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I Simpósio Internacional de Lexicografia e Linguística Contrastiva

A TRADUÇÃO PORTUGUÊS-LIBRAS FACE AO


FENÔMENO DA AMBIGUIDADE LEXICAL

Jorge Bidarra22
Tania Aparecida Martins23
Keli Adriana Vidarenko da Rosa24

RESUMO
Para Steiner (2005), a existência de milhares de línguas diferentes
“mutuamente incompreensíveis” em nosso planeta põe às claras e desafia a
interminável e difícil tarefa que envolve a tradução interlíngua. Embora seja
uma prática antiga, ainda persistem muitas dúvidas e impasses sobre os
mecanismos e as formas de tratamento que precisam ser adotadas pelos
tradutores. Dentre as muitas complexidades presentes nesse trabalho, uma
delas nos chama mais a atenção: a ambiguidade lexical. Num segundo
plano, mas não menos importante e como não poderia deixar de ser, surge
em nossa pesquisa a questão da equivalência. Esse artigo tem como objetivo
principal discutir a ambiguidade lexical, bem como o problema da
equivalência, no contexto Português-Libras, as dificuldades e os impasses
impostos sobre o processo tradutório. Mais especificamente, abordamos
aqui o comportamento de signos lexicalmente ambíguos em Libras numa
situação particular em que o contexto não se mostra suficiente para a
desambiguação. Para ilustrar, vale citar o caso das palavras “julgamento,
julgar e juiz” que em Libras são representadas por um mesmo signo. À
primeira vista, pode-se dizer que os marcadores, tais como a alteração de
movimento das mãos ou de expressões não manuais, seriam recursos
suficientes para desambiguar. Todavia, não apenas para esse caso, mas para
muitos outros que ao longo do trabalho teremos a oportunidade de
explicitar, o que se pode observar é que, embora útil, eles não são capazes
de resolver o problema. Partindo-se desse ponto, com base num
levantamento prévio, que inclui consultas a dicionários impressos e online,
bem como pesquisas realizadas junto à literatura especializada, já nos foi
possível não apenas identificar um conjunto significativo de signos em
Libras com comportamentos semelhantes aos das palavras acima citadas,
como também mapeá-las. No momento, estamos em fase de análise e
discussão do material já coletado. Para permitir uma análise mais acurada,
trabalhamos sobre textos extraídos de jornais, revistas e livros didáticos.

22
Doutor; Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
23
Aluna de Mestrado; Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
24
Aluna de Mestrado; Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
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Para o estudo, além de Steiner, dentre outros, dão suporte a esse trabalho
Jakobson (2007), Cruse (1986), Quadros (2004), Arrojo (1986) e Kahmann
(2011).

Introdução
De acordo com Souza (1998), a falta de uma teoria unificada da
tradução dificulta uma definição universalmente aceita para o termo. Assim
que, segundo ele, por tradução podemos entender várias coisas, o que a
torna, ela mesma, uma palavra polissêmica. Para o autor, a tradução ora
pode se referir a um produto,ou o texto traduzido; a um processo,ou o ato
tradutório;a um ofício,ou a atividade de traduzir e ainda a um estudo
interdisciplinar. Se fosse somente por esse aspecto, discutir os meandros da
tradução já seria suficiente para o levantamento de uma quantidade
significativa de questões para serem resolvidas. Contudo, como o nosso
objetivo nesse artigo não é discutir a polissemia da palavra e seus efeitos,
deixaremos de lado o debate, assumindo como conceito básico de tradução
o trabalho que consiste em produzir numa língua de chegada uma
mensagem equivalente ou mais próxima, em termos de significado, da
informação contida na língua de partida.
No que diz respeito à tradução, Jakobson (1992) considera que o
processo se enquadra em três tipos, a saber: intralingual, interlingual ou
intersemiótica. A tradução intralingual, de acordo com o autor, é aquela que
acontece dentro de uma mesma língua em que determinados signos verbais
são substituídos por outros equivalentes. É um processo que envolve o texto
de partida, o leitor-textualizador e o texto de chegada. Com frequência, os
falantes de uma língua se utilizam deste tipo de tradução de forma
automática e, não raro, sem a devida consciência sobre o grau de
complexidade formal envolvido nesse trabalho. Diz-se da tradução
interlingual o processo tradutório que envolve duas (ou mais) línguas
diferentes, em que os signos linguísticos da língua de partida são
substituídos por signos, na medida do possível, equivalentes da língua de
chegada. Para realizar esse trabalho, há a figura do tradutor que, nesse caso,
atua, simultaneamente, como leitor e intérprete. A tradução intersemiótica,
também denominada transmutação, diferentemente dos tipos antecedentes,
consiste na interpretação de um determinado sistema de signos linguísticos
para outro sistema distinto constituído por signos não linguísticos ou não
verbais (Jakobson, 1992, p. 65). Esse tipo de tradução é aplicado mais
frequentemente em obras de ficção, muito usada na linguagem adotada pelo
cinema, na produção de vídeos e histórias em quadrinhos. Mas também se
aplica quando do processo tomam parte duas línguas de modalidades

