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Resumo
Este artigo apresenta algumas particularidades da clínica psicanalítica no atendimento a ido-
sos. Instigado pelo aumento da população idosa em decorrência da longevidade, há maior
visibilidade e demandas provenientes dessa categoria. Outra razão é a pouca produção psica-
nalítica abordando a questão do tratamento com idoso. Defendo a sublimação como meio de
sustentação do desejo e, acima de tudo, como meio de transformação proveniente dos laços
sociais convocando o sujeito idoso a assumir as rédeas da própria história, bem como o inves-
timento que sustenta a existência. Não há idade para desejar. Por meio desse princípio o idoso
é convocado a apostar na vida, mesmo que o corpo compareça como palco de enfermidades e
sinalize para a finitude. Dessa maneira, a psicanálise convoca o sujeito a se “n’homear”, ressig-
nificando sua história com a legitimidade de seus próprios desejos.
habita cada sujeito, criando outra espécie de duração do tratamento (Freud, [1905/1904]
demanda ancorada no desejo. 1996, p. 274).
Como diz Mucida (2006, p. 18), na análise sujeito – nessa construção ou reconstrução
o mais importante de sentido.
O envelhecimento é o encontro estranho
[...] é a forma como o sujeito se coloca frente à de um corpo que se fragiliza com uma ins-
falta do Outro e sua relação com o desejo, que tância que não se envelhece: o inconsciente.
não é determinado pela idade e muito menos Um desencontro, na verdade. Um desencon-
pela quantidade de material psíquico. tro que provoca um desajuste, que desperta
sentimentos ou emoções que até então não
O conceito de pulsão é avesso a qualquer eram sentidas ou não percebidas. Assim
noção desenvolvimentista; sempre parcial. E como o mal-estar é o que conduz o sujeito
a sexualidade adulta é a sexualidade infantil. à análise, aqui esse desencontro ou desajuste
Em análise, o sujeito é convocado a falar é o que convoca o sujeito a um reposiciona-
de seus atos; atos que são marcados pelo in- mento diante da sua existência.
consciente e, em última análise, estimulados Referindo-se a esse momento, um dos
pelo próprio desejo. O saber inconsciente – o clientes assim o define: “É um acerto de con-
que marca a diferença e a singularidade de tas”. E outro acrescenta: “É preciso passar a
cada um – fundamenta a relação entre sujei- história a limpo”. Fala-se de reposicionamen-
to e envelhecimento no que se refere a um to diante da existência.
trabalho de subjetivação. O psiquismo tem por função a manuten-
Enfatizo, portanto, que a questão do su- ção da continuidade do prazer, do interesse,
jeito do desejo é um conceito que firma e do sentido, do fluxo constante de investi-
delimita o campo do saber psicanalítico em mento tanto em si, como no corpo, nos ou-
detrimento do anonimato e a descumplici- tros, nas atividades, nas ideias e no mundo
dade que os vocábulos “envelhecimento” ou exterior. A função do psiquismo repousa na
“velhice” evocam. capacidade de investir fora do eu.
Dessa maneira, reitero o desafio em des- Esse princípio é de extremo valor, pois
construir uma concepção formatada de en- aqui reside o fio norteador da análise com
velhecimento ou velhice como época obs- idosos, ou seja, a importância de se criar na
cura, de não plasticidade, em que o desejo vida os próprios sentidos que auxiliem o eu a
deixa de existir; e por extensão, nega-se o romper com a possibilidade da autodestrui-
que propõe a psicanálise. Há que deslocar ção subjetiva.
a questão para o campo simbólico, “espaço” A título de exemplo: Eloá (nome fictício),
este aberto às manifestações do inconsciente, cliente de 82 anos, viúva, me liga todas as
para além dos tempos cronológicos. manhãs e diz: “Doutor Maurício, já levan-
Nesse processo, entendo que o Eu há que tei, tomei café, tomei banho, tirei a camisola.
construir meios para responder às demandas Volto a dormir mais um pouquinho? E ago-
pulsionais a partir do meio ambiente que se ra, que vou fazer hoje?”
afunila e respostas às demandas do corpo O vazio pelo que fazer hoje faz do seu dia
biológico. O “ego tem que ser desenvolvido”, um verdadeiro pesadelo, já confessado por
diz Freud ([1914] 1996, p. 84) em Sobre o ela. A construção de um sentido é a única
narcisismo: uma introdução. possibilidade de tirá-la de sua concha narcísica.
