagros e o Planalto do Irã

As cordilheiras formadas pelos montes Zagros são cortadas por vales irrigados
por afluentes do Tigre e por rios que desembocam no Golfo Pérsico. As pasta-
gens que cobrem as encostas propiciaram um terreno favorável para a pecuá-
ria, que comumente movia as populações a uma vida seminômade.
A leste, após os Zagros, encontra-se o planalto do Irã, onde se desenvolveu
parte importante da sociedade persa. Este planalto é marcado por sub-regiões
áridas e semiáridas muito ricas em recursos minerais, como o cobre e o esta-
nho (fundamentais para a Idade do Bronze, por comporem esta liga metálica).
A agricultura no planalto iraniano era praticada em certas regiões com um
sistema de irrigação que tinha sua base em poços e canais subterrâneos, que
captavam água do lençol freático.

3.2.2  Os seres humanos e o povoamento

O debate acerca de quais povos ou etnias povoaram o Oriente Próximo é ex-


tenso. No caso do Egito, Cardoso (1998: 29-32) aponta três grandes teorias. A
primeira delas afirma que o vale do Nilo teria sido ocupado por proporções si-
milares de negroides, mediterrâneos e mestiços similares aos europeus. Esta
visão é fruto da defesa de uma lógica racista, através da qual o esplendor da
civilização egípcia seria explicado pelo fato de que sua composição era, desde
o início, europeia.

64 • capítulo 3
No sentido totalmente oposto, vão alguns africanistas como Cheikh Anta
Diop (2010), que defende a tese da civilização faraônica como uma civilização
negra. O discurso de Diop teve grande impacto na área. Contudo, deve ser criti-
cado por ser excessivamente ligado a uma dinâmica racialista negativa, embora
tenha sido fundamental para pensar o preconceito racial exercido na historio-
grafia e na egiptologia.
A terceira grande teoria se distancia do conceito de uma pureza racial para
defender a tese de que a população egípcia sempre foi, como todas as outras po-
pulações humanas, composta pela mistura de vários grupos étnicos distintos,
com protagonismo para uma mescla de pele escura que desceu o vale do Nilo
e se encontrou com outros grupos de peles mais claras vindos do Saara, Ásia
Ocidental e, talvez, do Mediterrâneo.
A síntese que se pode retirar dos debates acerca do povoamento do Egito
são:
1. Acima de tudo, os egípcios eram étnicos e culturalmente africanos;
2. O vale do Nilo foi ocupado no período Neolítico por migrações povoa-
doras no período pré-histórico;
3. A negação completa das discussões pautadas por um conceito biológi-
co de raça.

No caso da Baixa Mesopotâmia, o estudo de textos sumérios e acadianos


do Terceiro Milênio a.C. e da questão étnica posterior (especialmente no caso
da Babilônia) levaram a crer que os habitantes da região migraram da Alta
Mesopotâmia. Ou seja, uma ocupação com migração do sul para o norte por
volta de meados do Quarto Milênio a.C.

3.3  O modo de produção asiático

O conceito de Modo de Produção Asiático foi desenvolvido por Karl Marx e Frie-
drich Engels para explicar aquilo que eles chamaram de formações econômicas
orientais. As bases para seus estudos foram relatos de viajantes como François
Bernier; filósofos políticos que haviam escrito sobre o “despotismo oriental”
em contraposição às estruturas políticas contratualistas do “ocidente” euro-
peu; economistas clássicos que pensaram a relação entre o poder e o controle
das obras hidráulicas ou aqueles que defenderam a ideia de que a imutabilida-
de oriental estava relacionada às comunidades camponesas; além de relatórios
coloniais escritos sobre China e Índia para o parlamento inglês.

capítulo 3 • 65
Podemos resumir as principais características atribuídas ao Modo de
Produção Asiático por Marx e Engels nos seguintes tópicos:
1. A ausência de propriedade privada, pois todas as terras pertenciam, em
última instância, ao Estado;
2. A base da população e a estrutura de produção estavam concentradas
nas comunidades agrárias camponesas, aldeias autossuficientes que produ-
ziam para suas necessidades agrícolas e artesanais básicas;
3. A capacidade de mando do poder central estava ligada a um contexto
ecológico marcado pela necessidade de obras hidráulicas, ou seja, o poder es-
tatal era garantido pelo fato de que era preciso organizar grandes obras de irri-
gação, represas e reservas de água;
4. Uma classe dominante mais ou menos idêntica aos quadros estatais,
que explorava as comunidades camponesas por meio do tributo cobrado em
produção e trabalho compulsório.

O conceito de Modo de Produção Asiático foi trabalhado por muitos outros


autores após Marx e Engels, especialmente no século XX. O antropólogo francês
Maurice Godelier (1982) demonstrou que as formações econômicas deste tipo
não se restringiam à Ásia. Os próprios criadores do conceito já tinham aponta-
do para a aplicação do conceito às civilizações africanas como o Egito Antigo,
mas Godelier somou a isto estudos referentes à produção de sociedades nativas
americanas como os incas, por exemplo. Neste sentido, propôs a substituição
do conceito de “Modo de Produção Asiático” por “Modo de Produção Tributário
Aldeão”, por entender que se adapta a diferentes contextos nos quais uma clas-
se dominante explora comunidades aldeãs por meio da tributação estatal.
Outros dois autores que se destacaram trabalhando com as discussões acer-
ca daquilo que foi chamado de “Modo de Produção Asiático” foram os italianos
Carlo Zacagnini e Mario Liverani. O trabalho dos dois levou à decomposição
das “formações orientais” em dois modos de produção articulados. O primeiro
seria o Modo de Produção Aldeão, surgido com a Revolução Neolítica e marca-
do por uma produção comunitária com base nas aldeias camponesas. Sobre
este sistema, surgiria um Modo de Produção Palatino, surgido com a Revolução
Urbana, na qual palácios e templos incorporam o Estado e sobrevivem da co-
brança de tributos (em gênero e trabalho) exercita sobre as comunidades al-
deãs camponesas.
Em síntese, podemos citar Ciro Cardoso, que afirma que o conceito de
Modo de Produção Asiático é usado para...

66 • capítulo 3
...designar um tipo de sociedade em que uma “comunidade superior”, mais ou menos
confundida com o Estado e que se encarna com num governante “divino”, explora
mediante tributos e trabalhos forçados as comunidades aldeãs – caracterizadas pela
ausência de propriedade privada e pela autossuficiência, permitida pela união do artesa-
nato e da agricultura. Nas discussões do século XX, preferiu-se substituir o inadequado
adjetivo “asiático” – posto que as sociedades deste tipo não são somente da Ásia – por
“despótico-tributário”, “tributário”, “despótico-aldeão” etc. (CARDOSO, 2005: 82).

3.4  A economia mesopotâmica

Como visto, as cheias do Tigre e do Eufrates eram bastante irregulares. Assim,


a agricultura necessitava de grandes obras hidráulicas para as quais era preciso
uma força de trabalho considerável. Isto impunha uma organização coletiva do
trabalho, fosse ao nível local ou supralocal.

Figura 3.2  –  Mapa babilônico dos canais a oeste do Eufrates, inscrito em um tablete de
argila no século XVII a.C.. Disponível em:<http://www.schoyencollection.com/24-smaller-
collections/maps/map-irrigation-ms-3196>.

O esforço de construção de barragens e canais de irrigação e escoamento


era compensado pela considerável produtividade agrícola, que alcançava uma

capítulo 3 • 67
taxa que variava entre 8 e 103 grãos colhidos para cada um semeado, estabili-
zando-se no Segundo Milênio a.C. numa proporção de 30 para 1. Isso explica a
concentração demográfica e a urbanização na Baixa Mesopotâmia, com cida-
des que tinham de 10 até 250 mil habitantes.
Entre o Quarto e o Terceiro Milênio a.C., o sistema tecnológico agrícola da
Mesopotâmia na Idade do Bronze era composto basicamente por um arado de
madeira acoplado a um dispositivo por onde os grãos eram despejados, o que
permitia arar e semear ao mesmo tempo. O bronze foi usado nas ferramentas
produtivas de maneira mais difundida que em outras áreas do Crescente Fértil,
substituindo a pedra de forma completa no início da Idade do Ferro. O meca-
nismo de irrigação de áreas altas com contrapeso surgiu por volta do início do
Segundo Milênio.
O processo agrícola na suméria é conhecido, entre outros documentos, por
um texto chamado de “Almanaque do Agricultor”, datado de aproximadamen-
te 1700 a.C. Nele vemos retratada a necessidade de controle da altura das cheias
do rio, a preparação do solo, a semeadura e a colheita. Todas essas etapas do
ciclo agrário estavam acompanhadas de orações a diferentes divindades.

LEITURA
Fonte: Trecho d’O Almanaque do Agricultor (Texto de Nippur) relativo à irrigação do campo.
Um velho lavrador instruiu seu filho:
Quando você tiver que preparar um campo para irrigação, inspecione as áreas elevadas,
canais e elevações que estão para serem abertas. Quando você deixar as águas da cheia
entrar nos campos, suas águas não devem se elevar muito ali. No momento em que o campo
emergir na água, olhe os pontos com água parada nos campos, eles devem ser cercados.
Não deixe que os rebanhos de gado passem (mais) por cima deles.
Após você cortar o crescimento das ervas daninhas e estabelecer os limites do campo,
nivele-o muitas vezes com uma enxada fina (ou um peso) de dois terços de um mana*. Deixe
uma enxada plana apagar as pegadas de bois, deixe (o campo) ser varrido. Um malho deve
ser usado em volta dos quatro limites do campo. Ele deve ser retirado delicadamente até
que eles sequem bem.
CIVIL, M. The Farme’s Instructions: A Sumerian Agriculture Manual. Barcelona: Ausa,
1994. p. 29.
* Medida de peso, muitas vezes traduzida como uma libra.

68 • capítulo 3
A produção agrícola e artesanal tinham problemas regulares com a produ-
tividade, mas isso deveria ser compensado com a fartura no emprego da força
de trabalho. Tecer um pano de 3,5 x 4 m era tarefa para oito dias de trabalho de
três mulheres, por exemplo. A divisão entre agricultura e artesanato foi pouco
desenvolvida, e o que existia era principalmente uma cooperação simples, na
qual todos os trabalhadores executavam as mesmas operações.
A coleta de grãos, todavia, parecia ser na Mesopotâmia uma tarefa majori-
tariamente masculina, ainda que existam alguns indícios de mulheres pobres
empregadas nesses serviços, carregando grãos, revolvendo o solo com ara-
do etc.
O cereal mais cultivado (e base da alimentação) era a cevada. Outros grãos
(como vários tipos de trigo) eram plantados, além de legumes, raízes e árvores
frutíferas. A agricultura era associada à pecuária, com a criação de cabras, ove-
lhas, bois e mulas.
A economia também contava com a extração. A pesca era feita nos pânta-
nos, rios, canais e no golfo Pérsico com barcos de junco, redes e anzóis. A coleta
dos juncos era feita em terras pantanosas e, além de barcos, a planta era usada
também para cestos, cordas, ferramentas e como material de construção junto
com tijolos de argila.
A produção artesanal era marcada pela existência de várias especializações,
como o fabrico de cerveja, vasilhas (de cerâmica, madeira ou vidro), objetos
de metal, tecidos, equipamentos militares etc. Textos de finais do Terceiro
Milênio mencionam escultores, ourives, cortadores de pedra, carpinteiros, for-
jadores de metal, alfaiates, entre outras especialidades. Esses trabalhadores e
trabalhadoras estavam inseridos em grandes oficinas estatais, mas também
em ateliês familiares e, em algumas cidades, o artesanato se concentrava em
determinadas áreas. As restrições técnicas e na qualidade das matérias-primas
eram contrabalanceadas com a abundância de força de trabalho.
A circulação não era feita apenas por meio da redistribuição relacionada ao
pagamento de tributos e os repasses estatais para o sustento de seus funcionários
e trabalhadores. Havia também a esfera do comércio, que inicialmente estava nas
mãos de representantes de templos e palácios e era executado basicamente entre
os diferentes reinos e com áreas fora da própria Mesopotâmia. Excedentes agrí-
colas e manufaturados (como tecidos, por exemplo) eram trocados por madeira,
metais e outras matérias-primas escassas na região entre o Eufrates e o Tigre.
O comércio internacional chegava até a Índia e era composto por redes de
comerciantes, nas quais os mesopotâmicos eram agentes e representantes. As

capítulo 3 • 69
trocas eram feitas num sistema de escambo, por se tratar de uma economia
na qual ainda não existia a moeda cunhada. Por outro lado, havia padrões de
contabilidade medidos em metais (principalmente a prata) ou cevada para fa-
cilitar as transações. Dessa maneira, uma troca hipotética de sacos de trigo por
troncos de madeira era executada com cada um dos produtos medidos relati-
vamente em quantidades de prata. Nas trocas externas havia a possibilidade de
pagamentos em lingotes de metal.

LEITURA
Fonte: Compra de uma escrava. Documento datado do reinado de Rim-Sin II, sobrinho do
rei Rim-Sin I de Larsa, que se rebelou contra Samsu-iluna aproximadamente entre 1740 e
1735 a.C.
A escrava (chamada)... –muballit, pertencente a Shat-Adad e a Ea-iribam, seus proprie-
tários, Etel-pisha comprou; 6 siclos e 5/6 de prata ele pagará; sob garantia de Ibku-Bau.
CARDOSO, C. Trabalho Compulsório na Antiguidade. Rio de Janeiro: Graal, 2003. p. 113.

No Terceiro Milênio a.C., inicialmente predominou na produção estatal o


controle dos templos sobre grandes áreas agrárias, bem como oficinas artesa-
nais. As instituições templárias detinham, naquela época, aproximadamente
metade das terras cultiváveis, sendo o restante divido entre os palácios, as co-
munidades aldeãs e as propriedades privadas ainda incipientes.
A organização das propriedades templárias mostra terras trabalhadas por
indivíduos supervisionados por sacerdotes administradores, intendentes, ins-
petores e muitos capatazes e escribas. A estrutura agrária era dividida em três:
a) ¼ era cultivado para o templo diretamente com força de trabalho de-
pendente e alguns poucos escravizados;
b) “Terras de trabalho” arrendadas a taxas de 1/7 a 1/8 da colheita;
c) “Campos de subsistência”, divididos em pequenas parcelas entregues
a agricultores, artesãos, pescadores, escribas, serviçais e outros trabalhadores,
todos pagos com rações.

Os templos eram, portanto, grandes complexos econômicos, com terras,


oficinas, depósitos, rebanhos e participação no comércio externo. A força de
trabalho empregada por eles era basicamente formada por indivíduos pagos

70 • capítulo 3
com rações chegando até poucos escravizados, especialmente mulheres em-
pregadas nas oficinas de tecelagem e serviços domésticos.

LEITURA
Fonte: Pescadores da Deusa Baba. Tablete de argila datado do quinto ano do rei Urukagi-
na de Lagash (aprox. 2346 a.c.)
Uru-ki-erima, En-udana, Lugal-nanga-ra-na, Ki-bi-batila, Sheshtur, Ur-enki, Ur-Ninsig, Lugal
-um, Nesag, (e) Lugal-sha-la-tuk, o capataz, foram-se antes; quanto a Uda, A-li-lila, (e) Ent-tu, Lugal
-shala-tuk, o pescador efetuou o seu despacho. Um total de 12 homens, que são pescadores ma-
rítimos (a serviço) da deusa Baba, foram-se para o mar, com Lugal-sha-la-tuk como seu capataz.
CARDOSO, C. Trabalho Compulsório na Antiguidade. Rio de Janeiro: Graal, 2003. p. 105.

A organização econômica das comunidades aldeãs do Terceiro Milênio é


pouco conhecida. As principais fontes que as mencionam são contratos de ven-
da de terras comunais para os monarcas.
Durante o Segundo Milênio, houve um desenvolvimento da propriedade
privada na Mesopotâmia. Notam-se os comerciantes (tamkaru) na Babilônia
que, além de trabalharem fazendo trocas para os templos e palácios, tiravam
vantagens também de negociações privadas. O desenvolvimento das negocia-
ções privadas contribui para o desenvolvimento de um direito privado que é
expresso, entre outros, pelo Código de Hamurabi.
A estrutura agrária do Segundo Milênio também está dividida em três
setores:
1. Terras administradas diretamente pelos palácios e trabalhadas por
meio da corveia (trabalho compulsório pago ao Estado);
2. Lotes arrendados ou cedidos a colonos em troca de uma renda paga em
parte da produção;
3. Parcelas que tinham seu usufruto cedido a soldados e funcionários em
troca dos serviços prestados ao Estado, mas eram inalienáveis e hereditárias. O
principal modelo de força de trabalho nos campos era o dos lavradores depen-
dentes (ishshakku), complementada por trabalhadores assalariados pagos por
dia e usados principalmente na estação da colheita.

capítulo 3 • 71
Os trabalhadores dependentes constantemente caíam em dívidas que os le-
vavam à escravidão e à perda de suas pequenas parcelas privadas de terra. No
entanto, durante o Segundo Milênio, há registros da promulgação real periódi-
ca de uma lei (chamada de misharum, literalmente “justiça”) que perdoava as
dívidas e a escravização dela resultante.

LEITURA
Fonte: Trecho do Édito de “Justiça” (misharum) do rei Ammi-saduka, da Primeira Dinastia da
Babilônia (1646-1626 a.C.)
Se uma obrigação resultou na detenção de um cidadão de Mumhia, um cidadão de Emutba-
lum, um cidadão de Idamaras, um cidadão de Uruk, um cidadão de Isin, um cidadão de Kisurra, ou
um cidadão de Malgium, (em consequência da qual) ele [colocou] sua própria pessoa, sua esposa
ou seus [filhos] em servidão por dívidas em troca de prata, ou como uma garantia – devido a que o
rei instituiu o misharum na terra, ele é libertado; sua liberdade está em vigor.
CARDOSO, C. Trabalho Compulsório na Antiguidade. Rio de Janeiro: Graal, 2003. p. 114.

As invasões de povos tribais no fim do Segundo Milênio revitalizaram as es-


truturas comunais. Em contrapartida, o fim da promulgação das leis de perdão
das dívidas acabou levando à concentração agrária de propriedades privadas.
Os templos controlavam muitas terras, mas sob o controle palacial.
No Primeiro Milênio, as comunidades aldeãs baseavam-se no trabalho de
famílias camponesas que deviam pagar taxas aos governadores provinciais, co-
bradas em parte da produção.
Sob o período do domínio assírio, os templos se tornaram novamente pro-
tagonistas na economia, mesmo que continuassem a pagar tributos para o rei.
Ainda que menos importantes, as propriedades palaciais eram também rele-
vantes. As terras eram parceladas e arrendadas, e a força de trabalho utilizada
podia ser de livres ou escravizados. As estruturas templárias deveriam ser tam-
bém as controladoras das principais oficinas artesanais e de parte significativa
do comércio.

