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A Tradução Português-Libras face ao fenômeno da Ambiguidade Lexical

Jorge BIDARRA1
Tania Aparecida MARTINS2

RESUMO: Para Steiner (2005), a existência de milhares de línguas diferentes “mutuamente


incompreensíveis” em nosso planeta põe às claras e desafia a interminável e difícil tarefa que
envolve a tradução interlíngua. Embora seja uma prática antiga, ainda persistem muitas
dúvidas e impasses sobre os mecanismos e as formas de tratamento que precisam ser adotadas
pelos tradutores. Dentre as muitas complexidades presentes nesse trabalho, uma delas nos
chama mais a atenção: a ambiguidade lexical. Num segundo plano, mas não menos
importante e como não poderia deixar de ser, surge em nossa pesquisa a questão da
equivalência. Esse artigo tem como objetivo principal discutir a ambiguidade lexical, bem
como o problema da equivalência, no contexto Português-Libras, as dificuldades e os
impasses impostos sobre o processo tradutório. Mais especificamente, abordamos aqui o
comportamento de signos lexicalmente ambíguos em Libras numa situação particular em que
o contexto não se mostra suficiente para a desambiguação. Para ilustrar, vale citar o caso das
palavras “julgamento, julgar e juiz” que em Libras são representadas por um mesmo signo. À
primeira vista, pode-se dizer que os marcadores, tais como a alteração de movimento das
mãos ou de expressões não manuais, seriam recursos suficientes para desambiguar. Todavia,
não apenas para esse caso, mas para muitos outros que ao longo do trabalho teremos a
oportunidade de explicitar, o que se pode observar é que, embora útil, eles não são capazes de
resolver o problema. Partindo-se desse ponto, com base num levantamento prévio, que inclui
consultas a dicionários impressos e online, bem como pesquisas realizadas junto à literatura
especializada, já nos foi possível não apenas identificar um conjunto significativo de signos
em Libras com comportamentos semelhantes aos das palavras acima citadas, como também
mapeá-las. No momento, estamos em fase de análise e discussão do material já coletado. Para
permitir uma análise mais acurada, trabalhamos sobre textos extraídos de jornais, revistas e
livros didáticos. Para o estudo, além de Steiner, dentre outros, dão suporte a esse trabalho
Jakobson (2007), Cruse (1986), Quadros (2004), Arrojo (1986) e Kahmann (2011).
PALAVRAS-CHAVES: Ambiguidade Lexical; Tradução Interlíngua; Libras; Português.

ABSTRACT: According Steiner (2005), the existence of thousands of different languages


"mutually unintelligible" on our planet determines the challenges and difficult task that
involves translation interlingua. Although it is an old practice, there are still many questions
and dilemmas about the mechanisms and forms of treatment that need to be adopted by the
translators. Among the many complexities present in this work, one of them is the lexical
ambiguity. In the background, but no less important, as it should be, in our research arises the
question of equivalence. This article aims to discuss the main lexical ambiguity, as well as the
problem of equivalence in the context Portuguese-Libras (Brazilian Sign Language),
difficulties and dilemmas taxes translation process. More specifically, we address here the
behavior of lexically ambiguous signs in Libras in a particular situation where the context
does not seem sufficient for disambiguation. To illustrate, it is worth mentioning the case of
the words "trial judge and judge" in that Libras are represented by the same sign. At first
glance, one can say that the markers, such as the change of hand movement or non-manual
expressions, would be sufficient resources to disambiguate. However, not only for this case
1
Doutor; Universidade Estadual do Oeste do Paraná; jorge.bidarra@unioeste.br
2
Aluna de Mestrado; Universidade Estadual do Oeste do Paraná; martitania@hotmail.com
but for many others throughout the work have the opportunity to explain what can be seen is
that, although useful, they are not able to solve the problem. Starting from this point, based on
a preliminary survey, which includes consultations with print and online dictionaries, as well
as research conducted by the literature, since we could not only identify a significant number
of signs in Pounds with behaviors similar to those of the words cited above, but also to map
them. We are currently undergoing analysis and discussion of the material already collected.
To allow a more accurate analysis, we work on texts taken from newspapers, magazines and
textbooks. For the study, among others, support this work Jakobson (2007), Cruse (1986),
Tables (2004), Arrojo (1986) and Kahmann (2011).
KEYWORDS: Lexical Ambiguity; Interlingua Translation; Brazilian Sign Language;
Portuguese.

