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Preconceito na Economia de
Credibilidade

2.1. ESTEREÓTIPOS E ESTEREÓTIPOS


PRECONCEITUOSOS
Qual é o mecanismo básico na troca testemunhal através do
qual o preconceito corrompe os juízos de ouvintes acerca da
credibilidade do falante? O preconceito pode se insinuar de diversas
maneiras, mas eu continuarei com a ideia de que seu principal ponto de
entrada é através de estereótipos que usamos como heurísticas em nossos
julgamentos de credibilidade. Eu uso ‘estereótipo’ em um sentido
neutro, como antes, de maneira que estereótipos podem ou não ser
confiáveis; e ainda que eu deva argumentar que estereótipos confiáveis
são uma parte apropriada dos recursos racionais da ouvinte na realização
de julgamentos de credibilidade, o quadro que construirei de nossa
situação como ouvintes é tal que estamos perpetuamente suscetíveis a
invocar estereótipos que são preconceituosos.
Vamos começar esclarecendo o que, mais precisamente,
significa ‘estereótipo’ aqui. A literatura sobre psicologia social apresenta
um conjunto de concepções variadas. 1 Uma vez que estou usando a

1
Ver, por exemplo, STANGOR, Charles (Ed.). Stereotypes and prejudice: Essential
readings. Filadélfia: Psychology Press, 2000.; MACRAE, C. Neil; STANGOR, Charles;
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palavra de forma neutra, para que possa haver estereótipos


empiricamente confiáveis, bem como aqueles não-confiáveis e
distorcidos, uma concepção razoavelmente ampla é necessária. Vou
falar um pouco mais sobre a natureza de estereótipos mais tarde, quando
os considerar como imagens, mas, por ora, permitam-me afirmar que os
estereótipos são associações amplamente aceitas entre um determinado
grupo social e um ou mais atributos. Essa concepção é ampla de três
maneiras. Primeiro, ela é neutra em relação a se a generalização
incorporada pelo estereótipo é confiável ou não. Segundo, ela permite
que os estereótipos sejam mantidos não apenas como crenças, mas
também em outras dimensões do comprometimento cognitivo:
notadamente aqueles que podem ter um aspecto afetivo, como
compromissos que derivam da imaginação coletiva e que podem
permitir menos transparência que as crenças.2 Em terceiro lugar, permite
que os estereótipos possam ter uma valência positiva ou negativa, ou
mesmo nenhuma, dependendo se o atributo é depreciativo, elogioso ou
indiferente, bom ou ruim ou neutro.3 Alguns estereótipos podem resistir

HEWSTONE, Miles (Ed.). Stereotypes and stereotyping. Guilford Press, 1996; e


MCGARTY, Craig Ed; YZERBYT, Vincent Y.; SPEARS, Russell (ed.). Stereotypes as
explanations: The formation of meaningful beliefs about social groups. Cambridge
University Press, 2002.
2
Compare, por exemplo, uma definição dada em termos doxásticos pelos co-autores
Jacques-Philippe Leyens, Vincent Y. Yzerbyt e Georges Schadron: “crenças
compartilhadas sobre atributos de uma pessoa, geralmente traços de personalidade, mas
freqüentemente também comportamentos, de um grupo de pessoas.” (Stereotypes and
Social Cognition. Londres: Sage Publications, 1994, p. 11). Essa concepção puramente
doxástica do que é manter um estereótipo parece muito estreita, certamente para os
propósitos atuais.
3
Compare com a concepção de estereótipos de Lawrence Blum como associações falsas
e negativas entre um grupo e um atributo. Isso certamente identifica o tipo de estereótipo
mais eticamente problemático e, portanto, se localiza naturalmente em uma análise do que
há de moralmente errado em estereotipar pessoas; mas seria estreito demais para os
propósitos atuais – o que ele chama de estereótipos eu distinguo como estereótipos
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a qualquer categorização definitiva, pois podem ter uma valência


positiva ou negativa, dependendo do contexto. O estereótipo das
mulheres como intuitivas é um bom exemplo. Em contextos em que se
assume que ‘intuitivo’ sugere irracionalidade, o estereótipo é
depreciativo; mas em contextos em que a intuição é considerada um bem
cognitivo, o estereótipo é elogioso. Também pode haver contextos em
que tanto a valência positiva quanto a negativa estão de alguma forma
em jogo – o estereótipo pode funcionar como um elogio áspero, por
exemplo.
Se os estereótipos são associações amplamente mantidas entre
um grupo e um atributo, então estereotipar acarreta um compromisso
cognitivo com alguma generalização empírica sobre um determinado
grupo social (“as mulheres são intuitivas”). Uma generalização pode,
claro, ser mais ou menos forte. Consequentemente, em casos extremos,
alguém que estereotipa pode estar comprometido com a generalização
como um universal (“todas as mulheres são intuitivas”); ou, no outro
extremo do espectro, pode-se estar comprometido com isso de uma
forma muito diluída (“muitas mulheres são intuitivas”); ou, novamente,
pode-se estar comprometido com algo intermediário (“a maioria das
mulheres é intuitiva”).
A ideia de que usamos estereótipos em nossos julgamentos de
credibilidade está alinhada com correntes da psicologia social:

As últimas décadas testemunharam um afastamento de uma visão de


que julgamentos são produtos da tomada de decisões racional e lógica,
marcada pela presença ocasional de necessidades e motivações

negativos preconceituosos de identidade. Veja BLUM, Lawrence. Stereotypes and


stereotyping: A moral analysis. Philosophical papers, v. 33, n. 3, p. 251-289, 2004.
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irracionais, em direção a uma visão da pessoa como usuário heurístico.


O trabalho empírico sobre julgamentos não sociais indica que o
perceptor emprega atalhos ou heurísticas para tornar mais livre o
trabalho e transmitir informações o mais rápido possível, e pesquisas
recentes em psicologia social sugerem que esses processos também se
aplicam à formação e ao uso de julgamentos sociais.4

Estamos imaginando as ouvintes como confrontadas com a


tarefa imediata de avaliar quão provável é que aquilo que um falante
disse seja verdadeiro. Com exceção de uma riqueza de conhecimento
pessoal do falante como indivíduo, tal julgamento de credibilidade deve
refletir algum tipo de generalização social sobre a confiabilidade
epistêmica – a competência e a sinceridade – das pessoas do tipo social
do falante, de modo que é inevitável (e desejável) que a ouvinte faça uso
espontaneamente das generalizações relevantes na forma abreviada de
estereótipos (confiáveis). Sem essa ajuda heurística, ela não será capaz
de alcançar a espontaneidade normal do juízo de credibilidade, que é
característica da troca testemunhal cotidiana. Considere o estereótipo da
médica de família confiável. Na medida em que a associação que se
cristalizou nesse estereótipo significa que ele incorpora uma
generalização empiricamente confiável sobre os médicos de família, é
epistemicamente desejável que o estereótipo ajude a moldar os
julgamentos de credibilidade que fazemos quando esses médicos nos dão
conselhos médicos gerais. Grande parte do trabalho cotidiano exige que

4
TAYLOR, Shelley E. The Availability Bias in Social Perception and Interaction. In:
KAHNEMAN, D.; SLOVIC, P.; TVERSKY, A. (eds.). Judgement under Uncertainty:
Heuristics and Biases. Cambridge: Cambridge University Press, 1982, p. 198. Veja
também KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. On the Psychology of Predication.
Psychological Review, n. 80, 1973, 237 – 51; e TVERSKY, Amos; KAHNEMAN,
Daniel. Judgment under Uncertainty: Heuristic and Biases. Science, n. 185, 1974, 1124 –
31.
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a ouvinte se envolva em uma categorização social de falantes, e é assim


que os estereótipos lubrificam as engrenagens da troca testemunhal.
Mas e se um preconceito de identidade estiver operando no
estereótipo? Muitos dos estereótipos de grupos historicamente
impotentes, como mulheres, negros ou pessoas da classe trabalhadora,
envolvem uma associação com algum atributo inversamente relacionado
à competência ou sinceridade ou ambos: super emotividade, ilogicidade,
inteligência inferior, inferioridade evolutiva, descontrole, falta de
“pedigree”, falta de fibra moral, imaturidade, etc. Uma primeira coisa a
dizer sobre esses estereótipos preconceituosos é que, na medida em que
a associação é falsa, o estereótipo incorpora uma generalização empírica
não-confiável sobre o grupo social em questão. Mas isso, por si só, não
é suficiente para tornar um estereótipo preconceituoso, pois um
estereótipo que incorpora uma generalização empírica não-confiável
pode ainda equivaler a um erro inteiramente não culpável – resultado,
talvez, de um caso de má sorte epistêmica coletiva, como quando a
evidência disponível é enganosa. A ideia de um preconceito é
basicamente a de um pré-julgamento, onde isso é mais naturalmente
interpretado em uma veia internalista como um julgamento feito ou
mantido sem a devida consideração à evidência, e por essa razão
devemos conceber o preconceito em geral como algo epistemicamente
culpável. 5 Como qualificação, devemos notar, no entanto, que pode

5
Para uma abordagem que define o preconceito independentemente da ideia de que ele
envolve qualquer erro de julgamento por parte do sujeito, ver o trabalho de BROWN,
Rupert. Prejudice: Its Social Psychology. Oxford: Blackwell, 1995. Ele define o
preconceito como, simplesmente, “uma atitude, emoção, ou comportamento negativo
direcionado a membros por conta de seu pertencimento a esse grupo” (p. 14; ver também
p. 8). Dependendo de como se interpreta, a preocupação óbvia com uma definição tão
ampla é que ela identificaria uma pessoa como preconceituosa se ela tivesse uma atitude
63

haver raras exceções a essa regra geral de culpabilidade epistêmica. Pode


haver, por exemplo, circunstâncias atenuantes, como quando os padrões
de julgamento do sujeito são influenciados pelos preconceitos de sua
época em um contexto em que seria necessário um caráter epistêmico
excepcional para superar esses preconceitos. Estas podem ser
circunstâncias em que é simplesmente demais esperar que o sujeito
perceba que certo preconceito está estruturando sua consciência social,
e muito menos que, após isso, realinhe seus hábitos de julgamento de
credibilidade. Em tal situação, a pessoa que comete o erro
preconceituoso está sujeita à má sorte epistêmica “circunstancial” – a
contrapartida epistêmica daquilo que Nagel chama de má sorte moral
“circunstancial”. 6
Consideraremos um exemplo desse tipo de
circunstância exculpável no Capítulo 4 quando revisitarmos Herbert
Greenleaf e a injustiça testemunhal que ele comete contra Marge
Sherwood.
Nomy Arpaly constroi um exemplo interessante destinado a
ilustrar a distinção entre um erro não-culpável (um “erro honesto”) e um
preconceito. Considere Solomon. Ele é “um menino que mora em uma

