Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
php/signo
ISSN on-line: 0104-6578
Doi: 10.17058/signo.v46i87.16523.
Recebido em 29 de Abril de 2021 Aceito em: 25 de gosto de 2021 Autor para contato: md.castrodasilva@gmail.com
Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p.45-51 Set./dez. 2021.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
Tradução literária: o que tentamos traduzir? 47
exatamente na fisicalidade do texto, mas emerge do sentidos não podem ser simplesmente desligados,
conjunto da obra e, especialmente, do contato do leitor somos expostos continuamente, ininterruptamente, aos
com ela. mais diversos estímulos. A esmagadora maioria destas
Umberto Eco traz uma reflexão semelhante ao relações com o meio, entretanto, é de tal forma
estabelecer que na arte – por conseguinte, também na corriqueira que sequer tomamos consciência delas.
literatura – as obras seriam abertas, ou seja, passíveis Mas, eventualmente, acontece: alguma peculiaridade
“de mil interpretações diferentes, sem que isso redunde faz com que o percurso entre provocação e percepção
em alteração em sua irreproduzível singularidade. se torne completo, o estímulo “torna-se um todo e
Cada fruição é, assim, uma interpretação e uma carrega em si seu caráter individualizador e sua
execução” (ECO, 2005, p. 40), e a obra se refaz a cada autossuficiência”, ou seja, aquilo “torna-se uma
nova visitação de um leitor. Em contrapartida, uma obra experiência, digna de ser assim chamada” (Dewey,
ou texto fechado possui seu significado limitado a si 2010, p. 110). Se foi um evento de grande importância,
mesmo, como no dito manual técnico ou, talvez, uma como ser agraciado com um prêmio, ou impactante
placa de trânsito. Claro, ainda existe a necessidade de emocionalmente como uma briga, o fato é que, em
um receptor para decodificar aquela mensagem e maior ou menor grau, esses momentos criam uma
completar o processo de comunicação, mas o papel marcação específica no curso geral da experiência do
deste receptor, em um texto fechado, seria apenas de indivíduo. Agora, talvez a característica mais
receber aquela mensagem e compreender sua importante de qualquer experiência que possamos
dimensão factual e de registro. Já nas obras abertas, o vivenciar seja exatamente o detalhe de que apenas
receptor tem a tarefa de executar uma atividade de nós, em nossa individualidade, podemos conhecê-la.
interpretação de um contexto implícito, como será De fato, nada é mais pessoal e intransferível do que a
discutido mais à frente. É como se na obra literária – e experiência pessoal com o mundo, que nos chega
na arte como um todo – a linguagem exigisse a através das entradas biologicamente implantadas em
aplicação do que Paul Grice (1975) denominou nossos corpos: os sentidos. Podemos e usamos as
princípio de cooperação, ou seja, é preciso que obra e diferentes linguagens para tentar descrever o que
leitor entrem num trabalho conjunto para que os sentimos e pensamos uns aos outros, mas a
significados carregados no texto possam emergir. Grice experiência em si é única para cada um.
discute os aspectos da comunicação direta, da Se a literatura pode marcar-nos a vida,
conversação, e aponta que neste processo ambas as tornando-se uma experiência, e estas são
partes precisam contribuir de forma complementar para intrinsecamente pessoais, quem poderia avaliar ou
que este se efetue. Pode-se dizer que a literatura exige definir a qualidade de uma obra, quem poderia absorver
uma conversação assíncrona entre escritor e leitor. o significado carregado no texto, a não ser o receptor?
Quando Ezra Pound aponta que uma grande Certamente a vasta literatura mundial foi elegendo seus
obra pode ser revisitada sem sofrer um esgotamento, favoritos com base em critérios às vezes técnicos, às
entende-se que existem, a cada fruição, novas vezes sociais ou mesmo políticos. Existem aquelas
contribuições a essa conversação assíncrona que obras que se tornam referência por tratarem deste ou
podem surgir tanto da parte do autor como do receptor. daquele assunto, mas também existem aquelas que
Assim, para o pensador, uma das formas de avaliar a poderiam ser consideradas triviais e, ainda assim,
literatura, ou pelo menos uma das consequências da chegam a uma penetração vultosa no gosto do público
boa literatura, seria sua duração e seu impacto ou geral.