1 Introdução:

De acordo com Souza (1998), a falta de uma teoria unificada da tradução dificulta uma
definição universalmente aceita para o termo. Assim que, segundo ele, por tradução podemos
entender várias coisas, o que a torna, ela mesma, uma palavra polissêmica. Para o autor, a
tradução ora pode se referir a um produto, ou o texto traduzido; a um processo, ou o ato
tradutório; a um ofício, ou a atividade de traduzir e ainda a um estudo interdisciplinar. Se
fosse somente por esse aspecto, discutir os meandros da tradução já seria suficiente para o
levantamento de uma quantidade significativa de questões para serem resolvidas. Contudo,
como o nosso objetivo nesse artigo não é discutir a polissemia da palavra e seus efeitos,
deixaremos de lado o debate, assumindo como conceito básico de tradução o trabalho que
consiste em produzir numa língua de chegada uma mensagem equivalente ou mais próxima,
em termos de significado, da informação contida na língua de partida.
No que diz respeito à tradução, Jakobson (1992) considera que o processo se enquadra
em três tipos, a saber: intralingual, interlingual ou intersemiótica. A tradução intralingual, de
acordo com o autor, é aquela que acontece dentro de uma mesma língua em que determinados
signos verbais são substituídos por outros equivalentes. É um processo que envolve o texto de
partida, o leitor-textualizador e o texto de chegada. Com frequência, os falantes de uma língua
se utilizam deste tipo de tradução de forma automática e, não raro, sem a devida consciência
sobre o grau de complexidade formal envolvido nesse trabalho. Diz-se da tradução
interlingual o processo tradutório que envolve duas (ou mais) línguas diferentes, em que os
signos linguísticos da língua de partida são substituídos por signos, na medida do possível,
equivalentes da língua de chegada. Para realizar esse trabalho, há a figura do tradutor que,
nesse caso, atua, simultaneamente, como leitor e intérprete. A tradução intersemiótica,
também denominada transmutação, diferentemente dos tipos antecedentes, consiste na
interpretação de um determinado sistema de signos linguísticos para outro sistema distinto
constituído por signos não linguísticos ou não verbais (Jakobson, 1992, p. 65). Esse tipo de
tradução é aplicado mais frequentemente em obras de ficção, muito usada na linguagem
adotada pelo cinema, na produção de vídeos e histórias em quadrinhos. Mas também se aplica
quando do processo tomam parte duas línguas de modalidades diferentes, como é aqui o caso
do Português, uma língua oral auditiva, e Libras, uma língua de modalidade visual espacial.
Traduzir, ao contrário do que à primeira vista possa parecer, não é uma atividade
trivial, mas de altíssima complexidade. Sabe-se que uma tradução para ser bem sucedida vai
requerer do tradutor a consideração de diferentes níveis de processamento linguístico, dos
quais jamais poderá abrir mão em seu trabalho. Apesar de ser essa uma verdade, para os
objetivos que traçamos em nossas pesquisas, vamos nos distanciar um pouco de todas as
análises envolvidas nesse processo, para colocar o nosso foco num fenômeno bastante
específico e altamente intrigante que acontece ao nível do processamento lexical. Mais
exatamente, interessa-nos discutir aqui os desafios e os impasses que a ambiguidade lexical
em Libras tende impor não só para o tradutor/intérprete, mas também para o próprio surdo,
notadamente face à tradução da qual tomam parte textos e falas produzidas em Português para
Libras. Com o estudo, pretendemos mostrar que embora seja ainda um assunto pouco
explorado a ambiguidade presente em determinados signos de Libras trazem mais problemas
de compreensão do que poderíamos suspeitar.

