Você está na página 1de 5

As psicoses: de Jung à Nise da Silveira

Psicose e psicologia analítica: de C. G. Jung à Nise da Silveira  

Por Luís Paulo B. Lopes

A esquizofrenia, anteriormente denominada dementia praecox, teve importância fundamental


para que Jung desenvolvesse a psicologia analítica. De acordo com Walter Boechat (2009),
“toda teoria psicológica é formulada a partir de um alicerce psicopatológico” (p. 30) e “a
esquizofrenia vem a ser a psicopatologia que proporciona o fundamento teórico para a
psicologia analítica” (p.31). Os principais conceitos formulados por Jung foram
desenvolvidos através de suas observações com pacientes esquizofrênicos. Neste artigo vamos
abordar a importância da psicose para o desenvolvimento da psicologia analítica assim como
o entendimento teórico que Jung formulou sobre a psicose até chegarmos nas intervenções
terapêuticas pioneiras desenvolvidas pela Dra. Nise da Silveira.

No inicio de sua carreira como psiquiatra, Jung trabalhou no Hospital Burghölzli na Suíça, ao
lado do renomado Eugen Bleuler. Foram as idéias desenvolvidas por Bleuler, nesta época, que
possibilitaram a substituição do conceito de dementia praecox pelo conceito de esquizofrenia.
Segundo Boechat (op. cit), o trabalho desenvolvido por Jung no Hospital Burghölzli foi
fundamental para que chegasse à ideia da presença de mitologemas (núcleos temáticos
universais), através da observação dos delírios e alucinações de seus pacientes. Esses
mitologemas apontariam para uma provável origem comum para os, atualmente denominados,
sintomas positivos da esquizofrenia. Isso possibilitou que Jung formulasse a hipótese do
inconsciente coletivo. O próprio Jung (2007. OC 5) em um de seus livros de grande
importância histórica, por ser considerado o marco de sua ruptura com Freud, intitulado
atualmente como “Símbolos da transformação”, descreve a alucinação de um de seus
pacientes: “O doente vê no sol um membro ereto. Quando balança a cabeça para um e outro
lado, o pênis solar também oscila numa e noutra direção, e daí se origina o vento” (p. 89.
§151). Tal descrição aparentou não possuir nenhum sentido mais profundo para o jovem
psiquiatra naquele momento.

Anos mais tarde, quando um texto referente às visões da liturgia de Mitra foi traduzido do
grego, Jung observou que a alucinação desse paciente era extraordinariamente semelhante ao
que estava descrito no antigo texto. Esse fato foi especialmente importante para que
formulasse o conceito de arquétipos, definindo-os como uma “predisposição funcional para
produzir idéias iguais ou semelhantes” (p. 91. §154). O paciente que relatou tal alucinação
não conhecia o idioma grego e na ocasião em que a relatou, o texto ainda não havia sido
traduzido. Esse fato excluía a possível hipótese de que o paciente tinha conhecimento prévio
sobre o texto e, quando relatou sua alucinação estava apenas descrevendo algo que já
conhecia ou que se trataria de um caso de criptomnésia. Embora esse caso tenha tido
importância especial para Jung, foi somente após uma série de outras observações de
ocorrências de mitologemas em mitos, contos de fada, sonhos, delírios e fantasias, que Jung
chegou a formulação da teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos.

Boechat (op. cit) comenta que Jung, assim como Bleuler, não se contentava com o ponto de
vista psiquiátrico, dominante em sua época, que lidava com os sintomas psicóticos apenas sob
uma perspectiva descritiva e diagnóstica. Ao invés disso, procurava “sempre o conteúdo
simbólico das esquizofrenias” (p. 31). Esse posicionamento possibilitou que Jung fosse além
dos preceitos psiquiátricos de sua época (que permanecem atuais) e formulasse uma teoria que
não concebia os delírios e alucinações como desprovidos de significação. Para Jung, os
sintomas psicóticos manifestam-se de forma totalmente irracional, de impossível
compreensão a não ser que se parta de um pressuposto simbólico. Isso significa que exprimem
um sentido mais profundo, embora impossível de ser apreendido pela consciência de forma
imediata, o que os tornam aparentemente sem sentido.

