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Curso Diagnóstico Psicanalítico - Aula 12: Personalidades Dissociativas

Saulo Durso Ferreira

Esse é um dos quadros mais controversos e questionável dentro da proposta de


diagnóstico.
O funcionamento psicológico dissociativo é também conhecido como de
“múltiplas personalidades”. Inicialmente apresentarei os desenvolvimento de
McWilliams e depois trazer um modelo de Winnicott para pensar essas questões,
apesar dele não ter se dedicado a esse quadro e por m a visão de Fairbairn,
que este sim, aborda o tema de forma clara em sua abordagem.

Ela localiza essa di culdade diagnóstica e até mesmo a insu ciência de certas
teorias para dar conta desse tipo de quadro, como por exemplo ao se referir que
Freud privilegiou “questões de amadurecimentos às traumáticas, e as de
repressão receberam mais importância que as dissociações” (p. 361). McWilliams
localiza em "Anna O" um exemplo “personalidade múltipla altamente funcional”,
o que alias abre aqui a inclusão de uma fato, de que, muitas vezes, tais
personalidades são compreendidos como casos de histeria. O “rival de Freud”, P.
Janet já tinha uma visão mais próxima do modelo dissociativo.
O modelo freudiano acabou por privilegiar as fantasias “e em sua interação com
os desa os do desenvolvimento” (p. 364) do que a ênfase colocada no trauma e
no molestamento, como ele deixa bem claro em sua famosa carta a Fliess de
1896 em que a rma: “não acredito mais na minha neurótica”. Apesar disso Freud
fez uma a rmação que se aproxima muito da forma que compreenderemos a
personalidade múltipla nessa aula: “Talvez o segredo dos casos descritos como
de personalidades múltiplas seja que as diferentes identi cações, uma de cada
vez, tomem conta da consciência” (p. 365).

Pulsão, afeto e temperamento

Uma palavra chave para se pensar esse tipo de personalidade é “auto-hipnose”.


Numa diferenciação breve, poderíamos colocar a despersonalização, como um
estado em que a pessoa não se reconhece, e o de dissociação em que uma outra
personalidade assume no sujeito, uma personalidade alias com todas uma
história e lembranças próprias. No entanto, essa forma de auto-hipnose em
situações de angústia é para quem pode, não para quem quer. Uma boa parte
das pessoas lida com situações como essa através de acting-out, uso de
substâncias, etc. McWilliams sugere que essas personalidades, quando crianças,
tinham uma capacidade imaginativa para além das pessoas comuns.

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Processos defensivos e adaptativos

Como todas as defesas, elas começam como modos adaptativos e depois


podem se tornam de uso crónico e defensivo. A dissociação é uma defesa
primitiva e “estranhamente invisível. Quando um estado ou sistema do self
alternado está tornando as coisas mais leves, ninguém além do cliente consegue
perceber o processos dissociativo” (p. 368).

Padrões relacionais

Esse é um tipo de quadro que parece ser o único a apresentar uma “causa” certa.
Nas personalidades dissociativas existe sempre uma experiência de abuso vivido
na infância. E em geral os pais desses indivíduos estão em mesmas condições
dissociativas ou outros casos graves, como esquizofrenia (como no lme Sybil).
Vivem um tipo de apego desorganizado-desorientado.
Existe uma hipótese transgeracional, a nal, crianças sofrem abusos desde a
antiguidade, e não necessariamente apresentavam este tipo de quadro, parece
que nesse tipo de quadro, os casos de abusos ocorrem por pessoas que também
foram abusadas e os abusadores desta última também o foram e assim
sucessivamente (p. 371).
O cenário de abuso parece inevitável, e é fundamental aqui acrescentarmos um
dos pontos descritos por Kluft (1984), o quarto ponto em que, não existe
"nenhum tipo de conforto antes ou depois dos episódios traumáticos” P. 371).

O self dissociativo

O self de uma pessoa dissociativa é fraturado em numerosas selfs (proposta


semelhante aos núcleos do ego de E. Glover e do modelo endopsíquico de
Fairbairn, ou até mesmo o falso self proposto por Winnicott). E ainda “Os estados
de self discretos em geral incluem um que os especialistas em trauma intitularam
originalmente personalidade hospedeira (aquela que está mais em evidência, via
de regra a que procura atendimento e que pode se apresentar como ansiosa,
distímica e sobrecarregada), componentes da primeira e da segunda infâncias,
perseguidores internos, vítimas, protetores e auxiliares e outras personalidades
de propósito especí co. A personalidade hospedeira pode conhecer todas as
outras, algumas ou nenhuma, e as outras também podem conhecer todas,
algumas ou nenhuma delas” (p. 373).