3.5  A economia egípcia

Ao contrário da Mesopotâmia, o Egito foi agraciado naturalmente com cheias


bastante regulares do Nilo. Dessa maneira, não eram necessárias obras de pro-

72 • capítulo 3
teção ou mesmo dedicadas à drenagem. Durante o período Pré-Dinástico, to-
davia, iniciou-se a criação de redes de canais para melhor redistribuir as águas
pelos campos e aumentar as áreas fertilizadas.
Com o tempo, o sistema de irrigação foi aperfeiçoado de maneira a alcançar
também as hortas situadas em terrenos elevados, que inicialmente eram abas-
tecidas com água transportada em potes, mas que passou a utilizar, no século
XIV a.C., o sistema de elevação por contrapeso conhecido no mundo moderno
como shaduf.
As terras irrigadas do Egito podem ser divididas em três grandes conjuntos:
1. A “terra alta” era a grande maioria das áreas cultiváveis, utilizada para
produção de cereais e mais vulnerável à seca em tempos de cheias menos
abundantes;
2. A “terra baixa” que estava invariavelmente irrigada pela inundação;
3. As “ilhas”, uma espécie de “terra baixa” que era propriedade direta
do faraó.

A agricultura irrigada era controlada localmente, pelas instituições das pro-


víncias do reino ou pelas próprias aldeias camponesas. Somente na segunda
metade do Terceiro Milênio é que apareceram os primeiros indícios de obras
hidráulicas centralizadas.
A tecnologia empregada foi em larga medida desenvolvida em meados do
Quarto Milênio a.C., envolvendo técnicas agrícolas e pecuárias, além da meta-
lurgia do cobre, mesmo que as ferramentas produtivas se mantivessem cons-
tituídas basicamente pelo tripé corda-madeira-pedra. No mesmo período já
estavam estabelecidos o torno para cerâmica e o tear horizontal, além da cons-
trução com tijolos e a navegação com remo e vela.
Em meados do Segundo Milênio a.C., o contato mais próximo com os asiá-
ticos que ocupavam o norte do Egito levou a um desenvolvimento das forças
produtivas. Os métodos de metalurgia do bronze foram aprimorados, introdu-
ziu-se o torno mais veloz para cerâmica, o tear vertical e melhores raças bovi-
nas, além do uso do cavalo na agricultura. Os instrumentos metálicos só foram
difundidos na produção por volta do século VII a.C.
O constante atraso técnico e tecnológico do Egito em relação às outras civi-
lizações do Crescente Fértil foi sempre compensado pela extrema fertilidade
das terras irrigadas pelas cheias regulares do Nilo e pela abundância da força
de trabalho disponível.

capítulo 3 • 73
As atividades econômicas do Egito Antigo são bastante bem documentadas
iconograficamente. As imagens encontradas em tumbas dão conta não apenas
do trabalho agrícola, como das mais distintas áreas da extração e do artesana-
to especializado.
A produção agrícola era direcionada para o cultivo principalmente de tri-
go, cevada e linho. As terras eram semeadas ainda amolecidas pelas cheias do
rio com a utilização de arado de madeira. As sementes eram enterradas com
o auxílio do pisoteio de animais. Após a plantação dos gêneros principais, o
campesinato trabalhava no cultivo das hortas para garantir o abastecimento de
legumes, verduras e frutas, plantados em solo mais elevado.
A colheita era feita com foices de lâminas de sílex. O pisoteio do gado era
novamente utilizado, agora para separar a palha dos grãos nas eiras. O último
passo do processo produtivo era a peneira dos grãos e sua armazenagem.
A pecuária era marcada pela criação de bois, cabras, ovelhas, porcos e as-
nos. Como visto, somente a partir do início do Reino Novo, com o contato com
os hicsos, é que os cavalos foram inseridos. O gado bovino era usado para puxar
os arados e fornecer leite, sendo sua carne consumida apenas pela elite ou em
grandes banquetes públicos que ocorriam em festivais religiosos.
Diferentes tipos de aves, como patos e gansos, eram caçados com redes e
criados em cativeiro. Contudo, o extrativismo animal era mais bem representa-
do pela abundância de peixes referente à riqueza do Nilo. A pesca era praticada
nos pântanos, nos canais e no rio com anzol, rede ou arpão.
O extrativismo vegetal era marcado principalmente pelo uso do junco e pa-
piro, usado para a fabricação de cestas, na construção civil ou naval e na produ-
ção de material para os escribas. Além disso, utilizava-se, obviamente, a argila
para produção de tijolos e cerâmica.
A mineração era monopólio faraônico. O principal minério extraído era o
ouro, nas minas ao sul do Egito e no deserto oriental. O mecanismo tradicio-
nal, usado até a segunda metade do Segundo Milênio a.C., era a mineração em
minas profundas, com a extração do quartzo através do uso de cinzéis de bron-
ze e seu transporte até a superfície entre os apertados túneis com o auxílio de
cestos. Uma vez na superfície, o minério era quebrado em bigornas e depois
triturado em moinhos de pedra.
No período do Reino Novo, houve uma evolução nas técnicas e na tecnologia
de exploração, que possibilitou o uso de novas minas e a reativação de outras

74 • capítulo 3
antigas, com o uso de pilares e colunas que garantiam galerias subterrâneas
maiores e mais seguras. Além disso, iniciou-se a extração de superfície com o
processo conhecido como wadiworking, voltado tanto para o ouro em quartzo
quanto para o pó na aluvião, a partir das pilhas de cascalho deixadas pela ero-
são natural (FRIZZO, 2016: 219-222).
O artesanato era diretamente ligado à produção ou importação de ma-
térias-primas. Desde o fabrico de cerveja, pães e bolos até a ourivesaria das
joias, a manufatura gerava desde vinhos, tecidos e papiros até as gigantescas
obras faraônicas.

Figura 3.3  –  Processo de produção de tijolos no século XV a.C., a expresso numa cena da
tumba do vizir Rekhmire. A partir da publicação de DAVIES (1935: pls. XVI-XVII)

O trabalho artesanal estava organizado em dois níveis:


1. O artesanato camponês executado nas aldeias, voltado para a subsis-
tência e fabricando ferramentas e objetos de uso diário;
2. A manufatura de alta qualidade produzida nas oficinas estatais dos
templos, palácios e grandes domínios rurais.

capítulo 3 • 75
LEITURA
Fonte: O trabalho do camponês na agricultura e artesanato. Trecho do Papiro Lansing.
Ele [o camponês] se prepara. Ele passa o dia cortando instrumentos para o cultivo de
grãos; ele passa a corda noite trançando corda. Ele passa a hora do meio-dia fazendo o
trabalho de um artesão, para que ele possa se equipar para ir aos campos (...).
BLACKMAN, A. & PEET, E. “Papyrus Lansing: A translation with Notes”. The Journal
of Egyptian Archaeology. Vol. 11. pp. 284-298.

O sistema de circulação estatal, marcado pelo sistema redistributivo de


concentração de excedente por meio da tributação e distribuição desigual, era
complementado por um circuito menor de circulação através do comércio. As
iconografias de tumbas também mostram diferentes cenas de mercado, nas
quais os indivíduos (especialmente mulheres) executam trocas por meio do
mecanismo de escambo.
O sistema protomonetário funcionava com padrões de equivalência metá-
licos, geralmente em cobre. De maneira similar ao ocorrido na Mesopotâmia,
um sujeito poderia estar em busca, por exemplo, de um boi e trocar por uma
série de outros produtos, como gordura animal, tecidos, sacos e trigo, que so-
mados se equivaleriam ao valor em cobre da cabeça de gado.

LEITURA
Fonte: Registro de Troca na vila de Deir el-Medina (Ostracon Turin 57456)
Ano 5, terceiro mês de verão, dia 20. O que foi dado a Hay pelo chefe de polícia Neb-
semen: um boi, fazendo 120 deben* [de cobre]; o que foi dado a ele: 2 jarras de gordura
fresca fazendo 60 deben, 5 túnicas fazendo 25 deben, 1 tecido fazendo 20 deben, 1 pela
fazendo 25 deben.
ZINGARELLI, A. Trade and Market in New Kingdom Egypt. Oxford: Archeopress,
2010. p. 57.
* Medida de peso equivalente a 91 gramas.

O padrão das trocas reproduzia-se, em escala diferente, no comércio ex-


terno. O Egito manteve relações milenares com áreas vizinhas como a cidade
de Biblos (na costa Fenícia da Síria-Palestina e do Líbano) ou a terra de Punt

76 • capítulo 3
(provavelmente ao sudoeste do território egípcio, mas que alguns autores iden-
tificam na Península Arábica).
As fontes egípcias mostram as trocas internacionais como pagamento de
tributos estrangeiros aos deuses do Vale do Nilo, embora saibamos que essa
capa ideológica escondia uma relação de comércio que poderia se estabelecer
tanto pelo escambo quanto pela lógica da troca de presentes. As relações in-
ternacionais são mais bem conhecidas em um determinado período do século
XIV a.C., por causa de um arquivo de cartas diplomáticas encontrado em um
palácio faraônico. Esse arquivo, escrito na língua usada para as relações inter-
nacionais (acadiano), ficou conhecido como Cartas de Amarna e registra uma
série de trocas entre o faraó e outros governantes de grandes reinos da mes-
ma magnitude do Egito (como Mitanni ou Hatti) e principados subordinados
(como o próprio caso de Biblos, entre outros).

LEITURA
Fonte: Troca internacional descrita na Carta de Burna-Buriash II, rei da Babilônia, ao faraó
Akhenaton (Carta de Amarna, EA 09)
Neste momento meu trabalho em um templo é extenso e eu estou muito ocupado ten-
tando lidar com ele. Envie-me muito ouro. E de tua parte, o que quiseres de meu país, es-
creva que será levado a ti.
FRIZZO, F. A Baixa Núbia como infraestrutura para construção da potência he-
gemônica egípcia na XVIIIª Dinastia (1550-1323 a.C.). Dissertação de Mestrado. Niterói:
PPGH-UFF, 2010. p. 83.

De qualquer maneira, fora as trocas cotidianas, a especialização na ativida-


de comercial e os intercâmbios internacionais foram executados na maioria do
período faraônico por agentes estatais ligados aos templos e palácios. Somente
por volta do fim do Segundo Milênio a.C. é que começam a aparecer, de manei-
ra consistente e contínua, as evidências de benefícios privados com as trocas.
Fora isso, há apenas registros de pequenas negociações particulares de exce-
dentes produtivos.
Templos e palácios exploravam o trabalho da enorme maioria da população
por meio da cobrança da corveia real. Nos períodos que estavam submetidos a
esse tipo de trabalho compulsório, os trabalhadores recebiam rações diárias,

capítulo 3 • 77
conhecidas em egípcio pelo termo “akw”. Tais corveias poderiam ser cobradas
em trabalhos agrícolas, militares, na construção, na mineração, no transporte
ou outras tarefas.
De maneira similar à Mesopotâmia, o sistema econômico egípcio pode ser
definido em dois níveis. Na base da economia estavam os camponeses, orga-
nizados em unidades domésticas ou comunais, geralmente autossuficientes e
administradas por meio das regras da tradição, passadas de geração em gera-
ção. O segundo nível é aquele das instituições estatais, constituído sobre a ex-
tração de excedentes das comunidades locais urbanas e rurais, tanto em gênero
agrícola quanto em trabalho. Nesse âmbito, a corveia real era também utilizada
para o cultivo das terras e domínios produtivos de templos, palácios e funcio-
nários administrativos.
O excedente em gênero pago ao Estado em forma de tributos era armaze-
nado para uma redistribuição desigual. Cereais, outros alimentos, tecidos etc.
eram acumulados para que pudessem ser pagos em formas de ração aos funcio-
nários e trabalhadores da corveia.
O pagamento em rações era substancialmente diferente entre os distintos
níveis do funcionalismo (cortesãos, artesãos especialistas, escribas, sacerdo-
tes, soldados e outros). Aparentemente, a quantidade básica para o sustento
é mostrada no conto do Camponês eloquente, que Araújo (2000) chamou de
literatura gnômica, ou seja, aquela que contém ensinamentos morais. A do-
cumentação da vila de artesãos da tumba real em Deir el-Medina mostra, por
outro lado, uma variação que poderia chegar a dezenas de vezes mais do que as
rações básicas.

LEITURA
Fonte: Trecho d’O Camponês Eloquente (Papiro Berlim 3023)
“Cuida também do sustento do próprio camponês. Farás com que lhe deem provisões
sem deixá-lo saber que foste tu que as deste”. Assim, foram dados a ele dez pães e duas
jarras de cerveja todo dia. O grande intendente Rensi, filho de Meru, os fornecia, mas reme-
tia-os a um de seus amigos e este dava-os a ele.
ARAÚJO, E. Escritos para a Eternidade. Brasília: Editora da UNB, 2000. p. 231.

78 • capítulo 3
Para garantir a boa administração dos recursos recolhidos e da força de tra-
balho disponível, fazia-se necessária uma grande organização, que implicava
censos, conferências, viagens de supervisão dos campos, uma contabilidade
avançada e um número razoável de escribas funcionários. No topo da escala
do funcionalismo encontrava-se o Tjati, normalmente traduzido com o termo
persa vizir, que se dirigia diretamente ao monarca.
A propriedade das terras dividia-se entre templos, palácios (propriedades
da Coroa, terras pessoais do faraó ou aquelas voltadas para o Tesouro Real) e
funcionários (terras de função recebidas em troca de seus serviços ou proprie-
dades doadas aos cultos funerários de membros da elite).
A centralização do poder e o peso ideológico da monarquia divina não fa-
voreciam o aparecimento de formas privadas de propriedade e comércio. Até
meados do Segundo Milênio a.C., não existia na língua egípcia uma palavra
para designar o cargo de “comerciante” ou “mercador”. Todavia, em momen-
tos de menor centralização do poder, há alguns indícios de indivíduos levando
a cargo trocas privadas em busca de benefícios próprios (CARDOSO, 1993).
Em estudo sobre as comunidades aldeãs egípcias, Cardoso (1987) destacou
três aspectos principais:
1. A existência de elementos de solidariedade econômico-social, como o
empréstimo de grãos sem juros, por exemplo, ou a manutenção de um sistema
de troca de presentes;
2. Controle comunitário da irrigação e da produção agrária;
3. Manutenção de funções administrativa e judiciais por órgãos comuni-
tários. Este último aspecto é comprovado pela continuidade nas funções dos
conselhos aldeãos, que mantinham seus papéis de organizar a irrigação, resol-
ver pendências locais e infrações leves, além de regularem assuntos como he-
ranças e outras disputas. Os conselhos eram formados por membros da comu-
nidade e poderiam variar diariamente.

A economia do Egito faraônico sofreu uma mudança substancial em mea-


dos do Segundo Milênio a.C., no início do Reino Novo, com o processo de ex-
pansão imperial dos egípcios sobre áreas vizinhas, como a Síria-Palestina e a
Núbia. O aumento do contato com outros povos fez com que o nível técnico e
tecnológico do Egito se desenvolvesse, alcançando aquele que existia no restan-
te do Crescente Fértil. Além disso, pela primeira vez, apareceram comerciantes
especializados, inicialmente ligados aos templos e palácios.

capítulo 3 • 79
No período imperialista, as forças militares ganharam destaque e surgiu um
exército profissional, empenhado na conquista e manutenção dos territórios
imperiais. Esses desenvolvimentos acabaram impulsionando uma mudança
na forma da propriedade, com o pagamento de militares e outros funcionários
com parcelas de terra que se tornaram privadas. A expansão das áreas cultivá-
veis dentro do próprio Egito levou ao fortalecimento de um sistema de arrenda-
mento de parcelas de terra dos templos e palácios. Tais modificações acabaram
enfraquecendo as lógicas coletivas das comunidades aldeãs, com a expansão
do direito privado e a perda crescente do controle comunitário sobre a terra.
Outra consequência importante do imperialismo foi o expressivo aumento
na utilização de força de trabalho escravizada, resultante das vitórias nas cam-
panhas militares e dos pagamentos de tributos de chefes internacionais ao fa-
raó. O que nos leva a uma discussão sobre as formas de exploração do trabalho
no Egito Antigo.
A existência de trabalhadores escravizados é notória desde os períodos mais
antigos da história faraônica. Até o Reino Novo, a importância produtiva dessa
força de trabalho cativa era pequena diante do campesinato organizado nas co-
munidades aldeãs. A partir do imperialismo, há fontes demonstrando a depor-
tação de milhares de pessoas da Síria-Palestina, que, em sua maioria, eram alo-
cadas em terras templárias e utilizadas para colonizar novas regiões no próprio
território egípcio. Começam a aparecer com frequência também os registros de
compra e venda de cativos.

LEITURA
Fonte: Compra de uma Trabalhadora Escravizada no reinado de Ramsés II (Papiro Cai-
ro 65739)
No ano 15, sete anos depois de entrado na casa do Supervisor do Distrito Si-Mut, o
mercador Raia aproximou-se de mim com a escrava síria Gemni-her-imentet, que (ainda) era
uma menina, [e ele] me disse: “– Compra-me esta menina e dá-me o preço por ela” – assim
ele me disse. E eu tomei a menina e lhe dei [o preço] por ela. Agora vede, vou dizer o preço
que eu dei por ela: uma mortalha de tecido do Alto Egito, correspondendo a 5 kidet* de pra-
ta; uma peça de tecido do Alto Egito, correspondendo a 3 1/3 kidet de prata: (...) comprei da
mulher Kafy um jarro de bronze, correspondendo a 18 deben, correspondendo a 1 2/3 kidet
de prata; (...) comprei do Mordomo-em-Chefe da Casa de Amon, Tutu: um caneco de bron-

80 • capítulo 3
ze, correspondendo a 20 deben, correspondendo a 2 kidet de prata; 10 camisas de bom
tecido do Alto Egito, correspondendo a 4 kidet de prata. Total de tudo: 4 deben, 1 kidet de
prata. E eu os dei ao mercador Raia, e neles nada havia que pertencesse à mulher Bak-Mut.
E ele me deu esta menina, e eu a chamei pelo nome de Gemni-her-imentet.
CARDOSO, C. Trabalho Compulsório na Antiguidade. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
pp. 95-96.
* Kidet era outra medida egípcia de peso, equivalente a 1/10 de um deben, ou seja,
9,1 gramas.

