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SANTI, Pedro Luiz Ribeiro de.

A intolerância de sempre e a de hoje: uma leitura psicanalítica

A intolerância de sempre e a de hoje: uma leitura psicanalítica


The usual intolerance and present one: a psychoanalytic view
http://dx.doi.org/10.5007/2178-4582.2017v51n1p158

Pedro Luiz Ribeiro de Santi


Escola Superior de Propaganda e Marketing, São Paulo/SP, Brasil

Neste artigo, analiso as raízes da intolerância de In this article, I analyze the roots of
uma perspectiva psicanalítica e as formas que ela intolerance from a psychoanalytic perspective, as
tem tomado em nossa vida política nos últimos well as the ways it has been taken in our politic
anos. Em primeiro lugar, exponho uma concepção life in the last years. At irst, I expose a relation
sobre a relação entre a intolerância e a formação between intolerance and the Ego origin; in order
do Eu para, então, compreender as mudanças to understand what changes in the measure of
sobre o que é ou não tolerável em diferentes what is or isn’t tolerable in distinct contexts. After
contextos. Em seguida, passo a uma análise das that, I analyze the psychosocial conditions for the
condições psicossociais para a tolerância ao outro, tolerance of the Other, sustaining that a failure
desenvolvendo o argumento de que uma falha da in the symbolic intermediation is an important
intermediação simbólica é um fator importante issue in the contemporary forms of intolerance.
nas formas contemporâneas da intolerância. Ante From that failure, the relation with ideas and
a esta falha, as relações com ideias e pessoas persons remains on an imaginary level, and the
permanecem presas no imaginário e a capacidade relection ability in inhibited, as it is in a fetish.
de relexão é inibida, como num fetiche. Concluo My conclusion is that a symbolic intermediation
que é na instituição de uma intermediação between the Ego and the other is a condition to a
simbólica entre o Eu e o Outro que pode haver uma tolerant coexistence.
condição de convivência mais tolerante.
Keywords: intolerance; psychoanalysis;
Palavras-chave: intolerância; psicanálise; contemporaneity.
contemporaneidade.

Introdução

Os pavios andam especialmente curtos de alguns anos para cá. A simples


menção a um termo que possa vir a ser interpretado de forma ofensiva por
alguém, ainda que sem esta intenção no contexto em que foi usado, gera uma
reação forte de recusa. Esta defesa é feita, aliás, sob o argumento da empatia
com relação a cada um que possa se sentir ofendido. Ironicamente, a busca
por empatia pode fazer a intolerância à expressão do outro voltar pela porta
dos fundos.
Nas redes sociais, muitas pessoas ainda caçam qualquer coisa que possa
ser posta em evidência para atacar o “outro lado” e expressam seu gozo ao
conseguir fazê-lo. Já a expressão e as publicações do “outro lado” são sempre
consideradas ofensivas e irracionais, gerando furor e desejo de aniquilamento.
O policiamento raivoso imposto ao outro não tem a contr apartida da autocrítica,
no entanto. A agressividade e ofensa que partem da própria pessoa diicilmente
é percebida ou, no máximo, é justiicada numa narrativa de defesa. Aquele que

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se sente violentado pelo outro se considera liberado para exercer sua própria
violência. Parece bastante claro que tais atitudes reativas mútuas só podem
levar a uma escalada de intolerância e ódio.
A intolerância acompanha as relações humanas. Ao mesmo tempo, pode-
se perceber que há momentos ou contextos culturais nos quais ela parece maior
ou menor. Por alguns motivos, que exporei adiante, considero que vivemos
um momento especialmente recrudescido de intolerância.
Neste artigo, meu objetivo é explorar algumas hipóteses psicanalíticas
para a compreensão de algumas formas da intolerância, especiicamente
aquelas que tomam em nosso ambiente contemporâneo. Meu objetivo é
operar uma relexão psicanalítica alinhada em três ideias-chave: (a) parto
de uma concepção sobre a relação entre a intolerância e a formação do
Eu: em sua formação, ele se airma na diferença com relação a um outro,
vivido inicialmente como hostil; (b) abordo também a mobilidade das
fronteiras estabelecidas entre o Eu e o não Eu; (c) a partir desta dinâmica
predominantemente individual, passo a uma análise das condições
psicossociais para a tolerância ao outro: é na instituição de uma intermediação
simbólica entre o Eu e o Outro que pode haver uma condição de convivência
mais tolerante. Procuro aplicar os desenvolvimentos iniciais numa relexão
sobre dois fenômenos: a Operação Lava Jato e um artigo de Ana Paula Cortat,
chamado “Antes, podia”. Analiso, brevemente, por im, um livro recente de
Amós Oz , Como curar um fanático.

A intolerância e as fronteiras do Eu

‘Tolerar’ signiica aceitar, suportar. Seu negativo - a intolerância- é


psicologicamente uma reação defensiva do Eu. Uma airmação da própria
identidade e expulsão do que pareça ameaçador a ela. É uma prevenção ante
a iminência de um trauma (SANTI, 2005). Trata- se de uma sensibilidade
alérgica.
Pode-se imaginar, então, que a intolerância é própria de um Eu forte;
mas, não. Um Eu forte é, para a psicanálise, aquele que se faz lexível e busca
por soluções de compromisso entre as forças em ação; ele se deixa afetar e
transformar e se permite cair e se perder, pois conia que poderá se recompor:
“E para o Eu será possível evitar a ruptura em qualquer direção, ao deformar
a si mesmo, permitir danos à sua unidade, eventualmente até se dividir ou
partir” (FREUD, [1924], 2011, p. 182).
Em sua rigidez, o Eu intolerante denúncia seu terror à dissolução:
sua insegurança. Assumimos a hipótese, desde esta perspectiva, de que
a intolerância pode ser a marca de uma identidade ainda em construção

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(situação pela qual todos passamos), precisando se assegurar e reassegurar a


cada instante; ou, ainda, a marca de um Eu traumatizado, que experimentou
excessos que puseram em risco sua integridade.
Mesmo por este caminho, que busca certa empatia na compreensão da
intolerância, diicilmente alguém intolerante atrai simpatia, uma vez que
aquele Eu reativo busca se impor sobre o outro, a quem procura desqualiicar
(ou mesmo aniquilar). A intolerância tende à violência e ao isolamento da
pessoa em si ou em seu grupo identitário.
A condição humana faz de nós seres relacionais, de misturas, conlitos e
compromissos: a intolerância gostaria de se abster desta confusão e “sujeirada”
humana. O que é nossa origem num ato sexual senão a arte da mistura? Mas a
intolerância busca ser asséptica e ascética: pura e acima do mundano. É como
no sonho irrealizável de Narciso: não depender de ninguém, não ter ninguém
dependendo de si.
Não nascemos tendo de início um Eu (FREUD [1931], 2010), Ele será
precipitado pela percepção, por parte da criança, de que há vazios, espaços
e descontinuidades entre a própria experiência e a daqueles de quem vêm o
cuidado e afeto básicos. Em termos teóricos, a desfusão com a igura materna
(quem quer que exerça a função). Só há um Eu quando há um não-Eu, um
Outro. Os ‘nãos’ emitidos pelo outro e pelo Eu demarcam as fronteiras onde
um acaba e outro começa. É difícil dizer não a quem amamos ou de quem
dependemos, pois ao fazê-lo damos prova de descontinuidade e de frustrar
as fantasias de fusão e identidade. Temos, então, medo do abandono ou do
ataque do outro.
A criança humana provavelmente vive mergulhada em experiências e
sensações intensas de prazer e desprazer. Naturalmente, o Eu busca reter tudo
que lhe dê prazer e segurança; e repudia e busca evitar tudo o que for mau.
Numa formulação clássica de Freud, o Eu incialmente se identiica com o bom
e projeta o mau: Eu é bom, não-Eu é mau.
Assim, a vida humana é dependente e ancorada num outro desde sua
origem e como sua condição, mas sua primeira representação do outro tende a
ser a de um inimigo que frustra e ataca: a fonte de todos os males. Para outra
psicanalista, Melanie Klein, a experiência infantil mais primitiva não conhece
o vazio: sua experiência seria uma “aquisição” que requer certa maturidade:
“(...) nos primeiros meses de vida, a ansiedade é predominantemente
vivenciada como um medo de perseguição” (KLEIN, 1991, v. 3, p. 41). De
início, ora a criança vê um outro bom (mãe boa, seio bom), fonte de todas as
satisfações; ora, em momentos de frustração e dor, vê um ser mau. O mundo
infantil é sempre animado (no sentido de preenchido por presenças) e quando

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a luz do quarto se apaga na hora de dormir, ele não ica vazio: cessado o
“input” de estímulos ambientais, a consciência é invadida por fantasias, em
grande parte, destrutivas e persecutórias
Ao longo de seu desenvolvimento/amadurecimento, o Eu em geral vai
se dando conta de que aquela cisão entre o absolutamente bom e o mau não
existe; ele passa a poder integrar parcialmente seus aspectos mais destrutivos
(negativos) e reconhecer valor no outro. A mesma mãe que vem e atende é
a mãe que vai ou demora a vir. Aqui surge a experiência do vazio: nem tudo
de mal ou bom que acontece tem um “sujeito”. Mas esta aquisição é sempre
incompleta e sujeita a regressões em situações de força emocional (quando
se mexe com nossa família, time de futebol, posições políticas...). O Outro
vivido como mau, inimigo ou concorrente poderá ser visto também como
amoroso, parceiro, acolhedor. O im das idealizações que fazemos sobre nós
é também o im da idealização do Outro: nem um nem outro absolutamente
bom ou mal, onipotente ou impotente.
Voltando à Klein, nesta condição, a criança passa a se sentir culpada.
Ela se dá conta que aquele ser frustrante e violento que odiou é o mesmo a
quem ama e que lhe dá amor. O Outro é visto agora não como parte (boa ou
má), mas como um ser total. Da culpa sentida pelos ataques desferidos, pode
nascer o desejo de reparar os estragos produzidos e, adiante, o sentimento de
gratidão por aquele ser. Reparação e sentimento de gratidão: temos aqui uma
das versões para a origem da condição de empatia pelo outro: se eu sofro ante
o ataque, o outro também deve sofrer ante meus ataques (KLEIN, 1996).
Como premissa do processo de identiicação, somos capazes de sentir
apenas nossos próprios sentimentos e, quando crianças, vemos o outro
apenas como objeto de seus interesses ou instrumento para alcançar seus
ins. É também uma aquisição do amadurecimento conceber que o outro
também tem uma consciência e pode sofrer; não somos “um” com ele; ele
não existe para nos satisfazer. Ele é, de fato, outro ser. É preciso aprender
isto: compreender que o outro também sente como eu não é uma experiência
imediata.
Vale dizer que o limite de nossa empatia ou relação para com o outro
tem este limite, ainda de ordem narcísica. Só conseguimos ter empatia ou
compaixão (dois termos derivados de ‘pathos’, como compartilhamento dos
mesmos sentimentos) se conseguimos nos ver na situação em que o outro se
encontra (se fosse comigo...). O outro que não nos concerne e que passa por
algo que não concebemos que possa se dar conosco não nos comove. Em
suma, haveria uma relação direta entre a necessidade de autoairmação (e só
necessita quem não tem) e a intolerância ao outro.

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As fronteiras cambiantes do tolerável

Nesta segunda parte do texto, a questão da intolerância de uma perspectiva


psicanalítica permite reletir sobre a mobilidade contínua das fronteiras entre
o que é ou não tolerável. A divisão Eu/não-Eu, tal como vimos na primeira
parte, não é clara ou deinitiva e sofre transformações constantes.
Uma situação relatada em meu consultório será o ponto de partida.
Um homem na faixa de seus 20 anos recentemente se tornou vegetariano.
Naturalmente, ele enfrenta alguns desaios novos em sua vida social: em alguns
ambientes é difícil encontrar opções que atendam ao seu vegetarianismo.
Esta diiculdade o perturba cada vez mais, a ponto de fazê-lo deixar alguns
lugares, ofendido. De um lado, ele entende que tem o direito de escolher
ser vegetariano e que os demais têm o direito de fazer suas opções de hábito
alimentar; de outro, ele passou a considerar verdadeiramente errado comer
carne e passa a se irritar com quem o faz. Agora, ele passa a ter ímpetos de
discutir com todos para convencê-los a mudar de hábito. Neste caso, o outro
estaria alienado de uma realidade cruel e seria algo fundamentalmente bom
corrigi-lo de um mau hábito. Ainda reletindo, diz que não chega ao ponto de
ser vegano, pois come ovos e queijo. Ou seja, ele considera que também não
faz o que é certo até o extremo, embora esteja tentando melhorar.
O paciente está em momento de passagem e reacomodação em seus
valores; em período de viva relexão, sofre com os ajustes, atritos e “traduções”
que deve fazer de seus valores anteriores. Certas ideias que incorporavam seu
Eu como naturais passam a ser vistas como vergonhosas, constrangedoras.
Algumas delas não terão mais direito de cidadania e, ainal, serão reprimidas.
Ele está às voltas com sua identidade e com mudanças em suas próprias
fronteiras. Ao fazê-lo, evidencia que temos fronteiras que nos dão limite e
diferenciam dos outros, mas também de que as fronteiras são convenções e
não substâncias imutáveis.
O limite Eu/não-Eu não é simples ou estável. É dentro de um jogo de forças
complexo que fronteiras se estabelecem e acomodam; mas esta acomodação
tende a ser provisória e sempre sujeita a reacomodações, conforme as forças
envolvidas também se transformam. Identidades são a crença na permanência
de algo idêntico a si mesmo ao longo do tempo. Esta crença tende a ser
ilusória, ao ignorar o cabo de guerra múltiplo dentro qual constantemente
estamos. As tentativas de se manter apegado a identidades que já não dão
conta das demandas atuais geram o sofrimento neurótico (“apesar de mim,
estou mudando”; assim uma paciente se apresentou há alguns anos); ou, até
no limite, levam a um estado delirante (que tem uma referência emblemática
do ilme clássico O crepúsculo dos deuses (SUNSET BOULEVARD, 1950).

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Nossa segunda hipótese é a de que o próprio Eu seria assim uma espécie


de partido de centro, procurando encontrar soluções de compromisso entre as
forças envolvidas. Uma colcha de retalhos com contradições e incoerências
internas, numa dada coniguração de fronteiras. Esta unidade instável cria
ainda um campo de exclusão - o reprimido - que cobra seu preço e acaba por
vazar de alguma forma. O que está para lá das fronteiras não deixa de ser real,
passa a icar fora do controle do Eu e acaba por vazar, de forma disruptiva.
Além disso, tudo o que vier de encontro ao Eu e remeter associativamente ao
reprimido provocará uma forte reação de repulsa.
Encarar o próprio desejo reprimido estampado no outro é algo fortemente
ameaçador. Para a psicanálise, a sensação de nojo atesta exatamente isto: o
contato com um objeto que gera uma forte excitação, mobiliza um desejo; sendo
este objeto inaceitável ao conjunto representativo que constitui o Eu naquele
dado momento, a excitação terá seu sinal trocado de atração para aversão.
Algo que não tocasse algo muito profundo em nós causaria indiferença, não
aversão. Na medida em que aquilo que é aceitável pessoal ou socialmente se
transforma, há uma tradução: coisas aceitáveis num dado momento podem
passar a ser repudiantes em outro; e vice-versa.
Dentre certas deinições do que é tolerável ou não, hoje, aqueles que são
mais velhos com frequência podem dizer a expressão: “antes, podia”. Ao
longo do tempo, piadas ou preconceitos arraigados socialmente, ao ponto
de terem se tornado invisíveis, tornam-se agora inaceitáveis. Isto não se dá
necessariamente num sentido de ampliação ou progresso, mas no sentido
de criar novos espaços de possibilidade do que seja aceitável, em detrimento
de outros. Os vetores do jogo de forças sociais podem gerar um campo
relativamente estável, mas que vai sendo repuxado pela variação das forças
que sobre ele atuam.
Embora haja um discurso muito difundido pela aceitação progressiva
da diversidade de comportamentos, etnias e gêneros, não estamos vivendo
de fato uma simples ampliação de possibilidades e espaços, mas sim um
redirecionamento, com a criação de novos campos de inclusão e exclusão.
Pessoas que viam suas opções oprimidas por uma ordem vigente anterior não
querem simplesmente ter direito a voz, mas o direito de tolher as vozes que
lhes oprimiam. O cobertor é curto para cobrir uma área, outra ica descoberta.
E é óbvio que aqueles que tinham espaço e voz veem seu território
invadido e reagem em protesto, buscando retomar a posição anterior. Este
é o protesto embutido no Antes, podia. Ana Paula Cortat (2015) publicou
um artigo com este nome na revista Meio & Mensagem. O artigo foi muito
difundido no meio e problematiza a linguagem arcaica e inaceitável que

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permanece corrente na publicidade, quando muitos setores da sociedade se


transformaram. Eis sua conclusão:
Ainda estamos olhando para o que fazemos acreditando que
não deixamos resíduos na sociedade. Será que precisamos
de leis que nos digam que não podemos sexualizar crianças?
Estimular a violência contra mulheres? Estimular ou legitimar
qualquer tipo de fobia? Ainda usamos o acaso, a ignorância, a
não intencionalidade para justiicar nossa falta de contato com
a realidade e nossa falta de consciência. Não dá mais. Chega.
Deinitivamente, isso não pode. (CORTAT, 2015)

Importantes transformações culturais trouxeram o imperativo de preservar


identidades e não submetê-las a formas de opressão que nos pareciam, pelo
poder do hábito, naturais. O século XXI tem sido o cenário de lutas acirradas
por parte de grupos identitários que, a cada movimento seu, afetam outros
grupos que se veem ofendidos ou invadidos e reagem proporcionalmente a
seu sentimento, retroalimentando a invasão e gerando ódio. Isto se dá pelo
simples fato de cada entidade existir e ocupar espaço, mesmo que não haja
uma intenção provocativa; o que por vezes também acontece, é claro. Nossa
simples existência já nos coloca em posição de afetar o outro; e vice-versa.
Não há dúvida de que haja algo de positivo nestas airmações de si e na recusa
por aceitar opressão, mas passamos a pagar o preço do atrito gerado por isto.
Para que não corrêssemos o risco de ofender ninguém, por outro lado,
precisaríamos nos anular ou nos fechar. Este é o problema daquela meta
politicamente correta de procurar prevenir que uma expressão possa vir a
ofender alguém. Como ninguém está disposto a se aniquilar, grupos cada
vez mais fechados se formam, evitando expor os conlitos, procurando se
“puriicar” e não se misturar. Esta direção gera feudos e mônadas e não uma
comunidade mais plural: um aglomerado de individualidades avessas umas às
outras. Isto não é convívio com a diversidade: é a vitória da intolerância.

A tolerância mútua depende de mediação social

Vimos até aqui, em termos básicos, como as origens da tolerância possuem


relação com a própria constituição do Eu, assim como com as mudanças que as
fronteiras entre o Eu e o não-Eu sofrem. Passemos agora a estender a questão
para uma dinâmica de relação grupal, desde uma perspectiva psicanalítica.
Ao longo da vida, a dinâmica inicial da formação da mente com a cisão Eu/
bom- Outro/mau se replica na formação dos grupos familiares e de pertinência.
A convivência em grupos onde encontramos acolhimento, proteção ou

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amizade gera atritos normais. É difícil lidar com a ambivalência afetiva:


amamos e odiamos ao mesmo tempo as mesmas pessoas. E o mecanismo para
preservar aqueles que amamos de nosso ódio é, uma vez mais, a projeção
da agressividade em outros grupos. Estar em grupo e falar mal de outros
grupos é um forte componente de coesão. Criamos intimidade, cumplicidade,
airmamo-nos como superiores e conseguimos “queimar” nossa hostilidade
interna voltando-a para fora.
Assim, cada entidade identitária (pessoa, família, tribo, grupo de trabalho,
esporte, religioso, etc) airma-se ante e anti um outro grupo, depósito
projetivo de todos os males. Nossas imperfeições e insuiciências, a frustração
com o mundo que não se dobra aos nossos desejos, tudo é atribuído à ação
incompetente ou malévola do grupo adversário. Damos forma antropomórica
ao vazio e ao infortúnio.
Freud forjou o expressão ‘narcisismo das pequenas diferenças’ para
descrever como elegemos nossos inimigos privilegiados. Eles são escolhidos
por identiicação: alguém de nosso tamanho e parecidíssimo conosco:
Certa vez discuti o fenômeno de justamente comunidades
vizinhas, e também próximas em outros aspectos, andarem
às turras e zombarem uma da outra, como os espanhóis e os
portugueses, os alemães do norte e os do sul, os ingleses e os
escoceses etc. Dei a isto o nome de ‘narcisismo das pequenas
diferenças’. (FREUD, 2010, v. 18, p. 81).

Não nos airmamos ante a alguém muito maior ou menor do que nós
mesmos, mas ante a semelhantes. Atacamos no outro o que não suportamos
em nós, como na velha e boa piada sobre o homofóbico ser alguém “no
armário”. Mas esta é a dinâmica de quem conseguiu ser incluído no grupo que
almejava. O que ocorre com quem não conseguiu? A experiência da exclusão
é arrasadora e gera um sentimento de diminuição, não merecimento, desamor.
Costuma se seguir a isto o isolamento ou o encontro com outras pessoas na
mesma condição, e elas formam um novo grupo, o grupo dos excluídos. Um
grupo formado assim por pessoas cheias de ressentimento por terem sofrido
exclusão costuma ser ainda mais coeso. Sentindo-se potentes em grupo, eles
costumam reproduzir a violência que sofreram e ser especialmente intolerantes.
Voltando à convivência em grupo, ela presume uma intermediação entre os
indivíduos que o compõem. Esta intermediação é dada pelo compartilhamento
por parte de seus membros da idealização de um ideal. Pode ser uma ideia
ou igura de liderança. Mas é através de uma intermediação simbólica que
cada indivíduo ultrapassa sua luta primária por interesse e passa a se sentir
fortalecido pela pertinência a um grupo. Cada um projeta na igura de

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referência os ideais aos quais renunciou no processo de amadurecimento. Meu


líder encarna meu Eu ideal: onipotente e perfeito como um dia se acreditou
ser, até a realidade se impor e criar uma noção de nossos alcances e limites
(FREUD, 2011, v.15, p. 91).
Os membros do grupo se irmanam justamente por compartilharem
a idealização ao mesmo objeto. Este é o caminho do convívio social e das
negociações, em medida motivadas pelo medo do abandono e da solidão
São os pactos sociais descritos por Freud e Hobbes (ENRIQUEZ, 1990) por
exemplo. Para ambos, aliás, a primeira motivação para o convívio social é o
medo de morrer. A consciência de nossos limites e o destino inevitavelmente
mortal da pura luta por nos impormos em busca de poder e prazer. Para a
psicanálise, isto é instituído pela função paterna, no complexo de Édipo. A
criação do laço simbólico é correlata ao im da idealização de si e do outro,
com o nascimento do vazio e condição de relação real com o outro.
É por este caminho que nos descolamos dos processos primários de busca
por prazer e entramos no caminho da experiência política. Renúncia ao prazer
imediato, inclusão no laço social, garantias básicas de proteção por parte do
grupo, caminhos disponíveis para prazeres possíveis. O processo é frustrante
para quem se acreditava onipotente; além disso, deixa restos reprimidos e
paga-se o preço por eles sob a forma de neurose.
Naturalmente, para que este processo se consuma, é necessário que
a posição simbólica se instaure com autoridade e justiça: todos devem ser
iguais perante a lei para que o pacto funcione para indivíduos que, a princípio,
querem tudo para si. Os indivíduos todos devem ser iguais entre si, mas todos
querem ser dominados por um só. Muitos iguais, que podem identiicar-se uns
com os outros, e um único, superior a todos eles – “esta é a situação que se
acha realizada numa massa capaz de subsistir” (FREUD, 2011, p. 83).
De uma situação primitiva de domínio por um ser mais forte, passou-
se à instituição da instância simbólica que intermedia as relações entre os
membros do grupo. A autoridade provém da condição de que ela se mostre
justa e impessoal e cada um possa coniar nela. Quando a autoridade falha,
quem ocupa o lugar de poder muitas vezes apela para o autoritarismo, ou
seja, para a forca. A autoridade se ancora no simbólico, o autoritarismo no
imaginário e no real.
Assim, o acesso à dimensão simbólica proporciona um distanciamento
relativo da experiência imediata, o que produz um efeito ambivalente: de um
lado “perdemos o paraíso” da crença em certezas e onipotência; de outro,
icamos a salvo da onipresença persecutória de um outro maléico. Sofremos
com a falta, mas nela desfrutamos do privilégio da solidão.

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Nossa terceira hipótese se apresenta aqui: caso haja, no exercício da força,


característico da função paterna, a suspeita de que ela não esteja agindo de
acordo com o que é justo e válido para todos, aquela força será vivida como
pura violência e exercício de gozo sádico. Aquele que a sofre não irá renunciar
ao seu prazer imediato em função de um pacto simbólico, mas estará sob uma
situação de terror. A igura paterna sem autoridade simbólica e agindo de
acordo seu interesse não irá operar uma castração simbólica, mas sim uma
mutilação real; não exercerá a função paterna, mas a de mãe má persecutória
(SANTI, 2004).
Penso que esta tensão pode ser acompanhada na Operação Lava Jato e
na igura do juiz Moro: do que se trata? De uma tentativa inédita de rever a
cultura de corrupção arraigada do país ou de uma perseguição arbitrária a
um grupo especíico? Trata-se de arbítrio jurídico ou de uma arbitrariedade
policial ? Autoridade ou autoritarismo? Estamos procurando a construção
de um novo pacto social ou nos vingando do Partido dos Trabalhadores, que
ousou chegar ao poder? Mesmo que se trate do primeiro caso, aqueles que
são acusados e não veem autoridade no processo procurarão desqualiicá-lo e
atacá-lo, procurando fazer com que pareça o segundo caso (perseguição, como
na expressão recorrente: “vazamento seletivo de informações do processo”).
Penso que há uma séria crise de autoridade simbólica; inclusive porque é um
negócio seguro buscar defeitos e falhas morais nos outros. Como instaurar
um termo simbólico compartilhado?
Quando, no im dos anos 1970, o antropólogo norte-americano Christopher
Lasch (1982) forjou a expressão ‘cultura do narcisismo’, muita gente
imaginou que se tratasse de uma referência à nossa vaidade e individualismo.
Mas, para a psicanálise, há muito mais implicado nisso: justamente numa
falha do processo edípico numa dimensão social e na permanência de um
modo mais primitivo de experiência.
Como nova hipótese, aqui se encontram os dois processos: de um lado, o
individual de passagem do narcisismo (renúncia às fantasias de onipotência)
e entrada no mundo da falta e do desejo; de outro, o processo social de
ultrapassagem de um estado de individualismo bruto para um pacto social,
mediado por uma instância simbólica (FREUD [1930], 2010, p. 62).
Operado o complexo de Édipo, entramos no mundo da cultura e dos
prazeres possíveis: passamos a sofrer com o sentido de falta e insatisfação,
mas adquirimos o benefício da capacidade de estarmos sós. Onde não se
instale a falta, operada pelo que chamamos de castração simbólica, icamos
entregue a um excesso de presença, com idealizações de iguras acima de
qualquer possibilidade de falha ou crítica e à mercê de inimigos odiosos a
nos perseguir.

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Socialmente, vivemos uma forte crise nesta instauração do simbólico. Ante


a falta de coniança numa instância simbólica, qualquer um que procure se
airmar como autoridade a demandar por renúncia às nossas idealizações será
percebido como um ser autoritário e agressivo. Esta presença será vivida como
algo que quer cortar meu prazer, suspeitar de minhas referências, ferir meu
narcisismo; mas só o meu, não o de meus adversários. Com a diiculdade de
que alguém ocupe uma posição de distanciamento e intermediação simbólica
reconhecida por parte signiicativa da sociedade, as iguras de autoridade são
vividas como “autoritárias”, perseguidoras.
Neste artigo, tenho procurado sustentar a ideia de que a capacidade
de tolerância entre as pessoas depende de uma intermediação simbólica
social. Sua ausência entrega cada um a um sentido de desproteção, defesa
e persecutoriedade. A desautorização das instâncias simbólicas parece ser
uma receita segura para a formação de milícias coesas, fanáticas e, portanto,
violentas. Com a corrosão destas e demais iguras de autoridade, parece restar
um “cada um por si”. E fanáticos de lado a lado se aglutinam em tom de guerra,
e planejam suas manifestações. Militantes a militar ganham novo ânimo.
Voltemos à relexão sobre a crise das intermediações simbólicas no
exemplo da Operação Lava Jato e ao questionamento sobre suas motivações e
legitimidade. A cena da condução coercitiva do ex-presidente Lula por algumas
horas para depor, em março de 2016, parece ter se tornado um fetiche coletivo,
catalizador de militantes pró e contra ele. Houve uma grande excitação em
torno desta cena aguardada/temida, talvez, desde o “Mensalão”, há dez anos.
Por que chamo a relação com esta cena de ‘fetiche’? O termo deriva
de feitiço, encantamento, algo em que se ica ixado irresistivelmente. Em
psicanálise, fetichismo descreve uma condição erótica condicionada pelo
reencontro com uma cena extremamente especíica. A excitação extrema
ligada à cena cria um caráter compulsivo (FREUD, 2014) Freud ampliou o
conhecimento do fetichismo teorizando como o objeto de fetiche é escolhido e
a que serve a ixação a ele. O objeto do fetiche seria escolhido por contiguidade
ao encontro terrível com a falta (o que chamamos de castração simbólica). Em
português, isto quer dizer que a cena do fetiche seria a última coisa vista logo
antes da percepção do horror da incompletude. E é exatamente para evitar
seus efeitos que nos deteríamos na imagem anterior. O fetiche procura ser a
recusa do real que se impõe à nossa onipotência.
Voltemos à cena de “Lula preso”. Para seus opositores, a ixação nesta
cena permite que ignorem que “o buraco é mais embaixo” e que ele está
longe de ser o “núcleo duro da corrupção”. Nossa corrupção se espalha pela
história brasileira e pelo nosso cotidiano, nas pequenas e grandes vantagens
que buscamos obter (sim, em primeira pessoa). O que haveria para depois da

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queda de Lula e do PT? A crise econômica e de governabilidade são muito


anteriores e posteriores, como ora vemos.
Para aqueles que têm Lula como um líder, a notícia de sua prisão fez
com que todo o contexto de revelação dos descaminhos do poder fosse
esquecido. Mesmo aqueles capazes de autocrítica até a véspera tiveram sua
relexão zerada pela cena da prisão. É quase como se tivesse havido um alívio:
a alegada arbitrariedade da prisão temporária teria restituído Lula e o PT a
seu contexto de origem, em luta contra o regime militar. As denúncias de que
teríamos estado num Estado de Exceção, em pleno governo Dilma, negava o
simples fato de que o PT ocupava o poder federal há 13 anos. De réu, Lula
passou a mártir.
Centrar as atenções no “nós contra eles” nos ajuda a todos a mantermos
afastada uma realidade bem mais dura e difícil. Seduzidos pelo fetiche, nem
começamos a pensar. Da mesma maneira, em estado de guerra e na urgência
em se garantir a própria sobrevivência, não é possível pensar, fazer autocrítica
ou qualquer coisa do gênero. Talvez haja até uma conivência coletiva em se
manter o estado de urgência. Todos icam poupados do doloroso exercício de
reletir sobre si e as próprias formas com que estamos implicados nas situações
de crise.
No campo político, os grupos partidários majoritários hoje no Brasil (que
tanto se comprazem em apontar a corrupção um do outro e são incapazes
de uma autocrítica, atribuindo qualquer acusação a eles como “motivação
política”), há trinta anos viviam sob o pacto da Nova República, contra
inimigos em comum. Paradoxalmente, com a vitória daquela causa, passaram
a se digladiar intolerantemente pelo poder. O resultado, foi o esgarçamento
daquele pacto simbólico, o que, tudo indica, contribuiu para nosso regime de
guerra e intolerância.
Tudo leva a crer que só ante um novo medo ou ideal em comum e
reconstituição de um pacto simbólico poderíamos sair do impasse em que
nos encontramos. Isto independente dos atores do pacto social anterior que,
aparentemente, perderam em boa medida a representatividade popular. A
tolerância mútua também é constituída pela mediação simbólica social.

“Como curar um fanático”: notas inais

Nesta parte inal do texto, vale uma menção ao livro de Amós Oz – Como
curar um fanático, lançado ao inal de 2015, no qual o autor estabelece algumas
ideias que dialogam fortemente com os desenvolvimentos anteriores sobre a
questão da intolerância: aqui se encontram a questão da cisão Eu/não-Eu, a
ameaça representada pelo Outro, a tensão das fronteiras e a necessidade de

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SANTI, Pedro Luiz Ribeiro de. A intolerância de sempre e a de hoje: uma leitura psicanalítica

estabelecimento de intermediações simbólicas. A adesão do fanático a ideias e


valores que lhe são sagrados tornam-no um intolerante em potencial.
Segundo Oz (2015) hoje, o embate mais importante não se dá entre
esquerda/direita, machismo/feminismo, Israel/Palestina ou qualquer outra
polaridade de identidade cultural ou ideológica. O embate crucial é contra
os fanáticos, existentes transversalmente em qualquer grupo identitário. É
a certeza absoluta do fanatismo que o leva à arrogância de buscar “salvar”,
“educar” ou, caso falhe na missão, aniquilar quem não compartilhe de seus
valores. Da mesma forma, qualquer um que aponte críticas à posição do
fanático é visto como um inimigo que o quer destruir, o que o torna objeto
legítimo de ódio. Se eu tenho certeza, quem pensa diferentemente de mim não
é apenas diferente, mas errado.
Pode soar como ‘relativismo’ a opção por abstrair o mérito intrínseco de
cada lado de um conlito. Mas não se trata de pregar o ‘relativo’, e sim de focar
a atenção nas formas de ‘relação’ com o Outro. A questão, portanto, não está
colocada no que é ou não tolerável, mas em analisar como nos relacionamos
com quem se apresente como “Outro”.
O fanatismo não permite acordo ou compromisso: como ele só repousaria
na eliminação da diferença, o que é improvável, ele impõe um interminável
e infrutífero “nós contra eles”. Há formas de relação com o outro que se
baseiam em alguma capacidade de autocrítica e capacidade de compreender
a posição do outro (empatia). Com esta premissa, Oz trata da delicadíssima
relação entre Israel e Palestina: como israelense, ele é capaz de conceber que
o conlito não se dá entre um lado certo e um errado, mas entre um certo e
outro certo, desde a perspectiva de cada um. Isto não o torna menos israelense
e defensor de suas posições.
O tema das palestras de Amós Oz me parece o mais atual e necessário
possível, quando tantos grupos buscam, em sua válida autoairmação, calar
aqueles por quem se sentem oprimidos. Sofrer ou ter sofrido a opressão parece
fornecer uma “cota” de revide violento, o que simplesmente inverte a direção
da violência, realimentando-a. Pregar a liberdade de expressão ou a aceitação
da diversidade não pode se reduzir a pleitear a aceitação da própria expressão,
mas sim estar disposto a brigar pela expressão de pessoas e ideias com as
quais não me identiico e, mesmo, discordo.
Os remédios propostos pelo livro parecem singelos, mas vão à raiz da
questão: curiosidade e humor. Fanáticos não possuem um ou outro, assentados
que estão sobre sua verdade e causa messiânica de salvar o mundo, que funciona
como fetiche, como já vimos. Trata-se da instauração de uma mediação
simbólica. A curiosidade já implica uma atitude de abertura e interesse pelo
novo e pela diferença, na consciência de que aquilo que é sabido não é tudo.

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E o humor implica um distanciamento do imediato, a capacidade de não se


levar plenamente a sério, a capacidade de relexão (sobretudo naquele tipo
de humor no qual rimos de nós mesmos). E é com uma boa dose de humor
irônico que Oz diz que o fanático é o verdadeiro altruísta: ele pensa mais nos
outros do que em si.
Contra o fanatismo, o caminho parece ser a busca por mediações e
compromissos, o que implica renúncias. Oz toma o caminho de Freud em
suas concepções sobre nossos conlitos psíquicos e como lidamos com eles.
Ante o sofrimento e a frustração, qualquer um pode ter o impulso de aniquilar
aquele que lhe pareça o responsável por nossos limites. Ambos os autores
sabem que, ainal, a alteridade não pode e não deve ser aniquilada. Mesmo
o eventual desaparecimento do outro não restituiria a onipotência fantasiada
originalmente pelo Eu. Para Oz e Freud, viver dói e é na companhia dos
demais humanos igualmente frustrados e em conlito que conseguimos criar
uma condição para suportar e desfrutar a vida. Alguma meta consistente em
comum pode nos irmanar.
Em conclusão ao trabalho de Oz, restou uma dúvida irônica: pela própria
deinição de Amós Oz, o projeto de curar um fanático não teria então ele
mesmo uma inspiração...fanática?
A intolerância é uma forma de desaguar nossa agressividade e frustração;
é também uma forma de nos apegarmos a ideais frente à realidade que não
cede ao nosso desejo e nos informa, a todo instante, que há um outro em nós.
Um outro que repudiamos e expulsamos sobre os outros a quem, por isto,
sentimo-nos autorizados e liberados para atacar. E isto se torna mais agudo
quando não acreditamos contar com alguma instância de justiça ou mediação
para regular as relações.
Procuramos desenvolver uma linha argumentativa na qual se parte da
intolerância como defesa de um Eu em formação ou acuado, em busca de uma
delimitação entre o Eu e o Outro; neste movimento de fronteiras movediças,
projetamos sobre o outro tudo o que há de mal para que possamos nos identiicar
com o que seja bom. Chegamos a uma dimensão propriamente política na qual
trabalhamos a ideia de que é imprescindível uma mediação simbólica entre
o Eu e o Outro, um distanciamento relativo que nos preserve da experiência
primitiva de estarmos sendo atacados pelo outro. Assim, surgem as noções de
justiça, empatia e humor como antídotos à intolerância.
Quando pensamos em intolerância, pensamos na intolerância dos
outros, naquela que sofremos. Ancorados em nossa onipotência infantil
imperfeitamente superada, reclamamos ser tolerados, termos mais espaço
e voz. Nesta dimensão, não nos percebemos no próprio jogo do poder, ao

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SANTI, Pedro Luiz Ribeiro de. A intolerância de sempre e a de hoje: uma leitura psicanalítica

ocupar espaços e constranger o outro. Só nos damos conta da violência deste


jogo quando sofremos a invasão ou perda de lugar debitada a um outro.
Uma relexão só merece este nome se formos capazes de nos incluir
nela, e não apenas falarmos com distanciamento, supostamente objetivo,
das fraquezas dos outros. O grande desaio mental é identiicarmos nossos
próprios pontos cegos e sagrados: a intolerância que exercermos.
O que temos adiante é a necessidade de seguirmos nos confrontando e
estudando questões relativas à identidade e à alteridade em nosso ambiente
contemporâneo, às modalidades que a vida política assumirá, às composições
que os conlitos e jogos de força assumirão. Nosso trabalho de relexão é vivo
e combate os fanatismos quando retorna às nossas relações humanas e as
transformam.

Referências

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Submissão em: 30/09/2016


Aceite em: 14/02/2017

Pedro Luiz Ribeiro de Santi é psicanalista, possui graduação em Psicologia


pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestrado em Filosoia pela
Universidade de São Paulo e doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000). Atualmente é professor titular
e líder da área de Humanidades e Direito da ESPM e professor da especialização em
Teoria Psicanálitica da COGEAE/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Intervenção Terapêutica,
atuando principalmente nos seguintes temas: psicanálise, Freud, modernidade,
subjetividade, narcisismo e consumo.
Endereço: Rua Haddock Lobo, 144/111. São Paulo/SP, Brasil. CEP 01414-000.
E-mail: psanti@espm.br

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