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Psicanálise: O Masoquismo e a Analidade

Quando se pensa nos anais no decorrer da história vemos as suas mudanças, mas em sua
maioria o ânus esta envolto a um desconforto, na medida em que é experimentado com prazer,
mas também rechaçado. Na Grécia antiga, na relação pederasta educacional entre o jovem e o
adulto, já tínhamos um envolvimento da relação sexual com uma posição política, uma classe
social e uma atitude ativa ou passiva. Na pederastia tínhamos o envolvimento do erasta (o
amante) que deveria ser um cidadão ateniense, um homem com papel ativo na sociedade, e
geralmente com mais de 30 anos de idade. Também tínhamos o envolvimento do erômeno (o
amado) que deveria ser um jovem com a idade variando entre 12 a 18 anos e filho de cidadão
ateniense. É interessante notar que a cidadania Grega exclui os estrangeiros, os escravos e as
mulheres. A relação que se dá entre os homens é uma relação complicada, pois o jovem não
poderia sentir prazer nas relações, ou entregar-se facilmente, existe um jogo de cortejo de
entregar-se não se entregando. Por parte do adulto o cortejo se dava geralmente indo aos
ginásios para observar os jovens, e quando a relação iniciava também se tinha vários presentes
a serem entregues ao amante, para melhor cortejá-lo. Outra complicação é a necessidade de
uma produção de uma auto-amnésia, pois seria viável esquecer os anos em que se
experimentam os prazeres anais, para voltar-se ativo na vida adulta. Tem-se uma sublimação
do prazer erótico, para adentrar-se em uma philia, na amizade profunda, para a superação do
prazer carnal. O feminino, a mulher, o escravo, os penetráveis, pertencem a uma outra classe,
a uma passividade. Afeminar-se, travestir-se, comportar-se como mulher é abdicar de uma
cidadania e de um papel ativo. O sexo anal é a perda de um passaporte, de um território, de
uma cidadania.

Na Idade Média o ânus é execrado, mas também um segredo, algo que não poderia ser
revelado. Podemos voltar para a palavra sodomita, que faz referência à cidade de Sodoma (a
raiz da palavra Sodoma é hebraica e significa “segredo”) para entendermos o asco à pratica
sexual anal. A cidade de Sodoma, de acordo com a Bíblia teria sido destruída por vários dos
seus pecados, um destes pecados é o sexo anal entre homens, que por sua vez, ganhou o
adjetivo de sodomia. O filósofo, pré-medieval, Santo Agostinho fazia a relação dos
pecados contra a natureza com a sodomia. Outro pensador de grande influência da igreja
católica, Tomás de Aquino, também escrevera sobre os pecados contra a natureza, ainda com
uma maior negatividade. Contudo, esta prática sexual, não fica somente como outro pecado
qualquer, ela passa a ser motivo de perseguição a partir da metade do século VI com o
imperador bizantino Justiniano e sua esposa Teodora, tornando os pecados contra natureza
uma lei, na qual previa a castração. A atitude contra a sodomia também sofre modificações
com o transcorrer das cruzadas, pois as propagandas anti-islâmicas identificavam os
mulçumanos como sodomitas, depois passam a identificar também com os hereges, desta
forma a castração já não bastava, agora o decreto passava ser a pena de morte para a prática
sodomita. Os exemplos, na idade média, poderiam ser inúmeros, assim como na modernidade.
O divino Marquês de Sade com o seu livro Filosofia na Alcova, poderia ser visto como uma
fundamental mudança, a respeito da relação negativa com os prazeres anais quando faz uma
verdadeira apologia à passividade, como também vários livros de Leopold Sacher-Masoch, mas
talvez seja mais interessante não ver somente um ponto literário para esta mudança, mas sim
um ponto psicanalítico.