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Transferência e contratransferência

No lme Sybil, numa conversa sobre as 17 personalidades de Sybil, um dos


psiquiatras pergunta se a colega de pro ssão vai cobrar individualmente de cada
uma das personalidades, uma piada mas que nos serve para pensar que
transferência e contratransferência serão tantas quantas forem as personalidades
apresentadas, com um ponto a mais na contratransferência de uma postura de
descon ança por parte do terapeuta.
Por terem como condição para tal quadro a situação real de um abuso, o
terapeuta poderá ser colocado nesse lugar de uma gura ameaçadora, “alguém
diferente do provável abusador - alguém respeitoso, esforçado, humilde e
pro ssionalmente escrupuloso” (p. 376).
A dissociação pode ser “contagiosa” e o terapeuta pode começar a apresentar
pequenos momentos dissociados.

McWilliams enfatiza a e cácia da proposta de Kluft e por isso indico a leitura na


íntegra das páginas 378 e 379.

Diagnóstico Diferencial

Dissociativas vs Psicoses

Muitas vezes pacientes que apresentam esses estados de múltiplas


personalidades são consideradas esquizofrênicas. Mas alguns pontos precisam
ser levados em conta, com pacientes dissociativos "o relacionamento com o
terapeuta é intenso desde o início, enquanto que os clientes esquizofrênicos têm
uma característica mais monótona e amortecida e não incentiva o terapeuta a um
apego mais intenso” (p. 383). Assim como a fuga da realidade marcante na
esquizofrenia que costuma se iniciar na adolescência e progride ao isolamento
na vida adulta. E no caso das dissociativas são vidas compartimentalizadas
remuitas vezes funcionais.

Dissociativas e Borderline

“Ainda que alguns clientes dissociativos tenham legitimidade para estar


posicionadas na faixa borderline, na qual prevalecem questões de separação/
individuação, é comum pessoas dissociativas altamente funcionais serem
consideradas, de forma equivocada, borderline quando sua dissociação se torna
problemática” (p. 384).

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Dissociativas e Histéricas

Como dois círculos que se sobrepõem em uma parte, existe na histeria o aspecto
dissociativo, ao ponto de muitos tomarem como sendo o mesmo quadro (Mais
uma vez referência aqui ao lme Sybil).
Aqui cabe a distinção, arriscada, porém necessária de trauma real e fantasia de
trauma. Na histeria os mau-tratos em geral se referem a fantasias e nas
dissociativas em experiencias reais, isso tem como consequência que na primeira
é necessário, por parte do terapeuta, interpretar os impulsos recorrentes, e
fantasias inconscientes e na segunda uma reconstrução do passado traumático.

Winnicott e a “experiência não integrada"

Apesar de não ser citado por McWilliams, enxergo que a teoria de Winnicott
oferece um rico ponto de partida para pensar as personalidades dissociativas,
começando por seu modelo de inconsciente proposto em “O medo do colapso”,
uma lembrança em que o paciente “não estava lá para que ela lhe acontecesse”
(p. 74). Como se certas experiencias ultrapassam a capacidade egoica de
suportar tal situação e por isso deixa de ser integrado ao ego, porém permanece
orbitando aguardando o momento de integração, numa situação futura com um
ego mais fortalecido. Em situações como essa, o sujeito pode se utilizar de
“falsos selfs" para lidar com essa questões não integradas. Aqui estou “forçando
a teoria de Winnicott para esta leitura”, como disse, trazer um ponto germinal
para futuras pesquisas. Apesar de precisar incluir um dado que talvez invalide
minha proposta, uma das hipóteses trazida por Ian Hacking no livro “Multipla
personalidade e as ciências da memória” em que ele não traz essa leitura de
memórias não integradas, e sim um modelo em que cada personalidade que
assume no sujeito tem sua própria historicidade.

A seguir algumas passagens de um interessante artigo sobre a leitura de


Fairbairn das Personalidade Múltiplas:

Ao longo de sua carreira, Fairbairn voltou-se para a personalidade múltipla como


uma condição que sua "intrincada sondagem teórica" (Hinshelwood, 1991, p.
307) poderia iluminar. Isto começou com sua tese sobre "Dissociação e
repressão" (1929a/1994) e com seu ensaio sobre o superego (1929b/1994), os
quais só se tornaram disponíveis após a publicação do inestimável From instinct
to self (Scharff & Birtles, 1994).

