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Quanto à agressão -

aspectos fdogenéticos e
ontogenéticos*

JOÃO BATISTA FERREIRA**

1. O conceito; 2. Evolução do concei-


to; 3. Instintivistas e ambientalistas;
4. Agressividade x violência e delin-
qüência; 5. Agressão e redução de es-
paço.

"L 'aTllllogie entre le comportement de l'animal et celui de l'homme est


frappante et en même temps si énigmatique qu 'elle a depuis toujours suscitée
l'étonnement et provoquée des tentatives d'interprétation et d'explication.
Essayer de comprendre cette analogie n 'est possible qu 'à partir d'une concep-
tion determinée de la nature humaine, de l'origine du monde et de l'essence
de sa vie. Des lors les résultats dif[erent suivant le point de départ choisi. ..

F. J. J. Buytendijk (1)

"A agressão não é necessariamente destrutiva. Ela se origiTlll de uma tendên-


cia inata para crescer e dominar a vida, que parece ser caracterfstica de todll
matéria viva. Somente quando essa força vital é destrufda em seu desenvolvi-
mento é que os ingredientes da ira, raiva ou ódio passam a ser ligados a ela. ..

C. M. Thompson (13)

* Trabalho apresentado ao II Congresso Brasileiro de Psicanálise.


** Do Círculo PsicanalÍtico da Guanabara e da Associação Universitária Santa Úrsula.

Arq. bras. Psic. apl., Rio de Janeiro, 27(3):49-59, jul./set. 1975


"Dificilmente se pode pôr em dúvida o fato de ser o homem uma criatura
agressiva. Com exceção de certos roedores, nenhum outro animal vertebrado
habitualmente destrói membros de sua própria espécie. Nenhum outro
animal tem prazer positivo no exercfcio da c"'.leldade contra outro de sua
própria espécie . .. O fato sombrio é que somos a espécie mais crnel e impla·
cável que jamais pisou sobre a terra. ..

Anthony 5torr (11)

1. O conceito

Quando falamos em agressão, referimo-nos a um conceito ambíguo. É agressivo o


bebê que morde, grita e puxa os cabelos da mãe. A criança parada não tem
agressividade. O tortu'rador que tripudia com o prisioneiro chega a extremos de
agressividade. São agressivos os atacantes velozes e rompe dores de um time de
futebol. O mesmo acontece aos motoristas que lançam suas máquinas temíveis em
busca de um espaço aberto no asfalto de uma grande cidade. Falta agressividade ao
vendedor que vende pouco por não saber atacar o mercado. Os jornais noticiam
suicídio de mulheres em agressão aos maridos infiéis. E todos nós conhecemos o
uso da palavra ou do silêncio para agredir.
A um só tempo agressão tanto serve para significar conquista como ataque,
construção e vitória como destruição e morte. Daí a ambigüidade que cerca o
termo. Mas é uma contingência e constitui uma vicissitude da função significa-
dora, inerente à condição humana, o fato de que, através da conceituação, se corre
o risco de muni ficar a essência daquilo que se procura conceituar, de modo a nos
restarem, apenas, intuições vazias e opacas. Se é verdade que quanto menor a
extensão maior é a compreensão de um conceito, estamos diante da proposição
contrária, portanto, longe de exaurir toda a riqueza que o termo agressão encerra.
Agressão vem de aggredi, verbo depoente, que significa: ir ter com alguém, ir
falar com alguém, aproximar-se, começar - principiar, empreender, atacar -
acometer.
Notam-se, já na definição, dois grandes momentos de agressão, o primeiro
significando expansão, e o segundo, destruição. Ao longo do tempo, entretanto, o
sentido do termo ora denota a causa, ora a conseqüência da aproximação.
Encontramos no Vocabulário da psicanálise de Laplanche e Pontalis, a
seguinte definição do termo "agressividade": "Tendência ou conjunto de tendên-
cias que se atualizam em comportamentos reais ou fantasiosos, estes visando preju-
dicar outrem, destruí-lo, constrangê-lo, humilhá-lo, etc. A agressão conhece outras
modalidades além da ação motora violenta e destruidora; não existe qualquer
comportamento, quer negativo ... quer positivo ... que não possa funcionar
como agressão. A psicanálise atribui uma importância crescente à agressividade,
mostrando-a a operar desde cedo no desenvolvimento do indivíduo e sublinhando
o mecanismo complexo de sua fusão e desfusão com a sexualidade (in"