negativa para com, por exemplo, membros de um partido político neo-Nazista por conta
de seu pertencimento a esse grupo – algo que a maioria das pessoas não chamaria de
preconceito. Pode haver considerações metodológicas no cenário psicológico social em
favor da adoção de uma definição tão ampla, mas filosoficamente parece muito errado
romper o vínculo entre preconceito e erro de julgamento.
6
Ver NAGEL, Thomas. Moral Luck. In: Mortal Questions. Cambridge: Cambridge
University Press, 1979. Foi uma resposta ao artigo de Bernard Williams com o mesmo
nome - Moral Luck. In: Moral Luck: Philosophical Papers 1973 – 1980. Cambridge:
Cambridge University Press, 1981). Ambos os artigos foram originalmente publicados em
Proceedings of the Aristotelian Society, vol. sup. 50, 1976. Para uma discussão sobre a
analogia entre a sorte moral e a epistêmica, ver STATMAN, Daniel. Moral and epistemic
luck. Ratio, v. 4, n. 2, p. 146-156, 1991.
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pequena comunidade agrícola isolada em um país pobre” que “acredita


que as mulheres não são tão competentes quanto os homens quando se
trata de pensamento abstrato, ou pelo menos não estão inclinadas a esse
tipo de pensamento”.7 Ele nunca conheceu uma mulher que desenvolveu
o pensamento abstrato; sua biblioteca local contém apenas livros desse
tipo escritos por homens, e ele conheceu muitos homens que eram
pensadores abstratos e, entre esses homens, parecia haver um consenso
de que as mulheres não estão realmente à altura disso. Até agora, Arpaly
sugere, Solomon não poderia ser acusado de qualquer irracionalidade
marcante. Mas agora ela nos pede para imaginar que ele vai para a
universidade, onde estuda ao lado de estudantes mulheres capazes. Se
essa evidência contrária à sua visão muda a crença, então a crença se
revela como um erro honesto. Se isso não muda a crença, entretanto, a
crença se revela como irracional e, além disso, como um preconceito: a
teimosia da crença de Solomon, diante da manifesta contraevidência,
revelaria que ele é, ao mesmo tempo, epistemica e eticamente falho. A
falha ética deriva do fato de que Solomon manter sua crença em face da
contraevidência não seria apenas um caso de irracionalidade, mas um
caso de irracionalidade motivada, onde a motivação (presumivelmente
algum tipo de desprezo pelas mulheres) é eticamente nociva.
Até aqui concordo com a mensagem pretendida, pois entendo
que o exemplo de Arpaly ilustra que um julgamento preconceituoso é
(tipicamente) culposamente resistente à evidência e, portanto, irracional.
Concordo também que o preconceito imaginado para Solomon o

7
ARPALY, Nomy. Unprincipled virtue: An inquiry into moral agency. Oxford
University Press, 2002, p. 103.
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revelaria como eticamente falho, e que essa falha ética consiste na


motivação eticamente errada por trás da irracionalidade. Arpaly, no
entanto, parece sugerir que tal falha ética por parte do sujeito é uma
característica definitiva do preconceito em si. Não tenho certeza se ela
pretende comprometer-se com isso, mas vale a pena levantar a questão
por si só. Embora seja certamente correto colocar o preconceito
imaginado para Solomon como constituindo uma falha ética de sua
parte, isso não é o caso para preconceitos em geral. Nem todos os
preconceitos envolvem uma falha ética por parte do sujeito. Existem
diferentes tipos de preconceito. O preconceito de Solomon contra as
capacidades intelectuais das mulheres é, em meus termos, uma instância
de preconceito negativo de identidade, e esse tipo de preconceito
tenderia a ter uma motivação eticamente errada por trás. O preconceito
negativo de identidade é certamente o tipo de preconceito mais
moralmente problemático, e é do tipo que mais nos interessa (lembre-se
do preconceito de identidade dos jurados brancos contra Tom Robinson,
atrás do qual há uma ou mais motivações eticamente nocivas, como o
ódio racial ou desprezo). Mas preconceito tomado de modo geral é uma
noção mais ampla.
É mais ampla em dois sentidos. Em primeiro lugar, embora o
preconceito seja certamente uma ideia de um julgamento formado ou
mantido de maneira resistente às evidências, e na qual essa resistência é
causada por algum tipo de motivação por parte do sujeito, isso permite
motivações que não são eticamente erradas. Lembre-se do nosso
exemplo sobre a revista científica e seu corpo de avaliadores que são
preconceituosos contra um determinado método científico. Nós não
precisamos estipular que os avaliadores possuem uma motivação
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eticamente errada para representá-los como preconceituosos. Basta que


consideremos o julgamento de uma determinada submissão à revista
como resistente à evidência por causa de algum investimento
motivacional compensatório – talvez os membros do corpo não sejam
suficientemente sensíveis aos benefícios do novo método científico
devido a um profundo sentimento de lealdade à ortodoxia metodológica,
ou talvez se sintam ameaçados pela inovação intelectual. Essas não são
motivações admiráveis, mas também não são eticamente erradas. Em
segundo lugar, o preconceito nem sempre é contra alguém ou alguma
coisa, pois pode haver preconceito a favor. Imagine um grupo diferente
de avaliadores, mas igualmente preconceituoso, cujos membros não
tenham preconceito contra qualquer método científico particular, mas
que sejam preconceituosos a favor de um método em particular, de modo
que, quando chega uma submissão desse tipo, eles ficam
espontaneamente super-impressionados. O preconceito pode ter uma
valência positiva.
Podemos resumir a concepção geral de preconceito que agora
surgiu da seguinte forma:

Os preconceitos são juízos, que podem ter uma valência positiva ou


negativa, e que exibem alguma resistência (tipicamente,
epistemicamente culpável) à contraevidência devido a algum
investimento afetivo por parte do sujeito.
Esse investimento afetivo pode ou não ser eticamente errado,
mas, dada nossa preocupação central com a injustiça testemunhal
sistemática, temos um interesse especial em preconceitos negativos de
identidade, e esses são, eu entendo, sempre gerados por algum
investimento afetivo eticamente errado. Os preconceitos negativos de
identidade são preconceitos com uma valência negativa contra pessoas
67

enquanto tipo social. Agora, se colocarmos nossa concepção de


preconceito negativo de identidade junto com nossa concepção de
estereótipo, poderemos dizer o que é um estereótipo de identidade
preconceituoso negativo:

Uma associação depreciativa amplamente difundida entre um grupo


social e um ou mais atributos, onde essa associação incorpora uma
generalização que exibe alguma resistência (tipicamente,
epistemicamente culpável) a contraevidência devido a um investimento
afetivo eticamente errado.
Este é o tipo de preconceito que está em jogo na injustiça
testemunhal sistemática.
Podemos agora investigar um pouco mais sobre o mecanismo pelo
qual tal estereótipo preconceituoso realmente molda o julgamento de
credibilidade de uma ouvinte. Eu já sugeri que a ouvinte em uma troca
testemunhal cotidiana frequentemente usará estereótipos como heurísticas
para facilitar seu julgamento da credibilidade de um falante. A ouvinte e o
falante estão engajados em uma forma de interação social e,
inevitavelmente, trocam percepções sociais um do outro. Antecipando o
argumento em favor de um modelo perceptual de julgamento de
credibilidade que oferecerei no próximo capítulo, vamos provisoriamente
concordar com a ideia de que naquelas trocas de testemunho cotidianas em
que a ouvinte não delibera sobre até que ponto pode confiar no falante, a
ouvinte percebe o falante como digno de confiança neste ou naquele grau
acerca do que ele está dizendo. Ela o percebe à luz de um conjunto de
suposições de fundo sobre até que ponto pessoas como ele são confiáveis
acerca de certas coisas, relativamente a pessoas como ela, e eu sugeri que
estereótipos confiáveis têm um papel essencial a desempenhar aqui. Esse
modelo de interação entre o falante e a ouvinte nos ajuda a ver o mecanismo
pelo qual o preconceito de identidade pode distorcer o julgamento de
68

credibilidade da ouvinte: ele distorce a percepção da ouvinte sobre o


falante. Aplicando a linguagem perceptual ao nosso exemplo principal,
podemos dizer que o julgamento dos jurados do condado de Maycomb é tão
distorcido pelo estereótipo racial preconceituoso que eles só podem, naquele
contexto do tribunal, perceber Tom Robinson como um negro mentiroso.
Agora, neste exemplo, as percepções dos jurados são moldadas, dentre
outras coisas, por crenças preconceituosas; o estereótipo racial
preconceituoso que determina seus julgamentos de credibilidade é em parte
mediado doxasticamente. Mas nosso foco será principalmente na operação
do preconceito no nível não-doxástico; concentrar-nos nas crenças nos
levaria a subestimar a incidência da injustiça testemunhal. Acredito que a
visão correta das relações epistêmicas é tal que a injustiça testemunhal
acontece na maior parte do tempo, e embora possa ser bastante difícil
policiar o preconceito nas crenças, é significativamente mais difícil filtrar os
estereótipos preconceituosos que informam as percepções sociais de alguém
diretamente, sem mediação doxástica. Muitos casos de injustiça testemunhal
serão, de modo importante, diferentes do caso de Tom Robinson, pois
muitos casos não serão, em absoluto, devidos a crenças preconceituosas,
mas apenas a preconceitos residuais mais furtivos, cujos conteúdos podem
até ser completamente inconsistentes com as crenças realmente mantidas
pelo sujeito. Certamente, às vezes, podemos perpetrar injustiça testemunhal
por causa de nossas crenças; mas a perspectiva mais filosoficamente
intrigante é que podemos com frequência fazê-lo apesar delas.
A fim de esclarecer a ideia de que os estereótipos
preconceituosos às vezes podem ser especialmente difíceis de detectar,
porque influenciam nossos julgamentos de credibilidade diretamente,
sem mediação doxástica, pode ser útil lembrarmos da origem da ideia de
um estereótipo social. O jornalista político Walter Lippmann é
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amplamente citado como popularizador de nosso uso metafórico de


‘estereótipo’ para significar tipo social 8 . Seu significado literal
significa o molde usado na impressão e, por isso, Lippmann descreve
os estereótipos sociais como “imagens em nossas cabeças”. Essa
parece uma descrição rápida tão boa quanto qualquer outra. Se
pensarmos num estereótipo social como uma imagem que expressa
uma associação entre um grupo social e um ou mais atributos, e que
desse modo incorpora uma ou mais generalizações sobre esse grupo
social, então fica mais claro como seu impacto no julgamento pode
ser mais difícil de detectar do que uma crença com o mesmo
conteúdo. As imagens são capazes de causar um impacto visceral no
julgamento, o que lhes permite condicionar nossos julgamentos sem
percebermos, na medida em que seria necessária uma crença
inconsciente para fazê-lo com comparável furtividade.
Isso é mais nitidamente ilustrado quando a influência de
imagens preconceituosas da imaginação social persiste nos padrões de
julgamento de uma ouvinte, mesmo quando seu conteúdo está em
conflito com o conteúdo de suas crenças. Imagine, por exemplo, uma
mulher que se libertou de crenças sexistas – uma feminista de
carteirinha, como dizem – e ainda assim sua psicologia permanece tal
que em muitos contextos ela é influenciada por um estereótipo das
mulheres como pessoas que carecem da autoridade necessária para um
cargo político, de modo que ela tende a não levar a palavra de candidatas

8
LIPPMANN, Walter. Public Opinion. Nova York: Free Press, 1965; publicado
originalmente em 1922.
70

do sexo feminino tão a sério como a dos seus homólogos masculinos.