2 Os signos ambíguos em Libras em situação de tradução/interpretação

A tradução, como já mencionado antes, não é uma tarefa simples, pois não se trata
apenas de transferir o conteúdo de uma língua para outra por meio de palavras e/ou
expressões, até porque nesse tipo de trabalho não há qualquer garantia de que na língua de
chegada existam palavras ou signos (para simplificar, daqui por diante, a esse conjunto vamos
nos referir apenas como termos) equivalentes que possam cobrir os significados/sentidos
contidos nos termos oriundos da língua de partida. Para um bom trabalho de tradução, o
profissional precisa ter a seu dispor não somente um vasto conhecimento linguístico e dos
vocabulários envolvidos nas duas línguas, bem como da cultura dos povos que as falam.
Ainda assim, mesmo com uma gama de conhecimento considerável e tendo em mãos
estratégias para que os seus objetivos sejam alcançados, muitas vezes algumas dificuldades
surgem, obrigando o tradutor a buscar meios que lhe permitam ultrapassar os obstáculos que
encontra no meio do caminho. A ambiguidade lexical é um desses problemas.
São muitas as controvérsias no entorno da ambiguidade lexical. Apesar de atualmente
os estudiosos das línguas considerarem que esse é um fenômeno essencial e ao mesmo tempo
complexo a serviço da comunicação humana, o seu uso no passado não era aceito ou bem
visto, especialmente, pelos filósofos. Aristóteles, por exemplo, via a ambiguidade lexical
como uma espécie de manobra utilizada pelos sofistas, cujo intuito seria o de desorientar os
seus ouvintes. Durante muito tempo, as palavras de significado ambíguo foram discutidas
pelos filósofos como um defeito da linguagem e como um obstáculo significativo não apenas
para a comunicação, mas também para um pensamento claro. Com o passar do tempo e já
superada essa visão, muito embora os falantes lidem com a sua ocorrência nas línguas
aparentemente sem dificuldades, o fenômeno é, ainda hoje, um problema de difícil solução
para estudiosos das línguas.
Em termos teóricos, a ambiguidade lexical se define como a capacidade que certas
palavras têm de suportar mais de um significado 3 ou sentido4, estejam eles relacionados entre
si semanticamente ou não (Lyons, 1963, 1987; Ullmann, 1964; Silva, 2006; Biderman, 2001;
Ilari, 1990; Rehfeldt, 1980; Cruse, 1986; Mattoso Câmara, 1986, 1995). Nas línguas, a
ambiguidade lexical se manifesta de duas maneiras, por homonímia, tipo de ambiguidade que
acontece quando os significados de mesma palavra não têm qualquer relação semântica entre
si; ou polissemia, quando os possíveis sentidos admitidos pela palavra estabelecem entre si
uma mútua relação semântica.
Assim como nas línguas orais, as línguas de sinais também se submetem, por assim
dizer, aos caprichos e, em alguns casos, às vicissitudes das ambiguidades lexicais. Contudo, o
modo como nelas se manifestam tornam a investigação do caso um tanto quanto mais
complexa, quando comparada às línguas orais. Para começar, embora a ambiguidade lexical
seja um fenômeno reconhecido em Libras, não são poucos os pesquisadores que consideram
que, devido ao funcionamento da língua, os seus efeitos podem ser minimizados via o uso de
classificadores, marcações não manuais e organização dos fatos no espaço de enunciação.
Todavia, o levantamento lexical que nós estamos realizando em nossas pesquisas, a partir de
consultas a dicionários e contextos diversos, nos tem apontado para situações em que esses

