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José Maurício da Silva

A clínica psicanalítica com idosos:


uma construção
Psychoanalytic clinic for seniors:
a construction
José Maurício da Silva

Resumo
Este artigo apresenta algumas particularidades da clínica psicanalítica no atendimento a ido-
sos. Instigado pelo aumento da população idosa em decorrência da longevidade, há maior
visibilidade e demandas provenientes dessa categoria. Outra razão é a pouca produção psica-
nalítica abordando a questão do tratamento com idoso. Defendo a sublimação como meio de
sustentação do desejo e, acima de tudo, como meio de transformação proveniente dos laços
sociais convocando o sujeito idoso a assumir as rédeas da própria história, bem como o inves-
timento que sustenta a existência. Não há idade para desejar. Por meio desse princípio o idoso
é convocado a apostar na vida, mesmo que o corpo compareça como palco de enfermidades e
sinalize para a finitude. Dessa maneira, a psicanálise convoca o sujeito a se “n’homear”, ressig-
nificando sua história com a legitimidade de seus próprios desejos.

Palavras-chave: Idoso, Clínica psicanalítica, Sublimação.

O envelhecimento não é uma invenção da pessoas, ou seja, 22% da população global. E


pós-modernidade, porém só se constituiu no Brasil, calcula-se que, ao redor de 2025, a
como lugar comum no último século. Na população ultrapasse os 30 milhões, segundo
pré-história a velhice era raríssima. Já no sé- Berquó (1996).
culo XVII estima-se que 1% da população Os dados acima constituem, resumida-
vivia mais de 65 anos. No século XIX, fala-se mente, o chão de onde se parte para falar
em 4%, segundo Stuart-Hamilton (2002). No da urgência em se pensar a questão do en-
mundo ocidental de hoje, segundo dados de velhecimento. De antemão afirmamos que a
2008, 70% da população ultrapassarão os 65 psicanálise possui dispositivos tanto teóricos
anos, e 30-40% os 80 anos. Um bebê nascido como metodológicos para abordar as mu-
em 1900, por exemplo, tinha como expecta- danças históricas, sociais, bem como a rela-
tiva de vida 47-55 anos; atualmente essa ci- ção com o sujeito, em nosso caso, o sujeito
fra é de no mínimo 30 anos a mais. Segundo que envelhece. Nesse sentido, pergunto pela
projeções das Nações Unidas, em 2050, pela contribuição da psicanálise no tratamento
primeira vez na história, haverá mais idosos com idosos. Sabemos que a psicanálise surge
do que crianças menores de 15 anos. Em como um novo modo de pensar a cultura e a
2012, 810 milhões de pessoas com 60 anos condição do homem na cultura.
ou mais, constituíam 11,5% da população Não há um ponto ou uma referência úni-
global. Estima-se que esse número ultrapas- cos para se dizer: aqui começa o envelhe-
se um bilhão em menos de dez anos; e em cimento. Estabelecer uma idade qualquer
2050, atingirá uma média de dois bilhões de implica equívocos, visto que não se trata de

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um processo homogêneo. Em linhas gerais, temporaneidade, esta discussão constitui um