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Nota-se a riqueza do termo sempre presente no desenvolvimento da perso-
nalidade, apresentando características variáveis, às vezes como instinto básico,
outros como elemento do jogo complexo das emoções e da sexualidade.
Na linguagem comum, empregam-se palavras carregadas de agressividade, ou
na sua forma de aproximação e conquista, ou na de acometimento e ataque:
palavras picantes; discursos mordazes; ouvido voraz; língua insaciável; olhos que
cospem fogo; a atividade intelectual está cheia de expressões semelhantes:
atacamos problemas; dominamos um assunto; lutamos com dúvidas; venc~;uos
dificuldades; afiamos a mente.

2. Evolução do conceito

Várias têm sido as tentativas de demarcação do termo, ficando com a corrente


instintivista e a corrente ambientalista a tarefa de elucidação do problema.
Contudo, "quem quer que prometa uma solução para um problema tão perene é
demasiado arrogante para que se possa confiar nele" (11). Toda a discussão se
coloca dentro da seguinte indagação: é a agressão um impulso inato e instintivo
que', como o instinto de fome, sede e sexo busca uma expressão espontânea, ou é
apenas uma resposta circunstancial, isto é, que depende de fatores externos adver-
sos e não um instinto?
Na obra de Freud, há uma patente evolução do conceito de agressividade,
onde falta univocidade ao termo, variando de sentido conforme o papel que
representa dentro de suas teorias das pulsões. Até 1920, pouca importância deu à
agressão, considerando-a um componente da sexualidade, como se vê em Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, obra de 1905: "A sexualidade da maioria
dos seres humanos contém um elemento de agressividade, um desejo de dominar,
cuja importância biológica parece estar na necessidade de sobrepujar a resistência
do objeto sexual por outros meios que não o cortejamento. Assim, o sadismo
corresponderia a um componente agressivo do instinto sexual que se tomou inde-
pendente e exagerado, ocupando o primeiro lugar, por deslocamento (2)."
Enquanto Freud ligava o comportamento agressivo à sexualidade, Alfred
Adler propunha, já em 1908, um instinto agressivo básico que mais tarde seria
apresentado como motivo dominante dos seres humanos e formulado como "luta
pela superioridade". Só por volta de 1920, com o aparecimento do instinto de
morte (o que nunca se aceitou bem dentro da psicologia), é que vamos encontrar
Freud falando de um instinto agressivo, mais voltado à destruição do que orien-
tado para o domínio do mundo exterior. A energia agressiva e destrutiva
(Thanatos) contrapõe-se à energia sexual e construtiva (Libido) que, quando exter-
nalizada, dá origem aos comportamentos básicos, às lutas e dissensões; quando
internalizada, provoca a autopunição que vai desde o masoquismo até o suicídio.
Toma-se o impulso agressivo um importante derivativo dos instintos de morte. A
agressividade é, então, a autodestruição voltada contra objetos substitutivos.