Essa figura conflituosa exemplifica o fenômeno da (poderíamos chamar)
internalização residual, segundo a qual um membro de um grupo
subordinado continua sendo o mantenedor de uma espécie de meia-vida
para a ideologia opressiva, mesmo quando suas crenças genuinamente
se modificaram. Às vezes isso pode ser simplesmente uma questão de
estados afetivos da pessoa ficarem em descompasso em relação às suas
crenças (a consciência culpada de um ex-católico, os sentimentos de
vergonha de um ativista dos direitos dos homossexuais). Mas outras
vezes pode ser que os compromissos cognitivos mantidos em nossas
imaginações retenham seu impacto sobre como percebemos o mundo
social, mesmo depois que quaisquer crenças correlatas tenham
desaparecido. Esses compromissos podem permanecer em nossa
psicologia de forma residual, em descompasso com o progresso da
crença, de modo que eles mantenham uma influência sobre nossa
percepção social.
Onde imagens preconceituosas subsistem ao lado de crenças
conflitantes, sua influência tenderá a ser muito difícil de identificar. Por
que, afinal, alguém deveria suspeitar que, apesar de tudo em que
acredita, seus julgamentos podem de fato ser moldados por ideias em
contrário? Imagine que nossa feminista de carteirinha chegou à
consciência política na década de 1970, de modo que houve uma
mudança radical de todas as crenças relacionadas ao gênero que a
formaram enquanto criança. Dadas suas crenças feministas recém-
forjadas e fortemente defendidas, por que ela suspeitaria que suas
percepções sociais poderiam continuar sendo moldadas por estereótipos
sexistas? É preciso um feito especial de autoconsciência para estar alerta
71

a esse tipo de preconceito no pensamento de alguém, quanto mais para


corrigi-lo. Talvez, no entanto, ela perceba uma certa dissonância entre
suas crenças e seus julgamentos perceptuais, e se pergunte por que ela
tende a não perceber as candidatas políticas como possuidoras da
seriedade necessária. Num espírito de otimismo, imaginemos que ela
confidencie seus sentimentos e suspeitas a outras pessoas e,
gradualmente, chegue a uma autoconsciência aprimorada que ajude a
limitar o impacto do resíduo preconceituoso em seus julgamentos de
credibilidade. Mas muitos preconceitos não terão vida tão curta. A
imaginação social é uma poderoso recurso para a mudança social, e isso
é significativamente devido à sua capacidade de informar o pensamento
diretamente e, portanto, independentemente das crenças que podem
permanecer contaminadas com os preconceitos da época. Mas no caso
em que são as próprias imagens que estão contaminadas pelo
preconceito, a mesma capacidade, de interferir no julgamento
diretamente e sem a consciência do sujeito, pode tornar a imaginação
social um risco ético e epistêmico 9 . A imaginação social coletiva

9
É um mérito da ideia do “imaginário social” que ele explica como podemos, de forma
não intencional, dar um refúgio cognitivo a ideias e/ou imagens conflitantes. Assim, por
exemplo, Moira Gatens diz: “há alguns... que endossam e perpetuam, de forma irrefletida,
um imaginário sexual no qual as mulheres incorporam o paradoxo de serem consideradas
tanto membros livres e racionais de um corpo político democrático quanto seres sob a
autoridade “natural” dos homens” (Imaginary bodies: Ethics, power and corporeality.
Londres: Routledge, 1996, p. 141). Eu não uso a ideia do imaginário social, entretanto,
uma vez que eu acho que há dificuldades reais em tentar libertá-lo de suas raízes
psicanalíticas, de modo que é preciso mais ou menos recriar o conceito para usá-lo
independentemente de um corpo de teoria psicanalítica de fundo com o qual pode-se querer
não se comprometer. Há um trabalho interessante nessa recriação, mas, para os propósitos
atuais, a noção menos teórica do imaginário social é uma opção mais direta. (A ideia do
imaginário social originou-se na obra de Cornelius Castoriadis. Veja, por exemplo, World
in fragments: Writings on politics, society, psychoanalysis, and the imagination.
Stanford University Press, 1997) Para uma abordagem de diferentes desenvolvimentos da
noção por escritoras feministas, ver Susan James, “Freedom and the Imaginary”, em
72

inevitavelmente contém todo tipo de estereótipo, e essa é a atmosfera


social na qual as ouvintes precisam confrontar seus interlocutores. Não
é surpresa que os elementos preconceituosos na imaginação social
podem interferir em nossos julgamentos de credibilidade sem
consentimento.
Podemos distinguir duas maneiras pelas quais um resíduo
preconceituoso da imaginação social coletiva pode subsistir na
consciência social de um sujeito, mesmo quando ele entra em conflito
com suas crenças. Podemos capturá-las respectivamente sob um aspecto
diacrônico e sincrônico. O caso diacrônico é exemplificado por nossa
feminista de carteirinha. Suas crenças avançaram, mas os conteúdos
carregados em sua imaginação social não mudaram, então eles
constituem uma força preconceituosa residual que continua a moldar
seus julgamentos e motivações – não inconscientemente em qualquer
sentido estrito psicanalítico, mas sem nenhuma consciência focalizada e
sem sua permissão, poderíamos dizer. E um exemplo do caso sincrônico
pode ser um comprometido antirracista de longa data, cujos padrões de
julgamento social, no entanto, revelam um resíduo de elementos racistas
contidos na imaginação social coletiva. Nesse caso, o sujeito individual
é incapaz de filtrar o preconceito na atmosfera do julgamento social de
maneira totalmente eficiente, de modo que um resíduo de preconceito
atmosférico interfere com seus próprios padrões de julgamento,
novamente sem sua permissão. O preconceito residual, seja diacrônico

JAMES, S.; PALMER, S. (eds.). Visible Women: Essays on Feminist Legal Theory and
Political Philosophy. Oxford e Portland: Hart Publishing, 2002, pp. 175 – 95.
73

ou sincrônico na forma, é o tipo de preconceito que trará as formas mais


veladas e psicologicamente sutis de injustiça testemunhal.
Acredito que a consciência de como esse preconceito pode, a
despeito de nós mesmos, moldar nossos julgamentos de credibilidade
com furtividade, dá apoio à ideia de que vários graus de injustiça
testemunhal acontecem o tempo todo. Como Judith Shklar aponta, a
história da filosofia nos leva a pensar erroneamente a justiça como a
norma e a injustiça como a aberração:

[H]á um modo normal de pensar a justiça, que Aristóteles não


inventou, mas certamente codificou e imprimiu para sempre em todas
as nossas mentes. Esse modelo normal de justiça não ignora a
injustiça, mas tende a reduzi-la a um prelúdio ou a uma rejeição e
quebra da justiça, como se a injustiça fosse uma anormalidade
surpreendente10.

Shklar persuasivamente desenvolve a ideia de que a injustiça é,


de fato, um patamar social normal, enquanto gritos ativos de indignação
e demandas por retificação são a preciosa exceção. Penso que a injustiça
testemunhal é uma parte normal da vida discursiva, embora os gritos
ativos de indignação sejam relativamente poucos e esparsos. Pode-se
oferecer várias explicações para isso, incluindo o fato de que reclamar
que seu chefe não lhe deu a devida credibilidade porque, digamos, você
é deficiente é algo difícil de ser facilmente verificável e pode acarretar
risco social significativo (você pode ganhar uma fama como causadora
de problemas, ele pode não querer promovê-la). Mas acredito que outra
razão é que nosso discurso moral cotidiano não tem uma compreensão

10
SHKLAR, Judith N. The faces of injustice. Yale University Press, 1990, p. 17.
74

bem estabelecida do mal que é feito a alguém quando ele é tratado dessa
maneira. A ideia de que (o que eu estou chamando de) injustiça
testemunhal constitui um erro ético que pode ser não-trivial, na verdade
profundamente danoso e até mesmo sistematicamente conectado com
outras formas de injustiça na sociedade, não é muito apreciada. Se fosse,
talvez estivéssemos mais preparados para expressar nossas indignações
e defendê-las buscando algum tipo de retificação; e talvez ocorreria uma
mudança social no sentido de desenvolver um vocabulário e fórum
melhores para transmitir e responder a essas queixas. Talvez também
estivéssemos mais preparados e aptos a mudar nossos padrões de
julgamento de credibilidade, de modo a ficar menos propensos a infligir
injustiça testemunhal sobre os outros.
Nesta seção, venho argumentando que o preconceito tenderá a
ser mais descontrolado quando operar por meio de imagens
estereotipadas mantidas na imaginação social coletiva, uma vez que as
imagens podem operar fora do radar de nosso auto-escrutínio doxástico
comum, às vezes até mesmo apesar de crenças em contrário. Em casos
em que o preconceito realmente impacta diretamente na percepção das
ouvintes sobre os falantes, a esperança deve ser que as crenças das
ouvintes possam em algum momento servir como uma força corretiva
(como no nosso exemplo da feminista de carteirinha que supera sua
percepção preconceituosa de candidatas políticas). Devo salientar, no
entanto, que a possibilidade inversa – de crenças preconceituosas serem
corrigidas por percepções sociais sem preconceitos – é outra fonte de
esperança e, de fato, a ideia geral de que a imaginação social pode ser
uma poderosa força positiva para a mudança social depende disso. Um
exemplo discutido por Arpaly torna clara essa possibilidade. De acordo
75

com a leitura de Arpaly da obra de Mark Twain, Huckleberry Finn,


Huckleberry acredita firmemente e consistentemente que a moralidade
exige que ele entregue Jim, o escravo fugido, às autoridades para que ele
possa ser devolvido ao seu proprietário legal. Mas as ações de
Huckleberry revelam o conflito entre essas crenças e sua faculdade
perceptiva: ele falha crucialmente em entregar Jim quando a
oportunidade surge. Arpaly caracteriza Huckleberry como tendo uma
percepção moral não preconceituosa de Jim como um ser humano
completo, apesar de suas convicções convencionais, mas altamente
racialmente preconceituosas, e ela convincentemente argumenta que ele
é moralmente louvável por isso. Podemos dizer que, ao não entregar Jim,
Huckleberry prova ser perceptualmente não preconceituoso e, de fato,
moralmente bom, apesar de suas crenças preconceituosas
genuinamente sustentadas.
Eu acho que essa possibilidade da percepção sem preconceitos
por parte de um sujeito, com relação outro ser humano, vencer suas
crenças preconceituosas é crucialmente importante para nossa
compreensão de como a mudança social é possível, incluindo a mudança
social envolvida na reforma de nossos padrões de julgamento de
credibilidade. Independentemente de se, em qualquer caso, esperanças
de uma autocrítica eficaz por parte de uma ouvinte residem na
possibilidade de suas crenças reformarem suas percepções, ou de suas
percepções reformarem suas crenças, o ponto mais geral é que a
possibilidade de dissonância entre as duas formas de comprometimento
cognitivo é um recurso epistêmico e ético crucial para aqueles que visam
reduzir o preconceito em seus julgamentos de credibilidade.
76