O conceito de compensação, de extrema relevância para sua teoria, também foi desenvolvido
logo no inicio de sua carreira. Boechat (op. cit) afirma que para Jung, “o delírio operaria
compensando a atitude da consciência” (p. 32). Posteriormente Jung ampliou essa ideia como
um modus operandi do psiquismo de maneira mais geral, fato que se tornou decisivo no
entendimento das neuroses e também para a análise dos sonhos. Foi também no período em
que trabalhou no Hospital Burghölzli que Jung aplicou extensivamente o teste de associação
de palavras de Galton que possibilitou o desenvolvimento do conceito de complexo. O
objetivo inicial do teste era desenvolver uma ferramenta objetiva para o diagnóstico
diferencial, o que logo se mostrou inviável. Entretanto, Jung, ao lado de seu colaborador
Frank Riklin, percebeu que as palavras estímulo utilizadas nos testes "despertavam o que eles
chamavam de complexos emocionalmente carregados" (SHAMDASANI, 2005, p. 61). 

Boechat (op. cit) comenta que “a presença de material mitológico nas psicoses fez Jung não
apenas propor a teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos, mas questionar o problema
da libido exclusivamente sexual” (p. 37). As formulações teóricas propostas por Jung sobre
energia psíquica também partem de suas observações com psicóticos. Boechat exemplifica tal
afirmação com o tema recorrente em delírios de fim do mundo. “Segundo a teoria junguiana
os freqüentes delírios mitológicos de fim de mundo entre os psicóticos refletem o movimento
de introversão excessiva da libido psíquica, sua introversão máxima, a perda de contato com o
mundo externo” (p. 38). Jung afirma, portanto, que a libido não é revestida de uma qualidade
fundamentalmente sexual, ao invés disso trata-se de “energia pura e simples em seu
movimento de extroversão e introversão” (p. 38). Posteriormente Jung passaria a diferenciar
extroversão e introversão da libido de regressão e progressão da libido. Em seu livro de 1912
("Símbolos da transformação") ainda é possível notar que Jung utiliza as palavras introversão
e regressão como sinônimos do que viria a ser o conceito de regressão da energia psíquica,
isto é, o movimento que a energia faz em direção ao inconsciente com a finalidade de
promover adaptação do indivíduo em relação a seu próprio mundo interior. Enquanto que os
conceitos de extroversão e introversão seriam desenvolvidos posteriormente para a elaboração
da teoria dos tipos psicológicos. 

Jung nunca descartou a influência de componentes orgânicos na etiologia das psicoses, mas,
de acordo com Nise da Silveira (1982), sua abordagem desde o principio reconhecia que não
existiria sintoma psicótico algum sem que houvesse uma base psicológica, ou seja, sem
significação. Silveira afirma que a gênese da esquizofrenia estaria relacionada com a presença
de “intensas e avassaladoras cargas afetivas” (p.95). No que diz respeito à importância do
afeto na gênese da esquizofrenia, Jung (1986. OC 3) comenta que o mesmo não aparece,
necessariamente, de forma dramática. Ao invés disso pode seguir seu curso de forma
silenciosa e invisível ao observador externo. Silveira (1982) comenta que o afeto “no seu
caminho oculto vai abrindo fendas, vai tomando posse do consciente, desestruturando a
personalidade” (p. 95). A origem da esquizofrenia, portanto, estaria relacionada diretamente à
irrupção de conteúdos inconscientes dotados de grande carga afetiva na consciência.
No que diz respeito ao aspecto mitológico dos sintomas psicóticos, Jung (1971. OC 8/2)
comenta que os “complexos [...] assumem, por auto-simplificação, um caráter arcaico e
mitológico e, consequentemente, também uma certa numinosidade, como se pode ver, sem
dificuldade, nas dissociações esquizofrênicas” (p. 126, § 383). Entendo com isso, que a
energia psíquica anteriormente associada aos conteúdos do inconsciente pessoal, em seu
movimento de regressão, desloca-se em direção ao núcleo arquetípico dos complexos,
desvinculando-se parcialmente dos conteúdos estritamente pessoais. Desse modo evidencia-se
a irrupção do inconsciente coletivo na consciência, motivo pelo qual os sintomas psicóticos
exprimem, em muitos casos, semelhanças evidentes com temas mitológicos. Silveira (1982)
afirma que nas psicoses há mobilização de toda a rede estrutural da psique, que passa a se
manifestar de forma caótica na consciência. Ou seja, há ativação de mais de um núcleo
energético ao mesmo tempo, “dificultando muito a apreensão das conexões com os estímulos
afetivos iniciais” (p. 109). Isso significa que embora um complexo específico possa estar
envolvido, de forma mais marcante, na irrupção causadora da fragmentação do eu; será muito
difícil vincular as imagens que se manifestam na consciência com esse afeto inicial, já que a
“enorme repercussão sobre toda a rede estrutural básica da psique” (p. 109) fará com que
diferentes imagens arquetípicas invadam a consciência de forma tumultuada e caótica.