E falando das três instâncias – id, ego e Tenho por hábito acolher e ser como uma
superego – na Conferência XXXI, Freud “caixa de ressonância” (expressão de Jacques
(1933 [1932] 1996, p. 64) fala do ego: “[...] Miller) quando meus clientes idosos me
afinal, o ego é, em sua própria essência, lançam perguntas como a de Eloá. Costumo
sujeito”. Assim, a psicanálise comparece responder-lhe: “Legal. O que podemos fazer
como possibilidade para o envelhescente – hoje?”. Percebo que a palavra “podemos”
traduz uma possibilidade de auxílio – que o seria um meio de atenuar essas forças irrup-
analista está com ela – por onde Eloá escorrega tivas e violentas do sexual.
seu desejo na construção de um sentido. O A clínica freudiana pontua constante-
conceito de mãe suficientemente boa, de mente a importância da singularidade. Nesse
Winnicott (1974), como sendo o primeiro polo sentido, cada sujeito atendido implica uma
de investimento fora do eu como modelo, ecoa clínica diferente, uma reinvenção da psica-
na relação com Eloá. nálise, pode-se dizer. Partindo dessa expe-
A função do aparelho psíquico é manter riência única é que se pode pensar a concep-
a continuidade do ambiente interno via flu- ção do que seja estar velho.
xo de trocas com o meio externo. Embora a Em O mal-estar da civilização, quando
sexualidade não seja mais o elo mobilizador fala da felicidade, Freud ([1930] 1988) diz
como no passado, há que se buscar vias su- ser uma tarefa impossível, mas há que buscar
blimatórias mesmo que o eu esteja marcado o possível e, para tal, não existe um caminho
pela fragilidade. A sublimação consistiria, na igual para todos. E afirma:
clínica psicanalítica com idosos, o eixo fun-
dante e mobilizador, pois há que se manter Não existe regra de ouro que se aplique a
o fluxo do investimento para fora do eu e do todos: todo homem tem de descobrir por si
próprio corpo, mesmo que as perdas atinjam mesmo de que modo específico ele pode ser
tanto o eu como os objetos. salvo (Freud, [1930] 1988, p. 91).
E diante da morte, castração radical,
Bianchi (1993, p. 93) insiste na continuidade Para ilustrar essa reflexão, apresento al-
do sentido quando diz: guns fragmentos de sessão de uma idosa em
atendimento. Eloá chega ao meu consultó-
É nessa mobilização do investimento fora rio com diagnóstico de síndrome do pâni-
do Eu que se apoia (sic), quando se efetua co, após cirurgia cardíaca de sucesso, aos 80
o necessário trabalho psíquico do luto do anos. Em uma consulta, o médico pede-lhe
EU-objeto e do corpo, isto é, a renúncia à cuidados especiais, pois agora tem um co-
continuidade biológica em projeto de uma ração artificial. A palavra “artificial” foi o
substituição sublimativa que permite man- elemento detonador de uma crise que a en-
ter uma continuidade da natureza ideativa clausurou em seu apartamento deixando-a
[...] é aqui que aparecem as continuidades apática, inerte e sem vida.
substitutivas da crença, do saber e, de um O significante “artificial” remete à própria
modo geral, da identificação com entidades existência quando afirma:
mais duráveis que do que o Eu: tudo o que
lhe permite evitar reconhecer na morte uma Meu marido me colocou numa redoma de
castração radical. vidro [...] não me deixava fazer nada [...] a
minha vida toda foi um teatro [...] só cenas.
