Você está na página 1de 7

O OUTRO SOCIAL É SEMPRE UM OUTRO MAU

CRISTINA DRUMMOND

A PARANÓIA É O ESTADO NASCENTE DO SUJEITO

Este semestre não estamos acompanhando o seminário de Miller aula por aula, tal como
temos o costume de fazer no âmbito desse seminário de Orientação Lacaniana. Decidimos
trabalhar o tema de nosso próximo encontro brasileiro a partir de indicações de Miller em seu
ensino onde a questão do delírio e da loucura generalizadas se apresenta em diferentes
ocasiões. Inclusive no seminário desse ano ele volta a elas e eu tomei algumas poucas
indicações dessa questão nestas aulas para que tenhamos a dimensão de que, apesar de não
estarmos acompanhando suas formulações passo a passo, é ainda seu ensino que buscamos
fazer presente entre nós. Essas formulações também estão presentes na concepção do
Encontro Brasileiro e trazem a idéia do Outro mal ou hostil como um conceito que podemos
extrair de nossa clínica atual, não apenas da psicose. Parece-me que tomar essas idéias pode
nos ajudar a preparar a discussão que terá lugar em novembro e vai continuar no Encontro
Americano.

Miller na aula 6 de 24-3-10 p. 5 diz que a expressão “todo mundo é louco” quer dizer que não
há sentido comum, e o sentido comum é uma categoria que explicitamente ou mais
secretamente atravessa a filosofia e ao que ela faz apelo em seu exercício, nas operações de
pensamento às quais ela convida. Há uma dimensão do sentido comum, mas ela é ilusória em
relação ao nível em que a experiência analítica nos toma. Mais adiante ele diz que a subversão
freudiana do sujeito conduz a tomar a solidão do sujeito no nível do seu gozo. Essa solidão do
sujeito no nível de seu gozo é correlativa à sua maldade fundamental (foncière, de fundo); “A
pulsão não é humanista” p.7, diz Miller, e isso implica toda a complexidade com a qual Freud já
havia se deparado, de dar um passo além do narcisismo e construir um laço com o outro.

Na aula 5, de 17-03-10 p.9, ele diz que a clínica de Lacan é orientada pela idéia, pela noção de
que o Outro é impossível de se suportar. O trauma é a emergência do Outro, é o semelhante e
a dinâmica da rivalidade que vem em seguida ao ponto onde a invenção do Outro pode passar
por ser o tratamento da paranóia, tratamento através da passagem do imaginário ao
simbólico.

Na aula 9, de 14-04-10, p. 4, Miller diz que a paranóia é uma função intrínseca à função do eu.
“Crer ser si mesmo é da ordem do delírio paranóico”. p. 5. O eu como tal é uma formação
paranóica e o conceito de sujeito é um conceito contra paranóico.

Essas formulações nos indicam pontos que estão no centro da discussão que a fórmula “todo
mundo é louco” concentra de alguma forma. Há algo da estrutura do sujeito, tal como Miller
destaca, que aparece a céu aberto nos modos atuais de vida. Podemos dizer que se trata de
uma retomada da formulação de Lacan de que a paranóia designa o estado nascente do
sujeito. Minha idéia é a de acrescentar a ela o axioma “todo Outro social é mau” que Miller
nos propõe, porque penso que aproximando essas duas formulações estaremos avançando na
leitura de aspectos de nossa clínica contemporânea marcada pela exigência do mais de gozar,
pela precariedade simbólica, pela violência e pela dificuldade de se fazer laço com o Outro.
Nessa clínica encontramos sujeitos que não estão orientados pela dimensão da filiação e da
transmissão, mas estão sobretudo imersos num exercício do gozo pulsional do Um. Como
operar na clínica psicanalítica com essa dimensão exacerbada em nossa contemporaneidade?
DE QUE O OUTRO GOZA?