Todavia, a oposição entre trabalho livre e trabalho escravizado, tão forte-


mente presente em nossa mentalidade moderna, não se aplicava completa-
mente à realidade faraônica. Devemos lembrar que, salvo aqueles liberados
por ordem expressa do monarca, todos os habitantes do Egito estavam obriga-
dos ao pagamento da corveia real durante parte do tempo. Nesse período, os
trabalhadores e trabalhadoras poderiam ser submetidos a privações e castigos
físicos em troca de um pagamento em rações que garantia apenas suas neces-
sidades básicas. Dessa maneira, pode-se afirmar que não existia um trabalho
livre no contexto faraônico.

LEITURA
Fonte: Decreto do faraó Neferirkare com Isenção de Corveias do Reino Antigo (Estela
03.1896 no Boston Fine Arts Museum)
Decreto real (para) o Sumo-sacerdote Hemur
Não permito que homem algum tenha o direito de tirar quaisquer sacerdotes que estive-
rem no Distrito em que tu estás, para a corveia ou para qualquer (outro) trabalho do Distrito,
exceto para prestar serviço ao próprio deus no templo em que ele está e para conservar os
templos em que eles estiverem. Eles estão isentos por toda a eternidade por decreto do Rei
do Alto e Baixo Egito: Neferirkare. Ninguém está autorizado a usá-los em qualquer (outro)
serviço.
CARDOSO, C. Trabalho Compulsório na Antiguidade. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
pp. 87-88.

capítulo 3 • 81
3.6  A economia fenícia

Chamamos os habitantes da costa da região onde atualmente se encontram Sí-


ria e Líbano de fenícios (nome dado a eles pelos gregos), embora eles chamas-
sem a si de cananeus. Esse povo falava uma língua semítica e, a partir do século
XII a.C., expandiram-se por toda a costa da Mediterrâneo.
O povo fenício nunca esteve unificado politicamente. Organizavam-se em
cidades-reinos que mantinham suas autonomias umas diante das outras. As
principais eram Arwad, Biblos, Sidón e Tiro.
O exemplo da economia fenícia é importante porque, ao contrário dos de-
mais povos do Antigo Oriente Próximo, nela as cidades tinham uma importân-
cia maior do que o campo. As atividades de transformação e circulação eram
hegemônicas diante da produção primária. Logo, a base da estrutura econômi-
ca dessas cidades era a elaboração e a comercialização de produtos originados
em outras regiões.
A decadência de vários sistemas palaciais no momento conhecido como
Colapso da Era do Bronze Tardio (por volta de 1200 a.C.) fez com que os comer-
ciantes tivessem de exercer suas atividades sem o apoio organizativo e financei-
ro das instituições estatais. Além disso, tornou o comércio internacional mais
arriscado e suscetível à pirataria, por causa da desagregação da rede internacio-
nal de proteções que era mantida entre os palácios.
Nesse contexto, surgiram várias frotas na costa da Síria-Palestina de pro-
priedade de casas comerciais privadas, com um apoio político maior ou menor.
O comércio tinha um ritmo trienal. As viagens de ida eram feitas no verão e
retornava-se apenas no próximo verão, sem escalas, indo direto às localidades
ricas em produtos demandados. Um exemplo disso era a região conhecida en-
tre os fenícios como Tarshish (o sul da atual Espanha, que os gregos chamavam
na época de Tartessos), abundante em metais como o estanho e a prata.
Entre os séculos IX e VII a.C., os comerciantes fenícios voltavam-se princi-
palmente para as regiões mineiras, como o sul da Espanha, o Chipre, a Tunísia
e a Sicília.
Os principais produtos oferecidos nas trocas internacionais eram artesa-
nais: pratos, armas e utensílios de bronze, esculturas em marfim, tecidos bor-
dados e objetos de vidro. É principalmente por meio de achados arqueológicos
desse tipo que conhecemos a extensão das trocas fenícias.

82 • capítulo 3
Mario Liverani (2008: 546) destaca o fato de que muitas das transações co-
merciais fenícias poderiam aparecer nas fontes na forma de pagamento de tri-
butos estrangeiros, mas que essa seria apenas a parte visível de uma atividade
comercial submersa.
Assim como os gregos, os fenícios são conhecidos por sua expansão colonial,
que levou ao estabelecimento de entrepostos em toda a costa do Mediterrâneo.
Todavia, a única terra realmente colonizada foi o Chipre, onde houve assenta-
mentos fixos e consistentes entre os séculos X e IX a. C.. Nas demais localida-
des, até o século VIII não houve fluxo migratório, e a presença fenícia era sazo-
nal, para executar um comércio que tinha suas bases no apoio das estruturas
políticas nativas.
A partir do século VIII a.C., começaram a aparecer colônias fenícias em todo
o Mediterrâneo. Esse fenômeno se desenvolveu em paralelo à colonização gre-
ga. A mudança de uma troca baseada em estruturas sazonais para uma coloni-
zação efetiva está relacionada à passagem de um momento em que a principal
demanda eram os metais para outro em que há interesses por produtos agro-
pastoris e pela disponibilidade de recursos em terra e força de trabalho, que
eram escassos na costa fenícia.
A colônia mais conhecida dos fenícios foi Cartago, fundada na atual Tunísia.
Essa cidade se mantinha dependente de Tiro, a sua metrópole, pagando tributo
e sendo governada não por um rei, como as cidades fenícias, mas por juízes. No
momento da ruptura das colônias com suas metrópoles, Cartago se destacou e
tornou-se dominante sobre as demais.

ATIVIDADES
01. A partir das discussões iniciais sobre a categorização do campo de estudo ao qual é
dedicado este capítulo, explique os debates sobre as diferentes definições de economia.

02. Os extensos debates acerca do caráter das economias antigas já duram mais de um
século, envolvendo posições teóricas muito distintas. Apresente as principais correntes de
pensamento da economia antiga, destacando suas características.

03. Localize a região que se convencionou chamar de “Crescente Fértil” e aponte suas prin-
cipais características econômicas e naturais.

capítulo 3 • 83
04. Defina o conceito de Modo de Produção Asiático e explique sua evolução teórica desde
o momento de seu surgimento até os debates mais aprofundados realizados no século XX.

05. A partir do trecho de fonte intitulado “Almanaque do Agricultor”, aponte as principais


características da economia mesopotâmica.

06. Explique o papel econômico dos templos e palácios tanto na Mesopotâmia quanto
no Egito.

07. A partir de trechos de fontes como O Camponês Eloquente e Registro de Troca na Vila
de Deir el-Medina, explique o sistema de pagamentos e trocas comerciais no Antigo Egito.

08. Autores como Ciro Cardoso afirmam que o sistema econômico egípcio pode ser definido
em dois níveis. Caracterize e explique cada um desses níveis.

09. A partir das diferentes fontes apresentadas, caracterize o uso do trabalho compulsório
na Mesopotâmia e no Egito, com destaque para a força de trabalho escravizada.

10. Indique duas características que tornam a economia fenícia singular em relação a outras
civilizações do Crescente Fértil.

REFLEXÃO
Neste capítulo observamos a importância de uma análise das estruturas econômicas da An-
tiguidade Oriental que mostre suas diferenças em relação às economias modernas. Nesse
sentido, destacamos os aspectos naturais e humanos das principais civilizações estudadas,
para depois nos concentrarmos nos exemplos mais específicos do funcionamento das for-
mas de produção e circulação de civilizações como Mesopotâmia e Egito, além da especifi-
cidade relativa ao caso da Fenícia.

84 • capítulo 3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Emanuel. Escritos para a Eternidade. Brasília: Editora da UNB, 2000.
BLACKMAN, Aylward M.; PEET, T. Eric. “Papyrus Lansing: A Translation with Notes”. The Journal of
Egyptian Archaeology, v. 11, n. 3/4, p. 284–298, 1925.CARDOSO, Ciro. Uma Interpretação das
Estruturas Econômicas do Egito Faraônico. Tese de Professor Titular. Rio de Janeiro: UFRJ, 1987.
CARDOSO, Ciro. Sete Olhares sobre a Antiguidade. Brasília: Editora da UNB, 1998.
CARDOSO, Ciro. Trabalho Compulsório na Antiguidade. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
CARDOSO, Ciro. Sociedades do Antigo Oriente Próximo. São Paulo: Ática, 2005.
CIVIL, M. The Farme’s Instructions: A Sumerian Agriculture Manual. Barcelona: Ausa, 1994.
DAVIES, Norman. Paintings from the Tombo f Rekh-Mi-Re‘. Vol. II. New York, The Metropolitan
Museum of Art, 1935.
DIOP, Cheikh. Origem dos Antigos Egípcios. In: MOKHTAR, G (Org.). História Geral da África. Vol. II
África Antiga. Brasília: Unesco, 2010., p. 1–36.
FRIZZO, Fábio. Baixa Núbia como Infra-Estrutura para a Construção da Potência Hegemônica
Egípcia na XVIII Dinastia (1550-1323 a.C.). Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Federal
Fluminense, 2010.
FRIZZO, Fábio. Estado, Império e Exploração Econômica no Egito do Reino Novo. Tese de
Doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2016
GODELIER, Maurice. “Natureza e Leis do Modo de Produção Asiático”. In: PINSKY, Jaime (Org.).
Modos de produção na antiguidade. São Paulo: Global Ed., 1982.
GODELIER, Maurice. Racionalidade e Irracionalidade na Economia. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro,1988.
LIVERANI, Mario. El Antiguo Oriente. Historia, sociedade y economía. Barcelona: Crítica, 1995.
POLANYI, Karl. “Os Dois Significados do econômico”. In: LEVITT, K. (Org.) A Subsistência do
Homem e Outros Ensaios”. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
REDE, Marcelo. A Mesopotâmia. São Paulo: Saraiva, 1997.
ZINGARELLI, Andrea. Trade and Market in New Kingdom Egypt. Oxford: Archeopress, 2010.

capítulo 3 • 85
86 • capítulo 3
4
Mundos da política
4.  Mundos da política
Uma vez observados os aspectos mais básicos da subsistência humana e como
diferentes sociedades da Antiguidade Oriental se organizam em sua reprodu-
ção econômica, cabe agora estudar as formas de controle do poder.
Ainda que estejam formalmente separadas neste livro para fins didáticos,
é importante lembrar que o exercício do poder em uma sociedade está sempre
ligado aos papéis que seus diferentes grupos exercem na esfera da economia e
do pensamento.

OBJETIVOS
•  Entender o conceito de política como relacionado ao exercício do poder;
•  Criticar a historiografia política tradicional;
•  Compreender os aspectos básicos da política na Antiguidade Oriental;
•  Estudar a dinâmica de centralização e fragmentação do poder nas estruturas políticas do
Antigo Oriente;
•  Compreender as discussões em torno da hipótese causal hidráulica;
•  Entender os conceitos de monarquia divina e teocracia;
•  Analisar resumidamente os principais acontecimentos da trajetória de diferentes povos do
Antigo Oriente, como mesopotâmicos, egípcios, persas e hebreus;
•  Estudar a dinâmica do surgimento da escrita a partir da Antiga Mesopotâmia;
•  Compreender a especificidade das leis na Mesopotâmia;

4.1  O que é a Política?

O termo “política” se expandiu graças à difusão da obra homônima de Aristóte-


les. Estudiosos costumam tratar a Política aristotélica como o primeiro tratado
sobre as funções do Estado e as diferentes formas de governo, mas sempre le-
vando em consideração que o autor extrapola a ideia de uma esfera do político
ligada apenas às instituições de governo, abarcando uma perspectiva ligada ao
entendimento de tudo aquilo que se refere às formas de organização dos seres
humanos em sociedade.
Desde seu surgimento, o conceito de política sempre esteve ligado às for-
mas de exercício do poder. Pode-se definir poder como uma relação entre

88 • capítulo 4
sujeitos (individuais ou coletivos) na qual um (uns) impõe(m) sua(s) vontade(s)
sobre o(s) outro(s) e acaba(m) por determinar algum dos seus comportamentos
e ações. Esta relação está sempre ligada à posse dos meios que garantem essa
possibilidade de se impor sobre outro(s). Dessa maneira, exemplos clássicos
de relações políticas são aquelas entre: autoridade e obediência; governantes e
governados; soberano e súditos; Estado e cidadãos.
Segundo Norberto Bobbio (1998: 954-962), há três principais formas de
exercer o poder: o poder econômico, que se vale da propriedade sobre deter-
minados bens para obrigar outras pessoas a executarem determinadas ações; o
poder ideológico, que parte do controle (por sábios ou sacerdotes, por exemplo)
sobre a produção e divulgação de determinadas ideias, que exercem um papel
importante no comportamento de um ou vários grupos no sentido de conven-
cê-los a terem certos comportamentos; e o poder político, que tem sua base na
posse dos instrumentos de coerção física usados para obrigar as pessoas a fa-
zerem coisas. O autor lembra ainda que todas essas três formas de poder criam
sociedades desiguais.
É importante destacar que, nas sociedades do Antigo Oriente, não havia se-
paração entre as esferas da vida expressas nessa lógica da distinção entre um
poder econômico, um poder ideológico e um poder político. Não havia palavras
para definir “religião”, “política” ou “economia” em uma língua como a egíp-
cia, por exemplo.
Tal impossibilidade de separar essas esferas pode ser bem exemplificada
pelo papel dos templos no Antigo Oriente. Como visto no capítulo anterior, os
templos eram instituições estatais, grandes organizações econômicas, ligados
à justificativa do exercício do poder político, além, obviamente, de parte central
da vida religiosa e de produção ideológico-cultural.
O surgimento da ideia de política na cidade-Estado grega (pólis) foi o pri-
meiro passo para a construção de uma autonomia relativa entre essas diversas
esferas da vida. Mas somente no capitalismo, como aponta Wood (2003), é que
esta autonomia foi concluída, já que as formas de exploração do trabalho dei-
xam de ser extraeconômicas.
É por partirmos de um ponto de vista do presente, onde essa separação en-
tre as esferas existe de forma mais clara, que podemos olhar para o passado da
Antiguidade Oriental e proceder com um recorte como este com finalidades
analíticas e didáticas. Por isso, este livro foi estruturado com capítulos sobre

capítulo 4 • 89
economia, política e pensamento. Isto implica levar sempre em consideração
que os homens e as mulheres do passado viam o mundo de forma diferente e
que a única forma de não atribuir a eles a nossa maneira de olhar a realidade é
ter sempre consciência dessa diferença.
Durante muito tempo, a História Política referiu-se apenas às ações dos gru-
pos governantes, representada por monarcas e generais, por exemplo. Buscava-
se uma narrativa dos principais fatos liderados por esses representantes.
Felizmente, principalmente a partir do século XX, a historiografia acadêmica
passou a se interessar mais pelo entendimento das formas de funcionamento
dos mecanismos de poder nas diferentes sociedades.
Buscaremos, neste capítulo, apresentar pequenas sínteses das histórias
políticas de algumas sociedades do Antigo Oriente, mas buscando ao máximo
construir explicações mais complexas acerca das formas gerais de manutenção
do poder.

4.2  Centralização e fragmentação do poder no Antigo Oriente

Já discutimos, no capítulo inicial, que o Antigo Oriente é um conceito confor-


mado por um excessivo grau de generalização e, portanto, engloba uma diver-
sidade muito grande de características distintas. No caso do estudo das formas
de poder, isto significa dizer que há estruturas políticas diferentes tanto geo-
gráfica quanto temporalmente na Antiguidade Oriental.
Desde sociedades com bases políticas tribais pré-estatais até grandes impé-
rios unificados, passando por estruturas de poder fragmentadas mais ou me-
nos frouxas, as sociedades que ocuparam o Oriente Antigo são marcadas pela
imersão nesta diversidade.
Ciro Cardoso (1997: 14-16) identifica essa diversidade a realidades econô-
micas distintas. Nesse quadro, faz uma separação entre dois grupos básicos. O
primeiro seria composto por Egito e Baixa Mesopotâmia, sociedades que con-
tavam com uma agricultura irrigada extremamente produtiva e, consequen-
temente, com maior densidade populacional. Em contrapartida, no segundo
grupo, estariam regiões como a Ásia Menor, a Síria-Palestina e o Irã, com con-
dições naturais de irrigação que limitavam a produtividade agrícola. Enquanto
Egito e Mesopotâmia acabaram desenvolvendo complexos político-econô-
micos estatais enormes e estáveis em torno de templos e palácios, as outras

90 • capítulo 4
regiões ficaram marcadas por pequenos reinos, confederações mais ou menos
frouxas e o contato constante com grupos tribais.
A formação das mais conhecidas estruturas políticas da Antiguidade
Oriental se deu com a revolução urbana e o surgimento do Estado. É impor-
tante ressaltar que os homens e as mulheres do Oriente Antigo não conheciam
esse conceito. Portanto, a ideia de uma instituição estatal aparece como forma
de análise muito baseada na ciência política moderna.
Vários foram os autores que, desde o século XIX, pensaram que a organiza-
ção política dos impérios orientais era derivada de um contexto ecológico que
gerava a necessidade de uma centralização para organizar obras hidráulicas a
fim de lidar com as enchentes dos rios. Esta ideia ficou conhecida como hipóte-
se causal hidráulica, que afirma, em outras palavras, que o Estado teria surgido
pela necessidade de construir diques, barragens, canais e reservatórios.
A hipótese causal hidráulica foi negada há algumas décadas, quando se
comprovou a responsabilidade local das comunidades aldeãs sobre o plane-
jamento e execução de obras ligadas à irrigação mesmo após o Estado. Dessa
maneira, compreendeu-se que sociedades agrárias já lidavam com essas neces-
sidades hidráulicas antes mesmo do surgimento de instituições estatais.
Segundo Ciro Cardoso (1998: 48), a despeito da diversidade de estruturas
políticas no Oriente Antigo, podem-se notar pelo menos dois elementos co-
muns entre suas sociedades urbanas e complexas:
1. A monarquia como forma normal dos Estados civilizados;
2. A presença da religião como origem e principal forma de legitimação
do poder monárquico, ainda que isso ocorresse de maneira diversa no Egito, na
Mesopotâmia e nas regiões da Síria-Palestina, Anatólia e Irã.