2.2. INJUSTIÇA TESTEMUNHAL SEM


PRECONCEITO?
Temos explorado a natureza do preconceito e sua influência no
julgamento de credibilidade, porque estamos comprometidos com uma
definição de injustiça testemunhal como envolvendo necessariamente
preconceito, com o caso central envolvendo o preconceito de identidade.
Mas pode-se objetar que, sob certas circunstâncias de má sorte
epistêmica, uma ouvinte poderia aparentemente perpetrar uma injustiça
testemunhal sem estar de posse de qualquer preconceito. O tipo de azar
epistêmico em jogo no exemplo seguinte deriva do fato de que mesmo
os estereótipos mais confiáveis e não preconceituosos permitirão
exceções. Imagine que uma ouvinte responsavelmente julga um falante
como não merecedor de confiança (porque é insincero) devido ao fato
de que o falante evita olhá-la nos olhos, com frequência parece
desconfiado, e faz uma pausa no meio da frase como se quisesse elaborar
sua história 11. O comportamento do falante justifica o julgamento da
ouvinte na medida em que se enquadra em um estereótipo de
insinceridade empiricamente confiável. Na verdade, entretanto, esse
indivíduo está falando de maneira inteiramente ingênua, e seus modos
estranhos simplesmente se devem às manifestações idiossincráticas de
sua extraordinária timidez pessoal. Esse falante, convenhamos, constitui
uma exceção a uma regra empiricamente confiável e, portanto, a
injustiça testemunhal que ele sofre é causada não pelo preconceito, mas
simplesmente pela má sorte. O que deve ser dito sobre tal exemplo?

11
Agradeço a Penelope Mackie por esse exemplo
77

Se considerássemos esse exemplo de timidez como um


exemplo de injustiça testemunhal, então seria um caso de injustiça
testemunhal não culpável: claramente a ouvinte não fez nada pelo qual
ela seja culpada, epistemicamente ou eticamente. Embora seja possível
que uma ouvinte excepcionalmente perspicaz tivesse sido capaz de
discernir que a maneira idiossincrática de seu interlocutor era uma
manifestação de timidez em vez de insinceridade, nós não exigimos que
ouvintes comuns sigam padrões excepcionalmente altos, do mesmo
modo que, em julgamentos éticos, não exigimos que agentes comuns
sigam padrões excepcionalmente altos. Se uma ouvinte não pode ser
culpada pelas razões de seu julgamento falho de credibilidade
(independentemente de se os motivos são incorporados em uma
heurística ou em um argumento deliberado), então ela não pode ser
culpada pelo dano que possa resultar. No presente exemplo, o
julgamento falho de credibilidade da ouvinte surge de um caso de má
sorte epistêmica circunstancial: ela invoca um estereótipo confiável de
insinceridade em uma circunstância em que o estereótipo é,
infelizmente, enganoso.
Mas estou inclinada, em última análise, a dizer que não
devemos considerar este caso como um exemplo de injustiça
testemunhal. Pois se a pessoa tímida é julgada como tendo sido
injustiçada, começa a parecer que epistemicamente o ato de injustiçar
alguém sem nenhuma culpa é muito fácil de fazer, e a injustiça
testemunhal passa a ser uma ideia ética muito menos claramente
especificada. Se pensarmos em nossa pessoa tímida como sendo
injustiçada, então o que dizer de um vendedor honesto de carros de
segunda mão? Dado que ele também é uma exceção a um estereótipo
78

confiável, não deveríamos permitir que ele também esteja sendo


injustiçado pela suspeita da ouvinte sobre ele? E então, avançando um
pouco mais, considere Matilda, que contou tantas mentiras terríveis que
sua reputação justifica a descrença da ouvinte quando ela está gritando
com sinceridade pela janela que a casa está em chamas. Ela também é
injustiçada, embora não seja culpada? Claramente não, pois é culpa dela
que ninguém acredita em uma palavra que ela diz; nem o vendedor de
carros de segunda mão é injustiçado, embora seu caso seja menos óbvio
porque depende mais da má sorte de sua parte (a má sorte de acabar nessa
profissão, por assim dizer). A pessoa tímida tem uma sorte ainda pior do
que o vendedor honesto de carros de segunda mão, dado que geralmente
temos pouco controle sobre o quanto somos tímidos ou as formas que
isso toma em nosso comportamento. Ainda assim, a continuidade com
os outros dois exemplos deve nos levar a concluir que, no caso de nossa
pessoa tímida, também não há injustiça testemunhal, pois o que é comum
a todos os três casos é que a ouvinte não errou – ela fez um julgamento
de credibilidade que está de acordo com as evidências, mas, por má
sorte, o caso prova uma exceção à regra. Todos os três exemplos são
casos de erro inocente da parte da ouvinte: nenhuma culpabilidade
epistêmica, e nenhuma culpabilidade ética. Não há injustiça testemunhal
aqui, e nossa definição permanece.

2.3. O MAL DA INJUSTIÇA TESTEMUNHAL


Eu defendi aqui e ali uma imagem das relações discursivas
humanas de tal modo que a injustiça testemunhal é uma característica
normal de nossas práticas testemunhais. Às vezes ela pode causar muito
79

pouco dano – na verdade, seu impacto pode ser trivial –, mas outras
vezes pode ser seriamente prejudicial, sobretudo quando é persistente e
sistemática. Poderíamos dizer mais sobre a natureza do dano em
questão? É claro que há um dano puramente epistêmico quando
estereótipos preconceituosos distorcem os julgamentos de credibilidade:
o conhecimento que seria transmitido a uma ouvinte não é recebido. Essa
é uma desvantagem epistêmica para a ouvinte individual e um momento
de disfunção na prática ou sistema epistêmico geral. Que a injustiça
testemunhal prejudica o sistema epistêmico é diretamente relevante para
as epistemologias sociais como o “veritismo” de Goldman 12 , pois o
preconceito apresenta um obstáculo à verdade, seja diretamente fazendo
com que a ouvinte perca alguma verdade em particular, ou
indiretamente, criando bloqueios na circulação de ideias críticas. Além
disso, o fato de o preconceito poder impedir que os falantes coloquem o
conhecimento no domínio público revela a injustiça testemunhal como
uma forma séria de falta de liberdade em nossa situação de fala coletiva
– e em uma concepção kantiana, a liberdade de nossa situação de fala é
fundamental para a autoridade de um sistema político, até mesmo para a
autoridade da própria razão13. Este é um território rico e acredito que o

12
Ver GOLDMAN, Alvin. Knowledge in a Social World. Oxford: Clarendon Press,
1999.
13
Ver O”NEILL, Onora. Vindicating Reason. In: GUYER, P. (ed.). The Cambridge
Companion to Kant. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, e seu
Constructions of reason: Explorations of Kant’s practical philosophy. Cambridge
University Press, 1989, cap. 1 e 2. Em um artigo recente, Axel Gelfert reconstroi a visão
de Kant sobre o testemunho e sua relação com a regra da razão, tanto conceitualmente
quanto em nossas instituições públicas. Curiosamente, parece que Kant enfatiza uma
dimensão moral para a incredulidade indevida (cuja forma primária é incorporada em
alguém que não quer aceitar nada como verdadeiro, exceto sobre bases teoricamente
conclusivas), mas ele identifica essa dimensão moral não em termos de algum dano
causado ao falante, mas sim em termos de perda de dignidade do ouvinte, ao falhar em
80

conceito de injustiça testemunhal tem algo a contribuir para a nossa


compreensão da importância política de um funcionamento justo e
eficiente de práticas de confiança epistêmica. No entanto, os propósitos
atuais exigem um foco específico sobre a ética. O dano que nos interessa
aqui não é o dano epistêmico incorrido pela ouvinte ou pelo sistema
epistêmico, nem qualquer dano implicado causado aos fundamentos do
regime político e das suas instituições, mas, em vez disso, o mal imediato
que a ouvinte causa ao falante que é a parte receptora de uma injustiça
testemunhal.
Devemos distinguir um aspecto primário de um aspecto
secundário do dano. O dano primário é uma forma do dano essencial que
é definitivo da injustiça epistêmica, de forma ampla. Em todas essas
injustiças, o sujeito é injustiçado em sua capacidade como conhecedor.
Ser injustiçado em sua capacidade como conhecedor é ser injustiçado
em uma capacidade essencial ao valor humano. Quando alguém é
debilitado ou injustiçado em uma capacidade essencial ao valor humano,
sofre uma injustiça intrínseca. A forma que essa injustiça intrínseca
assume especificamente em casos de injustiça testemunhal é que o
sujeito é injustiçado em sua capacidade enquanto fornecedor de
conhecimento. A capacidade de dar conhecimento aos outros é um lado
dessa capacidade multifacetada tão significativa nos seres humanos: a
saber, a capacidade da razão. Há muito que estamos familiarizados com
a ideia, apresentada pela história da filosofia em muitas variações, de

mostrar o compromisso moral apropriado para sustentar as práticas públicas de confiança


– mais obviamente, a prática de prometer – que são essenciais para a vida social. Ver
GELFERT, Axel. Kant on testimony. British Journal for the History of Philosophy, v.
14, n. 4, p. 627-652, 2006.
81

que a nossa racionalidade é o que confere à humanidade o seu valor


distintivo. Não é de admirar, portanto, que ser insultado, debilitado ou
prejudicado em sua capacidade de fornecer conhecimento é algo que
pode afetar profundamente. Também não é de se estranhar que, em
contextos de opressão, os poderosos certamente debilitarão os
impotentes justamente nessa capacidade, pois isso fornece uma rota
direta para miná-los em sua própria humanidade.
O fato de que a injustiça primária envolve insulto a alguém em
relação a uma capacidade essencial ao valor humano dá até mesmo aos
seus exemplos menos nocivos um poder simbólico que acrescenta uma
camada própria de dano: a injustiça epistêmica tem um significado social
que é fazer com que o sujeito seja menos que completamente humano.
Quando alguém sofre uma injustiça testemunhal, essa pessoa é
degradada enquanto conhecedora, e é simbolicamente degradada
enquanto humana. Em todos os casos de injustiça testemunhal, o que a
pessoa sofre não é simplesmente o mal epistêmico em si, mas também o
significado de ser tratado dessa maneira. Tal significado desumanizador,
especialmente se for expresso diante dos outros, pode resultar em uma
profunda humilhação, mesmo em circunstâncias em que a injustiça é, em
outros aspectos, bastante menor. Mas naqueles casos de injustiça
testemunhal onde o estereótipo preconceituoso que a conduz
explicitamente envolve a ideia de que o tipo social em questão é
humanamente menor (pense no tipo de racismo que afeta Tom Robinson
– “todos os negros são mentirosos” 14 ), a dimensão da degradação