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Quando se luta contra outra pessoa, o agente se torna destruidor porque seu
desejo de morte é bloqueado por forças dos instintos de vida que resistem às do
instinto de morte. "Os instintos eróticos estão sempre tentando reunir substâncias
vivas em unidades cada vez maiores, e os instintos de morte agem contra essa
tendência e procuram devolver a matéria viva a uma condição inorgânica. A coope-
ração e oposição dessas duas forças produzem os fenômenos da vida à qual a
morte põe um fim (3)."
A agressividade seria então parte do instinto de morte ou voltada para o
exterior, com a ajuda do sistema muscular, visando a destruição do objeto, ou
voltada para o interior (auto-agressão), nas "misteriosas tendências masoquistas do
ego". A extensão do conceito de pulsão destrutiva para dentro do sujeito leva sua
ação para o interior da estrutura psíquica, entre as instâncias do ego e superego.
Para dentro ou para fora, essa força está a serviço do instinto de morte, e, quando
se liga ao instinto sexual, é essencialmente em função da desunião. Haveria, pois,
na teoria freudiana das pulsões uma concepção de agressividade mais ampla, como
sendo uma forma de atividade, mas sempre a serviço da destruição. Tudo o que
Eros tende a unir, a manter e criar, Thanatos visa destruir, desunir e aniquilar,
como um ódio espontâneo, uma maldade natural do ser humano. O ódio e suas
manifestações agressivas seriam uma força natural, primária, inerente ao homem e
de natureza biológica.
Freud não vai mais além. Mais uma vez paga tributo ao modelo que abraçou
para construir sua teoria. Seu pensamento é retomado por Melanie Klein, que
radicaliza seu conceito de instinto de morte ao qual prende categoricamente os
impulsos agressivos. Essa agressividade inata, nociva, quando muito, poderia ser
controlada e aliviada por um ambiente sadio nos primeiros anos da infância: "É
verdade que não se pode eliminar totalmente o instinto agressivo do homem como
tal, mas se pode, diminuindo a ansiedade que acentua esses instintos, romper o
reforço mútuo que ocorre continuamente entre seu ódio e seu medo... Estamos
prontos a crer que o que agora pareceria ser um estado de coisas utópico possa ser
realidade naquele futuro distante em que, espero, a análise infantil se tornará parte
da educação de cada um tanto quanto o é hoje a educação escolar. Então, talvez a
atitude hostil, oriunda do medo e da suspeita, que está latente com mais ou menos
força em cada ser humano, e que intensifica cem vezes todos os impulsos de
destruição dentro dele, cederá lugar a sentimentos mais amáveis e mais confiantes
para com seu próximo, e as pessoas poderão habitar o mundo juntas em maior paz
e boa vontade de que agora (7)."
Vê-se bem a tentativa de atribuir ao ambiente hostil e desfavorável grande
importância nos comportamentos agressivos, embora a fonte da agressividade seja
instintiva e suas conseqüências destrutivas. E esse impulso agressivo inato é tão
violento que o bebê experimenta uma ansiedade intensa tanto sobre a possível
destruição dos que cuidam dele como sobre a possibilidade de sua própria destrui-
ção. É difícil achar-se em sua obra aspecto positivo para a agressividade, estando
habitualmente ligada ao ódio, ganância, inveja e ressentimento.

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Wilhelm Reich não considera a agressão como um instinto no sentido pró-
prio do termo e afuma que ela não traz em si mesma nenhuma conotação especí-
fica, distinguindo vários tipos que dependem do conteúdo, do estágio de desenvol-
vimento e do grau de repressão. Assim teríamos agressividade destrutiva-sádica-
locomotora-sexual. A partir dessa posição é que grande número de autores passam
a definir a agressão como "resposta que se segue à frustração", como um ato cuja
"metaresposta" é danosa a um organismo.
D. Winnicott vai mais além, propondo dois significados para a agressão: "Por
um lado, a agressão constitui direta ou indiretamente uma reação à frustração. Por
outro lado, é uma das muitas fontes de energia de um indivíduo (14)."
Volta-se ao sentido primeiro de aggredi, ir ter com, aproximar-se. E na
verdade, o ato de agredir conota um movimento em direção a alguma coisa,
possibilitando sempre uma distinção clara entre o que é e o que não é o eu. "Se
tentarmos observar o início da agressividade num indivíduo, o que encontra:çemos
é o fato de já existir ela no movimento infantil. Este principia até antes do
nascimento, não só nas evoluções do bebê por nascer, mas também nos movi-
mentos mais bruscos das pernas, que fazem a mãe dizer que sente o fIlho dar-lhe
pontapés. Uma parte da criança movimenta-se e, ao mover-se, encontra algo: ..
Existe em toda criança essa tendência para movimentar-se e obter uma espécie de
prazer muscular no movimento, lucrando com a experiência de mover-se e encon-
trar algum obstáculo (14)."
A criança, desde cedo, aprende a usar da fantasia não só para se aliviar das
frustrações experimentadas, mas para se relacionar com o mundo das pessoas e das
coisas como garantia de posse do status de ser-no-mundo. Não podendo trabalhar,
casar-se, competir, desempenhar papéis sociais, recorre à fantasia, ao faz-de-conta
como forma vicária de participar do mundo de rel~ção. Assim, chupar o dedo
polegar, se é fantasia do seio que alimenta ou agressão ao seio que provoca a fome,
é também uma forma de se colocar em contato com alguma coisa.
"Se for concedido à criança tempo suficiente para os processos da matura-
ção, capacita-se, então, a ser destrutiva, a odiar, a agredir, em vez de aniquilar
magicamente o mundo. Dessa maneira, é possível encarar a agressão concreta
como uma realização positiva (14)." Não há dúvidas de que em Winnicott o
conceito de agressão adquire substancialmente seu significado mais profundo de
caminhar em direção a, aproximar-se de. .
A agressão, cuja raiz é a inveja ao meio, essa, sim, se prende a uma capaci-
dade inata para destruir e se constitui, mais propriamente, na violência e na
hostilidade.
A oposição, no sentido de resistência, é um pré-requisito para o bom desen-
volvimento da agressão. Em situações onde a oposição se toma contrariedade e
negação, a agressão degenera para a esfera da destrutividade.
No momento em que o indivíduo explicita sua agressividade, experimenta
uma súbita onda de excitação que rapidamente atinge grande intensidade e pode
ser comparada à experiência do orgasmo. Chega-se ao ápice através da mobilização