Segundo a teoria junguiana, a força de coesão do complexo do eu tem importância


determinante na etiologia da esquizofrenia. De acordo com Jung (ibidem), “o eu é um
complexo fortemente estruturado que, por estar fortemente ligado à consciência e à sua
continuidade, não pode nem deve ser facilmente alterado, sob pena de enfrentar sérias
perturbações patológicas” (p. 163, § 430). A força de coesão do complexo do eu e a violência
da irrupção de conteúdos inconscientes na consciência são os dois fatores que determinarão se
o eu será capaz de se manter integro em sua unidade (no caso das neuroses) ou se fragmentará
desastrosamente (no caso das psicoses) após o assalto do inconsciente. Na neurose, embora a
supremacia do eu seja ameaçada pela presença de complexos autônomos, ainda assim há a
possibilidade de assimilação desses conteúdos e da ampliação da consciência. Já nas psicoses,
ao contrário, não há mais possibilidade de integração do inconsciente à consciência, já que o
eu está fragmentado. Ao invés disso, o inconsciente inunda a consciência e, segundo Silveira
(1982), “subverte a ordem espacial estruturada pelo consciente” (p. 39)

Nise da Silveira (op. cit) acrescenta um novo elemento teórico para explicar a esquizofrenia,
que diz respeito a orientação do sujeito em relação ao espaço e, comenta que Bleuler já
chamava atenção para essa questão. A autora afirma que “se o consciente é invadido por
conteúdos do inconsciente providos de forte carga energética e efeitos desintegrantes, as
coordenadas de orientação no espaço (e no tempo) poderão deslocar-se, criando assim a
possibilidade de múltiplas visões de mundo” (p. 32). Para a autora, a consciência estrutura
uma ordem espacial através das informações do mundo externo captadas pelos órgãos dos
sentidos, e na condição esquizofrênica essas coordenadas mesclam-se com as imagens do
inconsciente que caracterizam uma orientação espacial interna. Isso quer dizer que “espaço
externo e espaço interno se interpenetram” (p. 36) fazendo com que o indivíduo não seja
capaz de distingui-los. Isso ocorre em função do movimento de regressão excessiva da
energia psíquica, que “abandona” o mundo externo e manifesta-se de forma intensa no mundo
das imagens internas – no inconsciente.

Silveira (op. cit), de forma sintética, comenta a etiologia da esquizofrenia da seguinte forma:

“Mundo externo hostil, desagregação da família, falta de amor na infância, condições


miseráveis de vida, frustrações repetidas, humilhações, opressão da vida instintiva, de
aspirações culturais e espirituais, apertando o indivíduo num anel de ferro, provocam intensas
emoções e tentativas malogradas de defesa. A psique não consegue fazer face a todos esses
ataques, juntos ou separados, e acaba incapaz de preservar sua integridade. Racha-se, cinde-
se. As emoções, que não encontraram forma adequada de expressão, introvertem-se, rasgando
sulcos subterrâneos até alcançar a estrutura básica da psique” (p. 109)

Em síntese, quando o complexo do eu não é forte o suficiente para suportar a irrupção de


conteúdos inconscientes dotados de grande carga afetiva, ocorre um fenômeno caracterizado
por sua própria fragmentação, que inviabiliza qualquer possibilidade de síntese entre tese e
antítese, isto é, entre consciência e inconsciente. Há com isso, um movimento de regressão
excessiva da libido até que atinja as camadas mais profundas da psique, que terá como
conseqüência a perda de contato do indivíduo com a realidade externa, pois a libido que
anteriormente estava investida no mundo dirige-se para o inconsciente. Em seu movimento de
regressão, a libido desloca-se para o núcleo arquetípico dos complexos, e como conseqüência,
imagens arcaicas manifestam-se na consciência. Quando isso ocorre, há uma mobilização de
toda a rede estrutural da psique, fazendo com que diferentes núcleos energéticos sejam
ativados ao mesmo tempo e consequentemente há uma invasão tumultuada de diferentes
imagens arquetípicas na consciência. Desse modo, a ordem espacial estruturada pela
consciência é subvertida pela inundação dessas imagens e o indivíduo torna-se incapaz de
distinguir o espaço externo do espaço interno, ficando assim, como que aprisionado no mundo
das imagens do inconsciente.