a gerontologia toma como referência 60-65 pequeno ensaio cuja preocupação também
anos como indicativo, pois é nessa fase que é se perguntar pelo papel da psicanálise na
aparecem os declínios físicos e psicológicos. cultura e discutir qual é a sua contribuição
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e, no atendimento com idosos.
no Brasil, o Plano Nacional do Idoso (PNI) Partindo da frase escutada por um analis-
seguem a mesma orientação. ta em supervisão, “Maurício, não há análise
O sujeito, para a psicanálise, é o sujeito de idoso”, comecei a reler os artigos acerca
do desejo, estabelecido por Freud por meio das técnicas, do ensino da psicanálise e ou-
do conceito de inconsciente, caracterizado tros da clínica. Buscava na teoria freudiana
e movido pela falta, diferente, portanto, do algo que me autorizasse e fundamentasse
sujeito biológico. O sujeito psicanalítico se minha experiência com idosos.
constitui por sua inserção numa ordem sim- Lendo Princípios básicos da psicanálise
bólica que o precede, atravessado pela lin- quando Freud ([1913] 2010) fala da psica-
guagem e tomado pelo desejo de um Outro e nálise como disciplina singular, em que se
mediado por um terceiro. combina a pesquisa acerca das neuroses e o
Como tratar esses sujeitos que ultrapas- método de tratamento, encontro uma porta
saram a faixa de 60-65 anos? Em Freud en- aberta para a clínica com idosos.
contramos algumas indicações que falam da Diz Freud ([1913] 2010, p. 269):
dificuldade da análise com idosos. Assim,
busquei em seus próprios textos, indicativos Desde já, enfatizo que ela não é fruto da es-
que deixassem possibilidades de pesquisa ou peculação, mas da experiência, e, portanto,
até mesmo análise. é inacabada enquanto teoria. Mediante suas
Na tentativa de fundamentar teorica- próprias inquirições, cada qual pode se per-
mente minha própria clínica e retornando suadir da correção ou incorreção das teses
a Freud em Dois verbetes de enciclopédia nela presentes e contribuir para o seu desen-
([1923/1922] 1996), no final do artigo, refe- volvimento.
rindo-se à psicanálise como corpo de conhe-
cimento passível de expansão e reformula- E em outro texto, Linhas de progresso
ção, ele diz: na terapia psicanalítica, quando discute o
público a quem se destina a análise, Freud
A psicanálise não é, como as filosofias, um ([1919/1918] 1996, p. 181) fala da evolução
sistema que parta de alguns conceitos bási- do tempo e, consequentemente, da necessi-
cos nitidamente definidos, procurando apre- dade de se criar manejos específicos às no-
ender todo o universo com auxílio deles, e, vas condições: “Defrontar-nos-emos, então,
uma vez completo, não possui mais lugar com a tarefa de adaptar a nossa técnica às
para novas descobertas ou uma melhor com- novas condições”. Entendo que, entre as “no-
preensão. Pelo contrário, ela se atém aos fa- vas condições” na contemporaneidade, está a
tos do seu campo de estudo, procura resolver clínica analítica com idosos.
problemas imediatos da observação, sonda o E nesse sentido, como diz Mucida (2006,
caminho à frente com auxílio da experiência, p. 15), a psicanálise,
acha-se sempre incompleta e sempre pronta
a corrigir ou modificar suas teorias (Freud, [...] é um dispositivo aberto àqueles que so-
[1923/1922] 1996, p. 269). frem e querem construir um saber sobre o
sofrimento. Esta oferta – abrindo-se como
Nesse sentido, escutando o velho Freud, a tratamento do real – na contramão das ofer-
partir dos desafios dos envelhecidos na con- tas do mercado – toca o mais particular que

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habita cada sujeito, criando outra espécie de duração do tratamento (Freud, [1905/1904]
demanda ancorada no desejo. 1996, p. 274).

