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Neste artigo, analiso as raízes da intolerância de In this article, I analyze the roots of
uma perspectiva psicanalítica e as formas que ela intolerance from a psychoanalytic perspective, as
tem tomado em nossa vida política nos últimos well as the ways it has been taken in our politic
anos. Em primeiro lugar, exponho uma concepção life in the last years. At irst, I expose a relation
sobre a relação entre a intolerância e a formação between intolerance and the Ego origin; in order
do Eu para, então, compreender as mudanças to understand what changes in the measure of
sobre o que é ou não tolerável em diferentes what is or isn’t tolerable in distinct contexts. After
contextos. Em seguida, passo a uma análise das that, I analyze the psychosocial conditions for the
condições psicossociais para a tolerância ao outro, tolerance of the Other, sustaining that a failure
desenvolvendo o argumento de que uma falha da in the symbolic intermediation is an important
intermediação simbólica é um fator importante issue in the contemporary forms of intolerance.
nas formas contemporâneas da intolerância. Ante From that failure, the relation with ideas and
a esta falha, as relações com ideias e pessoas persons remains on an imaginary level, and the
permanecem presas no imaginário e a capacidade relection ability in inhibited, as it is in a fetish.
de relexão é inibida, como num fetiche. Concluo My conclusion is that a symbolic intermediation
que é na instituição de uma intermediação between the Ego and the other is a condition to a
simbólica entre o Eu e o Outro que pode haver uma tolerant coexistence.
condição de convivência mais tolerante.
Keywords: intolerance; psychoanalysis;
Palavras-chave: intolerância; psicanálise; contemporaneity.
contemporaneidade.
Introdução
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se sente violentado pelo outro se considera liberado para exercer sua própria
violência. Parece bastante claro que tais atitudes reativas mútuas só podem
levar a uma escalada de intolerância e ódio.
A intolerância acompanha as relações humanas. Ao mesmo tempo, pode-
se perceber que há momentos ou contextos culturais nos quais ela parece maior
ou menor. Por alguns motivos, que exporei adiante, considero que vivemos
um momento especialmente recrudescido de intolerância.
Neste artigo, meu objetivo é explorar algumas hipóteses psicanalíticas
para a compreensão de algumas formas da intolerância, especiicamente
aquelas que tomam em nosso ambiente contemporâneo. Meu objetivo é
operar uma relexão psicanalítica alinhada em três ideias-chave: (a) parto
de uma concepção sobre a relação entre a intolerância e a formação do
Eu: em sua formação, ele se airma na diferença com relação a um outro,
vivido inicialmente como hostil; (b) abordo também a mobilidade das
fronteiras estabelecidas entre o Eu e o não Eu; (c) a partir desta dinâmica
predominantemente individual, passo a uma análise das condições
psicossociais para a tolerância ao outro: é na instituição de uma intermediação
simbólica entre o Eu e o Outro que pode haver uma condição de convivência
mais tolerante. Procuro aplicar os desenvolvimentos iniciais numa relexão
sobre dois fenômenos: a Operação Lava Jato e um artigo de Ana Paula Cortat,
chamado “Antes, podia”. Analiso, brevemente, por im, um livro recente de
Amós Oz , Como curar um fanático.
A intolerância e as fronteiras do Eu
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a luz do quarto se apaga na hora de dormir, ele não ica vazio: cessado o
“input” de estímulos ambientais, a consciência é invadida por fantasias, em
grande parte, destrutivas e persecutórias
Ao longo de seu desenvolvimento/amadurecimento, o Eu em geral vai
se dando conta de que aquela cisão entre o absolutamente bom e o mau não
existe; ele passa a poder integrar parcialmente seus aspectos mais destrutivos
(negativos) e reconhecer valor no outro. A mesma mãe que vem e atende é
a mãe que vai ou demora a vir. Aqui surge a experiência do vazio: nem tudo
de mal ou bom que acontece tem um “sujeito”. Mas esta aquisição é sempre
incompleta e sujeita a regressões em situações de força emocional (quando
se mexe com nossa família, time de futebol, posições políticas...). O Outro
vivido como mau, inimigo ou concorrente poderá ser visto também como
amoroso, parceiro, acolhedor. O im das idealizações que fazemos sobre nós
é também o im da idealização do Outro: nem um nem outro absolutamente
bom ou mal, onipotente ou impotente.