Quanto à agressão
de todas as potencialidades, tornando ato as forças latentes até um desfecho, onde
se alcança o relaxamento.
W. R. Fairbairn, depois do período kleiniano, nega radicalmente o instinto
do impulso agressivo. Para ele a agressão é vista a partir de relações objetais, onde
o ego se funda no movimento de encontro com o objeto. Estar em implica estar
com de tal sorte que, quando o ego não encontra satisfação libidinosa em sua
relação com o outro, frustra-se, o que dá origem à agressividade. Essa agressivi-
dade, a nosso ver, tanto pode levar à aproximação como ao afastamento.
Os modernos etologistas não aceitam a função destrutiva que se quis dar aos
impulsos agressivos. Konrad Lorenz é partidário dessa posição, considerando,
contudo, a agressão como um instinto básico, tanto como a fome, sede e sexo. "A
agressão é um instinto básico que leva tanto o homem como o animal a combater
os membros da própria espécie. É um instinto como qualquer outro e, em condi-
ções naturais, igualmente apto para a conservação da vida e da espécie." (9).
No homem como no animal, existe um mecanismo que, quando estimulado,
dá origem a mudanças físicas e preparam o corpo para a luta. A externalização
dessas modificações internas dá origem aos comportamentos agressivos contra o
estímulo apropriado ou, na ausência deste, contra o estímulo substituto. Pode
mesmo manifestar-se sob forma de uma atividade deslocada. A existência desse
mecanismo, entretanto, não implica necessariamente que seja ele uma atividade
instintiva básica. Seria legítimo imaginar a agressão como parte do instinto de
conservação, expressão de um élan vital, existente em todo ser vivente, como
forma de expansão e perspectivação. A auto-conservação exige que o animal leve
dentro de si o potencial para a ação, não só para sair de si mesmo, mas para atacar
seu mundo que lhe apresenta a todo momento um sem-número de ameaças hostis
que devem ser vencidas ou evitadas para que a vida continue. O que se pode
afirmar é que o mecanismo da agressão é instintivo, ou seja, uma possibilidade
inata e automática que entra muito facilmente em funcionamento, contendo o
organismo um mecanismo físico-químico que é coordenado e que favorece as
emoções e ações, chamadas agressivas, diante de um estímulo de ameaça ou de
frustração.

3. Instintivistas e ambientalistas

O importante na posição dos instintivistas é que os impulsos agressivos acumu-


lam-se no homem. Se não forem descarregados, tenderão a se acumular até um
ponto em que, mesmo com as necessidades básicas satisfeitas, mas sem a presença
dos alvos habituais, a necessidade de agressão leva o indivíduo a atacar qualquer
alvo a seu alcance. Esse ponto de vista foi perseguido avidamente pelos instin-
tivistas em estudos e observações do comportamento agressivo dos animais.
Quando o animal não tem oportunidade de atacar, aumenta sua atividade em