14
LEE, Harper. To Kill a Mockingbird. Londres: William Heinemann, 1960, p. 202.
[Traduzido para o português em LEE, Harper. O sol é para todos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2006. N. do T.]
82

enquanto humano não é simplesmente simbólica; antes, é uma parte


literal do insulto epistêmico central.
A confiabilidade epistêmica tem dois componentes distintos:
competência e sinceridade. Agora, em um caso de injustiça testemunhal,
pode ser que ambos os componentes sejam impugnados pelo preconceito
na ouvinte, caso em que a experiência da injustiça terá um certo caráter
composto. Igualmente, entretanto, pode haver casos em que o
preconceito ataca apenas um dos componentes distintos e, nesses casos,
a experiência da injustiça pode ter um ou outro caráter bastante diferente,
dependendo de se é sua competência ou sua sinceridade que está sendo
minada. Elisabeth Young-Bruehl caracteriza três estilos de preconceito,
dois dos quais são relevantes aqui: o obsessivo e o histérico. Os
obsessivamente preconceituosos frequentemente concebem ou
imaginam seu grupo-alvo “como descendentes de grandes civilizações
do passado – de maneira que são considerados altamente letrados”; e
eles são concebidos como sendo “tanto excepcionalmente intelectuais...
quanto excepcionalmente materialistas – e não há qualquer contradição
sentida aqui, já que eles são tão totalitários em sua luta pelo controle”.
Os histericamente preconceituosos, ao contrário, constroem seu grupo-
alvo como “servil ou escravo por natureza e [de tal forma que] podem
viver apenas da sua força física. Eles são ignorantes e pouco inteligentes,
sem realizações espirituais, ou com habilidades apenas para artes não
letradas, como a música” 15 . Pode-se ver como esses dois diferentes

15
YOUNG-BRUEHL, Elisabeth. The Anatomy of Prejudices. Cambridge, Mass.:
Harvard University Press, 1996, pp. 344 e 364.
83

estereótipos preconceituosos se relacionam especificamente com cada


um dos dois componentes diferentes da confiabilidade epistêmica:
sinceridade no primeiro caso, competência no segundo.
Mas, apesar da possibilidade de que um preconceito possa
separar os componentes gêmeos da confiabilidade epistêmica, sugiro
que a experiência da injustiça testemunhal permaneça unificada o
suficiente para autorizar uma caracterização ética unificada em termos
de ser injustiçado enquanto fornecedor de conhecimento. Como a
confiabilidade epistêmica requer a junção de competência e sinceridade,
um ataque injusto a qualquer dos componentes é suficiente para ser
prejudicado nessa capacidade. O dano terá formas diferentes, mas ambos
são casos de exclusão preconceituosa identitária da comunidade de
confiança epistêmica, e assim ambos pertencem à mesma categoria de
injustiça. (Compare com a ideia de que as violações dos direitos
humanos se enquadram em uma única categoria ética, embora possam
envolver ataques a aspectos bastante diferentes da pessoalidade
humana.)
Hobbes foi inteiramente claro ao dizer que (o que eu chamo de)
julgamentos de credibilidade envolvem uma avaliação de duas coisas
distintas: “na Crença há duas opiniões; uma dos dizeres do homem; a
outra de sua virtude”. No entanto, encontramos em suas observações
sobre o testemunho um precedente idêntico para a concepção unificada
proposta do mal feito em uma deflação preconceituosa de confiança. Ele
escreve sobre a honra que concedemos a um interlocutor quando
acreditamos nele:

Quando cremos em qualquer coisa que nos seja dita, como sendo
verdadeira, a partir de argumentos tomados não da coisa mesma, ou
84

dos princípios da Razão natural, mas da Autoridade e da boa opinião


que temos da pessoa que a tenha dito; então é o falante, ou pessoa em
quem acreditamos, ou confiamos, e cuja palavra nós tomamos, o
objeto de nossa Fé; e a Honra concedida em Acreditar, é concedida a
ela apenas.16
Quando alguém é injustamente objeto de desconfiança, não
importa se é a competência de alguém ou a sinceridade de alguém que
está sendo impugnada, a pessoa está sendo desonrada – isso não seria
um termo inadequado para usar em conexão com o dano primário da
injustiça testemunhal.
Voltando agora ao aspecto secundário do dano, vemos que ele
é composto de uma série de possíveis desvantagens subsequentes,
extrínsecas à injustiça principal, na medida em que são causadas por ela,
em vez de serem uma parte de fato dela. Eles parecem se enquadrar em
duas categorias amplas que distinguem uma dimensão prática e uma
dimensão epistêmica de dano. Primeiro, a dimensão prática: se alguém
está sujeito a até mesmo uma injustiça testemunhal isolada em um
tribunal, de modo que ele é considerado culpado em vez de inocente, ele
pode ter que pagar uma multa ou algo pior; ou, alternativamente, uma
experiência de fundo de injustiça testemunhal persistente pode significar
que na vida profissional de alguém ele parece não ter o julgamento certo
e a autoridade necessários para uma função gerencial, e isso pode fazê-
lo parecer (de fato, num contexto em que as aparências importam, isso
pode realmente torná-lo) inapto para o gerenciamento. Eu dei duas
palestras sobre preconceito e credibilidade em reuniões de mulheres

16
HOBBES, Thomas. Leviathan. TUCK, R. (ed.) Cambridge University Press, 1991,
cap. 7; citações das páginas 48 e 49 [Traduzido para o português em HOBBES, Thomas.
Leviatã: matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. LeBooks Editora,
2019. N. do T.]
85

profissionais de uma grande corporação multinacional dominada por


homens, e algumas das histórias que elas relatam apresentam exemplos
de considerável desvantagem profissional que lhes são causadas, como
eu diria, pelas injustiças testemunhais cotidianas que elas enfrentam no
local de trabalho17. Uma mulher egípcia, trabalhando no Cairo, disse que
quando ela está em uma reunião e quer fazer uma sugestão sobre política,
ela na verdade escreve a sugestão em um pedacinho de papel, de forma
escondida, a passa para um simpático colega do sexo masculino, faz com
que ele faça a sugestão, vê ela sendo bem recebida e depois participa da
discussão a partir daí. Ela adotou essa política depois do acúmulo de
frustração com a recepção incrédula que suas ideias normalmente
recebiam de seus colegas do sexo masculino quando ela as apresentava
como suas. Acho que estou certa ao dizer que sua atitude foi de
resignação combativa, que era assim que ela conseguia que as coisas
fossem feitas, e também que talvez em algum lugar no processo ela
provavelmente tivesse mais crédito do que era permitido mostrar na
superfície. Ela estava ciente, no entanto, que estava em considerável
desvantagem pelas atitudes preconceituosas em relação à sua palavra
como mulher.
Outra mulher, desta vez trabalhando para a empresa nos EUA,
disse-me que não se preocupava muito com quem ganhava o crédito
pelas ideias que apresentava, desde que as ideias fossem implementadas.
Ela não se importava se fizesse uma sugestão e não fosse aceita até que

17
Os eventos foram apresentados pelo Cambridge Programme for Industry and New Hall,
da Universidade de Cambridge. Sou grata a Melissa Lane e a seus co-organizadores pela
oportunidade de participar.
86

um membro masculino da equipe a tivesse verbalizado. Conseguir que


as coisas fossem feitas era o que importava a ela e que lhe dava satisfação
no trabalho. Ela notou, entretanto, que isso provavelmente havia sido um
obstáculo para o desenvolvimento de sua carreira, pois em suas
avaliações anuais de desempenho seu gerente comentou em mais de uma
ocasião o quão extraordinariamente “sortuda” ela parecia ser nas equipes
das quais fazia parte. Todas tão bem-sucedidas! Essas mulheres
certamente teriam um bom argumento em mãos, caso fosse parte do
entendimento corporativo e das instituições de igualdade de
oportunidades, que uma funcionária pudesse reclamar que o preconceito
no ambiente de trabalho está fazendo com que ela receba menos
credibilidade do que lhe é devido, e que isso está atrasando sua carreira.
Suas experiências parecem ser exemplos do tipo prático de dano
secundário causado pela injustiça testemunhal.
A segunda categoria de dano secundário causado pela injustiça
testemunhal é (mais puramente) o dano epistêmico: a receptora de uma
injustiça testemunhal isolada pode perder a confiança em sua crença, ou
em sua justificação para ela, de modo que ela deixa de satisfazer as
condições para o conhecimento; ou, alternativamente, alguém com uma
experiência de fundo de persistente injustiça testemunhal pode perder
confiança em suas capacidades intelectuais gerais a tal ponto de ser
genuinamente prejudicada em sua educação ou outro desenvolvimento
intelectual. Um falante pode experienciar uma injustiça testemunhal em
relação a uma coisa específica que tenha dito, ou em relação à sua
autoridade em um papel social específico, ou simplesmente de modo
geral; mas em casos de injustiça testemunhal sistemática, que são
movidos por um preconceito de identidade, essas três formas de ataque
87

tendem a se unir, de modo que uma recepção preconceituosa indentitária


de uma afirmação particular feita por um falante representa um ataque à
autoridade epistêmica do falante, de modo geral. Linda Martín Alcoff
relembra uma história de uma amiga que era professora não efetivada,
uma Chicanaii que foi alvo de reclamações rebaixantes de um assistente
de ensino, um estudante de pós-graduação branco. Ela acreditou e, de
acordo com a história, ela tinha boas razões para acreditar, que as
reclamações dele eram completamente infundadas; ainda assim, Alcoff
conta como essa jovem professora recebeu muito pouca credibilidade
dos seus colegas na sua explicação do caso, até que um professor branco
sênior sofreu os mesmos tipos de reclamação do estudante: “Este
professor sênior concluiu que o aluno realmente não tinha problemas
com minha amiga, mas com autoridade de forma geral. E o resto de seus
colegas, em seguida, mudou sua visão sobre ela e fez um esforço para
aceitá-la de volta ao grupo... Ela sofreu dois anos de angústia e
insegurança por causa desse obstáculo em sua carreira 18 . Neste
exemplo, como é contado, vemos como alguém pode sofrer uma
injustiça testemunhal dupla (primeiro do assistente de ensino sobre o que
ela disse aos alunos sobre filosofia,19 e, em seguida, de seus colegas a
respeito da sua versão do caso), de modo que ela é duplamente