Sigmund Freud é um turning point a respeito da analidade, porque no anal não somente está o
perigo, o medo, o pecado, a passividade vista de forma negativa, mas também no ânus esta
o prazer. Freud refaz todo um discurso sobre a sexualidade, não mais uma sexualidade
angelical, metafísica, mas uma com corpos cheios de vida e desejo, corpos sexuais e repletos
de conflitos. É isto que Freud encontra quando passa a escutar seus pacientes na Viena do final
do século XIX. No desenvolvimento de sua teoria a respeito da sexualidade humana
encontramos então a questão do anal colocada de outra forma. Nos Três Ensaios Sobre a
Sexualidade (1905) encontramos uma interessante referência de que
a inversão (homossexualidade) não pressupõe necessariamente o coito per anum, e que não se
limita ao sexo entre homens. Freud desenvolve toda uma teoria a respeito do ânus. Quando
Freud chocou a Viena de sua época, por falar de uma sexualidade infantil, escreveu sobre três
fases da sexualidade infantil: a fase oral, a fase anal e a genital. Sendo que na fase anal, a
zona erógena, o prazer pode ou não se manter na vida adulta dependendo da evolução da
libido, das repressões. Na infância, a criança tem o prazer de reter e expulsar as fezes, ou seja,
tem-se uma função masturbatória com as fezes. Freud é revolucionário ao dizer como também
explicar o prazer que se tem com o ânus, dentro de uma visão menos normativa do
comportamento humano.
A obra do Freud é repleta de elementos para pensar sobre o cu, ele até mesmo desenvolve
algo chamado de “caráter anal”, para falar dos que reprimem, abafam, excluem, matam parte
de sua pulsão anal e desenvolveram determinado caráter. Contudo, neste texto a ideia é pensar
o anal e o masoquismo, já que Freud trabalha com várias polaridades, como o masculino e
feminino, a atividade e a passividade, o sadismo e o masoquismo, e dentro desta binaridade é
interessante refletir o corpo penetrável e o não-penetrável e sua relação com o masoquismo,
para então compreendermos o prazer dentro da passividade. Esta dicotomia
entre masculino e feminino também é entendida por Freud como sadismo e masoquismo, e é
no masoquismo que temos o corpo penetrável. Contudo, o masoquismo na concepção de Freud
em determinados aspectos foge do senso comum, e tem um longo desenvolvimento dentro da
sua obra, desde os Três ensaios sobre a Sexualidade de 1905 até o pequeno e fecundo texto
sobre O problema econômico do masoquismo datado de 1924. Neste momento é viável nos
atermos à concepção do masoquismo em Freud após a sua elaboração do conceito de instinto
de morte (impulso presente em todo organismo vivo, que tente a restauração de um estado
anterior) e a sua caracterização do masoquismo em três partes, elementos, que seriam o
masoquismo erógeno, o feminino e o moral.
O interessante do masoquismo erógeno é que Freud coloca que ele seria o sadismo primário.
Chamar o masoquismo erógeno de sadismo primário poderia a primeira vista sugerir uma falta
de rigor conceitual, contudo é exatamente o contrário, porque neste primeiro momento
teríamos um masoquismo que se torna componente da libido (ele volta contra si mesmo), ou
seja, ele não se exterioriza como no masoquismo feminino (atitude passiva) ou o masoquismo
moral (culpabilidade). No masoquismo erógeno ele teria o seu próprio ser como objeto. O
masoquismo erógeno é o de mais difícil compreensão, pois ele abarca uma base biológica do
masoquismo, como também perpassa todo o desenvolvimento da libido. Se levarmos em conta
o primeiro ponto temos a ideia de que uma matéria animada, um determinado organismo quer
realmente é voltar a ser inanimado, como se a vida surgisse como um desconforto, como uma
bela pérola ferindo a concha. Freud chega a nos dizer que o que o indivíduo quer é morrer do
seu próprio modo. Este voltar-se ao inanimado seria uma face do instinto de morte. Muito
abreviadamente este seria o fundamento biológico do masoquismo, a matéria viva quer a
estabilidade da matéria inanimada, o regresso ao estado inorgânico.