Observamos que vários idosos que nos Em Análise terminável e interminável


procuram levam como demanda, um des- ([1937] 1996), Freud reitera sua concepção
conforto quanto ao vazio de sentido que se na não plasticidade psíquica de pessoas ido-
expressa em perguntas como: “Tenho 70 sas, alegando a força do hábito ou pouca re-
anos. E agora? Que faço?” E nessas questões ceptividade para tal.
escutamos a inexistência de projetos de vida. Embora haja a contraindicação, o próprio
De outro, “Não tenho mais tempo suficiente Freud abre espaço no mesmo texto, quando
para...” Então? E falando das dores e perdas diz que a não plasticidade psíquica e a rigidez
em que a morte é a perda maior, há que fazer não são características atribuídas somente
o luto antecipado da própria morte. Tendo aos mais velhos, pois tais características são
presente o tempo-Kronos, o que é possível? provenientes dos processos dados pelas neu-
Qual o nosso alcance psicanaliticamente fa- roses; dessa maneira, os mais jovens podem
lando? ser acometidos pelos mesmos males.
Assim, diante da visibilidade maior do De maneira geral, o discurso cultural
idoso e das suas demandas, tais como de- acerca do idoso tende à generalização e não
pressão, vazio existencial, ausência de um leva em conta a singularidade do sujeito, em
projeto de vida, perguntamos: que as doenças e o sofrimento encontram
Como os conceitos psicanalíticos – inter- respostas em “é próprio da idade ou é da ve-
pretação, transferência, construção em aná- lhice”. Aí não há diferença.
lise, associação livre – se inserem nessa nova Em direção oposta, a psicanálise aponta
realidade? para a singularidade do sujeito. E mais: para
O que se pode fazer, que tipo de interven- o sujeito que fala e que, ao falar, ressignifica
ções, quais as contribuições, quais são as par- sua própria história. Dessa maneira, há um
ticularidades que esta clínica apresenta? ponto de interlocução nesse corpo finito e
Entendemos que a psicanálise permite frágil, ou seja, o discurso. Via retificação sub-
uma escuta, um espaço onde o idoso fala, jetiva, o sujeito é convocado a perceber qual
não é falado, em que será convocado e im- é a sua participação no próprio sofrimento,
plicado na construção da sua singularidade. qual a sua implicação como sujeito em sua
Há textos em que Freud fala das dificul- própria história, em suas ações e, em última
dades de um trabalho psicanalítico com pes- análise, em seu desejo. O desejo é da ordem
soas maiores de 50 anos, como por exem- do inconsciente.
plo, em O método psicanalítico ([1904/1903] Entende-se, portanto, que é a partir dessa
1996) e em Sobre a psicoterapia ([1905/1904] instância – sujeito do inconsciente – que se
1996) quando afirma: deve abordar a clínica com o idoso, condição
necessária para ultrapassar a dimensão bio-
A idade dos pacientes tem assim essa grande lógica, cultural e outras vertentes teóricas e
importância no determinar sua adequacida- concepções anônimas em que os significan-
de ao tratamento psicanalítico, que, por outro tes envelhecimento ou velhice sugerem.
lado, perto ou acima dos cinquenta a elastici- O objeto de estudo da psicanálise – o in-
dade dos processos mentais, dos quais depen- consciente – autoriza-nos a afirmar que su-
de o tratamento, via de regra, se acha ausente jeito analítico é o sujeito do inconsciente, e
− pessoas idosas não são mais educáveis − e, este não envelhece, ou seja, quando falamos
por outro, o volume de material com o qual de realidade psíquica não há diferença entre
se tem de lidar prolongaria indefinidamente a um evento passado e um atual.

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Como diz Mucida (2006, p. 18), na análise sujeito – nessa construção ou reconstrução
o mais importante de sentido.
O envelhecimento é o encontro estranho
[...] é a forma como o sujeito se coloca frente à de um corpo que se fragiliza com uma ins-
falta do Outro e sua relação com o desejo, que tância que não se envelhece: o inconsciente.
não é determinado pela idade e muito menos Um desencontro, na verdade. Um desencon-
pela quantidade de material psíquico. tro que provoca um desajuste, que desperta
sentimentos ou emoções que até então não
O conceito de pulsão é avesso a qualquer eram sentidas ou não percebidas. Assim
noção desenvolvimentista; sempre parcial. E como o mal-estar é o que conduz o sujeito
a sexualidade adulta é a sexualidade infantil. à análise, aqui esse desencontro ou desajuste
Em análise, o sujeito é convocado a falar é o que convoca o sujeito a um reposiciona-
de seus atos; atos que são marcados pelo in- mento diante da sua existência.
consciente e, em última análise, estimulados Referindo-se a esse momento, um dos
pelo próprio desejo. O saber inconsciente – o clientes assim o define: “É um acerto de con-
que marca a diferença e a singularidade de tas”. E outro acrescenta: “É preciso passar a
cada um – fundamenta a relação entre sujei- história a limpo”. Fala-se de reposicionamen-
to e envelhecimento no que se refere a um to diante da existência.
trabalho de subjetivação. O psiquismo tem por função a manuten-
Enfatizo, portanto, que a questão do su- ção da continuidade do prazer, do interesse,
jeito do desejo é um conceito que firma e do sentido, do fluxo constante de investi-
delimita o campo do saber psicanalítico em mento tanto em si, como no corpo, nos ou-
detrimento do anonimato e a descumplici- tros, nas atividades, nas ideias e no mundo
dade que os vocábulos “envelhecimento” ou exterior. A função do psiquismo repousa na
“velhice” evocam. capacidade de investir fora do eu.
Dessa maneira, reitero o desafio em des- Esse princípio é de extremo valor, pois
construir uma concepção formatada de en- aqui reside o fio norteador da análise com
velhecimento ou velhice como época obs- idosos, ou seja, a importância de se criar na
cura, de não plasticidade, em que o desejo vida os próprios sentidos que auxiliem o eu a
deixa de existir; e por extensão, nega-se o romper com a possibilidade da autodestrui-
que propõe a psicanálise. Há que deslocar ção subjetiva.
a questão para o campo simbólico, “espaço” A título de exemplo: Eloá (nome fictício),
este aberto às manifestações do inconsciente, cliente de 82 anos, viúva, me liga todas as
para além dos tempos cronológicos. manhãs e diz: “Doutor Maurício, já levan-
Nesse processo, entendo que o Eu há que tei, tomei café, tomei banho, tirei a camisola.
construir meios para responder às demandas Volto a dormir mais um pouquinho? E ago-
pulsionais a partir do meio ambiente que se ra, que vou fazer hoje?”
afunila e respostas às demandas do corpo O vazio pelo que fazer hoje faz do seu dia
biológico. O “ego tem que ser desenvolvido”, um verdadeiro pesadelo, já confessado por
diz Freud ([1914] 1996, p. 84) em Sobre o ela. A construção de um sentido é a única
narcisismo: uma introdução. possibilidade de tirá-la de sua concha narcísica.
E falando das três instâncias – id, ego e Tenho por hábito acolher e ser como uma
superego – na Conferência XXXI, Freud “caixa de ressonância” (expressão de Jacques
(1933 [1932] 1996, p. 64) fala do ego: “[...] Miller) quando meus clientes idosos me
afinal, o ego é, em sua própria essência, lançam perguntas como a de Eloá. Costumo
sujeito”. Assim, a psicanálise comparece responder-lhe: “Legal. O que podemos fazer
como possibilidade para o envelhescente – hoje?”. Percebo que a palavra “podemos”

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traduz uma possibilidade de auxílio – que o seria um meio de atenuar essas forças irrup-
analista está com ela – por onde Eloá escorrega tivas e violentas do sexual.
seu desejo na construção de um sentido. O A clínica freudiana pontua constante-
conceito de mãe suficientemente boa, de mente a importância da singularidade. Nesse
Winnicott (1974), como sendo o primeiro polo sentido, cada sujeito atendido implica uma
de investimento fora do eu como modelo, ecoa clínica diferente, uma reinvenção da psica-
na relação com Eloá. nálise, pode-se dizer. Partindo dessa expe-
A função do aparelho psíquico é manter riência única é que se pode pensar a concep-
a continuidade do ambiente interno via flu- ção do que seja estar velho.
xo de trocas com o meio externo. Embora a Em O mal-estar da civilização, quando
sexualidade não seja mais o elo mobilizador fala da felicidade, Freud ([1930] 1988) diz
como no passado, há que se buscar vias su- ser uma tarefa impossível, mas há que buscar
blimatórias mesmo que o eu esteja marcado o possível e, para tal, não existe um caminho
pela fragilidade. A sublimação consistiria, na igual para todos. E afirma:
clínica psicanalítica com idosos, o eixo fun-
dante e mobilizador, pois há que se manter Não existe regra de ouro que se aplique a
o fluxo do investimento para fora do eu e do todos: todo homem tem de descobrir por si
próprio corpo, mesmo que as perdas atinjam mesmo de que modo específico ele pode ser
tanto o eu como os objetos. salvo (Freud, [1930] 1988, p. 91).
E diante da morte, castração radical,
Bianchi (1993, p. 93) insiste na continuidade Para ilustrar essa reflexão, apresento al-
do sentido quando diz: guns fragmentos de sessão de uma idosa em
atendimento. Eloá chega ao meu consultó-
É nessa mobilização do investimento fora rio com diagnóstico de síndrome do pâni-
do Eu que se apoia (sic), quando se efetua co, após cirurgia cardíaca de sucesso, aos 80
o necessário trabalho psíquico do luto do anos. Em uma consulta, o médico pede-lhe
EU-objeto e do corpo, isto é, a renúncia à cuidados especiais, pois agora tem um co-
continuidade biológica em projeto de uma ração artificial. A palavra “artificial” foi o
substituição sublimativa que permite man- elemento detonador de uma crise que a en-
ter uma continuidade da natureza ideativa clausurou em seu apartamento deixando-a
[...] é aqui que aparecem as continuidades apática, inerte e sem vida.
substitutivas da crença, do saber e, de um O significante “artificial” remete à própria
modo geral, da identificação com entidades existência quando afirma:
mais duráveis que do que o Eu: tudo o que
lhe permite evitar reconhecer na morte uma Meu marido me colocou numa redoma de
castração radical. vidro [...] não me deixava fazer nada [...] a
minha vida toda foi um teatro [...] só cenas.
A função do aparelho psíquico é de in- Agora não dá para encenar mais. Não tem
vestimento como já falamos. Assim, pela via como esconder mais.
da sublimação, a análise com idosos poderia
contribuir e enriquecer a teoria psicanalítica Um terror a paralisou diante da possibili-
por esse viés. A sublimação, conceitualmen- dade da morte. E é nesse contexto que o tem-
te falando na teoria psicanalítica, nasce para po nos aproximou.
dar conta da origem sexual do impulso cria- Há três fragmentos de sessão que resul-
dor do ser humano, que, ao transformar as taram numa mudança significativa em sua
forças das energias sexuais, converte-as em análise. O primeiro fragmento refere-se ao
forças produtivas e criadoras. A sublimação seu fisioterapeuta. Relata Eloá que, um dia,

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o fisioterapeuta se colocou diante dela, segu- Eloá! Você está viva!” Ela esboça um sorriso,
rou suas mãos (pela maneira como relatou, abaixa a cabeça. O sorriso, entendo, resulta
deu a entender, de forma muito carinhosa) e da autorização que esperava. Posso sentir,
ela se assustou, e disse-me: “Me pareceu que não é pecaminoso, um idoso pode viver a se-
ia dizer alguma coisa, que fosse se declarar a xualidade.
mim. Eu fiquei assustada, soltei de suas mãos Assim, algo extremamente prazeroso
e levantei-me depressa”. Após esse evento, ocorreu nessa sessão. Ao pontuar o caráter
Eloá sempre buscava justificativas para não punitivo referindo-se ao braço machucado,
comparecer às sessões de fisioterapia. Eloá levanta a cabeça, olha bem firme e me
No segundo evento, ela estava caminhan- diz: “Doutor, quem é o louco aqui, eu ou o
do no playground de seu prédio e aí encon- senhor?” Fui pego de surpresa, e sua pergun-
trou-se com um vizinho que há tempo não se ta provocou-me um riso que foi acompanha-
viam. Pergunta pela sua esposa e ele a convi- do pelo de Eloá, aumentando até a produção
da a visitá-la, o que Eloá faz imediatamente. de gargalhadas. Como se não bastasse, foi
Ele gentilmente se oferece para acompanhá necessário ficarmos em pé, momento em que
-la, oferecendo-lhe o braço. Ao encostar seu as gargalhadas se intensificaram.
braço no braço cabeludo do vizinho, Eloá Nesse sentido, Freud ([1927] 1998), afir-
sente arrepios pelo corpo todo e, assustada, ma em O humor que a essência do humor
tira o braço com rapidez. E me diz: “Doutor, é banir o sofrimento para que em seu lugar
onde já se viu, uma mulher da minha ida- apareça o prazer humorístico e que, além
de pensar nessas coisas, sentir essas coisas... de seu caráter libertador, apresenta algo de
não... pelo amor de Deus”. grandeza, que se encontra relacionado ao
Como diz Freud ([1925] 1996, p. 265) em triunfo do narcisismo e à afirmação vitorio-
A negativa, que sa do eu que insiste em obter prazer, mesmo
em momentos difíceis e hostis. Nesse caso, o
[...] o conteúdo de uma imagem ou ideia re- inconsciente de Eloá provoca um chiste e o
primida pode abrir caminho até a consciên- humor aqui responde a:
cia, com a condição de que seja negado.
[...] uma contribuição feita ao cômico pela
O “não” de Eloá é uma maneira, um ca- intervenção do superego. Se é realmente o
minho de entrar em contato com o que está superego que, no humor, fala essas bondosas
reprimido. palavras de conforto ao ego intimidado, isso
No terceiro evento, Eloá estava em um nos ensinará que ainda temos muito a apren-
jantar, aliás, de seu aniversário de 82 anos. der sobre a natureza do superego. Se o supe-
Um senhor, sentado à sua frente encostou as rego tenta, através do humor, consolar o ego e
pernas nas suas, o que a deixou incomodada. protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz
E ela me diz: “Doutor, o senhor viu? Todo sua origem no agente paterno (Freud, [1927]
mundo agora assim comigo. Credo, uma 1998, p. 169).
mulher velha pensando nessas coisas!”
No fragmento anterior, Eloá nega o que Essa sessão foi como se abrisse uma tor-
está sentindo, o que fala da suspensão da re- neira para escoar algo que até então esta-
pressão, como afirma Freud ([1925] 1996) va represado. Tornou-se uma referência e,
embora isso não signifique aceitação do re- quando as sessões ficam difíceis, Eloá per-
primido. Aqui, neste fragmento, já se admite gunta pelas gargalhadas: “Quando vamos re-
a possibilidade de estar pensando. petir aquela sessão?”.
Ao narrar os três fragmentos da sessão já Após essa intervenção, por conta própria,
mencionados, apenas digo: “Que bom, né, Eloá cortou duas sessões, ficando apenas