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diferentes, como é aqui o caso do Português, uma língua oral auditiva, e


Libras, uma língua de modalidade visual espacial.
Traduzir, ao contrário do que à primeira vista possa parecer, não é
uma atividade trivial, mas de altíssima complexidade. Sabe-se que uma
tradução para ser bem sucedida vai requerer do tradutor a consideração de
diferentes níveis de processamento linguístico, dos quais jamais poderá
abrir mão em seu trabalho. Apesar de ser essa uma verdade, para os
objetivos que traçamos em nossas pesquisas, vamos nos distanciar um
pouco de todas as análises envolvidas nesse processo, para colocar o nosso
foco num fenômeno bastante específico e altamente intrigante que acontece
ao nível do processamento lexical. Mais exatamente, interessa-nos discutir
aqui os desafios e os impasses que a ambiguidade lexical em Libras tende
impor não só para o tradutor/intérprete, mas também para o próprio surdo,
notadamente face à tradução da qual tomam parte textos e falas produzidas
em Português para Libras.Com o estudo, pretendemos mostrar que embora
seja ainda um assunto pouco explorado a ambiguidade presente em
determinados signos de Libras trazem mais problemas de compreensão do
que poderíamos suspeitar.

1 Os signos ambíguos em Libras em situação de tradução/interpretação


A tradução, como já mencionado antes, não é uma tarefa simples,
pois não se trata apenas de transferir o conteúdo de uma língua para outra
por meio de palavras e/ou expressões, até porque nesse tipo de trabalho não
há qualquer garantia de que na língua de chegada existam palavras ou
signos (para simplificar, daqui por diante, a esse conjunto vamos nos referir
apenas como termos) equivalentes que possam cobrir os
significados/sentidos contidos nos termos oriundos da língua de partida.
Para um bom trabalho de tradução, o profissional precisa ter a seu dispor
não somente um vasto conhecimento linguístico e dos vocabulários
envolvidos nas duas línguas, bem como da cultura dos povos que as falam.
Ainda assim, mesmo com uma gama de conhecimento considerável e tendo
em mãos estratégias para que os seus objetivos sejam alcançados, muitas
vezes algumas dificuldades surgem, obrigando o tradutor a buscar meios
que lhe permitam ultrapassar os obstáculos que encontra no meio do
caminho. A ambiguidade lexical é um desses problemas.
São muitas as controvérsias no entorno da ambiguidade lexical.
Apesar de atualmente os estudiosos das línguas considerarem que esse é um
fenômeno essencial e ao mesmo tempo complexo a serviço da comunicação
humana, o seu uso no passado não era aceito ou bem visto, especialmente,
pelos filósofos. Aristóteles, por exemplo, via a ambiguidade lexical como
uma espécie de manobra utilizada pelos sofistas, cujo intuito seria o de

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desorientar os seus ouvintes. Durante muito tempo, as palavras de