A função do aparelho psíquico é de in- Agora não dá para encenar mais. Não tem
vestimento como já falamos. Assim, pela via como esconder mais.
da sublimação, a análise com idosos poderia
contribuir e enriquecer a teoria psicanalítica Um terror a paralisou diante da possibili-
por esse viés. A sublimação, conceitualmen- dade da morte. E é nesse contexto que o tem-
te falando na teoria psicanalítica, nasce para po nos aproximou.
dar conta da origem sexual do impulso cria- Há três fragmentos de sessão que resul-
dor do ser humano, que, ao transformar as taram numa mudança significativa em sua
forças das energias sexuais, converte-as em análise. O primeiro fragmento refere-se ao
forças produtivas e criadoras. A sublimação seu fisioterapeuta. Relata Eloá que, um dia,
o fisioterapeuta se colocou diante dela, segu- Eloá! Você está viva!” Ela esboça um sorriso,
rou suas mãos (pela maneira como relatou, abaixa a cabeça. O sorriso, entendo, resulta
deu a entender, de forma muito carinhosa) e da autorização que esperava. Posso sentir,
ela se assustou, e disse-me: “Me pareceu que não é pecaminoso, um idoso pode viver a se-
ia dizer alguma coisa, que fosse se declarar a xualidade.
mim. Eu fiquei assustada, soltei de suas mãos Assim, algo extremamente prazeroso
e levantei-me depressa”. Após esse evento, ocorreu nessa sessão. Ao pontuar o caráter
Eloá sempre buscava justificativas para não punitivo referindo-se ao braço machucado,
comparecer às sessões de fisioterapia. Eloá levanta a cabeça, olha bem firme e me
No segundo evento, ela estava caminhan- diz: “Doutor, quem é o louco aqui, eu ou o
do no playground de seu prédio e aí encon- senhor?” Fui pego de surpresa, e sua pergun-
trou-se com um vizinho que há tempo não se ta provocou-me um riso que foi acompanha-
viam. Pergunta pela sua esposa e ele a convi- do pelo de Eloá, aumentando até a produção
da a visitá-la, o que Eloá faz imediatamente. de gargalhadas. Como se não bastasse, foi
Ele gentilmente se oferece para acompanhá necessário ficarmos em pé, momento em que
-la, oferecendo-lhe o braço. Ao encostar seu as gargalhadas se intensificaram.
braço no braço cabeludo do vizinho, Eloá Nesse sentido, Freud ([1927] 1998), afir-
sente arrepios pelo corpo todo e, assustada, ma em O humor que a essência do humor
tira o braço com rapidez. E me diz: “Doutor, é banir o sofrimento para que em seu lugar
onde já se viu, uma mulher da minha ida- apareça o prazer humorístico e que, além
de pensar nessas coisas, sentir essas coisas... de seu caráter libertador, apresenta algo de
não... pelo amor de Deus”. grandeza, que se encontra relacionado ao
Como diz Freud ([1925] 1996, p. 265) em triunfo do narcisismo e à afirmação vitorio-
A negativa, que sa do eu que insiste em obter prazer, mesmo
em momentos difíceis e hostis. Nesse caso, o
[...] o conteúdo de uma imagem ou ideia re- inconsciente de Eloá provoca um chiste e o
primida pode abrir caminho até a consciên- humor aqui responde a:
cia, com a condição de que seja negado.
[...] uma contribuição feita ao cômico pela
O “não” de Eloá é uma maneira, um ca- intervenção do superego. Se é realmente o
minho de entrar em contato com o que está superego que, no humor, fala essas bondosas
reprimido. palavras de conforto ao ego intimidado, isso
No terceiro evento, Eloá estava em um nos ensinará que ainda temos muito a apren-
jantar, aliás, de seu aniversário de 82 anos. der sobre a natureza do superego. Se o supe-
Um senhor, sentado à sua frente encostou as rego tenta, através do humor, consolar o ego e
pernas nas suas, o que a deixou incomodada. protegê-lo do sofrimento, isso não contradiz
E ela me diz: “Doutor, o senhor viu? Todo sua origem no agente paterno (Freud, [1927]
mundo agora assim comigo. Credo, uma 1998, p. 169).
mulher velha pensando nessas coisas!”