Pareceu-me oportuno para avançarmos nessa discussão, tomar algo da conversação sobre o
Outro mau que foi publicada esse ano. Trata-se de uma conversação dirigida por J-A Miller em
torno de seis casos clínicos e que constituiu uma das jornadas anuais das Seções clínicas da
Escola da Causa Freudiana. Vamos fazer nela um recorte, e para isso escolhi um dos seis textos
para discutirmos. Penso que a partir dele poderemos tomar algumas das teses que esse
trabalho precioso nos apresenta.

Na abertura da conversação, Miller diz que esse título, “o Outro mau”, usa uma expressão da
língua comum, e apesar de ter um “Outro” escrito com maiúscula, faz eco aos termos muito
usados na psiquiatria que são os de paranóia e de perseguição. Essa expressão foi tomada
como uma categoria nos casos apresentados e permitiu um agrupamento de um certo número
de fenômenos da clínica.

Os casos são variados e nem sempre o Outro mau está encarnado para o sujeito. Muito mais
que de agressividade, se trata nesses casos do sentimento de hostilidade. A agressividade
comporta a idéia de que ela é aberta enquanto que a hostilidade pode ser subterrânea e por
isso mesmo parente da noção de ameaça, ameaça não dita e que é suscetível de ser decifrada
nas entrelinhas. Miller evoca aqui Carl Schmitt, esse jurista e filósofo que considera que o
campo político tem como fundamento a distinção amigo/inimigo. Na dimensão clínica que
essa conversação investiga, está presente essa distinção amigo/inimigo. Trata-se ao mesmo
tempo do Outro que me quer mal, e também de um Outro que goza do mal que faz.

A maldade é uma significação fundamental que está ligada como tal à própria cadeia
significante. Isso porque sempre há subentendidos na fala do outro, sempre se pode
interpretar a cadeia significante de uma outra maneira. A significação de maldade está ligada
ao fato de que o significante suplementar, o que se acrescenta à cadeia, faz variar a verdade
de um enunciado. Lacan assinala isso em seu texto “Posição do inconsciente” quando diz que
“o mais importante é que antes mesmo que o sujeito fale, isso fala dele”. Antes mesmo que o
sujeito nasça, seus genitores falam dele. Esse “falam dele” constitui um Outro mau que não
tem boas intenções e esse é o estatuto primeiro do Outro. Podemos supor um gozo mau ao
Outro porque o gozo do outro sempre nos é desconhecido. Há duas perguntas que Lacan
demonstrou serem as primeiras que o sujeito faz em relação ao Outro: “Che vuoi?”, o que
queres, e “Podes perder-me?” Uma terceira que também diz respeito ao estado original do
sujeito seria: “De que ele goza?”, que indica, segundo Miller, que a maldade é um dos grandes
avatares do significante.

Nessa conversação, os casos exploram os múltiplos rostos do Outro mau, diz Christiane Alberti
na introdução da publicação: discretos ou estrondosos, se apresentando como uma ameaça
difusa, em suspensão no mundo, sempre pronto para surgir, até a encarnação da maldade na
relação com o outro, múltipla ou única. Temos acesso a uma fenomenologia variada da
perseguição e a estrutura da intencionalidade da maldade do outro aparece aqui como
essencial. Foi também importante verificar como em cada caso o sujeito se virava com o Outro
mau. Seria um tratamento a partir de um objeto, a partir do Outro?