Uma pergunta que deve ser respondida antes das explanações mais loca-
lizadas sobre uma sociedade ou outra é a questão relativa à especificidade do
Egito em relação a outras civilizações, no que diz respeito ao tipo de organiza-
ção política. Por que o Egito surgiu como monarquia centralizada enquanto a
Mesopotâmia era marcada pela fragmentação em diferentes cidades-Estados?
A esta pergunta está relacionada outra constatação: a de que a monarquia divi-
na egípcia era, em geral, muito mais intensa que a mesopotâmica.
Na opinião de Cardoso (1998: 49-55), as diferenças estão relacionadas a al-
guns fatores. Em primeiro lugar, estaria a questão de que a Baixa Mesopotâmia
foi a pioneira no processo de urbanização e que provavelmente outras

capítulo 4 • 91
sociedades acabaram, de uma maneira ou de outra, influenciadas por essa for-
ma de organização. Isto fez com que a realeza suméria parecesse ter guardado
vínculos com as formas eletivas tradicionais dos conselhos de anciãos e assem-
bleias de homens livres adultos das cidades.
Enquanto na Mesopotâmia a monarquia continuou convivendo com conse-
lhos anciãos que guardavam funções administrativas e judiciárias considerá-
veis até períodos tardios, no Egito nunca houve traço de interferência dos pode-
res de conselheiros ou de uma assembleia sobre a monarquia.
Posteriormente, outro fator foi a diferença entre o momento de surgimento
dos templos nas duas civilizações. Na Mesopotâmia, os templos surgem num
contexto em que se posicionam em conjunto com o nível institucional das
assembleias (mesmo que fosse apenas de proprietários). No Egito, por outro
lado, os templos e hierarquias sacerdotais surgem como principais instituições
de poder desde a urbanização e sem muita interferência das comunidades e
assembleias.

LEITURA
Texto de Apoio: CARDOSO, C. Sete Olhares sobre a Antiguidade. Brasília: Editora da
UNB, 1998. pp. 52-53.
Achamos, pelo contrário, que só é possível explicar a organização em cidades-Estados
autônomas, bem como as diferenças de status entre os homens livres mais graduados da
Mesopotâmia e do Egito (cidadãos no primeiro caso, súditos no segundo), através da hi-
pótese de que foi a comunidade de cidadãos, com seus órgãos colegiados – derivados, de
início, de instituições tribais e baseados em linhagens, mas que sobreviveram à destribali-
zação – a forma primária de organização política, nas primeiras fases da urbanização; e que
só a posteriori surgiu o templo “como órgão de governo”, apropriando-se de funções antes
exercidas pelo conselho e pela assembleia. (...) Na nossa hipótese, ao emergirem os templos
como órgãos de governo, a divisão em cidades-Estados estava bem consolidada.
No Egito, (...) é possível que os órgãos regionais – que prenunciam os futuros spat
ou nomos (divisões provinciais do Egito histórico) – tenham sido bem menos consistentes
e dinâmicos do que os seus equivalentes mesopotâmicos. A urbanização certamente foi
incompleta, se comparada à da Suméria. O Estado centralizado emergiu manu militari, no

92 • capítulo 4
espaço de algumas gerações quando inexistiam comunidades locais de cidadãos como as
da Mesopotâmia, e quando o surgimento de cidades estava numa etapa bem mais atrasada
do que a da região suméria.

O último fator apontado por Cardoso como uma diferença entre as forma-
ções do Egito, da Mesopotâmia e das demais sociedades do Antigo Oriente
Próximo é a questão étnica. Isto fica justificado pelo fato de a autoconsciência
étnica ter surgido na Baixa Mesopotâmia, no período pré-dinástico, num con-
texto de forte independência política entre as cidades.
A ancestralidade da autopercepção étnica explica como os impérios for-
mados em momentos de centralidade tiveram (independe das dificuldades
apresentadas pelos particularismos das cidades-Estados) uma integração mais
intensa do que as confederações que ocorreram na Síria (p. ex.: Mitanni) e na
Ásia Menor (p. ex.: os Estado hitita). Nessas outras regiões, as etnias demora-
ram mais a se consolidar e geravam a necessidade de centralizações políticas
baseadas em tratados e juramentos pessoais de fidelidade, formando uma hie-
rarquia frouxa liderada por um “rei dos reis” e composta de chefes locais.
A verdade é que, mesmo no exemplo do Egito (um reino muito mais cen-
tralizado, com uma perspectiva de monarquia divina fortemente instituída), a
centralização do poder era uma tarefa custosa. O equilíbrio tênue entre forças
da centralidade e poderes locais foi posto em questão em diferentes momentos
da história faraônica nos períodos conhecidos como “Intermediários”.
A unificação do poder em fins do período pré-dinástico necessitou da coopta-
ção de elites locais, que acabavam compondo o poder estatal faraônico nas áreas
mais distantes e servindo como correia de transmissão do mando real. Isto não
impedia essas elites locais de se mostrarem como representantes oficiais do po-
der divino em momentos do enfraquecimento do poder centralizado do faraó.
As experiências de centralização de poder nas sociedades da Antiguidade
Oriental estavam baseadas em sistemas de descentramento de poder, no qual
poderes locais eram cooptados pelo poder central para servir como correia de
transmissão e elemento de unificação. Este frágil equilíbrio era posto em ques-
tão em momentos de crise do poder central, nos quais as elites locais se fortale-
ciam em contraposição às tentativas de manutenção da centralização.

capítulo 4 • 93
4.3  O Poder na Antiga Mesopotâmia

São poucas as informações relativas às formas de organização do poder na Me-


sopotâmia no período pré-histórico. Marcelo Rede (1992: 32-33) argumenta
que o mais provável é que houvesse reuniões de grande parte dos membros de
uma comunidade para tomar decisões coletivas importantes, como a escolha
de abandonar um território ou executar uma grande obra. Isto não significa,
todavia, que havia igualdade ou participação igualitária. Pelo contrário, sabe-
se que essas comunidades já contavam com diferenciação social interna e que
certas camadas sociais estavam excluídas das decisões coletivas. Cabe, toda-
via, notar a possibilidade de que mulheres também fossem inicialmente ad-
mitidas nesses órgãos colegiados, mesmo que posteriormente tenham perdido
essa prerrogativa.
Entre o Quinto e o Terceiro Milênios a.C., começaram a surgir estruturas
templárias crescentemente maiores em tamanho e complexidade. De peque-
nos santuários de 6 m² chegou-se, em poucos séculos, a complexos templários
de cerca de 200 m².

Cidades Reinos
Até 2300 a.C.
Sumérias

Dinastia de Akkad

TERCEIRO 2300-2193 a.C.

MILÊNIO A.C. Invasão dos Gútios

III Dinastia de Ur

2112-2004 a.C.

Invasão dos Elamitas

SEGUNDO 1894-1595 a.C. I Dinastia da Babilônia


MILÊNIO A.C.

94 • capítulo 4
Império Assírio

1813-1714 a.C. Invasão Hitita

SEGUNDO Invasão Cassita


MILÊNIO A.C.
Dinastia Cassita da
1570-1157 a.C.
Babilônia

1363-1076 a.C. Império Médio Assírio

934-604 a.C. Império Neoassírio

Império Neobabilônico
625-539 a.C.
(dinastia caldeia)

PRIMEIRO
MILÊNIO A.C. 539 a.C. Conquista Persa

331 a.C. Conquista da Macedônia

144 a.C. Invasão dos partas

Tabela 4.1  –  Cronologia da História Política da Mesopotâmia.

Com a revolução urbana no Quarto Milênio a.C., surgiram novas formas e


novas expressões físicas de poder. As comunidades e seus conselhos foram per-
dendo autonomia, e o poder se concentrando nas instituições estatais – neste
caso, representadas pelos templos, que passaram de organizadores dos interes-
ses comunitários a poderosas organizações independentes. A importância po-
lítico-econômica desses templos é comprovada pelas primeiras fontes escritas
decifráveis. Entretanto, nesses primeiros séculos, o poder templário deve ter
convivido com o poder das comunidades e suas assembleias de cidadãos.

capítulo 4 • 95
Do ponto de vista linguístico, a Mesopotâmia era composta por duas partes.
Primeiro surgiram os sumérios ao sul, criadores da escrita e falantes de uma
língua de origem incerta. Ao norte encontravam-se, na terra chamada de Akkad,
os falantes do acadiano, uma língua de origem semita. Os povos falantes de dia-
letos acadianos acabaram por prevalecer em toda a Mesopotâmia, tendo como
grupos de destaque, por exemplo, os babilônicos e os assírios.
Conforme o número de fontes escritas começa a crescer e nosso entendi-
mento sobre aquela sociedade aumenta consideravelmente, passa a ser possí-
vel perceber que, por volta de meados do Terceiro Milênio, a Baixa Mesopotâmia
já está tomada por cidades-Estados independentes.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 4.1  –  Mapa das Principais cidades-Estados da Mesopotâmia em meados do


Segundo Milênio a.C.

Cada uma dessas cidades-Estados era composta por três partes:


1. A cidade de fato, amuralhada, que continha edifícios de uso coletivo
como as estruturas templárias;
2. Um subúrbio extramuros, chamado literalmente de “cidade externa”,
composto por residências, terras cultivadas e estábulos;

96 • capítulo 4
3. O porto, onde se concentrava o comércio e viviam os mercadores es-
trangeiros proibidos de instalarem-se na cidade interna.

No início da vida urbana, não havia palácios separados dos templos. Essa
realidade durou até meados do Terceiro Milênio, pelo menos. Os registros do
período indicam a existência de um funcionário templário que portava o título
de en (“senhor”) e desempenhava os poderes de sumo sacerdote. Em alguns
casos, esse cargo poderia ser ocupado por mulheres. Contudo, quando eram
homens, poderiam desempenhar também as tarefas de chefe militar e admi-
nistrativo, como aconteceu na cidade suméria de Uruk, conhecida por seu mí-
tico rei Gilgamesh.
Autores como Ciro Cardoso (1997: 27) e Marcelo Rede (1997: 34) apontam
que este en era uma espécie de rei temporário inicialmente escolhido pela as-
sembleia para cuidar de tarefas específicas em momentos necessários (como
guerras, por exemplo). Dessa forma, inicialmente esse rei/sumo sacerdote ti-
nha de conviver com o poder das assembleias.
A partir da segunda metade do Terceiro Milênio, já é possível iden-
tificar arqueologicamente estruturas palaciais separadas dos templos.
Concomitantemente, o título de en passou a ser utilizado apenas no contexto
sacerdotal. Embora tenha mantido alguma função religiosa, o rei passou a ser
uma autoridade independente dos templos.
A titulatura real na documentação inclui os termos ensi (“governador”) e
lugal (“rei”, literalmente “grande homem”). Enquanto o primeiro título era re-
lativo ao governante de apenas uma cidade, o segundo era utilizado para chefes
que conseguissem estender sua autoridade a várias cidades-Estados, subme-
tendo seus ensi.
A necessidade de manter um controle militar ordenado para garantir a defe-
sa do território e das rotas comerciais acabou contribuindo para tornar o cargo
monárquico hereditário, abandonando definitivamente a concepção original
de um líder escolhido em assembleia. Em paralelo a isto, com o aumento das
funções político-administrativas do rei (como a supervisão das obras hidráuli-
cas, por exemplo), houve um enfraquecimento tanto destas estruturas do con-
selho e da assembleia, quanto dos próprios templos.

capítulo 4 • 97
Embora tenha mantido sempre uma função religiosa e a origem divina do
seu poder tenha sido sempre enfatizada na documentação, os reis mesopotâ-
micos em geral não eram divinos, mas apenas escolhidos pelos deuses. Há,
contudo, algumas experiências, mais restritas no tempo e no espaço, de mo-
narcas divinizados. Especialmente no milênio entre o século XXII e o século XII
a.C., no sul da Mesopotâmia.
A monarquia é tratada de forma divina na documentação da Antiga Babilônia
e isto muda no período babilônico do Primeiro Milênio a.C. Na primeira situa-
ção, a caracterização do rei divino implica que o monarca tem que contribuir
consideravelmente para a ordem cósmica, restringindo sua tendência inata de
executar a violência sobre seu próprio povo. Já no período posterior, a ordem
cósmica tinha que existir a despeito da natureza inerentemente violenta do rei.
Phillip Jones (2005: 331-332) explica essa transição através da sua ligação
com o movimento de integração e diferenciação da elite. O período babilônico
antigo estava no início desse processo de integração, enquanto seu fim se deu
no Primeiro Milênio, quando as elites urbanas letradas tendiam a conceituali-
zar seus privilégios em oposição à administração real e não através dela.
Textos do Segundo Milênio a.C. mostram claramente que o poder monár-
quico era criação dos deuses e deusas, que exerciam sua influência entre os
humanos por meio dos reis. Em contrapartida, o monarca era responsável por
garantir que as ações humanas não desagradassem às divindades e que os tem-
plos estivessem sempre abastecidos.

LEITURA
Fontes: Trechos acerca da Instituição Divina da Monarquia
1. Inscrição em Pedra do século XVI a.C..
Marduk, deus supremo do seu país, criador da sabedoria, deu a mim, Samsu-iluna, rei
conforme o seu desejo, a totalidade do país para governar. Ele encarregou-me solenemente
de fazer repousar seu país em passagens seguras...
2. Versão Babilônica Antiga do Mito de Etana
Cetro, diadema, turbante e bastão
Estavam depositados no céu, diante de Anu.
Não havia governo para o povo,
Então, a realeza desceu do céu.

98 • capítulo 4
3. Prólogo do Código de Hammurabi
...Naquele dia, Anum e Enlil, pronunciaram o meu nome para a prosperidade dos ho-
mens, Hamurabi, o príncipe piedoso e temente a deus, para fazer a justiça reinar na terra,
para destruir o mau e o perverso, para que o forte não oprima o fraco...
REDE, Marcelo. A Mesopotâmia. São Paulo: Saraiva: 1997. p. 36.

No Primeiro Milênio a.C., embora a ideia do caráter divino do poder monár-


quico tenha se enfraquecido, não se abandonou a ideia de que deveria haver al-
gum grau de intervenção régia para manter a ordem. O que mudou foi a atitude
perante essa situação. Na nova perspectiva, era a desordem que deveria ser ex-
plicada, e não a manutenção da ordem. Nesse quadro, o rei era visto como uma
figura problemática, e suas ações eram muitas vezes entendidas como atenta-
dos à ordem cósmica e perigosa à vida.

LEITURA
Fonte: Trechos da Crônica de Weidner, demonstrando a ação monárquica como atentado à
ordem cósmica.
Através de seu comando exaltado, Marduk retirou a soberania da horda de gútios e a
deu a Utuhegal. Utuhegal, o “pescador” pousou sua mão maligna sobre a cidade de Marduk,
e seu cadáver foi carregado embora pelo rio. Marduk deu a soberania sobre todas as terras a
Shulgi, o filho de Ur-Nammu, e ele não executou perfeitamente os ritos de Marduk; ele profa-
nou os rituais de purificação, e seu pecado... Amar-Suena, seu filho, alterou os sacrifícios dos
grandes touros e das (ovelhas) do festival de Ano Novo do templo de Marduk.
JONES, Phillp. “Divine and Non-Divine Kingship”. In: SNELL, B. (Edit.). A Companion
to the Ancient Near East. Oxford: Blackwell, 2005. p. 337.

A partir do momento em que os palácios se afirmam como instituições


independentes e começam a concentrar o poder, há um consequente enfra-
quecimento das outras esferas de autoridade, os templos e as assembleias e
conselhos. A monarquia torna-se hereditária e normalmente masculina, já que
existem casos raros nos quais uma mulher assumiu o poder. De qualquer ma-
neira, as mulheres da família real desempenhavam importantes funções nos
negócios dos palácios ou como sacerdotisas nos templos.

capítulo 4 • 99
As atividades palacianas incluíam questões econômicas, administrativas e
militares que, em última instância, estavam sob a responsabilidade do rei. Para
auxiliá-lo nas suas responsabilidades, ele tinha à sua disposição um exército de
funcionários que ia desde os mais simples agricultores até grandes sacerdotes,
passando por fiscais, mercadores, militares e escribas diversos.
O controle de uma organização estatal complexa levou, ainda entre o IV e
o Terceiro Milênio a.C., à necessidade da criação de ferramentas de registro à
altura da empreitada. Esse longo processo de desenvolvimento culminou no
surgimento da escrita, mas foi iniciado com o uso de selos administrativos e
das cretulae, que eram recipientes enchidos com pequenos objetos (fichas),
com a finalidade de registrar contagens de animais ou produtos. Logo, os selos
com códigos que representavam o tipo de objeto (contrassenhas) foram substi-
tuídos por um código gráfico (contramarcas que representavam os objetos con-
tados, como os sinais arcaicos no quadro a seguir). Em seguida, esses códigos
gráficos evoluíram para símbolos mais abstratos que formam palavras e, nesse
processo, o registro se tornou um trabalho bastante especializado deixado a
cargo dos escribas.

Figura 4.2  –  A evolução dos sinais da escrita cuneiforme. Disponível em: REDE, M. A Meso-
potâmia. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 32.

A estrutura política da Mesopotâmia é especialmente conhecida no que se


refere às suas formas legislativas. Normalmente, a civilização mesopotâmica
é identificada como o berço das leis, pela existência de diversos códigos legais

100 • capítulo 4
escritos, enquanto outras sociedades do Oriente Antigo regiam-se por meio do
direito consuetudinário (isto é, leis tradicionais e costumeiras passadas oral-
mente de geração em geração).
Deve-se esclarecer, entretanto, que os “códigos” legais da Mesopotâmia
eram muito distintos das legislações dos dias de hoje, com um nível de abs-
tração muito menor. As regras descritas e as penalidades atribuídas são muito
concretas, ligadas a casos específicos. Isso indica que, mais do que códigos le-
gislativos, eram, na verdade, conjuntos de decretos reais de julgamento a serem
usados como exemplos para a aplicação da justiça por funcionários estatais.

CURIOSIDADE
Os “Códigos” mais antigos da Mesopotâmia
•  Ur-Nammu (2112-2095 a.C.) – III Dinastia de Ur, escrito em sumério;
•  Lipit-Ishtar (1934-1925 a.C.) – rei de Isin, escrito em sumério;
•  Leis de Eshnunna (fim do séc. XIX a.C.), primeiro “código” escrito em acadiano;
•  Código de Hammurabi (1792-1750 a.C.) da Babilônia, o mais famoso deles por conta
de sua descoberta por franceses em um monumento na cidade de Susa, também escrito
em acadiano.

Os “códigos” legais são fontes incríveis para os mais diferentes temas de


estudo relacionados à Antiga Mesopotâmia, muito além das questões que po-
deríamos identificar como “legais”, referentes aos “crimes” e aos castigos.
Questões econômicas relativas a irrigação, produção, comércio e trabalhos
artesanais em geral aparecem frequentemente; as diferenças existentes entre
as categorias sociais, como escravos (wardum), homens livres, proprietários de
terras, independentes dos templos (awilum) e funcionários estatais, que eram
uma camada média com alguns privilégios (muskênum); e questões de gênero
relativas à opressão patriarcal naquela sociedade são algumas das áreas ilumi-
nadas por essa documentação.

capítulo 4 • 101
LEITURA
Fonte: Questões de Gênero nas Leis de Eshnunna.
§ 28 Se, porém, [um awilum] deu um contrato e um banquete de núpcias para o seu pai
e a sua mãe e a tomou por esposa: (ela é) esposa. No dia em que for apanhada no seio de
um outro awilum, morrerá. Ela não poderá continuar viva.
§ 29 Se um awilum foi feito prisioneiro durante uma expedição militar, de razia ou de
reconhecimento, ou foi levado embora à força e permaneceu por longo tempo em uma outra
terra, um outro, então, tomou a sua mulher por esposa e ela gerou um filho: quando ele
regressar, sua mulher retornará para ele.
§ 31 Se um awilum deflorou a escrava de um (outro) awilum: pesará 1/3 de uma mina
de prata, mas a escrava (continuará propriedade) de seu senhor.
BOUZON, Emanuel. (Trad. e Org.). As Leis de Eshnunna. (1828-1787 a.C.). Petrópolis:
Vozes, 1981. pp. 99-104.

Outro aspecto muito comentado dos “códigos” mesopotâmicos é a dureza


de suas penas. Isso faz com que muitas vezes eles sejam identificados a uma
espécie de justiça vingativa, metaforizada na expressão “olho por olho, dente
por dente”.

LEITURA
Fonte: Punições pelas consequências de serviços mal executados no Código de Hammurabi.
§ 229 Se um pedreiro edificou uma casa para um awilum, mas não fortificou o seu
trabalho e a casa, que construiu, caiu e matou o dono da casa: esse pedreiro será morto.
§ 230 Se causou a morte do filho do dono da casa: matarão o filho desse pedreiro.
§ 231 Se causou a morte de um escravo do dono da casa: ele dará ao dono da casa
um escravo equivalente.
§ 232 Se causou a perda de bens móveis: compensará tudo que fez perder. Além disso,
porque não fortificou a casa que construiu e ela caiu, deverá reconstruir a casa que caiu com
seus próprios recursos
§ 233 Se um pedreiro construiu uma casa para um awilum e não executou o trabalho
adequadamente e o muro ruiu: esse pedreiro fortificará o muro às suas custas.
BOUZON, Emanuel. O Código de Hammurabi. Petrópolis: Vozes, 1980. p. 94.

102 • capítulo 4
Ainda que os palácios tenham se tornado o maior foco de poder a partir de
meados do Terceiro Milênio a.C., outros poderes nunca deixaram de existir. A
população das aldeias e cidades continuava a se organizar para tomar decisões,
e o rei era obrigado, muitas vezes, a negociar com esses conselhos e assem-
bleias. Além disso, em algumas áreas, os povos arredios continuavam a viver
a partir de suas maneiras e costumes, e os monarcas tinham dificuldades para
enquadrá-los nas regras estabelecidas pelo Estado.
Como visto no tópico anterior, a política nas civilizações do Antigo Oriente era
marcada pelos movimentos dinâmicos entre a centralização e a fragmentação do
poder. Na Mesopotâmia, isso fica muito claro, inclusive pelo fato de que o próprio
nome dado a essa civilização é uma generalização muito mais proveniente de uma
região geográfica (meso potamus, a terra “entre rios”) do que de uma estrutura
política ou mesmo étnica unitária. Dessa maneira, o poder fragmentado em um
grande número de cidades-Estados era a normalidade, ainda que por vezes alguma
delas tenha se destacado na liderança de um império composto por outras.
O primeiro desses impérios foi liderado por Sargão I, da cidade de Akkad,
que unificou a Mesopotâmia e algumas áreas vizinhas, estabelecendo um do-
mínio extenso com o fim de manter e ampliar as rotas comerciais. Vários paren-
tes do imperador foram nomeados como governadores, para diminuir a auto-
nomia de cidades-Estados, e o exército foi largamente ampliado.
A Dinastia de Akkad acabou sucumbindo menos de 200 anos depois de
Sargão I, em razão da conjunção entre revoltas internas e ataques externos.
Outro império foi o da III Dinastia de Ur, que se formou logo após o perío-
do de invasão dos gútios (provenientes dos montes Zagros). Essa formação im-
perial se destacou por seu controle econômico, compreendendo incialmente
toda a Mesopotâmia e algumas regiões contíguas. A desintegração não tardou,
embora medidas contrárias tenham sido tomadas, como: a separação entre po-
der civil e militar nas cidades dominadas; o estabelecimento de um sistema de
guarnições abastecido por um exército enorme e recheado de mercenários; a
organização de um eficiente correio real; a criação de um sistema de remunera-
ção do funcionalismo baseado na distribuição do usufruto sobre lotes de terra;
a tentativa de unificação legal com a promulgação das Leis de Ur-Nammu.
Nenhuma dessas medidas mostrou-se suficiente contra as poderosas forças
da fragmentação política, e o império da III Dinastia de Ur também ruiu diante
de rebeliões internas e ataques externos (em especial dos povos do Elam).
Independentemente da queda dos impérios, o Terceiro Milênio terminou
com a consolidação do regime monárquico e o aumento do poder do palácio

capítulo 4 • 103
real e da figura do monarca. Isso, contudo, nunca anulou o papel de cidadão
das populações mesopotâmicas, como fica claro a partir da promulgação dos
“códigos” legais voltados para estabelecer a justiça entre esses cidadãos.
Nesse sentido, a Mesopotâmia difere consideravelmente do Egito, onde
nunca houve uma percepção próxima à lógica da cidadania, sendo a população
inteira identificada apenas como súdita do monarca. Este é outro dos fatores li-
gados à diferença entre os dois tipos de monarquia justificadas, diferentemen-
te, com a religião. Enquanto no Egito a ideia de um rei-deus estava associada
logicamente à inferioridade e à submissão da população, entre o Eufrates e o
Tigre as assembleias e os conselhos nunca deixaram de ser o sinal de alguma
autonomia dos seus habitantes.

4.4  O poder no Antigo Egito

Os registros arqueológicos do paleolítico mostram bem o que muitas vezes é


esquecido: a cultura egípcia era uma cultura africana. As ferramentas de sílex
encontradas no Egito são do mesmo tipo daquelas encontradas em outras cul-
turas do norte da África.
O período chamado de Pré-Dinástico despertou atenção dos arqueólogos in-
cialmente com o inglês William Flinders Petrie, que encontrou os primeiros ele-
mentos desse período em um sítio na região de Nagada. Posteriormente, outros sí-
tios pré-dinásticos foram escavados, descobrindo-se culturas similares, que foram
identificadas com aquelas encontradas primeiramente. Dessa maneira, passou-se
a classificar a cultura material com base nas seguintes categorias: a) Fase el-Badari
(4500-4000 a. C.); b) Fase Nagada I (4000-3500 a.C.); c) Nagada II (3500-3000).
A fase Nagada I é marcada por uma menor difusão dos objetos de cerâmica
desse tipo no território egípcio. Esse quadro é modificado no período poste-
rior, quando a presença dessa cultura em boa parte do território mostra uma
unificação cultural prévia à centralização política. Outro indício disso são as
comprovações de que o culto ao deus Hórus também já estava difundido tanto
no Alto Egito (ao sul), quanto no Baixo Egito (ao norte).
O período de Nagada II também é marcado por um fortalecimento da hie-
rarquia social, marcado materialmente pela complexificação dos equipamen-
tos funerários encontrados. Esse momento da história egípcia também é mar-
cado pelo surgimento de confederações locais que vão preceder a monarquia
unificada como forma de organização.

104 • capítulo 4
No período Proto-Dinástico (3000-2900 a.C.), destacava-se o poder
de três grandes aglomerados políticos: Abidos, Nubt (Nagada) e Nekhen
(Hierakompolis). Essa reali-

©© WIKIMEDIA.ORG
dade já era marcada pela pro-
fusão de bens de luxo, mos-
trando um desenvolvimento
ainda maior da hierarquiza-
ção. Dessa maneira, é possí-
vel afirmar com certeza que
a relação estatal surgida na
Revolução Urbana teve lugar
no Egito antes da unificação
dinástica. Uma das compro-
vações disso é o aparecimen-
to de cidades com muralhas
de tijolos e edifícios de culto.
A unificação cultural e
econômica se deu antes da
centralização política. Por sua
vez, a concentração do poder
nas mãos de apenas um líder
político foi construída a par-
tir de um processo centenário
de guerras e alianças matri-
moniais, com hegemonia da
nobreza local de Nekhen, no
Alto Egito. Nesse processo,
os chefes regionais das re-
giões que posteriormente fi-
caram conhecidas como spat
(traduzida pela palavra grega
nomo), as 42 províncias egíp- Figura 4.3  –  Mapa do Antigo Egito.
cias, passaram a agir como
correias de transmissão do
poder centralizado na figura
do faraó.

capítulo 4 • 105
O primeiro faraó a aparecer em monumentos como rei de todo o Egito foi
Narmer, ainda que haja discussões sobre se este monarca foi realmente o pri-
meiro ou mesmo se ele não seria apenas uma figura mitológica. Em todo caso,
ele é reconhecido popularmente como o unificador do Egito, em especial por
aparecer na Paleta de Narmer portando tanto a coroa branca do Vale do Nilo
(Alto Egito) quanto a coroa vermelha do Delta (Baixo Egito). O estágio avança-
do da instituição estatal nesse momento é atestado pela presença da escrita
hieroglífica.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 4.4  –  Paleta de Narmer, exposta atualmente no Museu do Cairo.

A unificação e os monumentos a ela relacionados dão origem também a


representações muito claras de como funcionava a política no Egito Antigo. O
sistema de poder era uma Teocracia, que no geral significa um governo funda-
mentado no poder religioso, com autoridade exercida por uma divindade en-
carnada ou um representante indicado.
No caso do Egito, o faraó era herdeiro dos deuses e ele mesmo considerado
uma divindade em vida, embora nem sempre fosse adorado em templos des-
sa maneira. A incorporação do aspecto divino faz com que, mais do que uma
teocracia, a política egípcia estivesse marcada pela teofania, ou seja, a ideia de
que o rei era uma manifestação material do mundo divino. Dessa maneira, o
monarca congregava as funções de líder político, chefe militar, juiz supremo

106 • capítulo 4
e sumo sacerdote, sendo que seu caráter divino lhe garantia o posto de único
intermediário por direito entre o mundo profano e o sagrado.

LEITURA
SILVERMAN, D. “Humano ou Divino”. In: SILVERMAN, D. (Org.). El Antiguo Egipto. Historia,
religión, arte, ciencia y mitologia. Uma recreación del mundo de los faraones. Barcelona:
Blume, 2004. p. 112.
A associação do rei com a divindade vinha corroborada por seus títulos. Do Reino Novo
em diante, o faraó utilizava um conjunto de cinco nomes, títulos e epítetos, e a prática de
introduzir os nomes dos reis em um cartucho de forma ovalada se iniciou com o fundador da
IV Dinastia, Snefru, por volta de 2613 a.C.. Quando ascendia ao trono, o rei recebia quatro
nomes, dos quais, o “nome de Horus”, o “nome das duas senhoras” (ou “nome nebty”) e o
“nome do Hórus de Ouro” incidiam em sua natureza divina, enquanto o nome de trono ou
praenomen, “Rei do Alto e Baixo Egito” (nsw bity ou “Aquela do Junco e da Abelha”, emble-
mas do Alto e Baixo Egito) aludia ao título oficial do governante. O único nome que o faraó
recebia ao nascer, o nomen, era o último da sequência de cinco títulos reais, após o epíteto
que o precedia, e frequentemente se conhecia como o nome Sa-Ra (“filho de Rá”). Esta
designação é uma referência ao nascimento divino do faraó e à sua relação com o deus sol.
O nome de Hórus com frequência se escrevia no interior de um serej, um painel retangular
com a forma da fachada do palácio e um falcão Hórus sobre ele.

A autoridade do faraó estava ligada ao seu papel cósmico de manter o princí-


pio básico da criação, incorporado pela deusa-conceito Maat. Este termo pode
ser traduzido como “ordem”, “verdade”, “justiça” ou “equilíbrio”. O monarca
era, portanto, responsável por garantir Maat e repelir Isfet, a divindade-concei-
to que representava o caos. A lógica de pensamento egípcia, baseada em dua-
lidades complementares, compunha esse drama cósmico no qual era dever de
todos manter a ordem diante do caos para garantir a continuidade do universo.
Dessa maneira, Maat aparece tanto como um elemento de coesão social quanto
um código moral e uma justificativa/reiteração da hierarquia social.
Chamamos de Período Dinástico Primitivo as três primeiras dinastias que
governaram o Egito, quando foram se estruturando as instituições estatais e se
organizando as lógicas fiscais e administrativas. Os equipamentos funerários
encontrados nas tumbas de reis e rainhas desse período mostram a presença
de artesãos especialistas sustentados pelo Estado.

capítulo 4 • 107
2900-2545 A.C. Período Pré-Dinástico

2543-2120 A.C. Reino Antigo

2118-1980 A.C. Primeiro Período Intermediário

1980-1760 A.C. Reino Médio

1759-1539 A.C II Período Intermediário

1539-1077 A.C. Reino Novo

1076-723 A.C. III Período Intermediário

722-332 Época Baixa

305-30 A.C Egito Ptolomaico

Tabela 4.2  –  Tabela Cronológica da História Política do Egito Antigo

O Reino Antigo compreendeu o período da IV à VIII Dinastia, marcada ini-


cialmente pela construção dos monumentos funerários que até hoje são os
mais conhecidos do Egito: as pirâmides de Khufu, Khafra e Menkaura.
A centralização do governo levou ao surgimento de instituições adminis-
trativas que perduraram por boa parte da história faraônica. O funcionalismo
administrativo era composto por um exército de escribas de patentes variadas,
exercendo funções de fiscalização, supervisão, contabilidade e registro, todos
recrutados a partir das elites locais cooptadas. Estima-se que esse funciona-
lismo (por vezes chamado de burocracia) fosse de aproximadamente duas mil
pessoas, numa população total de 1,5 milhões.
Acima de todos os funcionários estava o tjati (normalmente traduzido como
“vizir”), uma espécie de primeiro-ministro faraônico, responsável por três tare-
fas principais:
1. A gerência do Palácio Real, garantindo as operações internas, a se-
gurança, a ordem, a justiça, os assuntos relativos aos servidores e às relações
externas;
2. Coordenação da administração civil, incluindo a justiça, o controle so-
bre os departamentos de governo e a nomeação de funcionários ;

108 • capítulo 4
3. Agir como assistente pessoal do rei e desempenhar tarefas executivas
que o faraó lhe atribuísse em seu nome (BOORN, 1988: 47).

LEITURA
Fonte: Trecho d’As Obrigações do Vizir, texto encontrado na tumba do vizir Rekhmira
(TT100) no Reino Novo.
Agora, para cada ato do vizir quando escuta (casos) em seu gabinete, em relação a
qualquer um que [não] é eficiente em todos [deveres] a respeito dos quais ele (o vizir)
o questiona, a saber, aquele que será incapaz de se justificar em uma audiência (lit. sua
audiência) instituída sobre este assunto, (ele) será inscrito no registro criminal que está na
“grande prisão”*.
(...)
Para qualquer documento escrito que o vizir envie [relativo a] qualquer gabinete, a saber,
aquele que não estiver protegido (i.e. “fechado”) (ainda), deverá ser levado a ele com os registros
[pelos] funcionários envolvidos, estando sob a chancela dos investigadores (lit. “ouvintes”) e es-
cribas responsáveis. Ele deverá abri-lo. Após ele o inspecionar, o documento será levado a seu
devido lugar, selado com o selo do vizir. Todavia, se ele requisitar um documento protegido (i.e.
“fechado), não é permitido que seja trazido pelos funcionários envolvidos
BOORN, G. The Duties of the Vizir: civil administration in the Early New Kingdom.
Londres: Kegan Paulo, 1988. pp. 121-133.
* Instituição administrativa central à disposição do vizir, contendo registros administrati-
vos relativos a diferentes assuntos estatais ligados a ele.

Entre a V e a VI Dinastias, grandes doações de terras isentas foram feitas


pela monarquia aos templos. Até a VII Dinastia, a monarquia controlava o po-
der por meio do que Eyre (2000) chamou de governo expedicionário, ou seja, re-
presentantes do rei que viajavam periodicamente pelos territórios para super-
visionar os poderes locais. Ao mesmo tempo, membros da elite abandonaram
o costume de serem enterrados em mastabas ao redor das pirâmides reais, para
serem sepultados em seus próprios nomos. Isso demonstra o fortalecimento
dos poderes locais e o consequente enfraquecimento do poder central.
Pesquisas climáticas apontaram que a crise política esteve relacionada
também a um período de cheias menores e menos regulares, que teria levado

capítulo 4 • 109
à queda de produção e, consequentemente, ao alastramento da fome entre as
comunidades egípcias e à desorganização da economia centralizada.
Os nomarcas (governadores dos nomos) passaram a se suceder de forma
hereditária. A fragilidade da centralização monárquica levou a um período de
fragmentação do poder, conhecido como Primeiro Período Intermediário, no
qual os nomarcas agiam localmente como pequenos reis.
A desestruturação da economia e da política centralizadas contribuiu para
um período de crise e revolta social. O registro disso está em um texto chamado
Admoestações de Ipu-Ur, que retrata aquilo que se pode chamar do primeiro
relato de uma rebelião social na história. O texto faz parte do que os egiptó-
logos chamaram de uma literatura pessimista, tipo literário característico do
Primeiro Período Intermediário, que mostrava um cenário de inversão social,
com todo tipo de carência, pilhagens, ataques estrangeiros e avanço do caos
diante do mundo organizado.

LEITURA
Fonte: Trecho das Admoestações de Ipu-Ur (Papiro Leiden 344)
(...) o país está cheio de bandos (revoltosos), e para lavrar um homem leva o seu escudo.
(...) Em verdade (...) o crime alastrou-se e não há homens como antigamente. Em verdade os
ladrões [estão] por toda parte, os criados levam o que encontram. Em verdade o Nilo inunda
(mas) ninguém lavra para si (pois) todos dizem “Não sabemos o que sucederá ao país”.
(...)
Em verdade os pobres passaram a exibir luxo, e o que não podia ter sandálias possui
riqueza. Em verdade os criados estão vorazes e o poderoso não compartilha [de alegria] com
sua gente. (…) Em verdade os ricos deploram e os pobres exultam; cada cidade diz: “Expul-
semos os poderosos!” (…) Não há remédio para isso, as senhoras sofrem como criadas, (…)
eis que as senhoras dormem em tábuas e os notáveis no celeiro, [mas] o homem que nem
dormia em cubículo possui uma cama. Eis que o rico se deita com sede, e o que esmolava
sobras tem bilhas que transbordam de cerveja.
ARAÚJO, Emanuel. Escritos para a Eternidade. Brasília:
Editora da UNB, 2000. pp. 177-191.

A situação política foi se normalizando aos poucos com as lutas internas en-
tre os poderes locais dos diferentes nomarcas, concentrando-se especialmente

110 • capítulo 4
nas regiões de Tebas e Herakleópolis. A dinastia tebana acabou saindo vitorio-
sa, e o Egito foi reunificado sob o governo de Mentuhotep II, novo rei do Alto e
Baixo Egito, dando origem ao Reino Médio.
O sistema administrativo do período teve como base aquele do Reino
Antigo, mas com esforços no sentido de centralizar o poder e recuperar a figura
do faraó como elemento central na manutenção da ordem. Nesse processo, a
Literatura teve grande importância, através da composição de textos que visa-
vam legitimar o poder faraônico e sua importância no bem-estar cotidiano da
população egípcia.
As reformas administrativas voltadas para garantir a centralização levaram
ao afastamento de vários nomarcas e ao crescimento do funcionalismo, que
pode ser observado por meio do aumento das funções estatais, perceptível nas
titulaturas que os funcionários mantinham em seus textos funerários.
Amenemhat I, sucessor de Mentuhotep II, manteve as reformas adminis-
trativas, criando um sistema no qual cada cidade tinha um prefeito, que, de-
pendendo da importância da região, também poderia ter o título de nomarca.
Em troca dos favores régios, indivíduos prestavam serviços como proteção de
fronteiras e realização de expedições externas para o faraó. Maria João (2010:
27) afirma que a burocratização do Estado egípcio foi a principal característica
da administração do Reino Médio.
A defesa do território contra os povos núbios do sul e os interesses econômi-
cos na região da Baixa Núbia (chamada, pelos egípcios de Wawat, atualmente
sul do Egito), onde os egípcios construíram uma cadeia de fortalezas para faci-
litar as trocas e a exploração local.
O Reino Médio termina com um novo enfraquecimento do poder central
do faraó. Dessa vez, a região do Delta do Nilo é ocupada por um povo asiático
conhecido como hicsos, enquanto o sul do Egito é dominado pelos núbios do
reino de Kush. Esse período, no qual há pelo menos três grandes poderes na
“Terra Negra”, é conhecido como Segundo Período Intermediário.

LEITURA
Fonte: Trecho sobre os monarcas estrangeiros no Egito na Estela de Kamés (XVII Dinastia)
Sua Majestade falou em seu palácio ao Conselho dos notáveis de seu séquito:
– Que eu compreenda isto: Para que serve o meu poder? Há um chefe em Hutuaret*,
um outro em Kush. Eu permaneço associado a um asiático e a um núbio, cada homem

capítulo 4 • 111
possuindo a sua fatia do Egito, partilhando comigo o país. A lealdade do Egito não vai além
dele (= não ultrapassa os domínios do rei hicso Apophis) até Mênfis [que seja], já que ele
está de posse de Khemenu. Nenhum homem tem repouso, despojado pelos impostos dos
asiáticos. Mas eu lutarei contra ele, abrir-lhe-ei o ventre, pois meu desejo é libertar o Egito
e golpear os asiáticos
CARDOSO, C. Narrativa, Sentido, História. Campinas: Papirus, 1997. pp. 48-50.
* Topônimo egípcio referente à cidade chamada pelos gregos de Avaris, no Delta do Nilo.

Após quase 200 anos de fragmentação do poder, o Egito voltou a ser centra-
lizado pelos governantes tebanos, dando origem ao Reino Novo, considerado
o período áureo da história faraônica e o momento histórico que nos legou a
maior quantidade de fontes sobre aquela civilização.
A expulsão dos invasores hicsos e núbios levou os egípcios a um processo
de expansão imperial que gerou mudanças em todas as esferas da sociedade
faraônica. Durante alguns séculos, o Egito tornou-se uma potência imperialista
que exerceu domínio direto ou indireto por um território que se estendia da
quarta catarata do Nilo, na Núbia, ao norte da Síria-Palestina.
O imperialismo egípcio, em especial na XVIII Dinastia, pode ser dividido
em três fases:
1. A reunificação do território e a expulsão dos invasores estrangeiros;
2. A expansão agressiva e a submissão de regiões da Núbia ao norte da
Síria-Palestina, que ocorreu entre os reinados de Amenhotep I e Thutmés III;
3. Após as conquistas e a organização da estrutura imperial feita por
Thutmés III, iniciou-se uma fase de manutenção e exploração dos territórios
(FRIZZO, 2010).

LEITURA
As Mulheres no Egito e a Mulher que foi Faraó

Descartadas as diferenças relativas a suas posições nas distintas frações de classe, as


mulheres no Egito tinham uma condição mais favorável que em outras sociedades antigas.
Embora submetidas em geral ao patriarcado, representado por seus pais e maridos, as egíp-
cias tinham acesso à justiça sem necessitar de um representante masculino. Isto significa
que poderiam servir como testemunhas, fazer queixas e se defender de forma autônoma
perante a justiça encarnada pelos conselhos ou pelos funcionários estatais.

112 • capítulo 4
Nem todas as mulheres eram dependentes econômicas, já que poderiam possuir ren-
das, receber as mesmas partes das heranças que seus irmãos e, quando viúvas, uma porção
dos bens dos maridos falecidos. Além disto, controlavam um terço de qualquer propriedade
que dividissem com seus esposos e podiam dispor dos seus bens pessoais. Com frequên-
cia, são elas que aparecem em cenas de mercado nas margens do rio Nilo, executando
trocas de produtos como tecidos ou verduras que produziam em casa. No caso das campo-
nesas, pouco documentadas nas fontes, deveriam criar seus filhos, cuidar de suas famílias
e trabalhar na agricultura quando necessário.
A disparidade econômica das mulheres da classe dominante em relação aos homens é
demonstrada claramente pela quantidade muito menor de capelas funerárias decoradas em
sua honra. Isto se devia ao fato de que os cargos no funcionalismo estavam reservados aos
homens, que acabavam sendo aqueles capazes de contar com as condições necessárias à
construção e decoração de uma tumba.
As mulheres poderiam requisitar o divórcio e o principal motivo para isto era o adultério,
punido tanto no caso masculino quanto feminino. Embora fosse muito mal vista, a traição
não ocasionava penas duras como em outras sociedades antigas, o indivíduo traído poderia
apenas perder as propriedades que lhe caberiam numa situação de divórcio.
©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 4.5  –  Estátua de Hatshepsut com a barba que simboliza a monarquia faraônica. Ex-
posta atualmente no Metropolitan Museum of Art, em Nova York.

Entre as poucas mulheres da realeza que chegaram a ser faraós, sem dúvidas Hatshep-
sut foi a de maior destaque. Filha de Thutmés I e esposa principal e seu meio irmão Thutmés
II, a rainha governou o Egito num período de regência após a morte de seu marido, enquanto
seu sobrinho Thutmés III era muito novo para governar. Em parte deste período, Hatshepsut

capítulo 4 • 113
passou a se representar com os atributos de um faraó e, portanto, com características mas-
culinas. Muitos anos depois de seu falecimento, Thutmés III executou um processo de des-
truição da memória de Hatshepsut em vários dos momentos dedicados a ela, provavelmente
porque os egípcios viam de maneira antinatural que uma mulher se convertesse em faraó.
Fonte: Relato de um Adultério entre os Operários da Vila de Deir el-Medina durante a XX
Dinastia (Papiro Deir el-Medina 27).

[Quanto a mim, eu sou] um servo de Amen-em-one, um membro da equipe. Eu trouxe o


pacote à casa de Pa-yorn e fiz de sua filha (minha) esposa. Agora quando eu passei a noite
na casa do meu pai, eu saí para ir à casa dele e encontrei o operário Meru-Sekhmet, filho de
Menna, dormindo com minha esposa no quinto dia do quarto mês de verão. Eu saí e contei
aos funcionários; (...) Então o escriba da Necrópole, Amen-nakhte, fez com que ele fizesse
um juramento ao senhor – vida, prosperidade, saúde , dizendo: “Enquanto Amon durar,
enquanto o governante durar, se eu falar com ela, a esposa, meu nariz, minhas narinas e
minhas orelhas serão [cortadas], e eu serei exilado na terra de Kush”.
MCDOWELL, A. Village Life in Ancient Egypt. Oxford: Oxford University Press, 1999.
pp. 50-57.

Durante esse período áureo, o Egito instalou-se como um dos maiores rei-
nos do Antigo Oriente Próximo e manteve relações diplomáticas tanto com
os grandes reis de outros impérios, como Hatti, Mitanni e a Babilônia, quan-
to com pequenos príncipes vassalos das cidades Sírio-Palestinas e do Líbano.
Essas relações estão documentadas pelo arquivo diplomático conhecido como
Cartas de Amarna, encontrado em um palácio da cidade de mesmo nome.
A conquista e manutenção de um império internacional gerou uma amplia-
ção interna e externa do Estado faraônico. Dentro desse movimento, houve es-
paço para o fortalecimento de distintos grupos da sociedade. Por um lado, a
necessidade de expandir e manter as conquistas levou ao surgimento de um
exército profissional e ao fortalecimento da fração ligada às atividades mi-
litares. Por outro, a intensificação do culto ao deus dinástico Amon resultou
no enriquecimento de seus templos e no empoderamento político-social dos
seus sacerdotes.
O império egípcio era administrado de forma centralizada a partir do mes-
mo mecanismo de descentramento de poder utilizado para unificar o Egito. De
forma similar aos nomarcas e chefes locais no interior do território egípcio, os

114 • capítulo 4
príncipes estrangeiros eram cooptados a agir como focos de poder e manuten-
ção imperial. (FRIZZO, 2016). Para manter a centralidade do poder, era neces-
sário garantir um fluxo contínuo de bens de prestígio a serem distribuídos para
as elites interna e externa. Nisso, a exploração das minas auríferas da Baixa
Núbia teve papel fundamental.
A riqueza conquistada com o império possibilitou o esplendor de projetos
de construções como o de Amenhotep III, que preencheu o Egito e a Núbia com
monumentos e templos dedicados a Amon e até a si mesmo.
A XVIII Dinastia acabou após os eventos relacionados à Reforma de Amarna
e à posterior restauração, com os faraós Tutankhamon, Ay e o general coroado
Horemheb. Este escolheu Ramsés I, outro militar, como seu sucessor, dando
início à XIX Dinastia.

LEITURA
A Reforma de Amarna

O fortalecimento do culto solar chegou ao seu ápice no governo de Amenhotep IV,


gerando uma reforma nas concepções tradicionais acerca da religião egípcia voltada para a
adoração de Aton, divindade representada apenas pelo disco solar. O faraó modificou seu
nome, consagrado ao deus Amon, adotando Akhenaton (“a verdadeira imagem de Aton”)
e decidiu fundar uma nova capital do Egito para seu deus, batizando-a de Akhetaton (“o
horizonte de Aton”), atualmente localizada na região de Tell el-Amarna.
A reforma empreendida por Akhenaton afetou diversos campos da cultura egípcia. Na
religião, o faraó determinou o deus Aton como a única divindade, que se apresentava ape-
nas na forma do disco solar que estendia seus raios sobre a terra. Embora não tenham sido
esquecidas pelo povo, todos os outros deuses e deusas foram excluídos das representa-
ções, bem como a perspectiva do paraíso osíriano associado ao mundo do pós-vida. Outro
campo que sofreu modificações consideráveis foi a arte, com um novo padrão de formas
humanas percebido nas iconografias.
Muito se discute sobre a identificação da religião de Aton como a primeira forma de mo-
noteísmo da humanidade. Embora a egiptologia não tenha chegado a um consenso, deve-se
lembrar que em nenhum momento o faraó perdeu seu caráter divino. Pelo contrário, grande
parte das imagens representam Aton acompanhado de Akhenaton, sua esposa Nefertiti e
seus filhos e filhas, apontando para a consagração da família real. Desta forma, não se pode
falar num monoteísmo exclusivo.

capítulo 4 • 115
A radicalidade das mudanças executadas por Akhenaton deve ter parecido excessiva
para muitos egípcios e, especialmente, para algumas frações da classe dominante. De tal
maneira que, após sua morte, iniciou-se um processo de restauração dos costumes anterio-
res, acompanhado de uma perseguição e destruição das representações relativas à religião
de Aton e seu faraó.

FONTE: Grande Hino a Aton.

Emerges esplêndido no horizonte do céu,


ó tu, vivo Aton, criador da vida!
Quando te elevas no horizonte oriental,
enches cada terra com tua beleza.
És belo, és grande, és radiante,
(brilhas) no alto sobre todas as terras.
Teus raios abraçam as terras
até os confins de tudo o que fizeste.
És Rá, alcanças até o fim das terras
e as subjugas para teu amado filho (o faraó).
Embora estejas distante, teus raios espalham-se no solo,
embora sejas visto (por todos), teus passos são invisíveis.

ARAÚJO, Emanuel (Org. e Trad). Escritos para a Eternidade. Brasília: Editora da UNB,
2000. p. 332.

A XIX Dinastia é uma das mais conhecidas da antiguidade egípcia, identi-


ficada junto com a dinastia posterior como período raméssida em razão dos
nomes adotados por vários de seus monarcas. A recuperação do domínio sobre
a Síria-Palestina, após ataques do império hitita, fez com que uma nova capital
egípcia, nomeada de Pi-Ramsés, fosse instalada no Delta.
O confronto entre hititas e egípcios culminou na famosa Batalha de Kadesh,
travada na cidade de mesmo nome. As tropas faraônicas foram lideradas pelo
poderoso Ramsés II e, ainda que as fontes egípcias apontem para sua vitória,
outros indícios tornam esse resultado bastante contestável. A disputa, todavia,
levou a um tratado internacional entre Ramsés II e o rei hitita Hatusil II, esta-
belecendo a fronteira da área de influência dos dois impérios no rio Orontes

116 • capítulo 4
e criando um pacto de auxílio mútuo contra sublevações e ataques de ou-
tros povos.
A XX Dinastia foi a última do Reino Novo e teve como principal monar-
ca Ramsés III, que enfrentou os ataques dos “Povos do Mar” e as migrações,
muitas vezes violentas, dos líbios. Essa fase da história egípcia data do perío-
do que ficou conhecido como “colapso das sociedades do bronze tardio”, no
qual várias sociedades do Antigo Oriente (e mesmo do Ocidente) entraram em
crise.
O Reino Novo terminou com um período de crise, ocasionada por fatores
como: modificações climáticas e cheias insuficientes; desmantelamento do
sistema internacional do Antigo Oriente Próximo; migrações líbias para o terri-
tório egípcio; sublevações militares; tramas e complôs palaciais; e até mesmo a
primeira greve conhecida na história.
A crise levou à fragmentação do poder, com a divisão do poder real entre o
sumo sacerdote de Amon em Tebas, que também tinha um passado militar e
assegurou o trono para seu filho Piankh; e, por outro lado, Nesubanebdjed, que
governou a região do Delta a partir da nova capital em Tânis.
A fragmentação iniciou o Terceiro Período Intermediário, que, além da di-
nastia controlada pelos sacerdotes de Amon em Tebas, contou também com
dinastias paralelas de monarcas de origem líbia, no Norte, e os faraós negros
da Núbia, no Sul.
O Terceiro Período Intermediário terminou com a reunificação do Egito
pelo faraó núbio Shabaka, que estabeleceu sua capital na cidade de Mênfis,
dando início à Época Tardia.
O Egito passou a ser assediado por outros impérios e sofreu com invasões
assírias, que chegaram a pôr um faraó para governar na cidade de Sais, no
Delta, momento que ficou conhecido como Período Saíta. Posteriormente, foi
a vez dos exércitos persas de Cambises invadirem e submeterem o território
egípcio ao seu império.
Por fim, com a expansão macedônica das tropas lideradas por Alexandre,
o Grande, o império persa – e o Egito – foi dominado. O território foi dividido
e posto sob o governo de generais helênicos, entre os quais Ptolomeu foi es-
colhido para as terras egípcias e posteriormente coroado faraó. Durante qua-
se trezentos anos, os descendentes dessa dinastia governaram a partir da nova
capital, Alexandria. Esse período ficou conhecido como Período Ptolomaico.

capítulo 4 • 117
4.5  O poder entre os antigos hebreus

Em decorrência da adoção do cristianismo como principal religião no “mun-


do ocidental”, a Bíblia tornou-se um documento histórico muito familiar em
nosso cotidiano. Todavia, seu uso historiográfico tem que ser distinto da utili-
zação religiosa.
Em nossos estudos, devemos olhar para a Bíblia como um documento li-
terário-religioso semelhante a vários outros que tiveram origem no Antigo
Oriente, buscando separar a visão do historiador do olhar do fiel.
Primeiramente, é importante ressaltar que nenhum dos textos da Bíblia se
fixou por escrito antes dos séculos IX e X d. C. (CARDOSO, 1997a: 61). Isto signi-
fica que as narrativas estavam afastadas dos fatos narrados por vários séculos,
o que certamente cria problemas para a análise.
Se a Bíblia, como todo documento histórico, não pode ser lida literalmente,
em quais dos seus relatos podemos acreditar? Quais as medidas que um his-
toriador deve tomar para confiar no texto bíblico como fonte para a história
dos judeus?
As soluções que podemos dar para esses questionamentos são as mesmas
apresentadas para outros documentos históricos: em especial, é necessário fa-
zer o cruzamento com outros testemunhos do período. Mas quais outras fontes
podemos utilizar para isso?
Há registros sobre os israelitas feitos por outros povos, como a Estela de
Merenptah, primeiro documento no qual são mencionados. Outras fontes não
diretamente ligadas, mas do mesmo período dos reinos israelitas, também po-
dem servir para confirmar alguns costumes e tradições que aparecem descritos
nos textos bíblicos. Por fim, a cultura material também é um elemento funda-
mental para o estudo dos hebreus.

LEITURA
Fonte: Trecho da Estala de Merenptah mencionando Israel
Os príncipes estão prostrados, dizendo “clemência!”
Nenhum dos Nove Arcos levanta sua cabeça;
A Líbia está desolada, Hatti está pacificada,
Canaã é cativa com todo o mal,
Ashkelon está conquistada, Gezer tomada;
Yanoam está como se jamais tivesse existido;

118 • capítulo 4
Israel está devastada, desprovida de sementes;
Síria se tornou uma viúva para o Egito;
Todos aqueles que vagavam foram subjugados.
LICHTHEIM, Mirian. Ancient Egyptian Literature. Vol. II. Califórnia: Univ. of California
Press, 1973. p. 77

A história bíblica do Gênesis descreve Abraão como o pai da nação judia,


que teria migrado com seu povo da cidade mesopotâmica de Ur em direção a
Canaã a mando de seu deus.

Figura 4.6  –  Mapa da Jornada de Abraão até Canaã. Disponível em: COHN-SHERBOK, D.
Atlas of Jewish History. Londres: Routledge, 1996. p. 6

Seguindo o relato bíblico, após um período de fome em Canaã, Abraão e os


hebreus teriam migrado primeiro para o Egito e em seguida se instalaram na
planície próxima à cidade de Hebrom.
Desse relato podemos depreender que os hebreus eram, incialmente, um
povo seminômade que habitava tendas e tinha como principal atividade econô-
mica a criação de gado menor (ovelhas e cabras), viajando no lombo de burros
(a menção bíblica a camelos é um anacronismo, em decorrência da fixação tar-
dia do texto).

capítulo 4 • 119
Em sua trajetória, os hebreus evitaram as grandes aglomerações urbanas e
os desertos, frequentando especialmente regiões pouco povoadas, mas plenas
de pastagens.
Os pesquisadores datam esse movimento migratório e o assentamen-
to hebreu nas proximidades do ano 1800 a.C., o que fica comprovado pela
Arqueologia através da descoberta de cidades da época mencionadas no relato
bíblico, como Siquém, Dothan, Betel e Jerusalém.
A história dos hebreus é marcada inicialmente por três grandes patriarcas:
o próprio Abraão, seu filho Isaac e seu neto Jacó, cujo filho José terminou como
cativo no Egito.
A história do Cativeiro do Egito, narrada no Êxodus, costuma ser datada do
reinado do faraó Ramsés II, momento em que o reino egípcio mantinha sob seu
domínio imperial boa parte da Síria-Palestina e, com isso, acabou extraditando
cativos naturais daquela região para as margens do Nilo. Dessa maneira, o mais
correto é que apenas uma porção do povo hebreu tenha vivido no Egito
Segundo Ciro Cardoso (1997), somente após o Cativeiro do Egito é que po-
demos afirmar com convicção a existência de uma religião de Iahweh (ou, em
português, Jeová), o javismo. Não há nenhuma evidência concreta de um culto
javista na era dos patriarcas, já que uma entidade chamada de Israel aparece
pela primeira vez, como vimos, no período do faraó egípcio Merenptah, que su-
cedeu Ramsés II.
O retorno do Egito à Palestina ocorreu num momento propício para a insta-
lação de uma entidade política hebraica, em função do vazio de poder na Síria-
Palestina, na passagem para a Idade do Ferro, em fins do século XII a.C., quan-
do houve uma retração do poderio egípcio na região, além da desarticulação do
império hitita.
Desde sua manifestação como povo seminômade até sua instalação após
o cativeiro do Egito, o povo hebreu manteve uma organização tribal, com
poder estabelecido a partir de relações de parentesco, instituindo um gover-
no patriarcal.
Mesmo até fins do século XI a.C., Israel não constituía um Estado, mas uma
frouxa liga de tribos (que são tradicionalmente numeradas como 12, a partir dos
filhos de Jacó). Pesquisadores deduzem que essas tribos foram formadas por
elementos heterogêneos, vindos do Egito e de diferentes partes da Palestina.
As guerras de conquista e demais conflitos teriam auxiliado na formação
da liga ou confederação tribal, ainda sob o poder patriarcal. Os patriarcas das

120 • capítulo 4
tribos se reuniam em santuários como Gilgal para consultar Iahweh em algu-
mas festas anuais.
Em cada uma das tribos, a justiça ficava a cargo dos patriarcas, mas em
tempos de grande perigo era estabelecido o poder de grandes líderes (shofet ou
“juízes”), que alegavam inspiração divina para guiar todos os hebreus.
Os juízes convocavam diversas tribos para o combate, tornando-se heróis
locais, que, todavia, não chegaram a ter autoridade global, permanente, abso-
luta e transferível.
Dessa maneira, até fins do século XI a.C., não houve uma verdadeira unifica-
ção tribal e o estabelecimento de uma organização social estatal.
O processo de desenvolvimento de uma organização estatal só foi concluído
por volta de 1020 a.C. e teve entre seus principais motivos a sedentarização, o
crescimento da complexidade social e a ameaça crescente representada pelos
filisteus, que foram expulsos do Egito e se instalaram na Palestina, forman-
do uma federação de cidades-Estados que contava, entre outras, com Gaza,
Askhelon e Ecrom.
Os conflitos constantes entre hebreus e filisteus teriam levado, por volta de
1050 a.C., à captura do maior símbolo da liga hebraica: a Arca da Aliança.
Os filisteus submeteram as tribos hebraicas ao pagamento de tributos e es-
tabeleceram guarnições militares em pontos estratégicos da Palestina, além de
destruir o santuário de Silo, o mais importante dos hebreus e sede da Arca em
que estariam depositadas as tábuas de Moisés.
A constante oposição dos filisteus e outras ameaças não poderiam ser en-
frentadas enquanto os hebreus mantivessem uma organização tribal de origem
seminômade. Assim, a solução foi a formação do Reino de Israel, transforman-
do a monarquia já existente em nível local, em uma realidade unificada para
todo o povo hebraico.
O livro de Samuel nos conta a história de um respeitado profeta hebreu que
aparece diretamente vinculado ao processo de criação da monarquia israelita.
O governo monárquico esteve, desde seu início, mesclado com o aspecto reli-
gioso, já que o próprio profeta Samuel foi responsável por ungir os dois primei-
ros reis, Saul e Davi, designando-os como escolhidos de Iahweh.
Saul teria reinado aproximadamente entre 1020 e 1000 a.C., sendo um chefe
militar e responsável pela justiça, iniciando a criação de instituições estatais e

capítulo 4 • 121
de um exército permanente. Ele se engajou na guerra contra os povos vizinhos
(filisteus, moabitas, amonitas, amalecitas e edomitas), obtendo algumas vitó-
rias. No final de seu reinado, entrou em conflito com Samuel e os sacerdotes e
acabou derrotado e morto pelos filisteus.

Figura 4.7  –  Monarquia dos hebreus. Disponível em: COHN-SHERBOK, D. Atlas of Jewish
History. Londres: Routledge, 1996. p. 17

A monarquia de Saul foi uma espécie de transição entre a forma de organi-


zação da liga tribal e o Estado, que foi instituído definitivamente no reinado de
Davi (aprox. 1000-961 a.C.).
Davi foi um dos guerreiros de Saul, reconhecido por sua valentia e habilida-
de militar, e acabou se tornando seu genro. Após um desentendimento entre
os dois, teria fugido com 600 fiéis e se posto a serviço do rei da cidade-Estado
filisteia de Gat. Primeiramente, Davi foi feito rei de Judá em Hebrom e, poste-
riormente, declarado rei de Israel após a morte de Isbaal, filho e sucessor esco-
lhido por Saul.

122 • capítulo 4
LEITURA
Fonte: Ascenção de Davi ao trono segundo o Livro de Samuel (2 Samuel, 5: 1-3)
Então todas as tribos e Israel vieram ter com Davi em Hebrom e disseram: Vê! Nós
somos dos teus ossos e da tua carne. Já antes, quando Saul reinava sobre nós, eras tu que
saías e entravas de Israel, e Iahweh te disse: És tu que apascentarás o meu povo Israel e és
tu quem serás chefe de Israel. Todos os anciãos de Israel vieram, pois, até o rei, em Hebrom,
e o rei Davi concluiu com eles um pacto em Hebrom, na presença de Iahweh, e eles ungiram
Davi como rei em Israel.
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo:

A ascensão de Davi foi simbólica por unificar os territórios do Norte e do Sul


de Israel, transferindo a capital de Hebrom para Jerusalém (cidade que Davi
tomou com seus próprios exércitos das mãos dos jebuseus).
Apesar da menção aos anciãos, Davi foi o primeiro governante cujo poder
não se assentava sob a confederação tribal, mas sobre uma verdadeira organi-
zação estatal.
Davi expandiu o reino de Israel, conquistando de forma direta a maior parte
da Palestina. Tanto o reino de Moab quanto as cidades sob o poder dos filisteus
foram derrotados, tornando-se dependentes e tributários de Israel. O monarca
também assumiu a coroa do reino de Amon e transformou Edom em uma pro-
víncia. Além disso, estabeleceu um tratado com o rei Hitita de Tiro, mantendo
relações comerciais.
Embora a Bíblia não se refira às instituições estatais do reinado de Davi, po-
de-se perceber um avanço da organização estatal em relação ao período de Saul.
Sabe-se que o monarca construiu um palácio real em Jerusalém para sediar o
poder central, que tinha como principais funcionários um comandante mili-
tar, um comandante dos mercenários, um arauto real, um secretário real e dois
sumo-sacerdotes.
Davi também ordenou um censo para submeter os próprios hebreus ao
pagamento de impostos e regular o recrutamento militar. Provavelmente, foi
neste momento que o território de Judá foi divido em distritos administrativos.
Salomão, filho de Davi, sucedeu seu pai, reinando aproximadamente entre
961 e 922 a.C.), reforçando as tropas armadas e construindo fortificações. Ele
estabeleceu alianças entre o reino de Israel e o Egito, casando-se com uma filha

capítulo 4 • 123
do faraó, além de renovar a aliança com Tiro, aumentando a presença fenícia
em Israel.
O reinado de Salomão foi um período de expansão comercial e desenvol-
vimento artesanal, com a metalurgia do cobre e do ferro. O monarca dirigiu
grandes construções (a mais importante o templo de Iahweh em Jerusalém,
que contou com a contribuição dos fenícios) e aumentou a burocracia e as for-
ças armadas.
As reformas de Salomão aumentaram o endividamento do Estado de Israel,
levando o rei a ceder territórios aos fenícios. O aumento dos impostos e das
corveias, a divisão em 12 distritos que rompiam a tradição tribal e a integração
de outros canaanitas ao Estado provocou um forte descontentamento na popu-
lação hebraica.
A reunião das porções norte e sul que formou o Estado de Israel sob o go-
verno de Davi era bastante frágil e constantemente ameaçada. Após a morte de
Salomão, seu filho Roboão (930-938 a.C.) assumiu e buscou o apoio das tribos
do Norte, que estabeleceram seus termos para aceitarem a monarquia. Roboão
se negou a atender e as tribos do Norte se rebelaram e escolheram como seu rei
Jeroboão (930-910 a.C.), declarando o reino de Judá.
A divisão entre os reinos de Israel e Judá enfraqueceu o poder hebreu na re-
gião e permitiu a invasão de Israel pelo Egito, forçando Jeroboão a pagar tribu-
tos. No Reino de Israel, o problema era interno, em razão da insatisfação com a
perda do templo de Jerusalém, que levava a população a peregrinar pelo Reino
de Judá. Jeroboão tentou contornar essa situação estabelecendo santuários em
antigos centros de culto cananeus, como Dan e Bethel.
A divisão do território entre o Reino de Israel e o Reino de Judá enfraque-
ceu os hebreus, abrindo caminho para uma história de invasões e ocupa-
ções estrangeiras.
Inicialmente, o Reino de Israel foi tomado pelos assírios, em 722 a.C.. Cerca
de 200 anos depois, Judá foi tomada pelos babilônicos, dando início ao período
conhecido como “Cativeiro da Babilônia”, para onde os judeus foram enviados
como escravos, sendo libertados em 539 a.C. pelo rei persa Ciro II.
Embora tenham retornado à Palestina e reconstruído o Templo de Salomão
que havia sido destruído por babilônico Nabucodonosor II, os hebreus não
conseguiram se manter independentes por muito tempo, passando pela con-
quista dos macedônicos e, finalmente, dos romanos, em 63 a.C..

124 • capítulo 4
No primeiro século da nossa era, os judeus se revoltaram contra o domínio
romano, mas acabaram derrotados no ano de 60 a.C., momento no qual se deu
a grande diáspora judaica com o abandono das terras na Palestina. Os judeus
só retornariam àquele lugar após a Segunda Guerra Mundial, com a criação do
Estado de Israel.

4.6  O Poder na Pérsia Antiga

Povos indo-europeus que se instalaram desde o século IX no território que hoje


é o Irã, sendo os Medos estabelecidos ao Norte, enquanto os Persas habitavam
o sul. Eram povos nômades que tinham como principais atividades econômi-
cas o pastoreio e o banditismo.
A organização social dos medo-persas era baseada em instituições tribais,
com chefes políticos clânicos que estendiam suas esferas de poder apenas em
um caráter regional.
Déjoces é descrito por Heródoto como sendo o unificador dos povos me-
dos, constituindo uma confederação tribal no século VII a.C. A unificação foi
constituída em um contexto de resistência ao maior poder político vizinho: os
assírios.
A expansão meda continuou com o sucessor de Déjoces, Fraortes (665-633
a.C.), que conquistou parte do território persa ao sul da área dos medos. O prin-
cipal nome dos líderes medos do século VII a.C. foi o do filho de Fraortes, que
ficou conhecido como Ciáxeres, o Grande, governando entre 625 e 585 a.C..
Sob Ciáxeres, a confederação meda tornou-se uma potência militar que, as-
sociada ao reino babilônico de Nabopolassar, lutou contra o maior poder mili-
tar do Oriente Próximo até então, os assírios.
Após a vitória sobre os assírios, representada pela conquista de sua capital
Nínive, Ciáxeres anexou ao território da confederação meda sob seu poder as
províncias da Ásia Menor.
Astíages, sucessor de Ciáxares, governou uma confederação meda que já es-
tendia seu poderio territorial das margens do Rio Indo a Leste até a Ásia Menor
a Leste. Seu reinado iniciou-se em 589 a.C. e durou até 549 a.C.
Astíages foi derrotado por um dos reis vassalos do território da Pérsia, Ciro,
rei de Anzan (ou Anshan). O relato mítico da ascensão de Ciro, o Grande, é nar-
rado por Heródoto, que o aponta como neto de Astíages. Impulsionado por
uma profecia, seu avô teria enviado o general Harpago para assassinar Ciro

capítulo 4 • 125
logo após seu nascimento. Harpago teria se apiedado e entregado o bebê para
ser criado por um pastor. Ao se tornar adulto, Ciro tomou consciência de sua
linhagem real e reclamou seus direitos. Astíages descobriu a insubordinação
da Harpago e por isso assassinou seu filho, o que levou o general a se unir a Ciro
contra Astíages, terminando com a derrota deste.
Com a derrota de Astíages, Ciro tornou-se líder político-militar de um
novo império, que ficou conhecido como Aquemênida em referência à origem
mítica do clã de Ciro no herói ancestral Aquêmenes. Apesar da narrativa mí-
tica, acredita-se que Ciro tenha sido o líder de uma rebelião persa dentro da
Confederação Meda, estimulada pela má administração da Pérsia por Astíages.
Ciro governou o Império Aquemênida entre os anos de 559 e 530 a.C., crian-
do o maior império territorial que havia existido até então. Após conquistar o
poder de Astíages, Ciro dirigiu suas tropas para a conquista da Lídia e de outros
territórios na Ásia Menor.
Em 539 a.C., Ciro conquistou a Babilônia (maior poder na Mesopotâmia do
período). Dois anos depois, libertou os escravos hebreus, dando fim ao período
conhecido como “Cativeiro da Babilônia”.
As conquistas de Ciro, o Grande, ficaram registradas em diversos documen-
tos, como o famoso Cilindro de Ciro ou passagens bíblicas, dos livros de Isaías,
Esdras e Daniel.

LEITURA
Fonte: As conquistas no Cilindro de Ciro
Eu sou Ciro, rei do mundo, grande rei, rei legítimo, rei da Babilônia, rei da Suméria e de
Acade, rei das quatro extremidades [da terra], filho de Cambises, grande rei, rei de Anzan,
neto de Ciro I (...) de uma família [que] sempre [exerceu] a realeza.
PRITCHARD, J. Ancient Near Eastern Texts. Princeton, 1969. p. 316

O filho de Ciro, Cambises II, reinou entre 530 e 522 a.C., após a morte
de seu pai em batalha, e foi responsável por estender ainda mais o Império
Aquemênida, derrotando o Império Hitita e o Egito, além de se aventurar por
outras regiões africanas, como a Líbia e a Núbia.
As campanhas de Cambises II na África foram extremamente custosas para
o Império Persa. Sua preocupação com o Egito e sua permanência naquelas ter-
ras fez com que uma rebelião tivesse início na Pérsia, na tentativa de colocar no

126 • capítulo 4
trono um “mago” chamado Bardiya. Apesar de tentar retornar à Pérsia para dar
conta da rebelião, Cambises II acabou falecendo no caminho de volta.
Foi Dario, um militar de Cambises II, que derrubou o usurpador Guamata,
com o apoio de famílias nobres persas, sendo coroado como terceiro grande rei
aquemênida em 550 a.C. O monarca reinou até 486 a.C. sob o nome de Dario, o
Grande, e foi responsável principalmente pela organização interna do Império
Aquemênida, necessária à manutenção de um território de aproximadamen-
te oito milhões de quilômetros quadrados. Dario também ficou conhecido
por seus projetos de construções, especialmente nas cidades de Pasárgadas e
Persépolis.
O governo do Império Aquemênida contava com aproximadamente oito mil
quilômetros quadrados. Para isso, desenvolveu uma série de mecanismos or-
ganizacionais projetados para integrar o espaço imperial e mantê-lo sob um
governo unificado.
© WIKIMEDIA.ORG

Figura 4.8 – Extensão máxima do império Aquemênida sob Dario I (522-486 a.C.).