18
ALCOFF, Linda Martín. On judging epistemic credibility: Is social identity relevant?
In: ZACK, N. (ed.). Women of color and Philosophy. Oxford: Blackwell, 2000, ch. 10;
citação na p. 248, itálicos adicionados.
19
Alternativamente, se mesmo a partir de seu próprio ponto de vista elas fossem
inteiramente inventadas, então, mesmo que ele tenha cometido uma séria injustiça contra
essa professora, ele não cometeu uma injustiça testemunhal contra ela. A injustiça
testemunhal exige que o ouvinte genuinamente julgue a credibilidade do falante de forma
muito depreciativa.
88

prejudicada como transmissora de conhecimento e, consequentemente,


sofre uma prolongada insegurança e insegurança intelectual.
Esses exemplos dos tipos de desvantagens secundárias práticas
e epistêmicas que podem acompanhar a injustiça testemunhal ilustram
como estar sujeito a tal injustiça pode ter um amplo impacto negativo na
vida de uma pessoa. Mas, como eu disse, o fato de tais desvantagens
serem efeitos da injustiça intrínseca significa que, estritamente falando,
elas devem ser entendidas como extrínsecas. (Isso não impede que tais
efeitos sejam injustos, pois eles tipicamente herdarão o status de
injustiça de sua origem causal. Eles também podem constituir outro tipo
de injustiça, como no caso de Tom Robinson, no qual o resultado prático
da injustiça testemunhal é em si uma injustiça legal.) Consequências
secundárias tendem a se ramificar na vida de uma pessoa, de modo que
são capazes de alarmante amplitude; mas elas também podem ser muito
mais profundas do que se poderia esperar, como veremos se buscarmos
entender a dimensão epistêmica do dano um pouco mais profundamente.
Muitas definições e concepções de conhecimento expressam
algum tipo de confiança epistêmica como uma condição para ele, seja
como parte de uma condição para crença ou como parte de uma condição
para justificação. Se quisermos nomear uma visão epistemológica
seminal a este respeito, então certamente deve ser a ideia de Descartes
de que um estado de absoluta confiança na crença – um estado de certeza
– é requisito para o conhecimento, posto que a suposição internalista
cartesiana se fez sentir em tantas concepções de conhecimento
posteriormente. O significado para a presente discussão é que, em
qualquer concepção de conhecimento que inclua confiança, as
implicações para alguém que se depara com a injustiça testemunhal
89

persistente são sombrias: ele não está apenas sujeito ao insulto


epistêmico intrínseco, que é a principal injustiça, mas onde essa
debilitação intelectual persistente faz com que ele perca a confiança em
suas crenças e/ou sua justificação para elas, ele literalmente perde
conhecimento. Talvez algum item de conhecimento que ele possui seja
apagado em uma onda de sub-confiança. Ou talvez ele sofra uma erosão
prolongada da confiança epistêmica, de modo que ele esteja
permanentemente em desvantagem, repetidamente deixando de obter
itens de conhecimento que, de outro modo, teria sido capaz de obter 20.
Uma maneira menos direta pela qual a perda geral de confiança
epistêmica de alguém pode resultar em uma incapacidade contínua de
obter conhecimento é impedindo-o de desenvolver certas virtudes
intelectuais. Mais notavelmente, por exemplo, a perda de confiança
epistêmica provavelmente inibirá o desenvolvimento da coragem
intelectual, a virtude não desistir de suas próprias convicções em
resposta ao primeiro sinal de um desafio. Esta é uma característica
importante da função intelectual. James Montmarquet categoriza as
virtudes epistêmicas como as virtudes de “imparcialidade”, “sobriedade
intelectual” e “coragem intelectual”, onde esta última categoria inclui
“mais proeminentemente a disposição para conceber e examinar
alternativas para crenças amplamente aceitas, perseverança em face da
oposição de outros (até que alguém esteja convencido de que está

20
Em uma visão como a de Keith Lehrer, por exemplo, que explica o conhecimento em
termos coerentistas que fazem o conhecimento depender da autoconfiança por parte do
sujeito, a conexão entre a erosão da confiança epistêmica e a capacidade de possuir
conhecimento é absolutamente direta. (Eu entendo que a perda de confiança epistêmica é
equivalente a, ou pelo menos implica, perda de autoconfiança epistêmica.) Veja LEHRER,
Keith. Self-Trust: A Study of Reason, Knowledge, and Autonomy. Oxford: Clarendon
Press, 1997.
90

enganado), e a determinação necessária para ver tal projeto realizado”21.


Essas diferentes virtudes relacionadas à coragem intelectual exigem
confiança epistêmica e são obviamente suscetíveis à erosão através de
injustiça testemunhal persistente. Assim, se uma história de tais
injustiças corroi a confiança intelectual de uma pessoa, ou de saída nunca
a deixa se desenvolver, isso prejudica sua função epistêmica de maneira
geral. O sujeito pouco confiante tenderá a recuar diante do desafio, ou
mesmo diante da própria expectativa dele, e essa tendência pode privá-
lo do conhecimento que, de outro modo, teria obtido. Nesse caso, haverá
uma série de privações específicas de conhecimento – crenças ou
hipóteses abandonadas muito rapidamente – em que algumas dessas
privações epistêmicas podem constituir perdas significativas. Em termos
mais gerais, e independentemente do fato óbvio de que os sentimentos
de sub-confiança são geralmente desagradáveis em si mesmos, há
também uma perda epistêmica do sujeito em termos de seu caráter
intelectual. O valor de uma virtude intelectual não é redutível ao valor
daqueles itens particulares de conhecimento que ela pode trazer, mas
deriva também de seu lugar na harmonia do caráter intelectual geral de
uma pessoa, uma harmonia que é arruinada pela perda de confiança
intelectual que a injustiça testemunhal persistente pode causar.
Em alguns casos, será difícil dizer se um dado momento de sub-
confiança epistêmica é único, ou se deveria ser visto como parte de um
processo contínuo de erosão. Um exemplo notável é encontrado em
Memoirs of a Dutiful Daughter, de Simone de Beauvoir. Nele, ela

21
MONTMARQUET, James A. Epistemic Virtue and Doxastic Responsibility.
Lanham, Md.: Rowan and Littlefield, 1993 p. 23.
91

relata uma contenda filosófica com seu amigo e colega estudante Jean-
Paul, onde é difícil não ler nas entrelinhas (apesar do ponto de vista
acrítico autoral de Beauvoir) que ele comete uma injustiça testemunhal
contra ela22. Há um verdadeiro pathos no fato de que até mesmo uma
Beauvoir madura escreve em aparente inocência da injustiça do
tratamento debilitador de Sartre contra ela, sem mencionar o fatigante
abuso que isso representa, e de que ela relata a experiência assim:

Dia após dia, e durante todo o dia comparei com Sartre, e em nossas
discussões simplesmente não estava à sua altura. Uma manhã nos
Jardins de Luxemburgo, perto da fonte Medici, delineei para ele a
moralidade pluralista que eu criara para justificar as pessoas de quem
gostava, mas às quais não queria me assemelhar: ele a destruiu. Eu estava
apegada a ela, porque me permitia tomar meu coração como árbitro do
bem e do mal; Eu lutei com ele por três horas. No final, tive que admitir
que estava derrotada; além disso, percebi, no decorrer de nossa discussão,
que muitas das minhas opiniões se baseavam apenas no preconceito, na
má-fé ou no descuido, que meu raciocínio era instável e minhas ideias
confusas. “Não tenho mais certeza do que penso, ou mesmo se sequer
penso”, observei, completamente vencida.23

Aqui está uma estudante de filosofia (excepcionalmente bem-


sucedida) que se sente completamente diminuída por uma experiência
de injustiça testemunhal – ela fica na dúvida até se ela sequer pensa.
Felizmente, ela tem a resiliência e a disciplina intelectual para se
recuperar, pelo menos como é apresentado no livro de memórias, a

22
Eu uso “testemunho” aqui em um sentido estendido para incluir não apenas todos os
casos de contar algo, mas também casos da expressão para um interlocutor de julgamentos,
visões e opiniões. Penso que o lugar real da injustiça testemunhal no discurso humano
permite esse uso ampliado, embora sua estrutura ética e, de fato, sua epistemologia, seja
mais bem ancorada em casos em que se conta algo, uma vez que o ponto fundamental de
contar algo é transmitir conhecimento.
23
Simone de Beauvoir, BEAUVOIR, Simone de. Memoirs of a Dutiful Daughter, trad.
James Kirkup. Londres: Penguin, 1959, itálicos adicionados; publicado originalmente
como Mémoires d’une jeune fille rangée. Paris: Librairie Gallimard, 1958 [Traduzido
para o português em BEAUVOIR, Simone de. Memórias de uma moça bem-
comportada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017].
92

experiência marca o ponto de virada em seu desenvolvimento intelectual


no qual ela decide que a filosofia não é realmente para ela, e que ela
estava destinada, em vez disso, a ter uma vida de escritora. Esta pode ter
sido a decisão certa, considerando tudo; mas se assim for, não será
porque suas ideias sobre o bem e o mal “foram baseadas apenas no
preconceito, na má-fé ou na falta de ideias”, no raciocínio “instável” e
nas ideias “confusas”24. A injustiça testemunhal, e o ataque que ela faz
à confiança intelectual, podem mudar uma trajetória intelectual em um
só golpe, seja como um evento isolado ou, mais provavelmente, como a
última gota de uma experiência contínua de pequenos desvios
intelectuais persistentes. Independentemente de como julgamos as
coisas, é claro como a experiência na ocasião pode constituir uma
humilhação epistêmica injusta de considerável consequência pessoal e
profissional.
Tais são os efeitos secundários práticos e epistêmicos da
injustiça testemunhal. Tenho argumentado que essas desvantagens
podem ser amplas e profundas na vida de uma pessoa. Mas agora eu
gostaria de voltar ao aspecto primário da injustiça testemunhal para ver
se a experiência de ser epistemicamente diminuído poderia ter um
significado mais profundo para a psicologia do sujeito do que o que
consideramos até agora. No modelo de Bernard Williams sobre o
mecanismo psicológico pelo qual nossos vários conteúdos mentais são
classificados (grosso modo) como crenças, por um lado, e desejos, por
outro, encontramos a mente descrita como contendo um estrato de

24
Eu tento falar um pouco mais sobre suas razões em Life-story in Beauvoir’s memoirs.
In: CARD, C (ed). The Cambridge companion to Simone de Beauvoir. Cambridge
University Press, 2003.
93

conteúdos que são entretidos sem nenhuma atitude determinada:


“anseios”. Os anseios são crenças ou desejos em espera, de modo que
qualquer dado anseio pode estar a caminho de se tornar um ou outro. E
o processo pelo qual os anseios passam a ser classificados em uma ou
outra categoria (não uma atividade deliberativa da parte do sujeito,
obviamente, mas sim um processo na psicologia do sujeito) Williams
chama de “estabilização da mente”:

O mecanismo básico depende do fato de que há outros que precisam


confiar em nossas disposições, e queremos que eles sejam capazes de
confiar em nossas disposições, porque nós, até certo ponto, queremos
confiar nas deles. Aprendemos a nos apresentar aos outros e,
consequentemente, também a nós mesmos, como pessoas que têm
perspectivas ou crenças moderadamente estáveis.25
Um estado mental não pode contar como uma crença, a menos
que tenha uma expectativa de vida razoável. Deve ser o tipo de coisa que
alguém está disposto a afirmar não apenas agora, mas também no futuro.
E a proposta de Williams é que o engajamento em um diálogo,
mutuamente dependente e, portanto, de mútua confiança com outros, é
o principal impulso para este processo pelo qual a mente se estabiliza.
Isso porque, se meu interlocutor me fizer uma pergunta, e se eu chegar
à troca de ideias com alguém com interesse em ter uma relação de
confiança contínua com tal interlocutor (no devido tempo, ele pode me
contar algo que eu preciso saber), então a pergunta dele me faz perguntar
a mim mesma como o mundo é, para que eu possa responder verazmente.
Isso cria uma pressão para que eu evite fantasias em meu pensamento
(mais especificamente, para evitar que os desejos se apresentem como

25
WILLIAMS, Bernard. Truth and Truthfulness: An Essay in Genealogy. Princeton:
Princeton University Press, 2002, p. 192.
94

crenças para produzir um pensamento desejoso), e para dizer a ele algo


que eu acredito ser verdade, contribuindo assim para estabilizar minha
mente. Poderíamos dizer, então, que a conversa com outros baseada na
confiança é o mecanismo básico pelo qual a mente se estabiliza. Tal
diálogo pressiona o sujeito a ter atitudes de crença apenas para as
proposições que merecem, afasta o assunto dos caprichos assertivos e o
aproxima da estabilidade doxástica:

[O sujeito] está engajado em conversas confiáveis com outro que


confia nele, e a questão é se ele pode permitir que a pessoa acredite na
proposição. Ao fazer isso, ele pode, em tal caso, permitir que ele
acredite também. É a presença e as necessidades dos outros que nos
ajudam a construir até mesmo nossas crenças factuais.26
Mas agora devemos acrescentar algo a mais a essa concepção
do papel do diálogo com base na confiança em nossa formação
psicológica. Williams sugere que esse processo de estabilizar a mente é
o mecanismo mais básico pelo qual passamos a ser quem somos. Ele
estabiliza não apenas a mente da pessoa, mas também (alguns aspectos
básicos) da identidade dela. Como não apenas nossas crenças e desejos,
mas também nossas opiniões e compromissos de valor se estabelecem
através do diálogo social em estados mais ou menos estáveis, então uma

26
Ibid. 194. Williams continua com a alegação de que “fatores semelhantes podem nos
ajudar a construir nossos desejos”, mas não tenho certeza do que são esses fatores. Há a
ideia geral de que a pressão para ter uma atitude de crença apenas em relação àquelas
proposições que merecem acarreta que não se deve acreditar em coisas que merecem
apenas uma atitude de desejo. Por isso a pressão social fundamental para evitar a fantasia
no pensamento e se tornar mentalmente estável. Mas se a observação de Williams se
destina mais especificamente à própria gênese dos desejos, então talvez a ideia seja que a
presença e as necessidades de interlocutores que confiam um no outro nos ajudam a
construir e estabilizar nossos desejos, porque elas levam a expressões sinceras desses
desejos.
95

importante dimensão de nossa identidade toma forma: “Compelido a me


ligar aos valores compartilhados dos outros, para tornar minhas próprias
crenças e sentimentos mais firmes... Eu me torno o que, com crescente
firmeza, posso professar sinceramente; Eu me torno o que eu
sinceramente declarei a eles”27. A concepção de identidade em questão
diz respeito à parte mais importante da identidade social de um
indivíduo: a afiliação auto-reconhecida de um indivíduo a uma
identidade de grupo (racial, política, sexual, religiosa), onde a afiliação
tende, em nossa cultura pelo menos, a ser experimentada pelo indivíduo
como essencial para quem ele ou ela realmente é. Podemos ver que nós,
ou outros, cometemos erros sobre quais são estas afiliações ou quais
deveriam ser, e isso dá substância à ideia de que não apenas construímos,
mas também descobrimos quem somos. O processo pelo qual a mente é
estabilizada, então, é também o processo pelo qual podemos nos tornar
quem profundamente, talvez essencialmente, somos.
A profundidade de significância que esse quadro de nossa
psicologia e identidade social dá ao fenômeno da injustiça testemunhal
talvez esteja agora aparecendo. A injustiça testemunhal exclui o sujeito
da conversa com base na confiança. Assim, marginaliza o sujeito em sua
participação na própria atividade que estabiliza a mente e forja um

27
Ibid. 204. A conexão entre a estabilidade mental e a capacidade dos outros de confiar
em alguém, de modo consistente quanto a suas afirmações e ações, sugere que pode haver
uma relação interna entre se tornar um sujeito com pensamento e linguagem e se tornar um
sujeito ético. Sabina Lovibond explora a ideia de que existe uma relação interna entre ser
sincero no que se diz e o desenvolvimento de um eu responsável. Em sua proposta,
aprende-se a ser um “autor” das próprias palavras - aprende-se a ser “sério” - ganhando “o
domínio da prática social de ofertar razões” (p. 85), onde esse domínio é concebido como
envolvendo a obtenção de responsabilidade (accountability), de modo que “dizemos
apenas aquilo para o qual estamos preparados para ser chamados a prestar contas” (p. 84).
Veja seu Ethical Formation. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2002, cap. 4.
96

aspecto essencial da identidade – dois processos de fundamental


importância psicológica para o indivíduo. Além disso, a injustiça
testemunhal não é apenas um momento de exclusão desta atividade
duplamente psicologicamente valiosa, é uma exclusão preconceituosa.
Anteriormente, afirmei que alguns preconceitos são relativamente
locais, dando origem a injustiças testemunhais incidentais, enquanto
outros (preconceitos de identidade) são mais socialmente estruturais, de
modo que as injustiças que causam são sistemáticas. Mas a concepção
de identidade de Williams nos permite ver como o preconceito em
operação contra um falante em uma dada troca discursiva pode dizer
respeito a uma categoria de identidade social (racial, política, sexual,
religiosa) que é essencial para sua identidade, essencial para quem ele é.
Assim, agora entendemos melhor como, quando este é o caso, a injustiça
causa um dano mais profundo. Isso não somente o enfraquece em uma
capacidade (a capacidade de conhecimento) que é essencial para o seu
valor como ser humano, mas o faz com base em critérios que o
discriminam em relação a alguma característica essencial dele como ser
social. Manter a dignidade diante de um duplo ataque à personalidade de
alguém pode exigir muita coragem, especialmente se o ataque for
persistente e sistemático. Um personagem como Tom Robinson só pode
fazê-lo devido à natureza felizmente fragmentária da identidade social
como um todo. Seu pertencimento à sua própria comunidade racial
significa que uma dimensão essencial de sua identidade será forjada, em
parte, por conversações e outras atividades envolvendo confiança e
respeito recíprocos dentro dessa comunidade, nas quais ele poderá
encontrar solidariedade e recursos compartilhados para resistência
psicológica.
97

Seria melodramático sugerir que sempre que alguém sofre


injustiça testemunhal, ele é inibido, pelo menos um pouquinho (o que
quer que isso signifique), na formação de sua identidade. Mas eu não
acho exagero sugerir que casos persistentes desse tipo de exclusão
epistêmica injusta poderiam, se também forem sistemáticos, inibir
genuinamente o desenvolvimento de um aspecto essencial da identidade
de uma pessoa. Alguém sujeito a esse tipo de injustiça pode não ter o
tipo de comunidade na qual se encontram recursos para resistência, uma
vez que a formação de tal comunidade é em si mesma uma conquista
social e não um dado social. O simples fato de que alguém possa viver
em torno de outros indivíduos na mesma situação é insuficiente para a
afiliação a uma comunidade no sentido relevante. Imagine uma mulher
de classe média do século XIX que entretém um interesse agudo, mas
frustrado, em assuntos políticos em um cenário em que as mulheres não
têm direito ao voto e são geralmente consideradas deslocadas na vida
pública sob a alegação de serem intelectual e temperamentalmente
inadequadas para o julgamento político. Se, quando esta mulher expressa
suas crenças e opiniões à mesa de jantar, elas esbarram em uma muralha
de incredulidade da parte daqueles que ela esperava fossem seus
parceiros de conversação, não é provável que, com o tempo, ela seja
inibida precisamente no desenvolvimento de um aspecto essencial de
quem ela é? Excluída da conversação com base na confiança das únicas
pessoas aparentemente autorizadas a falar sobre política, ela não está
impedida de se tornar, em algum aspecto significativo, a pessoa que ela
é? E a menos que ela dê o arriscado salto social de se tornar uma
sufragista de um ou outro tipo, ela não está precisamente carente do tipo
de comunidade que poderia fornecer recursos para solidariedade e
98

resistência? A resposta a estas perguntas é certamente Sim, e assim o


papel da conversação com base na confiança em estabilizar a mente e
forjar a identidade nos ajuda a entender quão profundamente a
experiência da injustiça testemunhal persistente pode penetrar na
psicologia de uma pessoa, e quão debilitante ela pode estar em
circunstâncias em que a resistência psicológica seria uma conquista
social mais ou menos fora do alcance do sujeito. A injustiça testemunhal
persistente pode, de fato, inibir a própria formação do eu.
Uma reviravolta final é que, em alguns contextos, o preconceito
que opera contra o falante pode ter um poder auto-realizador, de modo
que o sujeito da injustiça é socialmente constituído exatamente como o
estereótipo o descreve (é como ele conta como social) e/ou ele pode
efetivamente ser levado a se parecer com o estereótipo preconceituoso
que opera contra si (é nele que o sujeito se torna em certa medida).
Quando ocorre uma construção constitutiva ou causal, temos um caso de
poder de identidade operando “produtivamente”, como o termo
foucaultiano o denominaria 28 . A terminologia é sugestiva, mas será