Outra referência para esse tema que buscamos cernir é o texto que Miller apresentou no
encontro Pipol VI, “A salvação pelos dejetos”, no qual ele diz que pode acontecer que o gozo
do Outro social ganhe corpo, que ele não se confunda com o esplendor vazio da Coisa, tal
como Lacan propunha como formulação da sublimação. Elevar o objeto à dignidade da Coisa,
funda o laço social pelos ideais, através da sublimação. Quando o gozo pode ser identificado
no lugar do Outro pode-se suspeitar de que “o Outro goza de mim”. É a posição paranóica que
pode ser definida dessa maneira. A paranóia, diz Miller, acompanha a sublimação como se
fosse sua sombra, o que pode ser visto na “paranóia dos criadores”. É impossível ser falado,
veiculado no discurso do Outro e por isso mesmo ser difamado ao mesmo tempo em que
propagado, sem o apoio de uma paranóia. “O Outro social é sempre um Outro mal, que quer
gozar de mim, me fazer servir a seu uso e a seus fins”. Dizendo dessa maneira, Miller toma a
paranóia de maneira mais ampla e sendo consubstancial ao laço social contemporâneo que
não se sustenta pelos ideais sublimatórios. Essa paranóia está presente desde o estádio do
espelho, na mais mínima cadeia significante e pode-se dizer que ela motiva toda defesa contra
o real. A paranóia é que dá consistência ao eu, à personalidade. Ela é que socializa o sujeito
pela suposição ao Outro de uma vontade de gozo, uma vontade que não pretende estar
voltada para o seu bem. Por toda essa argumentação Miller conclui que o laço social tem uma
essência paranóica.

OS CASOS

Carole Dewambrechies-La Sagna relata em seu trabalho dois casos de sujeitos femininos nos
quais se demonstra a impossibilidade de simbolizar a questão da paternidade na paranóia, a
partir de seus efeitos no real da relação amorosa e conjugal. A autora nos diz que a psicanálise,
de uma certa maneira, revela no interior da família a presença do Outro mau. O pai, na teoria
freudiana, é aquele que encarna a ameaça de castração e por isso ele é o nome do Outro mau
na teoria analítica. O pai, ou seu substituto, é temido porque encarna essa ameaça no
inconsciente. É quando o Nome-do-Pai não opera que o Outro aparece em sua maldade real.
Ele se torna frequentemente difuso, impossível de ser situado no tempo e no espaço, como
uma ameaça sempre pronta a surgir e não como significado recalcado.

Quem comenta os casos na conversação é Jacques Borie. Ele chama a atenção para o fato de
que a maldade do Outro é abordada neles não pelo ângulo mais clássico do Outro social ou
político, mas sob o aspecto mais íntimo do Outro familiar ou conjugal. Esses casos de
“desencadeamento familiar” se opõem às formas sociais da psicose nas quais o Outro
perseguidor é, ao contrário, alguém distante e de posto superior tal com, por exemplo, na
erotomania. Nesta, algo de distante se imiscui na vida do sujeito: o amor de alguém célebre.

Lacan, sobre esse ponto, já observara em sua tese que o paranóico tem mais facilidade de se
relacionar com a humanidade como um todo do que com os humanos particularizados, os
outros, porque estes o colocam diante do caráter enigmático de seu desejo. Nos dois casos a
maldade aparece subitamente, desvelando o Unheimlich no seio da “família conjugal”
representada pelo casal, com o (ou os) filho (s). Os dois sujeitos femininos apresentam
fenômenos de interpretação e são perseguidos por seu marido ou parceiro.

Há, nos dois casos, foraclusão da significação fálica assim como da cadeia do desejo, tendo
como conseqüência um gozo cada vez mais invasivo que empurra o sujeito para a
interpretação. Na falta do pai da castração e do desejo, que não operou para esses sujeitos,
temos a escolha de um pai, o pai dos filhos que, em certas circunstancias, vai aparecer como
suporte de fenômenos interpretativos como um Outro mau que ameaça a ordem familiar.

Carole Dewambrechies propõe como orientador para a leitura dos casos, dando continuidade
ao curso de Jacques-Alain Miller de 17 de dezembro de 2008[1], ver nos laços de perseguição
uma tentativa do sujeito de reconstituir uma defesa contra o gozo invasivo e reencontrar um
sentido para um mundo cuja significação ruiu.