No fragmento anterior, Eloá nega o que Essa sessão foi como se abrisse uma tor-
está sentindo, o que fala da suspensão da re- neira para escoar algo que até então esta-
pressão, como afirma Freud ([1925] 1996) va represado. Tornou-se uma referência e,
embora isso não signifique aceitação do re- quando as sessões ficam difíceis, Eloá per-
primido. Aqui, neste fragmento, já se admite gunta pelas gargalhadas: “Quando vamos re-
a possibilidade de estar pensando. petir aquela sessão?”.
Ao narrar os três fragmentos da sessão já Após essa intervenção, por conta própria,
mencionados, apenas digo: “Que bom, né, Eloá cortou duas sessões, ficando apenas
uma e ainda desmarcando outras. Retor- trabalhos manuais, que sempre ganham mo-
na para a fisioterapia, onde é recebida com delos novos, fruto de pesquisas em revistas
festa. E me diz depois: O “Carlos” me disse: e com amigas. O dia da entrega é uma fes-
“Vem aqui, Eloazinha, quero você pertinho ta. Sente-se feliz, reconhecida e usa a sessão
de mim”. “Ele tece elogios a mim o tempo toda só para falar dos elogios. Os olhos bri-
todo. Ele é uma gracinha”. Autorizada a sen- lham! E diz: “Nossa, é muito bom poder aju-
tir e acolher o que vivencia, vai elaborando dar as pessoas, né?”.
a concepção de pecado e castigo que tomou
conta de sua vida. Considerações finais
Eloá comparece às sessões bem vestida, Ao criar novos sentidos, a clínica psicanalí-
maquiada, com joias e sorriso fácil. Muito tica, segundo Birman (1997), põe em cena a
afetiva, carinhosa, conquista a atenção de to- ética e a estética. Ou seja, referindo-se à éti-
dos por onde passa. Descobriu recentemen- ca, o sujeito se coloca diante de sua verdade,
te um hospital carente em que os pacientes de seu desejo, de seus impulsos sexuais. E
passam dificuldades, pois o espaço é pobre, diante do próprio desejo, quais os caminhos
janelas com vidros quebrados, o que a deixa possíveis? É uma questão de singularidade, e
indignada, e diz: “Onde já se viu uma coisa o destino que cada um dá ao seu desejo é o
desta [...] estão lá doentes, e passando frio que particulariza o ser como singular. Já sob
[...] é um absurdo”. Descobriu um meio de a perspectiva da estética, frente à impossi-
ajudá-los. Resolveu tecer sapatinhos de lã. bilidade de realização do desejo, a cura em
Em Escritores criativos e devaneio Freud análise consistiria em uma transformação do
([1908/1907] 1996), enfatiza a importância desejo.
da criação e da imaginação no processo da Frente ao desamparo, cada sujeito busca
sublimação, entendendo sublimação como criar, via sublimação, uma forma única de
maneira de escoar o pulsional no sentido de existência e um jeito próprio de habitar seu
prazer. E aqui neste texto, Freud concebe o mundo interior. Nesse sentido, a única ma-
prazer não como descarga total da pulsão neira de dar conta do desamparo é continuar
(inércia), mas como meio alternativo de sa- desejando, inventando um estilo, ao invés de
tisfação de um desejo e que também resulta se refugiar em ideais fálicos. Já que o desam-
em prazer. Dessa forma, no ato de sublimar, paro é estrutural, pelo menos pode-se geren-
há a possibilidade de obtenção de prazer ciá-lo.
com o pulsional, indiretamente via constru-
ção simbólica.
Segundo o texto Escritores criativos e de-
vaneio ([1908/1907] 1996), o sujeito insa-
tisfeito, pulsionalmente falando, cria outras
possibilidades de satisfação, via sublimação,
transformando o desejo sexual em algo pra-
zeroso por meio da construção simbólica,
evitando, assim, a desistência do desejo. Por-
tanto, a sublimação, como processo psíquico,
aponta a realização do desejo em outro con-
texto e por meios de outros objetos.
Eloá convida senhoras idosas e ‘pratica-
mente’ monta uma sapataria para tecer sapa-
tinhos de lã em sua casa. Recebe lã de várias
pessoas. Grande parte do dia é dedicada aos
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