3
Embora muitas vezes as palavras significado e sentido sejam tratadas como sinônimos, Lyons (1963) estabelece
uma diferença, e que adotamos neste trabalho. Para Lyons (1963, p. 102), significado é muito mais que o
“conteúdo” da palavra, ele é independente da sinonímia, é concebido como um “conjunto de relações
(paradigmáticas) que a unidade em questão estabelece com outras unidades da língua (no contexto ou contextos
em que ocorre), sem que se faça qualquer tentativa para estabelecer conteúdos para essa unidade”.
4
O sentido é o modo de apresentação através do qual uma expressão indica sua referência, o modo como uma
expressão apresenta a entidade que ela nomeia.
recursos não são se mostram, de fato, suficientes, abrindo assim um espaço muito interessante
e justificado para a presente pesquisa.
Cabe mencionar, entretanto, que não é nova essa discussão sobre ambiguidade lexical
em Libras. Na verdade, o fenômeno já vem sendo estudado há algum tempo, tendo como um
de seus primeiros registros, no Brasil, os trabalhos desenvolvidos por Ferreira Brito (1995).
Para discutir a sua ocorrência em Libras, a autora desenvolve, por exemplo, um debate sobre
o uso de co-referencial5 de classificadores. Para ilustrar, a autora se vale da narração em
Libras da “piada da carona”, que abaixo reproduzimos, em português.

O narrador conta que o ouvinte que deu carona ao surdo estava quase
dormindo ao volante. Nesse momento, devido à situação contextual (quem
dirige, no Brasil, deve estar do lado esquerdo), o surdo estava localizado à
direita. Olha para sua esquerda e pergunta se o ouvinte quer que ele dirija. O
ouvinte aceita e então os dois trocam de lugar. (FERREIRA BRITO, 1995,
p. 120).

Para traduzir a troca de lugares entre o motorista e o surdo evitando uma possível
ambiguidade de co-referência, a autora menciona que a maneira mais comumente utilizada
seria com os seguintes recursos de marcação:

CL: V (ouvinte, esq.) + CL: V (surdo, dir.) (= os dois trocam de lugar) cruzamento dos
braços:
Ferreira Brito ao entender que o uso de classificadores e marcadores resolvem a
situação que se coloca, vai dizer:

Talvez, por ser uma língua espaço-visual, a LIBRAS dificilmente apresenta


ambiguidade de co-referência. O uso do espaço é sistemático e orações como
as apresentadas mostram claramente seu co-referente, esteja o referente
presente no ato da enunciação ou não. (FERREIRA BRITO, 1995, p. 121).

Seguindo nessa mesma linha de raciocínio, a autora, quando se referindo aos dêiticos 6,
vai dizer ainda que esse tipo de ocorrência dificilmente acarretaria ambiguidade (Ferreira
Brito 1995, p. 121). No entanto, com relação ao assunto o que poderia ocorrer, seria uma
ambiguidade provocada com o uso de certos sintagmas nominais. Os exemplos que usa para
5
A co-referência em Libras pode ser realizada pelo uso de pronomes pessoais, demonstrativos e possessivos,
como nas línguas orais, mas também através do uso do termo comparativo, da mudança de posição do corpo, do
uso de classificadores e também do olhar (FERREIRA-BRITO, 1995, p. 120-122).
6
A dêixis é uma característica das línguas de sinais. Em Libras, os dêiticos são usados com frequência para
referirem e correferirem; esclarece que a correferência recobre termos que tradicionalmente eram chamados de
anáfora e catáfora, em que a primeira tem como seu correferente um termo antecedente cujo referente é igual ao
seu e a segunda tem como correferente um termo que apenas é introduzido no contexto linguístico após sua
menção e cujo referente é o mesmo (BROCHADO, 2011, p. 4.077).
ilustrar a situação são ‘desgraçado’, ‘safado’ e outros do gênero, os quais são signos que não
apresentam ambiguidade lexical, mas por serem realizados deslocados dos referentes
marcados no espaço, a ambiguidade surge. Isso não ocorre apenas em Libras, mas também se
verifica em Português, como mostrado no extrato abaixo reproduzido:

PAULO3i BATER3j JOÃO MAS SAFADO3i ou 3j? NÃO FICAR FELIZ


(=Pauloi bateu em Joãoj, mas o safadoi ou j(?) não ficou feliz).

Para esse caso, a autora (1995, p. 121) conclui que há problemas de co-referência tanto
em Português quanto em Libras. Mas, afirma que, “devido ao uso do espaço
multidimensional, a Libras apresenta menos caso de ambiguidade do que o português”. Sobre
os co-referentes, vale ressaltar que, de acordo com Cançado (2012, p. 79) esse é um tipo de
ambiguidade que não tem sua origem nem nos itens lexicais, tampouco na organização
sintática da sentença e nem no seu escopo”. Ela pode ser gerada pelos pronomes em relação
aos seus antecedentes.
Bernardino (2000) compartilha das mesmas observações de Ferreira Brito, ao analisar
enunciados em Libras que envolva mais de uma pessoa. Para a autora, “o uso dos pronomes
permite a co-referência explícita e reduz a possibilidade de ambiguidade, o que pode ser visto
também em Libras” (Bernardino, 2000, p. 126).
Quando se trata de investigar a ocorrência da ambiguidade lexical em Libras, verifica-
se que as pesquisas se relacionam ao enunciado e não especificamente às questões de natureza
lexical. Assim, para retomar o debate, com base nas pesquisas feitas através dos dicionários
on line LIBRAS dicionário da Língua Brasileira de Sinais (versão 2.1-2008), DEIT- LIBRAS
(2012) e livros ilustrados da Libras, organizamos para esse momento um quadro (quadro 1), a
partir do qual buscaremos discutir o fenômeno, por um viés diferenciado.

QUADRO 01
SINAIS/PALAVRAS Em Libras estes sinais pode se TIPIFICAÇÃO DA
EM LIBRAS referir: AMBIGUIDADE
BANCO (Estabelecimento onde
se guarda dinheiro e presta
serviços de ordem financeira)
JUIZ (Magistrado da justiça que
} HOMONÍMIA (banco e
tem autoridade e poder para Juiz; Banco e Tribunal)
julgar e sentenciar; árbitro,
Fig. 1: extraída do julgador.);
Novo Deit-Libras. TRIBUNAL (Espaço onde são
Capovilla, Raphael, discutidas e julgadas as questões
} POLISSEMIA (Juiz e
judiciais; lugar onde uma pessoa Tribunal).
Maurício. (2012, p. é julgada).
492).
JUSTIÇA (Faculdade de
garantir a cada um o que por
direito lhe pertence, o que é seu;
conformidade com o direito.)
JULGAMENTO (Situação em
POLISSEMIA
que alguém é julgado pelo juiz,
para que seja proferida sua
sentença de condenação ou
absolvição).
JULGAR (Formar juízo ou
opinião acerca de alguém ou de
Fig. 2: extraída do alguma situação; avaliar, decidir
dicionário on line como juiz ou árbitro).
LIBRAS dicionário da
Língua Brasileira de
Sinais (versão 2.1-
2008).

Com base nesses exemplos, vamos supor que durante um processo de tradução de uma
sentença em Português para Libras nos deparemos com os seguintes enunciados, fornecidos
nos exemplos (01) e (02):

(01)“Em outubro de 1992, o presidente foi afastado do cargo e em 29, ele foi julgado,
porque a justiça considerava que havia muitas provas contra ele, só que antes de
sair o resultado do impeachment e o julgamento ele renunciou”7 [...]

(02) “O juiz não é nomeado para fazer favores com a justiça, mas para julgar
segundo as leis”. (Platão).