28
Para Foucault, o poder é produtivo em pelo menos dois sentidos. Em conexão, por
exemplo, com o estabelecimento do discurso psiquiátrico em torno do “delinquente”, não
é difícil ver como o poder pode ser mais produtivo do que meramente repressivo. O poder
pode estar operando, primeiro, ao produzir a própria inovação conceitual e discursiva, de
modo que a ideia de uma certa identidade social é criada (“delinquente”); e, em segundo
lugar, opera para categorizar as pessoas de modo que elas sejam constitutivamente e talvez
até causalmente construídas como delinquentes. Conceitos como ‘delinquente’ ou
‘pervertido’, recentemente invocados como meio de categorização e organização
institucional, tornam determinado discurso científico-social – a psicologia, a criminologia
– seu próprio assunto distintivo, ajudando assim esse discurso a se estabelecer como
científico; veja FOUCAULT, Michel. Discipline and Punish: The Birth of the Prison,
trad. Alan Sheridan. Londres: Penguin Books, 1977. Publicado originalmente em francês
como Naissance de la prison. Paris: Editions Gallimard, 1975. [Traduzido para o
português em FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Leya, 2014. N. do. T.]. O poder,
então, pode produzir mudanças nas práticas conceituais; e pode, assim, produzir novas
categorias de sujeito social que sejam adequadas para uma função recém-criada.
99

melhor não adotá-la para o presente caso com qualquer compromisso


real, já que é crucial no contexto atual [a ideia de] que o poder identitário
ao mesmo tempo constrói e distorce quem o sujeito realmente é, e essa
é uma ideia que não está presente na concepção foucaultiana. Considere
novamente a nossa mulher politizada pré-sufrágio. Sua experiência de
injustiça testemunhal persistente em relação a questões políticas pode
muito bem, na ausência de comunidade, não apenas ajudar a enrijecer o
tipo de ser social que ela pode representar, mas pode realmente fazer
com que ela se torne algo mais próximo do estereótipo preconceituoso
que é dirigido contra ela: um tipo social intelectualmente e
temperamentalmente inadequado ao juízo político. Vide a construção do
gênero; vide a capacidade do poder identitário de moldar as pessoas que
ele enfraquece29.
A construção constitutiva não se presta facilmente à verificação
empírica. Mas há uma literatura empírica sobre o poder autorrealizável
dos estereótipos que ilustra o mecanismo construtivo causal.
Estereótipos se fazem sentir na forma de expectativas, e as expectativas
podem ter um efeito poderoso na performance das pessoas. Muitos
contextos em que a performance em questão é intelectual e discursiva
são assim. Há evidências de estudos educacionais, por exemplo, que os
alunos respondem às expectativas dos professores em relação a eles. No

29
Para discussões relacionadas à construção social, ver LANGTON, Rae. Subordination,
Silence, and Pornography’s Authority. In: POST, R. (ed.). Censorship and Silencing:
Practices of Cultural Regulation. Los Angeles: Getty Research Institute for the History of
Art and the Humanities, pp. 261 – 84, 1998; e HASLANGER, Sally. Ontology and social
Construction. In HASLANGER, S. (ed.). Philosophical Topics: Feminist Perspectives on
Language, Knowledge, and Reality, v. 23, no. 2, pp. 95 – 125, 1995.
100

muito discutido estudo30 de Robert Rosenthal e Lenore Jacobson, eles


resumem os resultados de um experimento como segue:

Vinte por cento das crianças em uma determinada escola primária


foram apresentadas aos seus professores como mostrando potencial
incomum para o crescimento intelectual. Os nomes desses 20 por
cento foram sorteados por meio de uma tabela de números aleatórios,
o que significa dizer que os nomes foram extraídos de um chapéu. Oito
meses depois, essas crianças incomuns ou “mágicas” mostraram
ganhos significativamente maiores em QI do que as crianças restantes
que não haviam sido destacadas pela atenção dos professores. A
mudança nas expectativas dos professores em relação ao desempenho
intelectual dessas crianças supostamente “especiais” levou a uma
mudança real no desempenho intelectual dessas crianças escolhidas
aleatoriamente.31
Este estudo não foi um estudo sobre a influência de estereótipos
preconceituosos na expectativa do professor, pois os professores em
questão foram simplesmente alimentados com pseudo-informação sobre
os sinais relativos de capacidades dos alunos. Mas não é difícil imaginar

30
Parece que alguns aspectos do método usado neste estudo foram inicialmente
controversos, embora posteriormente vindicados. Para uma breve discussão sobre este
assunto, ver JUSSIM, Lee; FLEMING, Christopher. Self-fulfilling Prophecies and the
Maintenance of Social Stereotypes: The Role of Dyadic Interactions and Social Forces. In:
MACRAE, C.N.; STANGOR, C.; HEWSTONE, M. (eds.). Stereotypes and
Stereotyping. Nova York e Londres: The Guilford Press, 1996, 161 – 92.
31
ROSENTHAL, Robert; JACOBSON, Lenore. Pygmalion in the classroom. The urban
review, v. 3, n. 1, p. 16-20, 1968, pp. vii – viii. Veja especialmente caps. 6–7. Richard
Nisbett e Lee Ross também citam estudos posteriores que fornecem “evidências
particularmente persuasivas da tendência das pessoas de extrair comportamentos dos
outros de acordo com suas hipóteses iniciais” (Human Inference: Strategies and
Shortcomings of Social Judgement. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1980). Um
estudo particularmente relevante descrito é o de SNYDER, Mark; TANKE, Elizabeth
Decker; BERSCHEID, Ellen. Social perception and interpersonal behavior: On the self-
fulfilling nature of social stereotypes. Journal of Personality and social Psychology, v.
35, n. 9, p. 656, 1977, pp. 656 – 6. Para uma pesquisa mais recente de ensaios semelhantes
demonstrando o poder de autorrealização dos estereótipos, veja JUSSIM, Lee; FLEMING,
Christopher. Self-fulfilling Prophecies and the Maintenance of Social Stereotypes: The
Role of Dyadic Interactions and Social Forces. In: MACRAE, C.N.; STANGOR, C.;
HEWSTONE, M. (eds.).
101

como, em geral, os estereótipos preconceituosos podem ajudar a


determinar a expectativa do professor de maneira negativa e injusta
(pensar de outra forma seria colocar os professores de forma implausível
à parte do resto de nós). Se vislumbrarmos contextos de sala de aula em
que os alunos são solicitados pelos professores a darem respostas
factuais a perguntas, oferecerem interpretações, apresentarem
perspectivas e opiniões, podemos imaginar que um estereótipo
preconceituoso negativo tenderá a fazer duas coisas. Primeiro, tenderá a
deflacionar o julgamento de credibilidade que o professor faz das
opiniões expressas do aluno. Até agora, o que é reconhecível:
estereótipos preconceituosos resultam em injustiça testemunhal. Mas,
em segundo lugar, o estereótipo pode, na verdade, exercer uma força
causal em direção à sua própria realização, como no experimento
relatado acima. Assim como a qualidade de nossa direção, digamos,
pode ser responsiva às expectativas negativas de nosso passageiro rígido
acerca de nosso desempenho, de modo que somos realmente levados a
dirigir mal na companhia de tal pessoa, parece inteiramente plausível
que nossas performances intelectuais possam levar a uma rota
semelhante em contextos educacionais, para não dizer de forma bastante
geral. Em outros ensaios empíricos mais recentes, por exemplo, que
foram elaborados para estabelecer se os estereótipos negativos de afro-
americanos em relação à inteligência têm um impacto causal no seu
desempenho acadêmico, verificou-se de fato que, se o teste fosse
anunciado como um teste de capacidade acadêmica, os estudantes
negros teriam desempenho pior do que os brancos, ao passo que este não
era o caso se fosse classificado como não projetado para testar a
inteligência. Esse resultado é tomado como uma demonstração da
102

“ameaça do estereótipo”, segundo a qual um membro de um grupo


sujeito a um estereótipo negativo (o que eu chamo de estereótipo de
identidade preconceituoso negativo) tenderá a se comportar de maneira
a preencher esse estereótipo. A “ameaça estereotipada” dá nome
efetivamente a uma certa situação social: a situação de suscetibilidade a
uma construção causal desvantajosa32.
A injustiça testemunhal persistente implica que o desempenho
intelectual do sujeito pode ser inibido a longo prazo, sua confiança
minada e o desenvolvimento frustrado. Até que ponto isto é assim e para
quem, é claro, são questões empíricas, mas a pesquisa psicológica social
é bastante sugestiva. Eu ofereço essas ideias sobre o poder de
autorrealização de estereótipos preconceituosos sobre fiabilidade como
especulação acerca das ramificações na vida de uma pessoa, e na
trajetória social de um grupo, da injustiça testemunhal persistente. A
injustiça testemunhal pode, dependendo do contexto, exercer real poder
social construtivo, e onde tal construção surge, o dano primário da
injustiça é severamente aumentado – o insulto epistêmico é também um
momento em um processo de construção social que restringe quem a
pessoa pode ser. Colocando o dano primário junto com os extensos
danos secundários que ela pode causar, agora temos um retrato de uma
injustiça que mostra que é capaz de funcionar ampla e profundamente
na vida prática e psicológica da pessoa. Onde ela não é apenas
persistente, mas também sistemática, a injustiça testemunhal apresenta
uma face de opressão.

32
Ver STEELE, Claude M.; ARONSON, Joshua. Stereotype Threat and the Intellectual
Test Performance of African Americans. In: STANGOR, C. (ed.). Stereotypes and
Prejudice: Essential Readings. Filadélfia: Psychology Press, 2000, 369 – 89.
103

A opressão pode ser explicitamente repressiva (como foi para


Tom Robinson) ou pode ser um subproduto silencioso do preconceito
residual em uma sociedade liberal. Iris Marion Young caracteriza este
último como “a desvantagem e a injustiça que algumas pessoas sofrem,
não porque um poder tirânico pretende mantê-las em inferioridade, mas
por causa das práticas cotidianas de uma sociedade liberal bem-
intencionada”33. Neste capítulo, são as práticas cotidianas de ouvintes
bem-intencionadas, operando em uma atmosfera social-imaginativa de
preconceito residual, que estamos explorando. Pois este é o contexto
social em que encontramos as formas mais sub-reptícias e
filosoficamente complexas da injustiça testemunhal. Discutindo a
natureza da opressão, Sandra Lee Bartky cita a ideia de Frantz Fanon de
“alienação psíquica”, em que a alienação em questão consiste no
“distanciamento que produz a separação de uma pessoa de alguns dos
atributos essenciais da pessoalidade” 34 . Creio que é obviamente um
atributo essencial da pessoalidade poder participar da disseminação do
conhecimento pelo testemunho e gozar do respeito consagrado nas
próprias relações de confiança que são seu pré-requisito. Uma cultura,
na qual alguns grupos são separados desse aspecto da pessoalidade pela
experiência de exclusões repetidas da disseminação do conhecimento, é
seriamente defeituosa epistemicamente e eticamente. Conhecimento e
outras contribuições racionais que eles têm a oferecer são perdidos por
outros e às vezes literalmente perdidos pelos próprios sujeitos; e eles

33
YOUNG, Iris Marion. Five Faces of Oppression. In: WARTENBERG, T. E. (ed.).
Rethinking Power. Albany, NY: State University of New York Press, 1992, pp. 175 –6.
34
BARTKY, Sandra. On psychological oppression. In: Femininityand Domi-nation:
Studies in the Phenomenology of Oppression. Nova York e Londres: Routledge, 1990, p.
30.
104

sofrem um ataque constante em relação a uma capacidade humana


definidora, um atributo essencial da pessoalidade. Tal cultura seria de
fato uma em que uma espécie de injustiça epistêmica assumiu
proporções de opressão.

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