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outra área de comportamento. Foi o que se comprovou em expenencias com
peixes tropicais, embora haja críticas quanto às condições de controle do expe-
rimento.
O estudo animal, por sua própria natureza, está restrito à observação obje-
tiva da conduta ou à estimulação de áreas cerebrais. No nível humano, ao anali-
sar-se a agressão, há que considerar dois fenômenos distintos: o comportamento
agressivo e a disposição agressiva. A questão que se coloca é: quais fatores fazem
com que as disposições agressivas se manifestem sob forma de comportamento
agressivo, mesmo quando essa exteriorização é desencorajada ou punida pelo
grupo? Muitas questões ficam sem resposta satisfatória e os próprios experimen-
tos são passíveis de crítica.
Os ambientalistas defendem o ponto de vista de que o comportamento de
um organismo é assunto passivo. A maneira de um animal se comportar dependerá
de como ele foi criado e de como está sendo estimulado. Apelam para três fatores
principais como responsáveis pela formação de disposições agressivas: a frustração,
a contrariedade e o ataque.
Os psicólogos sociais preferem a afirmação de que a agressão é conseqüência
da frustração. Embora a frustração comumente desperte a agressão, há ocasiões
em que tal não ocorre. Ademais, além da frustração, a contrariedade e o ataque
deflagram a agressão.
Frustração, contrariedade e ataque tendem, portanto, a despertar disposi-
ções agressivas, e essas constituem um importante elemento na produção do com-
portamento agressivo. Por outro lado, as disposições agressivas não se exteriorizam
inevitavelmente sob a forma de comportamento agressivo, devido à repressão, o
que possibilita o deslocamento, indo desde a somatização até a sublimação.
Muitos animais reagem agressivamente a certos estímulos de maneira instin-
tiva, sendo o ataque desencadeado de um modo aparentemente automático, pelo
estímulo-sinal (12). Embora haja poucas evidências de que os seres humanos
possuam esse tipo de reação instintiva e indícios externos, esses podem desen-
cadear, ou pelo menos incrementar, a agressão humana. Leonard Berkowitz, da
Universidade de Wisconsin, demonstrou que a presença de certos estímulos faz
com que as pessoas encolerizadas sejam mais agressivas do que se tais estímulos
não estivessem presentes (4). Isso sugere que estímulos associados à agressividade
facilitam a passagem da disposição agressiva ao ato agressivo.
No homem a agressividade está ligada, em grande parte, ao fator ambiental.
Com essa expressão se quer significar o mundo de relação, a atmosfera, onde se
desenvolve a criança pequena que aspira, a cada momento, pela superação da
dependência e conseqüente inauguração de sua autonomia.
O mundo infantil é povoado de gigantes que devem ser dominados, feiticei-
ras e bruxas que devem morrer para que a criança possa respirar. Para tanto,
recorre às fadas e aos heróis. As estórias infantis estão repletas dessas fantasias,
onde se vê o duplo sinal do primeiro objeto: "a boa fada" e "a bruxa má". Assim,
a avó do Chapeuzinho Vennelho é uma figura doce e terna, mas que se transfonn~

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num lobo perigoso e ameaçador. A criança, não suportando essa duplicidade, só se
sente aliviada quando pode, assumindo a forma de caçador, rasgar e destruir a
parte lobo para que sobreviva a bondade da avó. Por seu turno, em Joãozinho e
Maria, as crianças, na floresta, são atraídas pelas gulodices tentadoras da casa de
pão de mel. Mas, atrás dos doces, mora uma feiticeira que as aprisiona e prepara
para assar e devorar, quando, então, se agigantam e conseguem lançar a bruxa no
próprio caldeirão.
Em seu comportamento exploratório a criança esbarra, a cada momento,
com obstáculos que impedem seu avanço e crescimento. Ela, desse modo, ataca.
Se é impedida, surgem os primeiros desvios em seu desenvolvimento.
A identificação com a figura do herói possibilita à criança dominar e vencer
seus inimigos e o próprio mundo. Daí a fascinação pelos "gibis", onde há perto de
66 grandes heróis e 10 menores, porém igualmente famosos. Outro instrumento de
primeira grandeza para a criança é o material lúdico agressivo (jogos ou brinquedos
bélicos), onde além do aspecto catártico de controle dos impulsos se pode ter o
cultivo fecundo da expansão e da construção, quando os pais sabem dosar conve-
nientemente a intensidade e a oportunidade de seu uso.
A concepção de que só a frustração seria capaz de gerar agressão dá origem a
métodos falhos de educação, pela suposição de que a ausência de qualquer limita-
ção possibilita um desenvolvimento mais harmonioso da criança em seu mundo.
Para surpresa de todos, tem-se visto que, no regime de máxima liberalidade e
indulgência, as crianças se tornam emocionalmente perturbadas e, muitas vezes,
mais inseguras do que naqueles em que há oposição. Na verdade, se não houver a
quem combater, desorienta-se a criança que não encontra justificativa para o
impulso inato para a independência. Desnorteada, volta sua agressão, sua ativi-
dade, para dentro, contra o eu, e o resultado é, então, a depressão, o aparecimento
de tiques, cacoetes e fobias.
De Winnicott é a afirmação de que; "Se a sociedade está em perigo, não é
por causa da agressividade do homem, mas devido à repressão da agressividade
pessoal nos indivíduos (15)."