O segundo aspecto do masoquismo que é o masoquismo feminino, diz respeito a uma forma da
vida sexual, a forma passiva, que é um contraponto a forma ativa, a atitude sádica. Não
obstante, o ânus neste momento nos revela um grande papel, pois torna não somente a mulher
como o corpo penetrável, mas também o homem. O cu não teria gênero, pois homens e
mulheres se penetram mutuamente das mais diversas formas, e pelos mais diversos buracos.
Não obstante, existe todo um terror feminino, um terror anal, um terror à passividade. E esta
atitude passiva é o que Freud marca como o masoquismo feminino: ser passivo, penetrável,
enrabado(a), brincar à irlandesa.
Uma última caracterização do masoquismo é o que o psicanalista coloca como masoquismo
moral, e este tem relação com a segunda tópica freudiana, a segunda estruturação da psique
humana. Freud elabora a psique em três instâncias, Id, Ego e Super-Eu, e para a compreensão
do masoquismo moral a mais importante destas instâncias é a ideia de Super-eu, pois ele
exercerá um papel sádico com relação ao Eu. Isto se dá pelo próprio desenvolvimento dele e a
forma com que o Eu engendra a culpa (inconsciente ou não) para si. Este sentimento de culpa,
por sua vez, tem uma relação inicial com o Complexo de Édipo, pois é com ele que teríamos
a escolha objetal, a identificação com o objeto (narcisismo secundário) e o seu abandono. No
complexo de Édipo existe um investimento parental, ou com a mãe ou com o pai, este
investimento é introjetado como também depois é abandonado, na dissolução do complexo de
Édipo, que por sua vez firma o caráter do indivíduo. Freud assemelha este processo com o
infortúnio da melancolia, pois quando se perde um objeto, como por exemplo, uma pessoa
amada, este objeto perdido é introduzido no Eu, desta forma ele não é totalmente perdido,
permanece no Eu como uma espécie de resíduo. Freud salienta que esse processo melancólico
é mais comum do que imaginaríamos, e faz parte da constituição do que chamamos de caráter.
Ao se identificar com a figura paterna, o indivíduo conservaria determinado grau de severidade.
Forma-se um Ideal do Eu que é preservado no indivíduo, este ideal é admirado, como também
é temido. Neste momento vai se fazendo uma diferenciação do Super-eu (uma consciência
moral) e do Eu. A tragédia é que este Eu parece nunca chegar ao seu Ideal, e então se tem o
sentimento de culpa. A severidade de um Super-eu sádico se afirma diante do Eu masoquista,
desta forma o masoquismo moral se distancia da sexualidade, pois pode ser somente uma
insistência, uma obstinação em permanecer no sofrimento, sofrimento que por sua vez
também, em certa medida, gera o gozo de quem sofre.
O masoquismo se relaciona com a analidade quando pensamos na relação de passividade, que
historicamente foi atribuída à mulher. Contudo, o masoquismo, a atitude passiva, pode estar
tanto no homem quanto na mulher. O terror ao masoquismo talvez venha de um âmbito
histórico, no qual o passivo sempre esteve envolto não somente em uma passividade, em uma
sujeição, mas também em uma forte subjugação. Outro ponto importante é que o ânus é um
descentralizador de uma identidade heterossexual, pois o indivíduo (aquele que não se divide)
se torna mais maleável dentro da sua própria constituição como sujeito. O que causa terror,
medo, a toda uma sociedade egóica. Contudo, o cu que é tão renegado sempre volta,
diariamente, no momento de defecar, e não deveríamos ver ele como um reles assunto, talvez
levá-lo até mais longe do que o nível da psicanálise, da passividade, e acharmos outros
contornos que perpassam conteúdos sócio-políticos, teológicos, filosóficos, psicológicos e toda
uma produção e consumação de subjetividades.

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