significado ambíguo foram discutidas pelos filósofos como um defeito da
linguagem e como um obstáculo significativo não apenas para a
comunicação, mas também para um pensamento claro. Com o passar do
tempo e já superada essa visão, muito embora os falantes lidem com a sua
ocorrência nas línguas aparentemente sem dificuldades,o fenômeno é, ainda
hoje, um problema de difícil solução para estudiosos das línguas.
Em termos teóricos, a ambiguidade lexical se define como a
capacidade que certas palavras têm de suportar mais de um significado25 ou
sentido26, estejam eles relacionados entre si semanticamente ou não (Lyons,
1963, 1987; Ullmann, 1964; Silva, 2006; Biderman, 2001; Ilari, 1990;
Rehfeldt, 1980;Cruse, 1986; Mattoso Câmara, 1986, 1995). Nas línguas, a
ambiguidade lexical se manifesta de duas maneiras, por homonímia, tipo de
ambiguidade que acontece quando os significados de mesma palavra não
têm qualquer relação semântica entre si; ou polissemia,quando os possíveis
sentidos admitidos pela palavra estabelecem entre si uma mútua relação
semântica.
Assim como nas línguas orais, as línguas de sinais também se
submetem, por assim dizer, aos caprichos e, em alguns casos, às vicissitudes
das ambiguidades lexicais. Contudo, o modo como nelas se manifestam
tornam a investigação do caso um tanto quanto mais complexa, quando
comparada às línguas orais. Para começar, embora a ambiguidade lexical
seja um fenômeno reconhecido em Libras, não são poucos os pesquisadores
que consideram que, devido ao funcionamento da língua,os seus efeitos
podem ser minimizados via o uso de classificadores, marcações não
manuais e organização dos fatos no espaço de enunciação.Todavia, o
levantamento lexical que nós estamos realizando em nossas pesquisas,a
partir de consultas a dicionários e contextos diversos,nos tem apontado para
situações em que esses recursos não são se mostram, de fato, suficientes,
abrindo assim um espaço muito interessante e justificado para a presente
pesquisa.

25
Embora muitas vezes as palavras significado e sentido sejam tratadas como
sinônimos, Lyons (1963) estabelece uma diferença, e que adotamos neste trabalho.
Para Lyons (1963, p. 102), significado é muito mais que o “conteúdo” da palavra,
ele é independente da sinonímia, é concebido como um “conjunto de relações
(paradigmáticas) que a unidade em questão estabelece com outras unidades da
língua (no contexto ou contextos em que ocorre), sem que se faça qualquer
tentativa para estabelecer conteúdos para essa unidade”.
26
O sentido é o modo de apresentação através do qual uma expressão indica sua
referência, o modo como uma expressão apresenta a entidade que ela nomeia.
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Cabe mencionar, entretanto, que não é nova essa discussão sobre


ambiguidade lexical em Libras. Na verdade, o fenômeno já vem sendo
estudado há algum tempo, tendo como um de seus primeiros registros, no
Brasil,os trabalhos desenvolvidos por Ferreira Brito (1995). Para discutir a
sua ocorrência em Libras, a autora desenvolve, por exemplo, um debate
sobre ouso de co-referencial27 de classificadores. Para ilustrar, a autora se
vale da narração em Libras da “piada da carona”, que abaixo reproduzimos,
em português.

O narrador conta que o ouvinte que deu carona ao


surdo estava quase dormindo ao volante. Nesse
momento, devido à situação contextual (quem dirige,
no Brasil, deve estar do lado esquerdo), o surdo
estava localizado à direita. Olha para sua esquerda e
pergunta se o ouvinte quer que ele dirija. O ouvinte
aceita e então os dois trocam de lugar. (FERREIRA
BRITO, 1995, p. 120).

Para traduzir a troca de lugares entre o motorista e o surdo evitando


uma possível ambiguidade de co-referência, a autora menciona que a
maneira mais comumente utilizada seria com os seguintes recursos de
marcação:

CL: V (ouvinte, esq.) + CL: V (surdo, dir.) (= os dois trocam de lugar)


cruzamento dos braços:
Ferreira Brito ao entender que o uso de classificadores e
marcadores resolvem a situação que se coloca, vai dizer:

Talvez, por ser uma língua espaço-visual, a LIBRAS


dificilmente apresenta ambiguidade de co-referência.
O uso do espaço é sistemático e orações como as
apresentadas mostram claramente seu co-referente,
esteja o referente presente no ato da enunciação ou
não. (FERREIRA BRITO, 1995, p. 121).
Seguindo nessa mesma linha de raciocínio, a autora, quando se
referindo aos dêiticos28, vai dizer ainda que esse tipo de ocorrência

27
A co-referência em Libras pode ser realizada pelo uso de pronomes pessoais,
demonstrativos e possessivos, como nas línguas orais, mas também através do uso
do termo comparativo, da mudança de posição do corpo, do uso de classificadores
e também do olhar (FERREIRA-BRITO, 1995, p. 120-122).
28
A dêixis é uma característica das línguas de sinais.Em Libras, os dêiticos são
usados com frequência para referirem e correferirem; esclarece que a
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dificilmente acarretaria ambiguidade (Ferreira Brito 1995, p. 121). No


entanto, com relação ao assunto o que poderia ocorrer, seria uma
ambiguidade provocada com o uso de certos sintagmas nominais. Os
exemplos que usa para ilustrar a situação são ‘desgraçado’, ‘safado’ e outros
do gênero, os quais são signos que não apresentam ambiguidade lexical,
mas por serem realizados deslocados dos referentes marcados no espaço, a
ambiguidade surge. Isso não ocorre apenas em Libras, mas também se
verifica em Português, como mostrado no extrato abaixo reproduzido:

PAULO3iBATER3j JOÃO MAS SAFADO3i ou 3j? NÃO FICAR


FELIZ
(=Pauloibateu em Joãoj, mas o safadoi ou j(?) não ficou feliz).

Para esse caso, a autora (1995, p. 121) conclui que há problemas de


co-referência tanto em Português quanto em Libras. Mas, afirma que,
“devido ao uso do espaço multidimensional, a Libras apresenta menos caso
de ambiguidade do que o português”. Sobre os co-referentes, vale ressaltar
que, de acordo com Cançado (2012, p. 79) esse é um tipo de ambiguidade
que não tem sua origem nem nos itens lexicais, tampouco na organização
sintática da sentença e nem no seu escopo”. Ela pode ser gerada pelos
pronomes em relação aos seus antecedentes.
Bernardino (2000) compartilha das mesmas observações de
Ferreira Brito, ao analisar enunciados em Libras que envolva mais de uma
pessoa. Para a autora, “o uso dos pronomes permite a co-referência explícita
e reduz a possibilidade de ambiguidade, o que pode ser visto também em
Libras” (Bernardino, 2000, p. 126).
Quando se trata de investigar a ocorrência da ambiguidade lexical
em Libras, verifica-se que as pesquisas se relacionam ao enunciado e não
especificamente às questões de natureza lexical. Assim, para retomar o
debate, com base nas pesquisas feitas através dos dicionários on line
LIBRAS dicionário da Língua Brasileira de Sinais (versão 2.1-2008),
DEIT- LIBRAS (2012) e livros ilustrados da Libras, organizamos para esse
momento um quadro (quadro 1),a partir do qual buscaremos discutir o
fenômeno, por um viés diferenciado.

correferência recobre termos que tradicionalmente eram chamados de anáfora e


catáfora, em que a primeira tem como seu correferente um termo antecedente
cujo referente é igual ao seu e a segunda tem como correferente um termo que
apenas é introduzido no contexto linguístico após sua menção e cujo referente é o
mesmo (BROCHADO, 2011, p. 4.077).

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QUADRO 01
SINAIS / Em Libras estes sinais podem TIPIFICAÇÃO DA
PALAVRAS EM se referir: AMBIGUIDADE
LIBRAS
BANCO (Estabelecimento
onde se guarda dinheiro e }HOMONÍMIA (banco
presta serviços de ordem e Juiz; Banco e
Tribunal)
financeira)
}POLISSEMIA (Juiz e
JUIZ (Magistrado da justiça
Tribunal).
que tem autoridade e poder
Fig. 1: extraída do para julgar e sentenciar;
Novo Deit-Libras. árbitro, julgador.);
Capovilla, Raphael, TRIBUNAL (Espaço onde são
Maurício. (2012, p. discutidas e julgadas as
492). questões judiciais; lugar onde
uma pessoa é julgada).
JUSTIÇA (Faculdade de
garantir a cada um o que por
direito lhe pertence, o que é
seu; conformidade com o POLISSEMIA
direito.)
JULGAMENTO(Situação em
que alguém é julgado pelo juiz,
para que seja proferida sua
sentença de condenação ou
absolvição).
JULGAR(Formar juízo ou
Fig. 2: extraída do opinião acerca de alguém ou de
dicionário on line alguma situação; avaliar,
LIBRAS dicionário da decidir como juiz ou árbitro).
Língua Brasileira de
Sinais (versão 2.1-
2008).

Com base nesses exemplos, vamos supor que durante um processo


de tradução de uma sentença em Português para Libras nos deparemos com
os seguintes enunciados, fornecidos nos exemplos (01) e (02):

(01) “Em outubro de 1992, o presidente foi afastado do cargo e em


29, ele foi julgado, porque a justiça considerava que havia

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muitas provas contra ele, só que antes de sair o resultado do


impeachment e o julgamento ele renunciou”29 [...]

(02) “O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas
para julgar segundo as leis”. (Platão).

Em (01), há três palavras (julgado, justiça e julgamento) que ao


serem traduzidas para Libras criam uma dificuldade para o
tradutor/intérprete, uma vez que o signo em Libras para representar essas
três palavras é o mesmo. Diante desse fato, a questão é saber que recursos
ou estratégias o tradutor/intérprete deveria usar para determinar, em
contexto, que apesar de o signo ser o mesmo, os conceitos envolvidos são
bem distintos. Na verdade, esse é um problema que tanto pode surgir
quando da tradução de um texto escrito em português para Libras ou ainda
quando em conversação aberta,da qual tomem parte apenas surdos ou
também ouvintes.
Seria possível dizer que o uso de marcação de referentes no espaço
de enunciação, ou de dêixis, anáforas e classificadores, recursos já
mencionados por Ferreira Brito, resolveria o problema. Até onde pudemos
perceber, a resposta é não. As circunstâncias nos obrigam aqui conduzir
essa discussão por outro caminho. Tudo leva a crer que, para a compreensão
do surdo, antes de tudo ele precisaria ter minimamente um conhecimento
prévio dos conceitos abrigados em cada uma dessas palavras; ou seja, ele
precisaria conhecer o contexto, bem como os papeis desempenhados pelos
referentes. O surdo precisaria saber, por exemplo, que JULGAMENTO é
um processo; que JUIZ é uma entidade e que JULGAR é uma ação. Mas
mesmo que isso aconteça, estamos iniciando um estudo paralelo para tentar
saber se seria possível garantir que a informação que está chegando ao
surdo é realmente compreendida por ele.
Na tentativa de encontrar soluções alternativas, uma ideia que nos
ocorreu seria acrescentar algum antecedente ao sinal de JUSTIÇA, por
exemplo, o sinal de PLATEIA. O objetivo com isso seria marcar no espaço
o sujeito com o sinal de PRESIDENTE, o qual está sendo julgado. Com
essa estratégia, estaríamos forçando retomadas anafóricas e assim, quem
sabe, a ambiguidade pudesse ser desfeita. Mas ocorre que, mesmo fazendo
uso de todos os signos necessários para a reconstrução do enunciado, ainda
não conseguimos nos convencer de que as ambiguidades presentes no
enunciado se desfariam. A nosso ver, tudo o que conseguiríamos com isso

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Texto extraído a partir do recorte da transcrição de uma aula de História no
terceiro ano do Ensino Médio em um Colégio Público do Estado do Paraná.
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seria apenas um deslocamento do problema. Agora, teríamos diante de nós a


ambiguidade estabelecida entre as palavras JULGAMENTO e JUSTIÇA.
Supondo que a estratégia para resolver o impasse fosse pela
associação do sinal de JUSTIÇA com o sinal de JUIZ posposto e vice versa
para se chegar ao conceito de JULGAMENTO, o uso desse expediente
acarretaria um novo problema. Isso porque em Libras o signo usado para
JUIZ é também ambíguo, podendo ser usado tanto para se referir a BANCO
quanto a TRIBUNAL.Em tais circunstâncias, o impasse permanece.
Em (02), a tradução para Libras impõe ao profissional um desafio
muito maior. De imediato, o tradutor precisaria encontrar algum termo em
Libras que fosse equivalente à palavra NOMEADO. Em princípio, um forte
candidato seria o mesmo signo usado em Libras para traduzir ESCOLHER.
Apesar de nos dicionários consultados (dicionário Libras on line e Novo
Deit-Libras), essa seja uma indicação possível, o fato é que os conceitos
estabelecidos por uma e outra palavra são bastante distintos entre si,
dificultando o processo.
No quadro abaixo, apresentamos apenas uma das diferentes
possibilidades de tradução dessa sentença para Libras.