4. Agressividade x violência e delinqüência

Parece-nos que um dos motivos da grande confusão que se cria em torno do


termo agressão é o fato de ser tomado como sinônimo de violência e delinqüência.
A nosso ver, esses dois últimos comportamentos são conseqüência de um desvio de
forças que por sua natureza tende a se organizar e atuar em função da expansão,
crescimento e desenvolvimento sadio da personalidade.
O ambiente pode modificar o curso da energia produtiva sobretudo com o
uso da repressão. Quando, pois, a criança se prepara para penetrar o mundo e

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dominá-lo logrando alcançar sua liberdade, ter iniciativa, competir, ultrapassar
barreiras, a atmosfera hostil quer do micro quer do macrogrupo interfere, deslo-
cando a força produtiva para ferir, destruir, depredar e matar. Nasce com isso a
delinqüência. Ademais, as cenas diárias de uma grande cidade estimulam o uso da
energia produtiva e criadora da agressão em função do ataque e do acometimento,
povoando os lares e as ruas de violência. Anthony Storr cita o depoimento de um
criminoso que descreve assim o ambiente em que foi criado: "A violência, de certo
modo, é como a linguagem suja, algo com que uma pessoa como eu foi criada, algo
com que me acostumei desde muito cedo como parte do cenário diário da
inrancia. A idéia não me repugna, não tenho uma espécié de desagrado pela coi~a
como vocês: Tanto quanto posso lembrar-me, vi a violência ser usada por toda
parte ao redor de mim (11)."
Salta aos olhos a situação em que se encontra o homem moderno, vítima de
uma terrível alienação, onde um bombardeio de informações gananciosas ou
tendenciosas o lança, habilmente, numa luta contra o outro. A mecanização, a
automação, as redes de computadores, tudo isso leva o homem a se sentir vigiado,
despido e controlado, transformando as cidades em grandes formigueiros. É
extremamente lamentável que a complexidade da civilização ocidental tenda a
produzir o homem coletivo de preferência ao homem indivíduo. A sede de lucro
cega o homem que depreda a natureza para enriquecer e morre vítima da poluição.
Fabrica bombas e morre sob escombros. Agride por se sentir agredido, e a própria
sociedade de consumo se transforma numa usina de agressão. E tudo se justifica,
dependendo do ângulo de mira. É o que se observa, principalmente, nas guerras. O
Japão era inimigo, agora é amigo; a União Soviética era amiga, agora é inimiga; a
Alemanha era inimiga, agora parte dela é amiga, parte é inimiga.
O inimigo passa por uma metamorfose de dois tempos. No primeiro, é
"desumano" e, como tal, merece a agressão. No segundo, é "não-humano" e
carrega a derradeira versão projetada de nós mesmos, aquelas partes que desejamos
destruir para nos tornar seres perfeitos e puros. Se não as conseguimos destruir
dentro de nós, temos que fazê-lo nossa versão fora, e com grande vantagem, já que
o "não-humano" é totalmente destrutível, livrando-nos assim de qualquer possibi-
lidade de culpa. Para tanto, usamos o aggredi como acometimento e ataque q.le,
em seus desvios, gera toda sorte de violências e os mais requintados compor~a­
mentos de destruição.
A observação põe em evidência outros fatores que incentivam os desvios
perniciosos do aggredi, como o desnível econômico das grandes para as
pequenas comunidades, que se torna um estopim aceso, a competição desen-
freada, a superpopulação, criando os grandes aglomerados. O homem se torna
lobo prestes a devorar o lobo. Como espécie está ameaçado, não como; acon-
teceu com as demais, onde fatores extra-específicos foram os causadores de seu
desaparecimento. O que ameaça o homem é algo intra-específico, sua própria
destrutividade.