influência no leitor. Ela se torna duradoura e cria uma As razões para o fenômeno são diversas, mas
memória especial relacionada à vivência que o receptor não são o assunto deste texto. O que por hora
teve com a obra. Torna-se uma experiência singular, precisamos tirar destes fatos é a certeza de que toda a
como nos diz John Dewey (2010). Uma vez que nossos linguagem escrita que de alguma forma teve grande
Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p.45-51, set./dez. 2021.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
48 da Silva, Marco
aceitação ou se tornou um clássico, e que vieram a ser humana – e grande – de tamanho avantajado – surgem
representativas da própria identidade artística humana, para dar o sentido a frase e caracterizar o sujeito
são obras literárias e, portanto, são, em maior ou menor “fulano” através da concatenação dos conceitos: um
grau, carregadas de significado. O manual de indivíduo da espécie humana + tamanho avantajado.
instruções da sua TV sequer surge cogitado para Quando buscamos o segundo grau de informação
figurar numa lista dessa natureza. A literatura, a palavra sugerido por Bense, a informação semântica, temos
escrita enquanto arte, enquanto expressão da que ir além do sentido isolado das ideias de homem e
subjetividade humana tem um poder transformador grande. Existe, portanto algo a ser absorvido desta
sobre esse mesmo homem, oferecendo a cada receptor sentença que está numa dimensão além do sintagma,
uma experiência pessoal única. que pode ser manipulado ou precisa ser inferido a partir
É exatamente esta percepção que nos leva ao de uma interpretação do contexto, e uma forma de
título deste artigo. Em se tratando da literatura, demonstrar isso seria simplesmente invertendo a
portanto, o que estamos tentando traduzir? Se paramos ordem dos termos. Assim, se em vez de um homem
na fisicalidade do texto, estabelecendo um comparativo grande, escrevermos um grande homem,
palavra por palavra ou frase a frase, parece imediatamente torna-se visível uma relação totalmente
perfeitamente possível buscar os signos nova entre eles.
correspondentes de uma língua para outra. A história Na língua portuguesa, ao dizermos um homem
da tradução geral mostra que mesmo as mais grande, a imagem que surgiria imediatamente seria um
complexas diferenças culturais podem ser aos poucos indivíduo de grande estatura ou possivelmente gordo.
vencidas. Tomando uma expressão como “o menino Mas a inversão um grande homem em nosso idioma
subiu na árvore”, ainda que entre dois idiomas não sugere uma relação de valoração das qualidades
existam vocábulos de correspondência exata, ainda pessoais ou morais desse indivíduo. De fato, os
assim, dentro de duas culturas humanas certamente escritores em língua portuguesa frequentemente
haverá os conceitos de menino (homem jovem), de brincam com a variação de efeitos semânticos que a
subir (ir acima) ou de árvore (espécime vegetal). simples reposição do adjetivo permite, pois “antes do
Mas, se esse componente que faz a literatura substantivo ele assume muitas vezes um sentido
está além do texto enquanto código-registro, encontrar figurado ou confere um matiz poético” (RONÁI, 1987, p.
uma correspondência de vocábulos ou conceitos seria 22). Os conceitos presentes são os mesmos. A mera
o suficiente para que a obra traduzida tenha a mesma mudança de ordem gera novos sentidos semânticos, o
capacidade de fazer emergir o diferencial percebido no que, para o tradutor, é de vital importância pois esta
dito original? Pois se este aspecto não puder ser dimensão já é fortemente ligada aos aspectos
reproduzido no texto-alvo, dificilmente poderíamos gramaticais e culturais do idioma e do ambiente social.
considerar que a tradução foi um sucesso. O que existe Se buscarmos apenas correlacionar os vocábulos
no texto literário que buscamos traduzir? correspondentes nesta frase na língua inglesa, por
No artigo Da Tradução como Criação e como exemplo, não podemos assumir o mesmo efeito. Aliás,
Crítica, Haroldo de Campos discute as ideias do a formulação a man big, a princípio, seria considerada
alemão Max Bense quanto aos diferentes tipos de incorreta, pois a gramática deste idioma estabelece a
informação contidas no texto literário. De acordo com o posição do adjetivo antecedendo o substantivo como
teórico, seriam três: documentária, semântica e regra, o que não acontece no português. A expressão
estética. A primeira, a documentária, se encontra na gramaticalmente correta, ou seja, a big man, até
esfera do mero factual, ou seja, documenta algo poderia se utilizar do restante do texto para transmitir
observável, seria uma sentença-registro. Tomando uma ou outra ideia, mas se o tradutor concluiu que um
como exemplo a sentença “fulano é um homem grande homem se refere de fato às qualidades morais
grande”, as ideias de homem – indivíduo da espécie do indivíduo, provavelmente seria uma boa ideia buscar
Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p.45-51 Set./dez. 2021.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