Embora o eu do esquizofrênico, pela ocorrência de sua fragmentação, seja incapaz de integrar


conteúdos inconscientes, é importante ressaltar que isso não equivale a um prognóstico em
que não há possibilidade alguma de transformação. John Weir Perry comenta que “o espaço
interno onde o indivíduo se debate, por mais inconsciente que possa parecer, é um prodigioso
cosmos cheio de potencialidades para o enriquecimento e aprofundamento de sua existência
emocional” (PERRY. J. W. Apud SILVEIRA. N. 1982. p. 111). E parece que foi baseado
nisso que a Dra. Nise da Silveria não perdeu as esperanças e desenvolver um método
terapêutico pioneiro para o tratamento da psicose.

Os trabalhos da Dr. Nise da Silveira com a utilização de materiais plásticos como a pintura e a
escultura, demonstraram evidentes evoluções com pacientes esquizofrênicos, incluindo
aqueles considerados crônicos, isto é, sem possibilidade de intervenção terapêutica. Segundo
a autora, as técnicas utilizadas em seus trabalhos fazem com que conteúdos estranhos e
ameaçadores oriundos dos estratos mais profundos do inconsciente se aproximem
gradativamente da consciência, pois, as imagens objetivadas através da pintura “tornam-se
passíveis de uma forma de trato, mesmo sem que haja nítida tomada de consciência de suas
significações profundas” (p.135). No que diz respeito a esse processo, Jung comenta:

“o caos aparentemente incompreensível e incontrolável da situação total é visualizado e


objetivado (...). O efeito deste método decorre do fato de que a impressão primeira, caótica ou
aterrorizante, é substituída pela pintura que, por assim dizer, a recobre. O tremendum é
exorcizado pelas imagens pintadas, torna-se inofensivo e familiar e, em qualquer
oportunidade que o doente recorde a vivência original e seus efeitos emocionais, a pintura
interpõe-se entre ele e a experiência, e assim mantém o terror a distância” (JUNG C. G. apud
SILVEIRA N. 1982. p. 135).

Tal processo, entretanto, não ocorre de forma linear. Observa-se nos trabalhos dos pacientes
do hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro (atual IMAS Nise da Silveira no Rio de
Janeiro), publicados por Nise da Silveira e mantidos até hoje no acervo do Museu de Imagens
do Inconsciente, que o processo acontece em um movimento de circuambulação, onde
visíveis progressos são acompanhados de momentos de regressão a estados aparentemente já
superados. Entretanto, fica evidente que, ao longo de longas séries de pinturas, figuras
ameaçadoras que "aprisionavam" ou atormentavam o indivíduo, são gradativamente
despotencializadas e opera-se uma aproximação à realidade do mundo exterior. Tal fato
demonstra de maneira clara que, embora seja impossível a integração entre consciência e
inconsciente em indivíduos com o eu fragmentado, ainda assim não se esgotam as
possibilidades terapêuticas que promovam transformações nítidas e significativas. 

Referências Bibliográficas

BOECHAT, W. Mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis: Vozes. 2 ª ed. 2009.

JUNG. C. G. , A natureza da psique. OC 8/2. Petrópolis: Vozes. 6ª ed. 1971.

JUNG. C. G. , Psicogênese das doenças mentais. OC 3. Petrópolis: Vozes. 1986.

JUNG. C. G. , Símbolos da transformação. OC 5. Petrópolis: Vozes. 5ª ed. 2007.

SHAMDASANI, S. Jung e a construção da psicologia moderna. São Paulo: Idéias & Letras,
2005.

SILVEIRA. N. , Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra. 2ª ed. 1982. 

Fonte: http://unusmunduspsicologia.blogspot.com.br/2015/01/a-psicoterapia-luis-paulo-
lopes.html

Você também pode gostar