Quanto à agressão 57
5. Agressão e redução de espaço

De modo geral, a luta entre os animais é um teste çle forças e não uma batalha
mortal. Outras vezes, a luta é uma advertência, um--gesto de pacificação, como o
afirmou Lorenz, para que o animal possa viver em paz. Ele mata para se proteger,
amparar a prole ou para se alimentar. Nunca tortura. Esse triste privilégio pertence
ao homem que, com requinte e sofisticação, industrializa e empacota racional-
mente sua agressividade destrutiva, como o demonstra sobejamente a história.
Conta-se que Bas11io 11, o conquistador dos búlgaros, privou da visão 15 mil
cativos, mas a um em cada 100 poupou um olho, para que pudesse conduzir sua
centena de cegos à presença do rei vencido.
O animal ataca os membros da mesma espécie em casos muito especiais,
como nos períodos de acasalamento e na defesa territorial. Esse fenômeno da
territorialidade vem sendo estudado ultimamente, trazendo grandes luzes para o
campo da antropologia. Segundo os etologistas, a territorialidade se desenvolveu
desde os primórdios da história da evolução, tornando-se assim instintiva. Sua
finalidade é demarcar o habitat de cada indivíduo, de tal sorte que a cada um seja
garantida sua parcela de alimentação. A dispersão daí resultante garante a melhor
utilização dos recursos naturais, e com isso proporciona maior segurança para a
própria espécie. Nos jardins zoológicos conhecem-se lutas mortais, onde o único
motivo é a restrição do espaço. Quando a superaglomeração ocorre, registra-se
uma sensível de tensão e agressividade entre os animais.
O homem é um animal territorial. Não tendo dentes afiados ou garras pode-
rosas, tornou-se capaz, graças ao desenvolvimento de seu cérebro, de compensar
sua carência natural de equipamentos agressivos pelo uso de instrumentos e pela
invenção das armas. As nações criaram suas fronteiras e as casas, os muros. A
presença de uma sombra no jardim é uma séria ameaça e um ruído pode significar
um ataque. O homem moderno vive em guarda. Multiplica rituais de pacificação,
numa tentativa de poder conviver com seu próximo. E um dos fatores que leva o
homem a temer o outro é, sem dúvida, a ameaça que ele traz a seu espaço. Na
verdade, na civilização adiantada, não é a escassez de alimento que desperta ou
acentua a luta, é antes amontoamento, a superaglomeração que levam à agressivi-
dade. As cidades grandes se tornam grandes pedreiras .ou, como já se disse, selvas
de pedra. Luta-se por espaço no asfalto, empurra-se nas calçadas, acotovela-se nas
filas. Sobem os blocos brancos de cimento e somem os campos verdes. As casas
evaporam-se e os apartamentos mirram, enquanto a população aumenta. Já se
teme pela cortesia do ar . .. A dose, pois, de hostilidade do homem para com seu
vizinho aumenta e reforça sua ânsia inata por espaço.
Para William Glasser, psicólogo e escritor da Califórnia, o homem vive em
uma sociedade civilizada de sobrevivencia, onde é muito tênue ainda o instinto de
cooperação. O que predomina, não raro, é o egoísmo e a hostilidade, dando
origem ao aparecimento da dominação instalada, protegida por uma série de
desculpas morais com que se defendem os agressores. Em meio à disputa brutal

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por um lugar nesse tipo de sociedade, uns poucos logram envolver-se afetivamente
com o próximo, inaugurando a oportunidade de viver digna e descontraidamente
nesse mundo de competição.
Caberia, a nosso ver, a quantos se preocupam com as ciências humanas,
começar um debate no campo do conhecimento do homem como um gesto nobre
de boa vontade e amor para com a raça no sentido de se procurar, através de novas
intuições, possíveis saídas que venham reduzir os efeitos tão nocivos de uma
energia que de si se destina à expansão e ao crescimento. É provável que, desse
modo, a espécie tão bem sucedida biologicamente, o venha a ser também, psico-
lógica e socialmente.
É preciso que o homem se conscientize da necessidade urgente que tem de
salvar o homem, quando parece afastada para futuro tão remoto a concretização
da profecia de Isaías: "Hão de se confraternizar a vaca e o urso. Suas crias
repousarão juntas, e o leão comerá palha com o boi. A criança de peito brincará
junto à toca da vlôora, e o menino desmamado meterá a mão na caverna da
áspide. Não se fará mal nem dano em todo o meu Santo Monte, porque a terra
estará cheia de ciência do Senhor, assim como as águas que recobrem o fundo
do mar." (6).

Referências bibliográficas

1. Buytendijk, F. J. J. L 'homme et ['animal; essai de psychologie comparée. France,


Éditions Gallimard, 1965. p. 175.
2. Freud, S. Três ensaios sobre a teoria sexual. Madrid, E. B. N., 1967. v. 1, p. 782.
3. _ _ _oNovas contribuições à psicanálise. Madrid, E. B. N., 1967. v. 2, p. 929.
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Quanto à agressão 59

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