No caso de Mathilde, a perseguição que dois anos antes tinha se espalhado por todo o campo
social, se reduz posteriormente ao círculo familiar e tenta dessa forma se tratar. Em Louise,
são estados depressivos repetitivos que se manifestavam até então. Pela primeira vez, os
mecanismos interpretativos subjacentes aparecem nitidamente: eles concernem a estrutura
familiar e seu laço com seu marido.

Esses dois casos também nos ensinam porque não devemos nos apressar em considerar como
casos de “desentendimento conjugal”, os casos onde o marido é que encarna o Outro mau.

MATHILDE

O relato do primeiro caso apresenta um tratamento dividido em três tempos. Num primeiro
tempo, Mathilde tenta fazer existir o pai como autor, numa espécie de impostura, quando
descobre que ele estava doente. Ela vai dedicar-se a congelá-lo como pai ideal, buscando fazê-
lo existir como autor. Na falta de poder fazer uso do Nome-do-Pai, ela encontra um uso desse
nome fazendo dele o nome do autor de uma pseudo publicação, uma publicação interna ao
círculo familiar. O relato de Mathilde insiste no lado de semblante de publicação.

No segundo período, a paciente tem a idéia de que a solução poderia ser a de ser ela própria
um autor, no lugar do pai morto e idealizado, solução que passaria por sua identificação com o
pai morto. O tema da publicação é, de um modo direto, a verdade da relação sexual. Se
falamos com Lacan de não-relação sexual é porque a relação sexual não pode ser escrita. No
caso de Mathilde, com a morte de seu pai, existe um mundo no qual a relação pode ser escrita
e ela a escreve. A perseguição só se desencadeia num segundo momento quando ela tem seu
escrito recusado pelos editores. Ela pensa que ele foi roubado, reconhece passagens de seu
texto na televisão e interpreta então que a causa da recusa de seu texto é de ordem política.
Ao querer escrever a relação sexual, se ameaça a ordem política.

Essa recusa a constitui também, ela própria, como um texto: um texto em busca de autor. Um
autor é aquele que autentica o corpo dos escritos, os reúne e ordena sua diversidade. Ora, seu
texto é utilizado por todos, ele serve à imprensa, à televisão e ela é recusada como autora.

Num terceiro tempo, Mathilde procura um pai, um homem do qual ela faria um pai. O que lhe
agradou nesse homem que ela encontra, é que ele sempre soube se organizar e ter
responsabilidades. Ela diz que sempre quis ter filhos e até pensou em adotar um se não
encontrasse um homem que pudesse ser pai. Seu atual companheiro « tinha uma noção de
família já pronta », e ela pensou que ele saberia colocá-la em funcionamento. Ele era «
inclinado a ser um chefe de família, pronto a constituir uma família, a construir um lar ». Ela
encontra um homem pronto para ser pai e o sentimento de perseguição retorna quando a
criança nasce. Esse sentimento está ligado à imagem de seu marido se servindo do bebê para
seduzir outras mulheres. Os efeitos sobre seu corpo se fazem presentes. E ela formula os
efeitos da invasão desse gozo em seu corpo da seguinte forma: “Ele quebrou minha imagem
narcísica e me tornou transparente, um fantasma”.

Um sonho retoma esse tema e acho oportuno que nós, que acabamos de fazer uma jornada
sobre os sonhos, possamos pensar na função desse sonho neste tratamento. «Numa manhã,
nós despertamos em nossa cama, meu companheiro e eu. Havia duas mulheres na cama. Ele a
olhava e não a mim, e me dizia: “Você viu como ela é linda?” Eu respondia: “E eu não?” Ele não
respondia. » Ela precisa que é o comportamento dele que provoca ciúme. Ela tem a sensação
de ser denegrida, como se fosse seu objeto, como se ele a manipulasse…