Voltando à Klein, nesta condição, a criança passa a se sentir culpada.
Ela se dá conta que aquele ser frustrante e violento que odiou é o mesmo a
quem ama e que lhe dá amor. O Outro é visto agora não como parte (boa ou
má), mas como um ser total. Da culpa sentida pelos ataques desferidos, pode
nascer o desejo de reparar os estragos produzidos e, adiante, o sentimento de
gratidão por aquele ser. Reparação e sentimento de gratidão: temos aqui uma
das versões para a origem da condição de empatia pelo outro: se eu sofro ante
o ataque, o outro também deve sofrer ante meus ataques (KLEIN, 1996).
Como premissa do processo de identiicação, somos capazes de sentir
apenas nossos próprios sentimentos e, quando crianças, vemos o outro
apenas como objeto de seus interesses ou instrumento para alcançar seus
ins. É também uma aquisição do amadurecimento conceber que o outro
também tem uma consciência e pode sofrer; não somos “um” com ele; ele
não existe para nos satisfazer. Ele é, de fato, outro ser. É preciso aprender
isto: compreender que o outro também sente como eu não é uma experiência
imediata.
Vale dizer que o limite de nossa empatia ou relação para com o outro
tem este limite, ainda de ordem narcísica. Só conseguimos ter empatia ou
compaixão (dois termos derivados de ‘pathos’, como compartilhamento dos
mesmos sentimentos) se conseguimos nos ver na situação em que o outro se
encontra (se fosse comigo...). O outro que não nos concerne e que passa por
algo que não concebemos que possa se dar conosco não nos comove. Em
suma, haveria uma relação direta entre a necessidade de autoairmação (e só
necessita quem não tem) e a intolerância ao outro.
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Não nos airmamos ante a alguém muito maior ou menor do que nós
mesmos, mas ante a semelhantes. Atacamos no outro o que não suportamos
em nós, como na velha e boa piada sobre o homofóbico ser alguém “no
armário”. Mas esta é a dinâmica de quem conseguiu ser incluído no grupo que
almejava. O que ocorre com quem não conseguiu? A experiência da exclusão
é arrasadora e gera um sentimento de diminuição, não merecimento, desamor.
Costuma se seguir a isto o isolamento ou o encontro com outras pessoas na
mesma condição, e elas formam um novo grupo, o grupo dos excluídos. Um
grupo formado assim por pessoas cheias de ressentimento por terem sofrido
exclusão costuma ser ainda mais coeso. Sentindo-se potentes em grupo, eles
costumam reproduzir a violência que sofreram e ser especialmente intolerantes.
Voltando à convivência em grupo, ela presume uma intermediação entre os
indivíduos que o compõem. Esta intermediação é dada pelo compartilhamento
por parte de seus membros da idealização de um ideal. Pode ser uma ideia
ou igura de liderança. Mas é através de uma intermediação simbólica que
cada indivíduo ultrapassa sua luta primária por interesse e passa a se sentir
fortalecido pela pertinência a um grupo. Cada um projeta na igura de
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Nesta parte inal do texto, vale uma menção ao livro de Amós Oz – Como
curar um fanático, lançado ao inal de 2015, no qual o autor estabelece algumas
ideias que dialogam fortemente com os desenvolvimentos anteriores sobre a
questão da intolerância: aqui se encontram a questão da cisão Eu/não-Eu, a
ameaça representada pelo Outro, a tensão das fronteiras e a necessidade de
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Referências
KLEIN, M. Amor culpa e reparação: e outros trabalhos (1921-1945). In: Obras Completas de
Melanie Klein, v. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KLEIN, M. Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In: Obras Completas de Melanie
Klein, v. 3. Tradução Elias Mallet da Rocha, 4. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1991, p. 17-43.
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SUNSET Boulevard. Direção: Billy Wilder. Produção: Charles Brackett. Paramount Pictures
(110 min.), EUA, 10 ago. 1950.
OZ, A. Como curar um fanático. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 104 p.
SANTI, P. L. R de. A paranóia como crise da autoridade: ou, não é só porque você é paranóico
que não tem ninguém lhe perseguindo. Psyche, São Paulo, v. 8, n. 14, p. 123-146, dez.
2004 . Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
11382004000200008&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 12 set. 2016.
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