Em (01), há três palavras (julgado, justiça e julgamento) que ao serem traduzidas para
Libras criam uma dificuldade para o tradutor/intérprete, uma vez que o signo em Libras para
representar essas três palavras é o mesmo. Diante desse fato, a questão é saber que recursos
ou estratégias o tradutor/intérprete deveria usar para determinar, em contexto, que apesar de o
signo ser o mesmo, os conceitos envolvidos são bem distintos. Na verdade, esse é um
problema que tanto pode surgir quando da tradução de um texto escrito em português para
Libras ou ainda quando em conversação aberta, da qual tomem parte apenas surdos ou
também ouvintes.

7
Texto extraído a partir do recorte da transcrição de uma aula de História no terceiro ano do Ensino Médio em
um Colégio Público do Estado do Paraná.
Seria possível dizer que o uso de marcação de referentes no espaço de enunciação, ou
de dêixis, anáforas e classificadores, recursos já mencionados por Ferreira Brito, resolveria o
problema. Até onde pudemos perceber, a resposta é não. As circunstâncias nos obrigam aqui
conduzir essa discussão por outro caminho. Tudo leva a crer que, para a compreensão do
surdo, antes de tudo ele precisaria ter minimamente um conhecimento prévio dos conceitos
abrigados em cada uma dessas palavras; ou seja, ele precisaria conhecer o contexto, bem
como os papeis desempenhados pelos referentes. O surdo precisaria saber, por exemplo, que
JULGAMENTO é um processo; que JUIZ é uma entidade e que JULGAR é uma ação. Mas
mesmo que isso aconteça, estamos iniciando um estudo paralelo para tentar saber se seria
possível garantir que a informação que está chegando ao surdo é realmente compreendida por
ele.
Na tentativa de encontrar soluções alternativas, uma ideia que nos ocorreu seria
acrescentar algum antecedente ao sinal de JUSTIÇA, por exemplo, o sinal de PLATEIA. O
objetivo com isso seria marcar no espaço o sujeito com o sinal de PRESIDENTE, o qual está
sendo julgado. Com essa estratégia, estaríamos forçando retomadas anafóricas e assim, quem
sabe, a ambiguidade pudesse ser desfeita. Mas ocorre que, mesmo fazendo uso de todos os
signos necessários para a reconstrução do enunciado, ainda não conseguimos nos convencer
de que as ambiguidades presentes no enunciado se desfariam. A nosso ver, tudo o que
conseguiríamos com isso seria apenas um deslocamento do problema. Agora, teríamos diante
de nós a ambiguidade estabelecida entre as palavras JULGAMENTO e JUSTIÇA.
Supondo que a estratégia para resolver o impasse fosse pela associação do sinal de
JUSTIÇA com o sinal de JUIZ posposto e vice versa para se chegar ao conceito de
JULGAMENTO, o uso desse expediente acarretaria um novo problema. Isso porque em
Libras o signo usado para JUIZ é também ambíguo, podendo ser usado tanto para se referir a
BANCO quanto a TRIBUNAL. Em tais circunstâncias, o impasse permanece.
Em (02), a tradução para Libras impõe ao profissional um desafio muito maior. De
imediato, o tradutor precisaria encontrar algum termo em Libras que fosse equivalente à
palavra NOMEADO. Em princípio, um forte candidato seria o mesmo signo usado em Libras
para traduzir ESCOLHER. Apesar de nos dicionários consultados (dicionário Libras on line e
Novo Deit-Libras), essa seja uma indicação possível, o fato é que os conceitos estabelecidos
por uma e outra palavra são bastante distintos entre si, dificultando o processo.
No quadro abaixo, apresentamos apenas uma das diferentes possibilidades de tradução
dessa sentença para Libras.
QUADRO 02
01. Fig. 01 Fig. 02 Fig. 03 Fig. 04

NOME ESCOLHER COLOCAR JUIZ (banco+ justiça)