O que lhe é insuportável é sua interpretação da imagem do pai com o filho nos braços: um pai
goza da criança falo para encontrar mulheres. Ela chega a pensar que ele pode fugir com o
filho, raptá-lo, para ser bem sucedido em seus projetos de sedução, ou ainda roubá-lo dela. A
imagem do pai e de seu filho é correlata, para o sujeito, a uma interpretação.
A idéia de família poderia oferecer-lhe uma solução: um modo de fazer relativamente
codificado que permitir um conformismo tranqüilizador para ela. Mas esse ideal não é
suficiente para englobar o pai. O pai de seu filho, com o qual ela se relaciona pela
maternidade, é antes de tudo « o pai do desejo », « um bruto –adianta ela – que não entende
nada da beleza ». É um outro tipo de pai, falóforo, que acaba por turvar sua própria
identificação com o pai morto, já ameaçada pela ausência de reconhecimento pelos editores,
forma obscura de recusa do Outro. O Outro mau reaparece então sob a forma de uma imagem
destacada de uma lembrança: o pai que carrega um filho em seus braços e que, por falta do
Nome-do-Pai, chega como Um-pai em oposição ao sujeito. Essa imagem a persegue, lhe faz
mal. Não é mais a ordem social que não mais se sustenta, mas a ordem familiar; não é mais o
texto, S2, que perturba essa ordem, mas o S1, o significante-mestre do pai.

Mathilde tem um interesse pela beleza que serve de antídoto para a maldade. Quando ela
passa à escrita, ela toma o lugar do pai idealizado mas morto e a conseqüência disso é que ela
escreve a relação sexual. Esse saber identificado ao pai morto é recusado pelo Outro social
quanto à sua publicação, mas ele ressoa por todos os lados no mundo. Por meio dessa
identificação com o pai morto idealizado que escrevia ela encontrou a chave do mundo e
querem fazê-la calar. Essa recusa a constitui também como um texto à procura de autor. É
esse traço que marca sua paranóia em oposição a uma esquizofrenia: trata-se de identificação
com um saber, a partir do qual o mundo mesmo se constitui e ela o encarna. A recusa de seu
texto é tomada por ela como uma recusa por seu próprio ser e ela se torna um texto sem
cabeça, à procura de um autor. Ela toma a solução de fazer um semblante de Édipo. Seu pai
era muito mais um autor do que o autor de sua vida e ela vai buscar um autor para a vida de
seu filho. Esse desvio lhe parece necessário para escrever alguma coisa que seja publicável.
Entretanto, todo mundo se serve de seu texto e por isso poderíamos pensar que a palavra
autor é um nome da função paterna foracluída ao qual ela gostaria de se igualar, mas, no
entanto, sem conseguir.

Nesse caso o que está em jogo não é a transmissão da falha do pai, mas a falha na
transmissão. Ela produz uma forma de ficção diferente da edípica: o delírio desvela como é
que diante da falha absoluta da transmissão paterna, sua foraclusão, o sujeito inventa um Um
pai que estruture sua realidade. O Um-pai aqui é um personagem que pode ter a qualidade ou
o atributo de ser pai, mas que não é um exemplar do conceito “o pai”. Existe esse um
particular e contável, mas o sujeito não dispõe do universal da função, só o particular. Neste
caso, Mathilde fabricou um pai, elegendo em uma festa aquele que estava mais pronto para
ser pai. É paradoxal porque o sujeito já era velho e não tinha filhos. Ela é que o convence que
ele era um pai em potencial.

Jacques Borie pergunta, a partir de seu comentário, se não seria a crença no pai ideal fundador
de um laço familiar que fracassa para esse sujeito por falta da razão fálica. A função da letra,
que é muito importante para Mathilde, não consegue estabilizar o sujeito na busca de se fazer
reconhecer pelo Outro. Ele se pergunta se a solução encontrada pelo sujeito de construir um
universo por meio da comunidade de artistas não seria uma maneira de evitar o risco desse
reconhecimento impossível.