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uma e ainda desmarcando outras. Retor- trabalhos manuais, que sempre ganham mo-
na para a fisioterapia, onde é recebida com delos novos, fruto de pesquisas em revistas
festa. E me diz depois: O “Carlos” me disse: e com amigas. O dia da entrega é uma fes-
“Vem aqui, Eloazinha, quero você pertinho ta. Sente-se feliz, reconhecida e usa a sessão
de mim”. “Ele tece elogios a mim o tempo toda só para falar dos elogios. Os olhos bri-
todo. Ele é uma gracinha”. Autorizada a sen- lham! E diz: “Nossa, é muito bom poder aju-
tir e acolher o que vivencia, vai elaborando dar as pessoas, né?”.
a concepção de pecado e castigo que tomou
conta de sua vida. Considerações finais
Eloá comparece às sessões bem vestida, Ao criar novos sentidos, a clínica psicanalí-
maquiada, com joias e sorriso fácil. Muito tica, segundo Birman (1997), põe em cena a
afetiva, carinhosa, conquista a atenção de to- ética e a estética. Ou seja, referindo-se à éti-
dos por onde passa. Descobriu recentemen- ca, o sujeito se coloca diante de sua verdade,
te um hospital carente em que os pacientes de seu desejo, de seus impulsos sexuais. E
passam dificuldades, pois o espaço é pobre, diante do próprio desejo, quais os caminhos
janelas com vidros quebrados, o que a deixa possíveis? É uma questão de singularidade, e
indignada, e diz: “Onde já se viu uma coisa o destino que cada um dá ao seu desejo é o
desta [...] estão lá doentes, e passando frio que particulariza o ser como singular. Já sob
[...] é um absurdo”. Descobriu um meio de a perspectiva da estética, frente à impossi-
ajudá-los. Resolveu tecer sapatinhos de lã. bilidade de realização do desejo, a cura em
Em Escritores criativos e devaneio Freud análise consistiria em uma transformação do
([1908/1907] 1996), enfatiza a importância desejo.
da criação e da imaginação no processo da Frente ao desamparo, cada sujeito busca
sublimação, entendendo sublimação como criar, via sublimação, uma forma única de
maneira de escoar o pulsional no sentido de existência e um jeito próprio de habitar seu
prazer. E aqui neste texto, Freud concebe o mundo interior. Nesse sentido, a única ma-
prazer não como descarga total da pulsão neira de dar conta do desamparo é continuar
(inércia), mas como meio alternativo de sa- desejando, inventando um estilo, ao invés de
tisfação de um desejo e que também resulta se refugiar em ideais fálicos. Já que o desam-
em prazer. Dessa forma, no ato de sublimar, paro é estrutural, pelo menos pode-se geren-
há a possibilidade de obtenção de prazer ciá-lo.
com o pulsional, indiretamente via constru-
ção simbólica.
Segundo o texto Escritores criativos e de-
vaneio ([1908/1907] 1996), o sujeito insa-
tisfeito, pulsionalmente falando, cria outras
possibilidades de satisfação, via sublimação,
transformando o desejo sexual em algo pra-
zeroso por meio da construção simbólica,
evitando, assim, a desistência do desejo. Por-
tanto, a sublimação, como processo psíquico,
aponta a realização do desejo em outro con-
texto e por meios de outros objetos.
Eloá convida senhoras idosas e ‘pratica-
mente’ monta uma sapataria para tecer sapa-
tinhos de lã em sua casa. Recebe lã de várias
pessoas. Grande parte do dia é dedicada aos