02. Fig. 05 Fig. 06 Fig. 07 Fig. 08

NÃO É EL@8 À FAVOR JUSTIÇA


03. Fig. 09 Fig. 10 Fig. 11 Fig. 12

EL@ (dêixis anafórica) O QUÊ? JULGAR9 (repetição OBEDER


do movimento várias
vezes no espaço).
04. Fig. 13

LEI. (P-L-A-T-Ã-O)

Note-se que, na tentativa de solucionar a falta de um sinal equivalente em Libras para


a palavra ‘nomeado’, optamos por introduzir dois marcadores, um deles que antecede o sinal
8
“Na Libras, não há desinência para gênero (masculino e feminino). O sinal, representado por palavra da língua
portuguesa que possui marcas de gênero, está terminado com o símbolo @ para reforçar a ideia de ausência e
não haver confusão”. (FELIPE, 2001, p. 22).
9
De acordo com os estudos de Ferreira Brito (1995), Quadros e Karnopp (2004, p. 97) há uma alteração da
classe gramatical (substantivo/verbo) por meio da repetição do movimento.
de “escolher” e outro colocado na sequência (fig. 2). A posição do olhar do tradutor (fig. 3)
indica que haverá marcação de referentes no espaço, tal como mostrado nas figuras de 04, 05
e 06. São elas que marcam o ‘juiz’ em um determinado ponto do espaço (lado direito). Já a
mudança de posição e do olhar do tradutor (fig. 07 e 08) marcam o referente ‘justiça’(lado
esquerdo). Desse modo é possível a retomada dos referentes por meio de dêixis e anáforas
com a intenção de determinar ou definir para o interlocutor a diferença entre JUIZ, JULGAR
e JUSTIÇA. Mas, assim como acontece com sentença (01), mesmo que ao sinal de JUSTIÇA
fossem acrescentados movimentos com o objetivo de marcar o verbo JULGAR, ainda assim
parece não haver possibilidade para a desambiguação necessária. A fim de dar sentido à
sentença, outros signos precisariam ser adicionados à descrição do cenário; por exemplo,
neste caso NOME, COLOCAR, EL@, O QUE, OBEDECER. Mas, a questão é, será que esta
tradução assegura a equivalência desejada? Como o surdo a compreenderia?

3 Considerações Gerais

A investigação sobre as ocorrências de ambiguidade lexical ainda carece de muitos


aprofundamentos e muita reflexão. Apesar de o fenômeno não ser novo, são poucos os
trabalhos desenvolvidos sobre Libras que têm se debruçado sobre o assunto. No entanto,
temos observado que, para além dos exemplos citados aqui, há muitos outros casos de
ambiguidade lexical para os quais nem sempre o contexto é capaz de resolver. O nosso
estudo, cabe enfatizar, encontra-se num estágio bastante inicial, mas já dá mostras de que a
investigação, além de necessária, é teoricamente motivada e, portanto, merecedora de atenção.
Não tivemos e nem temos a intenção de trazer para o debate soluções para o problema. Antes,
estamos interessados em levantar as questões que temos encontrado e, em conjunto,
debatermos o problema, cujo intuito não é outro senão buscarmos pistas, ideias e sugestões
que permitam a evolução da pesquisa, como forma de contribuir para os estudos que se
desenvolvem em torno de Libras e suas aplicações.
Nesse artigo, tentamos mostrar que o processo tradutório envolvendo línguas de
modalidades diferentes não é uma tarefa simples. Os recursos linguísticos que existem numa
língua nem sempre se aplicam a outra língua. O que nos chama a atenção é o fato de como os
falantes de Libras conseguem lidar com algumas dificuldades que normalmente ocorrem em
todas as línguas, como no caso específico da ambiguidade lexical. A questão de fundo é
mesmo saber ou pelo menos tentar descobrir maneiras de as ambiguidades lexicais de signos
em Libras serem adequadamente desambiguados. Ao longo do texto trouxemos alguns
exemplos em que essa desambiguação nem sempre consegue ser executada com os recursos
disponíveis em Libras. Mas, se isso não é suficiente, o que mais seria preciso?
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