LOUISE

O caso de Louise contou com uma apresentação de pacientes para sua explicitação. O
momento delirante surge a partir de uma briga banal entre ela, seu marido e sua filha. Sua
filha lhe fez críticas e lhe disse que a culpa era dela. Então, acontece o que ela julga ser o pior:
seu marido sustentou sua filha contra ela. Pelo tom de sua voz, ela reconheceu a intenção má.
Louise teve então “um flash”. Tudo isso era contra ela. Sua filha e seu marido estavam ali, os
dois, diante dela, e ela era excluída, rejeitada.

Esse gozo invade seu corpo e lhe provoca, em suas palavras, « como que um vazio, como que
um buraco negro. É difícil de dizer, isso me desnuda ». Louise sente uma espécie de abandono
radical, de ser largada: nenhuma sustentação, mais nada. « Eu não servia mais pra nada. Eu
estava ali sem estar ali ». Era como se « eu caísse, diz ela, num poço sem fundo, sem nada que
segurasse. Não há mais pensamento, mais nada.» Em seguida veio a idéia de que seria
necessário deixar seu marido e quer se divorciar. Num outro momento ela tem a certeza de
que seu marido lhe fez um filho pelas costas. Isso não é uma metáfora. Ela apresenta o
problema assim: seu marido abusou dela durante seu sono. Ora, nesse momento, ela não
podia se permitir ficar grávida, pois seu patrão lhe havia prometido uma promoção em seu
trabalho. Ela interrompe a gravidez.

Carole Dewambreechies lembra que Louise já conhecera um abandono radical. Quando tinha
seis anos, sua mãe deu à luz a uma criança deficiente; a mãe se ocupou da menininha em
tempo integral e continua a fazê-lo até hoje. Louise sentiu-se rejeitada de maneira radical mas
não subjetiva nenhum rancor e vê sua mãe regularmente.

Ela sublinha também sua relação singular com a linguagem. Quando não está bem, ela toma
tudo ao pé da letra e pensa que tudo o que é dito lhe concerne. Em regra geral, ela « apreende
o que vão lhe dizer ». Ela explica: antes que o outro tome a palavra, ela sente uma apreensão.
Quando alguém lhe fala, ela sente « seu coração como que colocado numa prensa. As palavras
arrancam a minha pele ».

Jacques Borie pergunta se o uso particular que esse sujeito faz dos significantes platônico e
persecutivo para designar sua relação com o marido não indicam que a impossibilidade de
situar o valor fálico do sexo seria o que a obriga a construir um Outro mau para fazer obstáculo
à tendência do abandonar, do deixar cair melancólico mais radical.

FAZER UMA FAMÍLIA

Gostaria ainda, a partir desses casos, de interrogar o empuxe à família como uma solução
freqüente em nossa contemporaneidade. Esse empuxe, diferentemente do “familiarismo
delirante” do qual fala Lacan, não concerne apenas à neurose. Lacan usa esse termo para dizer
que, apesar da família contemporânea ter pouco a ver com aquelas de séculos e regimes
anteriores, há uma tentativa de manter a família a qualquer preço, o que produz uma
inautenticidade tal como nas famílias americanas constituídas por seis casamentos e divórcios
consecutivos, que comportam uma atomização das formas mais do que um desvio em relação
ao ideal. Estamos na época dos casamentos gays que reivindicam direito à família, à
reprodução assistida que também implica em novas constituições familiares.

Miller em suas Conferencias na Espanha diz que na psicanálise a família encarna o lugar do
Outro simbólico, ela é um mito que dá forma épica ao que opera a partir da estrutura, um mito
de como o gozo que o sujeito merecia foi roubado dele. A família portanto é um dispositivo de
arranjo e interdição do gozo.