Tradução literária: o que tentamos traduzir? 49
alternativas. Uma possibilidade seria o adjetivo great, na mente de qualquer um que reflita sobre a atividade
na formulação a great man. tradutória. Os tradutores percebem que tem nas mãos
Para um manual técnico a simples um poder não apenas criador, mas manipulador e
equivalência de sentido entre os vocábulos se mostra possivelmente destruidor. A verdade é que todo
suficiente, pois como obra fechada, seu significado não profissional da área já precisou debater-se com a
exige a contribuição do receptor. A compreensão de “tentação diabólica de fazermos a tradução superior ao
uma série de ações ordenadas, numa perspectiva original” (SILVEIRA apud RONÁI, 1987, p. 39). A
descritiva, que permita ao leitor refazer os passos equivalência é a meta a ser alcançada. Mas sempre é
enumerados de forma objetiva é o que visa o texto bom lembrar que estamos discutindo expressões da
técnico, como uma receita de bolo, sendo, portanto, subjetividade humana, e por isso o que lhe seria
essencialmente denotativo. Porém mais uma vez fica equivalente também está sujeito à subjetividade. Não
patente as especificidades da tradução literária, pois os por acaso tornou-se emblemático o movimento francês
objetivos do autor são subjetivos, denotação e de tradutores conhecido como Les Belles Infidèles, que
conotação vêm e vão sem aviso ou sem esclarecimento perdurou entre os séculos XVII e XVIII, onde a ideia de
e ainda, lembrando Pound, em diferentes gradações equivalência entre original e tradução tinha aspectos
que podem ou não serem captadas pelo leitor/tradutor bem diferentes do que se entende hoje em dia.
a cada fruição, visto que sua percepção do texto é uma Por direcionar-se exatamente ao texto
apreensão pessoal e única. literário, os tradutores franceses da época tinham
Daí a extrema importância, para o tradutor, do como aspecto mais importante da relação leitor-obra a
conhecimento aprofundado não apenas do idioma experiência emocional proporcionada. Ou seja, “a
originário, para que se possa captar as nuances mais tradução tinha de proporcionar ao leitor a impressão
tênues, como também do perfeito manejo do idioma semelhante à que o original teria suscitado” (MILTON,
alvo, para que se possa encontrar maneiras de recriar 1998, p. 57). Com esse objetivo, não apenas deixavam
os aspectos subjetivos. Sem essa dimensão, a obra em segundo plano a fidelidade ao escrito, como alguns
traduzida estaria certamente incompleta. Se o tradutor deles não tinham qualquer pudor em fazer cortes ou
acalenta qualquer esperança de ser bem-sucedido na mesmo acréscimos que julgassem necessários para
transmissão de conteúdo do texto entre idiomas, jamais garantir essa “impressão” semelhante. Considera-se
poderia descuidar-se disto. Por isso retorna a pergunta: que a atividade tradutória sempre parte, em princípio,
em tradução literária, o que estamos tentando traduzir? de duas macro possiblidades em se tratando da
Se a obra literária não se confina aos limites do que condução do trabalho: a primeira seria manter o foco
está escrito, é preciso traduzir mais do que as palavras no texto, na preocupação com a equivalência textual,
ali dispostas. Roman Jakobson (2007) sugere que: buscando uma tradução palavra por palavra ou
ao traduzir de uma língua para outra, metáfrase, que já demonstramos ser insuficiente e
substituem-se mensagens em uma das
línguas, não por unidades de código mesmo inadequada para o texto literário; a segunda
separadas, mas por mensagens inteiras de
seria inverter o foco para o leitor, buscando trabalhar a
outra língua. Tal tradução é uma forma de
discurso indireto: o tradutor recodifica e partir da experiência que o texto traduzido deve
transmite uma mensagem recebida de outra
fonte. Assim, a tradução envolve duas proporcionar, utilizando de paráfrases ou substituições
mensagens equivalentes em dois códigos
para garantir uma leitura fluida e afeita ao leitor,
diferentes (JAKOBSON, 1976, p. 65).
minimizando os efeitos da mudança de contexto
Ou seja, diante da obra literária, para garantir
sociocultural. De certa forma, o movimento francês ia
na tradução a fidelidade à obra, a metáfrase não é
ao oposto extremo da metáfrase, ultrapassando
suficiente, pois a correspondência de sentido dos
mesmo a paráfrase.
vocábulos nem sempre é igual a correspondência
Após este pequeno desvio, que logo ficará
semântica das frases: o tradutor precisa ser infiel ao
mais claro, podemos retornar a Max Bense e à terceira
texto escrito. Neste momento, a questão ética explode
Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p.45-51, set./dez. 2021.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
50 da Silva, Marco
Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p.45-51 Set./dez. 2021.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
Tradução literária: o que tentamos traduzir? 51
Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 46, n. 87, p.45-51, set./dez. 2021.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo