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ALTER – Revista de Estudos Psicanalíticos, v.

37(1), 105-112, 2021/2022

A perversão no cotidiano
O estranho na parte obscura
de nós mesmos

Ana Rita Nuti Pontes,1 Ribeirão Preto

Resumo: Descrita por diversos autores como uma passagem da fantasia in-
consciente ao ato, a perversão combina sentimentos de vingança, de triunfo
e de controle, como meios de defesa contra a experiência emocional do
trauma e da impotência. O conceito de perversão é amplamente utilizado
em psicanálise na elucidação da dinâmica inconsciente da adição, do abuso
sexual, da delinquência, do homicídio, do assédio sexual e até da extorsão.
Os conceitos de narcisismo, fetichismo, voyeurismo e sadomasoquismo
são úteis para a compreensão da perversão. Em quase tudo o que li sobre
perversão, encontrei uma palavra que se repete: desumanização, ou seja,
perda da essência humana. Este é o ponto importante que se articula com a
perversão, pois, o sujeito, em seu estado perverso, desumaniza as pessoas,
coisificando-as, ignorando suas qualidades, anulando sua subjetividade e
tornando-as apenas metas de seu próprio interesse, envolto no manto da
hostilidade e desconsideração com o outro vivo. Refiro-me aos estados per-
versos, porque acredito que, embora a perversão esteja presente no nos-
so cotidiano, como analista, entendo que a mente humana se encontra em
constante trânsito e oscilação. Gostaria de me ater aos aspectos perversos
da mente humana, para pensar o trânsito emocional que acontece quando
o ser humano não pode ser humano, quando o ser que desumaniza o outro
se encontra com ele mesmo desumanizado dentro de si.
Palavras-chave: fantasia inconsciente, relação de objeto, narcisismo,
desumanização, distorção da realidade

Freud escreveu em Por que a guerra? (Carta endereçada ao físico


Alberto Einstein em 1932):

1 Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp).


Membro efetivo com função didática da Sociedade Brasileira de Psicanálise de
Ribeirão Preto (sbprp).

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Ana Rita Nuti Pontes

Se a disposição para a guerra for um produto da pulsão de destruição, o mais


fácil será apelar para o antagonista desta pulsão, para o Eros. Tudo o que esta-
belecer laços afetivos entre os homens deve atuar contra a guerra. Estes laços
podem ser de dois tipos. Primeiro, os vínculos análogos aos que nos ligam ao
objeto do amor, embora sem objetivos sexuais. A psicanálise não precisa de
se envergonhar, quando aqui fala de amor, pois a religião diz o mesmo: “Ama
o teu próximo como a ti mesmo”. Isto é fácil de exigir, mas difícil de realizar.
O outro tipo de laço afetivo é o que se leva a cabo por identificação. Tudo o
que estabelece importantes elementos comuns entre os homens desperta tais
sentimentos de comunidade, identificações. Neles se baseia, em grande parte,
a estrutura da sociedade humana. (Freud, 1932/2017)

Inicio, portanto, esta apresentação falando primeiro do que huma-


niza, que são os vínculos que se estabelecem por meio de Eros, o amor,
dos vínculos L e K (Bion) que despertam o desejo de conhecer, aprender
e se interessar pelo outro, com empatia e compaixão, para a manutenção
e expansão da vida. A teoria das relações objetais e o estudo das posi-
ções esquizoparanoide e depressiva alude para o desenvolvimento do
psiquismo humano e enfatiza, ainda mais, a importância da capacidade
do amor para a real condição do sujeito se humanizar e se apropriar de
um sentido para sua existência. A conjunção do instinto de vida aliado
à posição depressiva ajuda a pessoa, por meio do desenvolvimento de
sua capacidade de pensar, reconhecer os efeitos de sua violência e agres-
sividade e se humanizar. Se isso não acontece, abre-se a oportunidade
para infinitas formas da perversão, isto é, para um tipo de uso do objeto
(Winnicott, 1975), quando o objeto é tratado apenas como uma coisa,
sem consideração e sem ética, em que a realização do prazer acontece
pelo triunfo sobre o outro e vai além do prazer sexual.
Quando recorremos à etimologia da palavra, encontramos que
o termo perversão originou-se do latim perversio. Enquanto o adjeti-
vo “perverso” advém de perversitas e perversus, particípio passado de
pervertere: retornar, derrubar, inverter, além de erodir, desorganizar
cometer extravagâncias (Roudinesco, 2007).
Descrita por diversos autores como uma passagem da fantasia
inconsciente ao ato, a perversão combina sentimentos de vingança, de
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triunfo e de controle, como meios de defesa contra a experiência do


trauma e da impotência. O conceito de perversão é amplamente utiliza-
do em psicanálise na elucidação da dinâmica inconsciente da adição, do
abuso sexual, da delinquência, do homicídio, do assédio sexual e até da
extorsão. Os conceitos de narcisismo, fetichismo, voyeurismo e sadoma-
soquismo são úteis para a compreensão da perversão.
Para Stoller a perversão é a forma “erótica da hostilidade” e, do
seu ponto de vista, esse aspecto é comum a todas as perversões. Afirma
também que a perversão é “uma tomada de controle sobre, e uma
vingança contra o trauma original” (2015, p. 52), uma reação contra
experiências traumáticas infantis. A essência da perversão é a conversão
de um trauma infantil num triunfo adulto (Stoller, 2015).
Khan (1987) refere-se às mães que tratam seus filhos como coisas,
de tal modo que produzem no filho um sentimento de não estar vivo,
como ser humano, e investiga a perversão nos termos da sua função
como um modo da pessoa não usufruir da intimidade com o outro e
consigo mesmo. Echetgoyen (1978) afirma que a perversão surge como
uma defesa contra a loucura. Green (1986) expande as ideias de Freud
ao falar sobre a função objetalizante da pulsão de vida e desobjetalizante
da pulsão de morte.
Para Meltzer (1979), perversão é um termo adequado para os
estados sexuais da mente liderados pela parte destrutiva da sexualidade
e o grande gozo é originário da competição invejosa que se compraz
em destruir o outro. “Mal seja o meu bem!” é o lema da perversão, em
que os impulsos são fundamentalmente anti-natureza e o mundo que se
procura construir é o mundo dos sem vida, em que as grandes ansieda-
des e angústias dos mortais parecem não existir. A qualidade emocional
dos estados sexuais sádicos perversos da mente é basicamente maníaca,
e a cobiça está voltada para a triunfante eliminação da ansiedade depres-
siva. A perversidade sádica se caracteriza por estados mentais quando a
identidade é capturada pela parte destrutiva do eu e que impede a inti-
midade amorosa necessária para uma penetração emocional que une e
vitaliza o funcionamento psíquico.
Em quase tudo o que li sobre perversão, encontrei uma palavra
que se repete: desumanização, ou seja, perda da essência humana. Esse é
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o ponto importante que se articula com a perversão, pois, o sujeito em


seu estado perverso desumaniza as pessoas, coisificando-as, ignoran-
do suas qualidades, anulando sua subjetividade e tornando-as apenas
metas de seu próprio interesse envolto no manto da hostilidade e des-
consideração com o outro vivo.
Refiro-me aos estados perversos, porque acredito que, embora a
perversão esteja presente no nosso cotidiano, como analista, entendo
que a mente humana encontra-se em constante trânsito e oscilação.
Gostaria de me ater durante esta fala aos aspectos perversos da mente
humana, para pensar o trânsito emocional que acontece quando o ser
humano não pode ser humano, quando o ser que desumaniza o outro se
encontra com ele mesmo desumanizado dentro de si. Miguel Marques
em seu brilhante artigo “A perversão nossa de cada dia” (2007), inicia
seus escritos com uma instigante pergunta: “Frente a uma ação perversa,
quais são as chances de nos mantermos mentalmente vivos e presentes
psiquicamente?” (2007, p. 149).
A ação perversa, entendo eu, é a intenção de desumanização, a
não consideração pela condição humana, minha e a do outro. Entendo,
reiterando mais uma vez, que se desconsidero a existência do outro,
desconsidero também o humano dentro de mim. Por isso a articulação
entre sadismo e perversão está sempre presente. E se o sadismo está
sempre acompanhado pelo seu oposto, a perversão e o sadomasoquis-
mo são conjunções constantes que negam, então, a intimidade, a subje-
tividade, o caráter humano.
O humano precisa do outro humano para saber que é humano.
A intimidade é a condição que se cria, entre duas mentes em que o
humano se revela, e desabrocha. Desumanizar a outra pessoa evita o
risco de intimidade. Para aqueles que não temem a dissolução de sua
subjetividade, a intimidade é uma alegria. Para os que a temem, há uma
ameaça ainda mais primitiva, pois se a pessoa se abre e se funde com
outro, se aterroriza com o risco de perder-se dela mesma.
Assim, apesar de aparente busca de intimidade e consideração,
o que realmente acontece é um modo de estar com o outro, em que o
objetivo é a manutenção de controle da situação pelo sujeito, sem que
ele jamais consiga se entregar à experiência emocional compartilhada.
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A perversão no cotidiano

Em outras palavras, a perversão pode também ser pensada como a


sexualização da evitação da mutualidade, da intimidade a dois (Khan,
1987). Como nos relacionamentos virtuais, por exemplo. Parece que é
real, parece que tenho intimidade com o outro, só que não.
Portanto, podemos pensar na perversão também como uma
defesa que impede o relacionamento baseado no respeito, pela alterida-
de, pela apreciação da existência do outro.
Mas não somente. Se olharmos para o que nos diz Elisabeth
Roudinesco, em “A parte obscura de nós mesmos”, quando afirma que:

A perversão é um fenômeno sexual, político, social, físico, trans-histórico,


estrutural, presente em todas as sociedades humanas. E questiona: O que fa-
ríamos se não mais pudéssemos designar como bodes expiatórios – ou seja,
como perversos – aqueles que aceitam traduzir por seus atos estranhos as
tendências inconfessáveis que nos habitam e que recalcamos? (2007, p. 15)

Como faríamos sem a possibilidade para projetar o perverso,


sentido como o estranho que vive em cada um de nós? Em outras pa-
lavras, há uma imensa dificuldade de a pessoa entrar em contato com
ela mesma, de desenvolver a sua própria intimidade psíquica para saber
deste seu estranho familiar, constituído pelo seu lado perverso obscuro
e indesejável. A cisão entre o bem e o mal cumpre essa função. Dentro
da visão religiosa seria admitir a existência do pecado e do demônio
dentro de nós mesmos.
Ainda Roudinesco:

O pervertedor era em primeiro lugar uma criatura dúbia, atormentada pela


figura do Diabo, mas ao mesmo tempo habitada por um ideal do bem, que
ele não cessava de destruir … Embora vivamos num mundo em que a ciên-
cia ocupou o lugar da autoridade divina, o corpo o da alma, e o desvio o do
mal, a perversão é sempre, queiramos ou não, sinônimo de perversidade.
E, sejam quais forem seus aspectos, ela aponta sempre, como antigamente,
mas por meio de novas metamorfoses, para uma espécie de negativo da li-
berdade: aniquilamento, desumanização, ódio, destruição, domínio, cruel-
dade, gozo. (2007, p. 7)
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Gozo este exercido de forma distorcida, e por isso mesmo per-


versa, como quando os gays são atacados nas ruas, legisladores dis-
cutem leis contra a homofobia e travam um debate sobre as possíveis
“causas” das variações sexuais, as minorias são discriminadas, as mu-
lheres maltratadas, ou como os políticos que, candidamente, querem
que a população acredite que são todos inocentes, frente a um cenário
explicitamente corrupto.
Ou ainda, como a distorção da realidade dos fatos da forma que
nos são apresentados, sempre com o objetivo de manipulação da per-
cepção e do pensamento. As Fake News, os noticiários que se atêm às
noticias mórbidas, violentas, que saturam as mentes das pessoas e as
mantêm aprisionadas em um constante estado de pavor, são mano-
bras inescrupulosas para sua manipulação. Uma pessoa amedrontada
torna-se um ser humano frágil e facilmente manipulável. Dessa forma,
a perversão no cotidiano aparece de forma multifacetada, sempre com
o propósito de enganar, infligir o mal, o terror travestido de bem. Em
nome de manter seu estado independente, presidentes de vários países
instauram uma guerra civil, em nome da preservação da economia
que obviamente serve para poucos, o povo se empobrece, em nome da
honra da filha, o pai a humilha e se autoriza a cuidar violentamente da
sua sexualidade, e por aí afora.
É importante salientar que a distorção do pensamento e das in-
tenções faz parte da constelação da perversão. E, como o perverso nos
habita, existe sempre a possibilidade do encontro com a parte obscura
de nós mesmos.
Portanto, a psicanálise nos ajuda a entender, a fazermos uma
leitura do micro para o macro quando nos vemos diante dessas situações
de distorção da realidade, violência e horror. A psicanálise oferece fer-
ramentas para o sujeito se apropriar de sua capacidade para pensar, dis-
criminar e se relacionar diretamente com a sua realidade interna, com
seus demônios enganadores, travestidos de anjos. Talvez assim, de posse
de alguma verdade, alimento fundamental para a mente, o indivíduo
possa, de modo humanizado, suportar sua real condição de existência e
proteger-se do canto da sereia.

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A perversão no cotidiano

Voltando a Freud, quando menciona o “Ama o próximo como a ti


mesmo”, amar pode ter a significação de conhecer. Conhecer e admitir
o perverso que habita em cada um nós é um ato humano, demasiada-
mente humano.

La Perversión en la vida cotidiana: el extraño en la parte


oscura de nosotros mismos
Resumen: Descrita por varios autores como un pasaje de la fantasía incons-
ciente al acto, la perversión combina sentimientos de venganza, triunfo y
control, como medio de defensa contra la experiencia emocional del trau-
ma y la impotencia. El concepto de perversión es ampliamente utilizado
en psicoanálisis para dilucidar las dinámicas inconscientes de la adicción,
el abuso sexual, la delincuencia, el homicidio, el acoso sexual e incluso la
extorsión. Los conceptos de narcisismo, fetichismo, voyerismo y sadomaso-
quismo son útiles para entender la perversión. En casi todo lo que leí sobre
perversión, encontré una palabra que se repite: deshumanización, es decir,
pérdida de la esencia humana. Este es el punto importante que se articula
con la perversión, porque el sujeto, en su estado perverso, deshumaniza a
las personas, cosificándolas, ignorando sus cualidades, anulando su subje-
tividad y convirtiéndolas en meros objetivos de su propio interés, envuelto
en el manto de la hostilidad y desprecio por el otro vivo. Me refiero a los
estados perversos, porque creo que, aunque la perversión está presente en
nuestra vida cotidiana, como analista entiendo que la mente humana está
en constante movimiento y oscilación. Me gustaría ceñirme a los aspectos
perversos de la mente humana, pensar en el tránsito emocional que ocurre
cuando el ser humano no puede ser humano, cuando el ser que deshumani-
za al otro se encuentra deshumanizado en sí mismo.
Palabras clave: fantasía inconsciente, relación de objeto, narcisismo,
deshumanización, distorsión de la realidad

The Perversion in daily life: the stranger in the obscure


part of ourselves
Abstract: Described by several authors as a transition from an unconscious
fantasy to the act, the perversion combines feelings of revenge, triumph and
control, as a means of defense against the emotional experience of trauma
and powerlessness. The concept of perversion is widely used in psycho-
analysis to elucidate the unconscious dynamic of addiction, sexual abuse,
delinquency, homicide, sexual harassment and even extortion. The con-
cepts of narcissism, fetishism, voyeurism and sadomasochism are useful for

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understanding perversion. In almost everything I read about perversion, I


found a word constantly repeated: dehumanization, that is, loss of human
essence. This is the important point that articulates with perversion, since
the subject, in his perverse state, dehumanizes people, objectifying them,
ignoring their qualities, nullifying their subjectivity and making them just
goals of his own interest, shrouded in the cloak of hostility and disregard for
the other human being. I refer to the perverse states because I believe that,
although perversion is present in our daily routine, as an analyst I under-
stand the human mind is in constant motion and oscillation. I would like to
focus on the perverse aspects of the mind, in order to think about the emo-
tional transit that happens when the human being cannot be human, when
the being who dehumanizes the other finds himself dehumanized inwardly.
Keywords: unconscious fantasy, object relation, narcissism, dehumaniza-
tion, reality distortion

Referências
Bonasia, E. (2003). Contratransferência: erótica, erotizada, perversa. Livro anual de
Psicanálise, 17, 41-54. Escuta.
Etchegoyen, R. H. (1978 ). Some thoughts on transference perversion. Int. J. Psycho-Anal.,
59, 45-53.
Green, A. (1986). Pulsão de morte, narcisismo negativo, função desobjetalizante.
In D. Widlöcher (Org.), A pulsão de morte (pp. 57-68). Escuta.
Freud, S. (2017). Porque a guerra? Reflexões sobre o destino do mundo. Freud e Eisntein.
Edições 70. (Trabalho original publicado em 1932)
Khan, M. M. R. (1969). Role of the “collated internal object” in perversion-formations.
Int. J. Psycho-Anal., 50, 555-565.
Khan, M. M. R. (1987). Alienación en las perversiones. Nueva Visión.
Marques, M. A perversão nossa de cada dia. Revista Brasileira de Psicanálise, 41(2), 149-167.
Meltzer, D. (1979). Estados sexuais da mente. Imago.
Pajaczkowska, C. (2000). Perversão. Almedina.
Roudinesco, E. (2007). A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos.
Zahar.
Stoller, R. J. (2015). Perversão: a forma erótica do ódio. Hedra.
Winnicott, D. W. (1975). O uso de um objeto e relacionamento através de identificações.
In D. W. Winnicott, O brincar e a realidade. Imago.

Ana Rita Nuti Pontes


anarnpontes@gmail.com

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