Desde Ciro, o Grande, o império já era multiestatal. Com base em um gran-


de poderio militar inicial, Dario estabeleceu um governo unificado a partir de
uma organização descentrada que contava com monarcas vassalos tributários
e garantia ao imperador o título de “rei dos reis”.

capítulo 4  • 127
A administração persa aquemênida de Dario foi baseada na instituição de
Satrapias, regiões administrativas que ficavam sob a responsabilidade dos sá-
trapas, chefes locais, vassalos de Dario, responsáveis por arrecadar impostos.
As satrapias contavam também com um secretário ou governador, que fica-
va encarregado de manter as relações com a corte de Dario e informar o impera-
dor dos acontecimentos. O básico da estrutura administrativa das satrapias era
finalizado pela presença de um comandante militar que dividia o poder com o
sátrapa e ficava encarregado do recrutamento e organização do exército naque-
la região.
O poder centralizado do imperador se materializava nas figuras dos inspe-
tores itinerantes, “olhos e ouvidos do rei”. Estes percorriam anualmente as sa-
trapias para relatar os acontecimentos a Dario. A partir dos relatórios dos ins-
petores, o poder central poderia agir, depondo ou mantendo o sátrapa.
A organização das satrapias era a única maneira de manter um Império
com tamanha extensão e diversidade cultural. Dessa maneira, Dario agradava
às elites locais, mantendo-as no governo. Em casos de disfuncionalidade, os
sátrapas eram trocados por outros membros das elites locais, que mantinham
a mesma política de submissão ao “rei dos reis”.
Além da organização em satrapias, as principais ferramentas aquemênidas
para administrar o império foram:
•  O estabelecimento do aramaico como língua oficial do império;
•  A unificação do sistema monetário com o estabelecimento do dárico
como moeda;
•  O controle de um exército comandado por nobres com recrutamento nas
satrapias (o que tinha o inconveniente de tornar as forças militares heterogê-
neas e menos coesas);
•  A manutenção dos diferentes costumes de cada região conquistada, ga-
rantindo liberdade religiosa;
•  O estabelecimento de uma rede de estradas e um eficiente sistema de
mensageiros a cavalo.

LEITURA
Inscrição de Behistun
O poder de Dario ficou imortalizado em um dos mais importantes monumentos persas,
a Inscrição de Behistun, localizada numa encosta hoje no Irã. Esta inscrição (gravada em

128 • capítulo 4
três línguas e alfabetos diferentes: persa cuneiforme, babilônico e elamita) teve um papel
fundamental no estudo do Império Persa, pois foi a partir dela que H. Rawlinson decifrou, em
1838, o cuneiforme persa antigo.

©© WIKIMEDIA.ORG

Figura 4.9  –  Inscrição de Behistun.

Na figura da Inscrição, Dario aparece como terceira figura da esquerda para a direita
(maior em tamanho que os demais em representação ao seu poder), pisoteando um inimigo
e à frente de prisioneiros que representam as terras submetidas. Atrás de Dario há um sacer-
dote e um guerreiro, representando as esferas religiosa e militar. Acima uma representação
do deus Ahura Mazda.

O imperador aquemênida mantinha o governo centralizado por se apre-


sentar como representante de Ahura Mazda, divindade filha do deus criador,
que encarnava o bem. Dessa maneira, o governante era representado sempre
como o justo e responsável pela adoração de outros deuses das localidades
conquistadas.
Dario não só ordenou a construção de templos para deuses locais (como
Marduk na Mespopotâmia) como também se fez coroar como verdadeiro rei
dos reinos conquistados.
Após a morte de Dario, seu filho Xerxes buscou manter as fronteiras estabe-
lecidas pelo pai, dando prioridade à região da Lídia (na Ásia Menor), uma área
de conflito com os gregos, em razão do estabelecimento de colônias helênicas.
Isto levou ao choque inevitável de dois movimentos expansionistas: o grego e
o persa.
As colônias gregas em territórios persas buscaram a emancipação do gover-
no tributário aquemênida, dando início ao conflito. A ofensiva de Xerxes em

capítulo 4 • 129
480 a.C. sobre a Lídia deu origem a uma resistência unificada das cidades gre-
gas, sob liderança de Atenas e Esparta.
Após um início de vitórias persas (a mais famosa no desfiladeiro das
Termópilas contra os espartanos), a maré virou para o lado grego a partir da
derrota da marinha de Xerxes para a frota ateniense na Batalha de Salamina no
mesmo ano de 480 a.C.
A visão que aponta a derrota em Salamina como o motivo para a fragmen-
tação do Império Aquemênida é apenas uma distorção, em razão de uma vi-
são orientalista das fontes gregas. Na realidade, o maior problema do império
estava na fronteira oriental, que ficou desprivilegiada com a concentração de
esforços na Lídia e na Trácia.
A própria derrota para os gregos possivelmente se deve ao deslocamento de
esforços para manter as regiões aquemênidas no Oriente.
Os sucessores de Xerxes, entre eles seu filho Ataxerxes, tentaram novamente
avançar sobre o mundo grego, mas acabaram batendo de frente com a expan-
são da Macedônia.
Alexandre, o Grande, da Macedônia derrotou os aquemênidas e acabou se
fazendo coroar como rei na Pérsia. O helenismo característico desse novo im-
pério, conquistado por Alexandre, acabou por herdar algumas características
persas, como as táticas administrativas imperiais.

ATIVIDADES
01. Defina o conceito da “Hipótese Causal Hidráulica”.

02. Aponte os elementos que levaram à diferença existente entre o modelo descentralizado
de cidades-Estados na Mesopotâmia e a um reino unificado no Egito.

03. Explique o motivo para ser cuidadoso com a identificação dos conjuntos de leis mesopo-
tâmicos como os primeiros códigos jurídicos da humanidade.

04. A partir das fontes relativas à questão de gênero na Mesopotâmia (Leis de Eshnunna) e
no Egito (Papiro Deir el-Medina 27), compare a condição das mulheres nas duas sociedades.

05. Explique a relação entre os conceitos de teocracia, teofania e monarquia divina no con-
texto do Antigo Egito.

130 • capítulo 4
06. Disserte brevemente sobre os cuidados necessários ao se utilizar a Bíblia como fon-
te histórica.

07. Explique o que eram as satrapias e qual a importância delas no Império Persa Aquemênida.

REFLEXÃO
Neste capítulo vimos como as diferentes sociedades do Antigo Oriente Próximo organizavam
seus variados níveis de poder, que iam desde a monarquia até as relações de gênero. Nesse
sentido, é importante ressaltar que a centralização do poder nas mãos de uma pequena elite
encabeçada pelos monarcas dependia de mecanismos de descentramento, no qual as fra-
ções locais das classes dominantes serviam como correias de transmissão do poder central.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus Editora, 1981.
ARAÚJO, Emanuel. Escritos para a Eternidade. Brasília: Editora da UNB, 2000.
BOBBIO, Norberto. “Política”. In: BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco
(Orgs.). Dicionário de política. Brasília: Universidade de Brasília: Linha Gráfica, 1998 .
BOORN, G. The Duties of the Vizir: civil administration in the Early New Kingdom. Londres:
Kegan Paulo, 1988.
BOUZON, Emanuel. (Trad. e Org.). As Leis de Eshnunna. (1828-1787 a.C.). Petrópolis: Vozes, 1981.
CARDOSO, Ciro. Antiguidade Oriental. Política e Religião. São Paulo: Contexto, 1997a.
CARDOSO, Ciro. Narrativa, Sentido, História. Campinas: Papirus, 1997.
CARDOSO, Ciro. Sete Olhares sobre a Antiguidade. Brasília: Editora da UNB, 1998.
COHN-SHERBOK, D. Atlas of Jewish History. Londres: Routledge, 1996.
EYRE, Christopher. “Pouvoir central et locaux: problèmes historiographiques et méthodologiques”.
Mediterranée. n. 24. pp. 15-19. 2000.
FRIZZO, Fábio. Baixa Núbia como Infraestrutura para a Construção da Potência Hegemônica
Egípcia na XVIII Dinastia (1550-1323 a.C.). Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Federal
Fluminense, 2010.
FRIZZO, Fábio. Estado, Império e Exploração Econômica no Egito do Reino Novo. Tese de
Doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2016
JOÃO, Maria Thereza. Tópicos em Antiguidade Oriental.

capítulo 4 • 131
JONES, Phillip. “Divine and Non-Divine Kingship”. In: SNELL, B. (Edit.). A Companion to the Ancient
Near East. Oxford: Blackwell, 2005.
LICHTHEIM, Mirian. Ancient Egyptian Literature. Vol. II. Califórnia: Univ. of California Press, 1973.
MCDOWELL, A. Village Life in Ancient Egypt. Oxford: Oxford University Press, 1999.
PRITCHARD, J. Ancient Near Eastern Texts. Princeton, 1969.
REDE, Marcelo. A Mesopotâmia. São Paulo: Saraiva, 1997.
SILVERMAN, David. “Humano ou Divino”. In: SILVERMAN, D. (Org.). El Antiguo Egipto. Historia,
religión, arte, ciencia y mitologia. Uma recreación del mundo de los faraones. Barcelona: Blume,
2004.
WOOD, Ellen. Democracia contra Capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2003.

GABARITO
Capítulo 1

01. Deve-se destacar a escassez de fontes em relação ao estudo de outros períodos histó-
ricos posteriores e suas consequências, entre as quais é importante a ênfase no diálogo com
outras disciplinas e a utilização de modelos teóricos.
02. A resposta deve conter essencialmente a crítica ao eurocentrismo pelo qual a História é
recortada cronológica e geograficamente a partir da experiência europeia. Isto faz com que
a Antiguidade Oriental seja um conceito definido com limites que lhe são externos, como
as fronteiras cronológicas referentes ao Império Romano ou a área geográfica de interesse
constituída a partir de uma lógica orientalista que opõem o passado da Grécia e Roma anti-
gas a todas as demais civilizações, sejam africanas ou asiáticas.
03. A resposta deve ressaltar a complementaridade entre as duas disciplinas para a com-
preensão do passado, em especial no que se refere à Antiguidade Oriental. Deve-se lembrar
que a relação entre fontes escritas e materiais depende fundamentalmente das questões a
serem respondidas, sendo cada um dos tipos de testemunhos mais relevante para a resposta
de um ou outro questionamento.

Capítulo 2

01. A solução da questão deve girar em torno do longo processo de invenção da agricultura,
demonstrando a ação humana de seleção artificial dos melhores espécimes para a repro-
dução, tanto animal quanto vegetal. A partir da produção agrícola foi possível um aumento

132 • capítulo 4
demográfico considerável, em razão da maior produtividade. Cabe ressaltar a crítica à pers-
pectiva linear de que a sedentarização é um progresso em relação à forma de organização
caçadora-coletora, demonstrando que o desenvolvimento da agricultura é o resultado da
sedentarização, e não o contrário.
02. O núcleo da resposta é o processo de Revolução Urbana e ela deve conter a discussão
dos seguintes elementos: aumento da divisão social do trabalho; hierarquização da socieda-
de em classes; exploração do excedente da classe produtora em forma de tributo; surgimen-
to da estrutura estatal.

Capítulo 3

01. A resposta deve incluir a exposição dos debates entre uma posição formalista do que é
economia, baseada na disputa por recursos escassos, e outra, estruturada a partir da Econo-
mia Política, que entente o campo econômico como aquele referente às diferentes formas da
produção, distribuição e consumo do trabalho humano.
02. A resposta deve contemplar o debate entre Modernistas, por um lado, e Primitivistas,
Substantivistas e Marxistas, por outro. No primeiro campo, as principais características são
definidas pelo entendimento de que as economias antigas funcionavam sobre os princípios
naturais e, portanto, a-históricos do mercado como regulador econômico. Na contramão
dessa perspectiva estiveram: a) primitivistas, que defenderam a ideia de que a Antiguidade
era marcada pelo baixo desenvolvimento das estruturas econômicas, mais próximas de uma
economia natural; b) substantivistas, que, a partir do trabalho de K. Polanyi, indicaram que,
nas sociedades antigas, a economia estava enraizada em outras esferas da vida social e, por-
tanto, o mercado não existia como força reguladora; c) marxistas, que indicaram a diferença
marcante entre sociedades pré-capitalistas e capitalistas no que diz respeito à economia, já
que as primeiras eram marcadas pela não separação da esfera do econômico e pelo uso de
formas extraeconômicas de extração do sobretrabalho, enquanto no capitalismo a explora-
ção da força de trabalho se dá por meio de mecanismos estritamente econômicos.
03. A resposta deve localizar o “Crescente Fértil” como região que se estende dos vales dos
Rios Tigre e Eufrates ao vale do Nilo, incluindo as áreas da Síria-Palestina. Embora conte
com razoáveis diferenças naturais e econômicas no nível regional, pode-se destacar como
características gerais do “Crescente Fértil” a agricultura de enchente, marcada pelo ciclo da
cheia dos diferentes rios e pela fertilização de seus vales.
04. A resposta deve conter as principais características atribuídas por Marx e Engels às
economias das “sociedades orientais”, bem como indicar a evolução do conceito de Modo de

capítulo 4 • 133
Produção Asiático no século XX a partir do trabalho de autores como M. Godelier, M. Liverani
e C. Zaccagnini.
05. A resposta deve concentrar-se na explicação do ciclo agrícola e do trabalho do campe-
sinato da Mesopotâmia no controle das cheias irregulares.
06. Embora existam diferenças entre os papéis dos templos e palácios na Mesopotâmia
e no Egito (ou mesmo dentro de uma destas civilizações no decorrer de seus milênios de
história), a resposta deve demonstrar as estruturas templárias e palaciais como grandes
potências econômicas que geriam enormes propriedades, grande oficinas artesanais e, em
determinados períodos, tinham papel hegemônico no controle do comércio. Além disso, é
importante ressaltar o papel dessas estruturas como representantes do Estado e, portanto,
polos de exploração do trabalho e retirada de excedente na forma de tributos pagos tanto
em gênero quanto em trabalho.
07. A resposta deve destacar que o sistema de pagamento egípcio era baseado no conceito
de rações, distribuídas aos trabalhadores em diferentes momentos e situações. A trocas
registradas na fonte da vila de Deir el-Medina mostram que parte dessas rações era utilizada
em trocas privadas que se concretizavam por meio do escambo, mas usando pesos metálicos
como padrão de equivalência.
08. A resposta deve indicar que os dois níveis são as comunidades aldeãs camponesas e as
instituições templárias e palaciais. As primeiras são marcadas pela produção autossuficiente
que reunia agricultura e artesanato, além da manutenção do caráter comunitário por meio de
diferentes mecanismos. Já os templos e palácios eram responsáveis por grandes explora-
ções agrícolas e artesanais, funcionando sobre a extração de tributos em gênero e trabalho
e com a utilização de forças de trabalho compulsório.
09. Esta é uma resposta complexa e deve envolver inúmeros elementos. Primeiro, ela deve
invariavelmente contar com uma análise dos documentos apresentados, como os registros
de compras de escravo, o decreto de misharum e o decreto egípcio de liberação da corveia.
Em segundo lugar, deve-se notar que a dicotomia entre trabalho livre e trabalho escravizado
é algo complexo nessas sociedades, porque ambas contam com outras formas de trabalho
compulsório que não a escravidão (em especial a corveia real e a dependência por dívidas).
Por fim, é necessário destacar que, apesar do emprego e da compra e venda de força de tra-
balho escravizada, isto não significa que trabalhadores e trabalhadoras escravizados fossem
parte essencial das estruturas produtivas da Mesopotâmia e do Egito Antigo.
10. Primeiro e mais importante, a resposta deve destacar que a economia fenícia é marcada
por uma hegemonia das estruturas urbanas sobre a área rural. Ou seja, uma forte concen-
tração da economia nas atividades de artesanato e comércio. Em segundo lugar, é impor-
tante mencionar o processo de colonização executado pelos fenícios em toda a costa do
Mar Mediterrâneo.

134 • capítulo 4
Capítulo 4

01. Deve-se responder que tal conceito, hoje negado, afirma que o Estado teria surgido no
Antigo Oriente pela necessidade de executar obras coletivas relacionadas às cheias dos rios.
02. Ciro Cardoso apontou quatro elementos como determinantes para essa diferença: a) o
pioneirismo urbano da Mesopotâmia, sendo a urbanização egípcia uma forma secundária; b)
a convivência, na Mesopotâmia, do poder dos templos e palácios com aquele dos conselhos
e assembleias; c) o momento de surgimento dos templos como instituições estatais, que na
Mesopotâmia aconteceu após a consolidação dos conselhos e assembleias, enquanto no
Egito foi mais recente; d) a autoconsciência étnica, que surgiu na Mesopotâmia num con-
texto de independência política entre as cidades-Estados, enquanto no Egito esteve ligado
à unificação do reino.
03. Deve-se ressaltar a diferença entre a nossa forma de entender códigos jurídicos e as
características das leis mesopotâmicas, ressaltando que, na Mesopotâmia, as leis eram mais
concretas porque os “códigos” eram conjuntos de decisões da justiça real, inscritas para se-
rem repetidas pelos funcionários em suas ações cotidianas de aplicação da justiça.
04. Embora ambas fossem sociedades patriarcais, é possível perceber que as mulheres
tinham maior autonomia no Egito, que tinha personalidade jurídica própria, por exemplo. No
caso específico das fontes, percebe-se como o adultério feminino era penalizado com a mor-
te na Mesopotâmia, enquanto no Egito mostra-se o castigo do homem envolvido na relação
extraconjugal, sendo a traição apenas motivo para um divórcio no qual a esposa infiel não
levaria todas as propriedades que lhe caberiam.
05. O faraó era visto como herdeiro dos deuses e uma divindade encarnada, sendo, por isso,
o principal responsável pela manutenção de Maat, a deusa conceito da ordem. Podemos,
portanto, falar de uma monarquia divina, porque o rei é um deus; de teocracia, porque é um
governo no qual a religião tem papel fundamental na manutenção e justificação do poder;
e em teofania, pois as aparições reais eram como aparições divinas, bem como aquelas das
próprias estátuas divinas em suas procissões públicas.
06. Deve-se ressaltar que a fixação dos livros bíblicos foi tardia, concretizando-se apenas
nos séculos IX e X d.C.. Desta maneira, os historiadores devem ter o cuidado de proceder
com o cruzamento de outras fontes do período da Antiga Israel, como a estela egípcia de
Merenptah. Além disso, cabe também afirmar o importante contato com a Arqueologia.
07. As satrapias eram regiões administrativas do enorme império persa e foram fundamen-
tais para garantir a manutenção do poder central do “rei dos reis” sobre seus vassalos.

capítulo 4 • 135
ANOTAÇÕES

136 • capítulo 4

Você também pode gostar