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Abstract FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937).


This paper proposes some particularities of the In: ______. Moisés e o monoteísmo, esboço de psica-
nálise e outros trabalhos (1937-1939). Direção-geral
psychoanalytic clinic in the care for the eldely. da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Ima-
I would like to highlight the ageing world po- go, 1996. p. 231-270. (Edição standard brasileira das
pulation and, particularly, with increased lon- obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 23).
gevity, there is a greater visibility of the elderly
as well their demands. Another reason is the FREUD, S. Conferência XXXI: A dissecção da perso-
nalidade psíquica. In: ______ . Novas conferências in-
scarcity of psychoanalytical research, that is, trodutórias sobre psicanálise e outros trabalhos (1932-
lack of literature explaining the question about 1936). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão.
ageing. This approach defends sublimation as Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 63-84. (Edição stan-
a means of sustaining the wish and, above dard brasileira das obras psicológicas completas de
all, as a means of transformation provided by Sigmund Freud, 22).
social bonds, aiming to make the subject the FREUD, S. Dois verbetes de enciclopédia: (A) Psi-
leader of his own history and assuming that canálise; (A) A teoria da libido (1923 [1922]). In:
investment is what upholds existence. There is ______. Além do princípio de prazer, psicologia de
no age for desire. Through this principle, one grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral
must “bet on life” even when the body becomes da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Ima-
go, 1996. p. 251-274. (Edição standard brasileira das
a sick stage, always pointing towards death. obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).
Thus, psychoanalysis summons the subjects to
the hearing and remembering, which enable FREUD, S. Escritores criativos e devaneio (1908
their own histories and reconcile them with [1907]). In: ______. “Gradiva” de Jensen e outros tra-
the legitimacy of their own wish. balhos (1906-1908). Direção-geral da tradução de Jay-
me Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 135-143.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas
Keywords: Aging, Psychoanalytical clinic, Su- completas de Sigmund Freud, 9).
blimation.
FREUD, S. Linhas de progresso na terapia analítica
(1919 [1918]). In: ______. Uma neurose infantil e ou-
tros trabalhos (1917-1918). Direção-geral da tradução
de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.
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Recebido em: 28/02/2018


Aprovado em: 25/04/2018

Sobre o autor

José Mauricio da Silva


Doutor em psicologia pela PUC Minas (2015).
Mestre pela PUC Minas (2007).
Graduado em Filosofia pela PUC Minas (1985).
Graduado em psicologia pela Universidade Gama Fi-
lho (2000) Rio de Janeiro.
Especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica Uni-
versidade Gama Filho (UGF) Rio de Janeiro (2002).
Professor em pós-graduação em Ciências da Religião,
no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA) MG.
Candidato em formação no Círculo Psicanalítico de
Minas Gerais (CPMG).

Endereço para correspondência

E-mail: <mauricio@agostinianos.org.br>

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