QUADRO 02

01. Fig. 01 Fig. 02 Fig. 03 Fig. 04

NOME ESCOLHER COLOCAR JUIZ (banco+ justiça)

02. Fig. 05 Fig. 06 Fig. 07 Fig. 08

NÃO É EL@30 À FAVOR JUSTIÇA

30
“Na Libras, não há desinência para gênero (masculino e feminino). O sinal,
representado por palavra da língua portuguesa que possui marcas de gênero, está
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03. Fig. 09 Fig. 10 Fig. 11 Fig. 12

EL@ O QUÊ? JULGAR31 OBEDECER


(dêixis anafórica) (repetição do movimento
várias vezes no espaço)
04. Fig. 13

LEI. (P-L-A-T-Ã-O)

Note-se que, na tentativa de solucionar a falta de um sinal


equivalente em Libras para a palavra ‘nomeado’, optamos por introduzir
dois marcadores, um deles que antecede o sinal de “escolher” e outro
colocado na sequência (fig. 2). A posição do olhar do tradutor (fig. 3)indica
que haverá marcação de referentes no espaço, tal como mostrado nas figuras
de 04, 05 e 06. São elas que marcam o ‘juiz’ em um determinado ponto do
espaço (lado direito). Já a mudança de posição e do olhar do tradutor (fig.07
e 08) marcam o referente ‘justiça’(lado esquerdo). Desse modo é possível a
retomada dos referentes por meio de dêixis e anáforas com a intenção de
determinar ou definir para o interlocutor a diferença entre JUIZ, JULGAR e
JUSTIÇA. Mas, assim como acontece com sentença (01), mesmo que ao
sinal de JUSTIÇA fossem acrescentados movimentos com o objetivo de
marcar o verbo JULGAR, ainda assim parece não haver possibilidade para a
desambiguação necessária. A fim de dar sentido à sentença, outros signos
precisariam ser adicionados à descrição do cenário; por exemplo, neste caso
NOME, COLOCAR, EL@, O QUE, OBEDECER. Mas, a questão é, será

terminado com o símbolo @ para reforçar a ideia de ausência e não haver


confusão”. (FELIPE, 2001, p. 22).
31
De acordo com os estudos de Ferreira Brito (1995), Quadros e Karnopp (2004, p.
97) há uma alteração da classe gramatical (substantivo/verbo) por meio da
repetição do movimento.
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que esta tradução assegura a equivalência desejada? Como o surdo a


compreenderia?

2 Considerações Gerais
A investigação sobre as ocorrências de ambiguidade lexical ainda
carece de muitos aprofundamentos e muita reflexão. Apesar de o fenômeno
não ser novo, são poucos os trabalhos desenvolvidos sobre Libras que têm
se debruçado sobre o assunto. No entanto, temos observado que, para além
dos exemplos citados aqui, há muitos outros casos de ambiguidade lexical
para os quais nem sempre o contexto é capaz de resolver.O nosso estudo,
cabe enfatizar, encontra-se num estágio bastante inicial, mas já dá mostras
de que a investigação, além de necessária, é teoricamente motivada e,
portanto, merecedora de atenção. Não tivemos e nem temos a intenção de
trazer para o debate soluções para o problema. Antes, estamos interessados
em levantar as questões que temos encontrado e, em conjunto, debatermos o
problema, cujo intuito não é outro senão buscarmos pistas, ideias e
sugestões que permitam a evolução da pesquisa, como forma de contribuir
para os estudos que se desenvolvem em torno de Libras e suas aplicações.
Nesse artigo, tentamos mostrar que o processo tradutório
envolvendo línguas de modalidades diferentes não é uma tarefa simples. Os
recursos linguísticos que existem numa língua nem sempre se aplicam a
outra língua. O que nos chama a atenção é o fato de como os falantes de
Libras conseguem lidar com algumas dificuldades que normalmente
ocorrem em todas as línguas, como no caso específico da ambiguidade
lexical. A questão de fundo é mesmo saber ou pelo menos tentar descobrir
maneiras de as ambiguidades lexicais de signos em Libras serem
adequadamente desambiguados. Ao longo do texto trouxemos alguns
exemplos em que essa desambiguação nem sempre consegue ser executada
com os recursos disponíveis em Libras. Mas, se isso não é suficiente, o que
mais seria preciso?

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