Para os sujeitos psicóticos, constituir uma família seria sempre uma boa solução? Muitas vezes
vemos que o tratamento do outro pela distância é o que melhor funciona para esses sujeitos e
a proximidade do outro na família muitas vezes, como nesses casos, implica na transferência
das dificuldades do laço social para o âmbito do familiar.
A família é um recurso para essas duas mulheres, sobretudo para Mathilde, depois da morte
de seu pai. Podemos ver que as famílias que elas buscam constituir não tem a estrutura
edípica e portanto são famílias que não decorrem do pai edipiano, que não respondem à
escrita da metáfora paterna e que não colocam em jogo a relação do desejo e da lei a partir da
interdição do gozo. Lacan nos ensinou que a família é uma invenção simbólica para responder
ao real do sexo, ao fato de que não se pode escrever simbolicamente a relação do sexo entre
um homem e uma mulher. Porque essa relação é impossível de ser escrita, a família escreve a
relação pai-mãe. É necessário interrogar o que vem causar o desejo de família para essas duas
mulheres, e para sujeitos psicóticos de uma maneira geral que muitas vezes encontram no
projeto de uma família um caminho para sua estabilização. Também me parece importante
perceber que se o que está na base de constituição dessas famílias não é a transmissão nem a
dimensão da filiação, mas um arranjo singular de gozo.

Antes da morte de seu pai, Mathilde havia perdido um namorado que tinha relação com as
letras. Miller sugere então que há uma sequencia temporal em seu caso. Primeiro ela perde o
objeto amado, o homem das letras, depois ela tenta projetá-lo sobre o pai, para num terceiro
tempo incorporá-lo, identificando-se com o homem das letras. Teríamos a passagem clássica
do objeto amado perdido para a identificação. Mathilde escolheu um parceiro com
características de seu pai: um homem com interesse pelas letras e que tinha uma carreira
brilhante, e quando ela perde os dois, ela perde tudo. Ela busca então uma solução pelo lado
das letras. Ela redige algo bem difícil de ler. Quando ela teve seu manuscrito recusado, sua
mãe vai cuidar dela e ela mais ou menos se reorganiza.

Ela vem consultar porque pensa que sua família quer lhe retirar seu filho. Ela tem um discurso
de reivindicação em relação ao marido e que parece muito bem enquadrado socialmente, o
discurso de que o marido deixa todo o trabalho para a mulher. Ela também mantém amigos e
uma vida social. Mas a família a hospitalizou porque ela estava num estado de agitação
preocupante e o bebê arriscava ser machucado por ela. A médica a encaminhou para a analista
falando de um delírio de perseguição. Ela não pensa em deixar o marido. Ela tenta é colocar de
lado os pensamentos em relação ao marido raptar seu filho para seduzir as mulheres e
concentrar seus esforços na escrita.

No caso Louise, a única coisa que surpreendeu na apresentação de enfermos foi a palavra
“platônico” que ela usa para significar que tudo está bem. Se tudo vai mal é porque seu marido
lhe fez um filho pelas costas e ela aborda as coisas de maneira sub-delirante.

Nos dois casos há uma paranóia familiar e a personagem da mãe é fundamental. No caso
Louise, ela tem um rancor devastador e original em relação à mãe que se dedicou à sua
irmãzinha deficiente. No caso Mathilde, a mãe negligenciou o pai.

Os desencadeamentos giram em torno dessa impossibilidade de fazer uma família edípica. No


primeiro caso trata-se da dificuldade do marido com o filho e no segundo, do marido com a
filha. Tudo se precipita com o marido quando ele emerge como pai. Há nesses momentos a
emergência de Um-pai, e também o desejo faz questão. No caso Mathilde trata-se da questão
do desejo de uma outra mulher e no caso Louise a briga da mãe com o pai e a filha remete à
ausência de desejo que precedeu o seu nascimento. As duas cenas de desencadeamento são
muito imaginarizadas e o pai aparece nelas completado pelo filho, enquanto que ele de
alguma maneira goza desse filho. No caso Louise é o pai que se torna cúmplice da filha no
momento em que ela reprova sua mãe porque ela acredita estar doente e que ela pode ter um
prognóstico ruim.

Você também pode gostar