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A psicologia da estrutura dinâmica de Fairbairn baseia-se no entendimento de


que as estruturas cindidas de ego e objeto podem agir independentemente
como entidades -como pessoas - e funcionar, uma com a outra, em
relacionamentos dinâmicos. A a rmação mais clara feita por Fairbairn em defesa
dessa perspectiva aconteceu em 1943, durante as "Controvérsias" (King &
Steiner, 1991), quando argumentou que o conceito explanatório de "phantasia",
no trabalho de Melanie Klein e de seus seguidores, tornara-se obsoleto e que era
o momento para a substituição.

Em um artigo anterior sobre um caso clínico com sintomas característicos da


personalidade múltipla, Fairbairn introduz o conceito de "constelações
estruturais funcionais", que acreditamos ser um precursor da "estrutura
endopsíquica básica" de sua teoria madura.

No mesmo artigo, Fairbairn indicou que a personalidade múltipla poderia ser


vista como resultado da "invasão do campo consciente por constelações
estruturais funcionais que se tornaram diferenciadas no inconsciente sob pressão
de necessidade econômica" (Fairbairn, 1931/2002, pp. 221-222), e argumentou
que tais constelações aparecem tanto como estruturas-de-ego quanto como
objetos internos, cada qual podendo adquirir "uma independência
dinâmica" (Fairbairn, 1944/2002, p. 132).

Roger e o menino debaixo d'água


Roger era um homem zeloso, inteligente, que iniciou a análise por volta de seus
quarenta e poucos anos, em decorrência de um isolamento social de longa data.
Durante muito tempo, privou-se de relações sexuais com homens, pois, no
passado, havia repetidamente experimentado tais circunstâncias como
"espaçadas... sem sentimentos, emocional ou físico... [e] não lembro muito" Suas
experiências sexuais sempre terminavam em fracasso vergonhoso e levavam
Roger a sentimentos agressivos para com os seus parceiros. Sem que Roger o
soubesse, toda vez que se iniciava algum tipo de contato sexual, um "múltiplo"
ou uma personalidade alternativa, o menino debaixo d'água, surgia e assumia
posse parcial de sua consciência, deixando a capacidade de funcionamento
integrativo de Roger consideravelmente comprometida. O menino debaixo
d'água apareceu na época em que foi duas vezes abusado sexualmente por
adolescentes de seu bairro, quando tinha sete anos. Estes ataques precipitaram
defesas dissociativas, levando os traumas a serem experimentados em um
estado dissociado, com uma perda regressiva da identidade pessoal. As
lembranças desses eventos foram banidas da memória de Roger, e as
experiências vividas pelo menino foram sepultadas debaixo d'água. Durante
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anos, o paciente foi atormentado por um terror de caminhar na água da praia


caso o nível do mar estivesse superior ao seu joelho.
Nós interpretamos o menino debaixo d'água como uma personalidade
alternativa de ego antilibidinal traumaticamente dissociado. (Consideramos
todas as personalidades alternativas - múltiplos - discutidas a seguir como
traumaticamente dissociadas das estruturas dinâmicas presentes na estrutura
endopsíquica de Fairbairn - ego ou objeto central, ideal, libidinal e antilibidinal -
mas, por interesses de legibilidade, usaremos a abreviação de "múltiplo de ego
antilibidinal" com o entendimento de que estamos aludindo à forma mais
extensa). Esse múltiplo há tempos "sepultado" foi ativado na idade adulta de
Roger, a partir do início da vida sexual e com o contato mais íntimo de seus
parceiros. O menino debaixo d'água apresentara-se como uma criança de sete
anos que considerou que seria o seu dever "estar lá para Roger" durante as
relações sexuais - "para protegê-lo", absorvendo a agressão sexual que,
certamente, estaria por vir. Embora parte de Roger, o menino debaixo d'água,
considerasse o analista como um objeto antilibidinal sexualmente ameaçador,
Roger, como um todo, lentamente desenvolveu con ança. Ele tornou-se, então,
capaz de comunicar-se com o menino debaixo d'água, de expressar
entendimento e apreciação frente às proteções recebidas e tomar as
experiências sexuais abusivas e os afetos correspondentes como seus. O menino
debaixo d'água não sentiu ressentimento ou ódio por Roger, ainda que este
tenha permitido que o menino fosse abusado, ou mesmo por tê-lo exposto ao
perigo repetidas vezes ou por tê-lo deixado sofrer sozinho durante muitos anos.
No entanto, as relações entre múltiplos de ego antilibidinal e o ego central
costumam ser muito mais con ituosas e antagônicas.

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