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FAVENI

FACULDADE VENDA NOVA DO IMIGRANTE

Pós graduação EAD em Psicanálise

JOÃO PAULO DE JESUS SEVERO DA COSTA

Ideal de Ego x Ego ideal: uma abordagem a partir de Klein, Freud e Lacan

Barra do Garças-MT
2021
IDEAL DE EGO X EGO IDEAL: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE KLEIN,
FREUD E LACAN

Declaro que sou autor(a)¹ deste Trabalho de Conclusão de Curso. Declaro também que o mesmo
foi por mim elaborado e integralmente redigido, não tendo sido copiado ou extraído, seja parcial ou
integralmente, de forma ilícita de nenhuma fonte além daquelas públicas consultadas e corretamente
referenciadas ao longo do trabalho ou daqueles cujos dados resultaram de investigações empíricas por
mim realizadas para fins de produção deste trabalho.
Assim, declaro, demonstrando minha plena consciência dos seus efeitos civis, penais e
administrativos, e assumindo total responsabilidade caso se configure o crime de violação aos direitos
autorais.

RESUMO

O presente artigo, pretende abordar, a partir das perspectivas Freudianas, Kleinianas e


Lacanianas, as diferenças fundamentais entre suas concepções o ideal do Ego e o ego ideal e como
esses institutos foram inseridos e refletidos a partir dos da oba de Sigmund Freud, Melaine Klein e
Jacques Lacan. A metodologia empregada foi a pesquisa bibliográfica. Como objetivo, este trabalho
busca demonstrar como a fricção entre diferentes formas de pensar um mesmo fenômeno podem
contribuir para uma visão mais holística, menos ortodoxa e, portanto, atenta à um desdobramento
fenomenológico impensável, pela própria contingência temporal, aos autores em destaque. Como
hipótese, parte do princípio que uma visão contrastada entre os três autores mencionados, consolida a
demonstração de uma nova visão de neurose, sustentada na busca que o ideal de ego procurando
satisfação no eu ideal produz novas formas de sofrimento representadas no modelo horizontal de
sociedade atual. Em sede de conclusão, o presente artigo compreende que os encontros de Lacan,
Freud e Melaine Klein com o tema abordado merecem ser relidos sob a ótica da chamada era da “pós
verdade”.

PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise. Ideal de Eu. Eu ideal. (3 a 5 palavras, separadas e terminadas por


ponto).
INTRODUÇÃO

Neste trabalho, pretendemos abordar, a partir das perspectivas Freudianas,


Kleinianas e Lacanianas, as diferenças fundamentais entre suas concepções o ideal do
Ego e o ego ideal e como esses institutos foram inseridos e refletidos a partir dos
autores em destaque. Para efeitos práticos e não relacionados com uma tradução
monolítica, as expressões “ideal do eu” e “ideal do ego, “ego ideal e “eu ideal” serão
utilizadas indistintamente
A relevância dessa abordagem registra-se na idéia da evolução do “eu” visto em
uma compreensão política e dialética de mundo que atinge, sobretudo após o advento
do que se convencionou chamar de era da pós verdade, um objeto de reflexão
necessário entre o que se poderá chamar de uma ponte dentre o eu ideal (aqui
considerado como pólo do imaginário) e do ideal de ego (pólo do simbólico).
Como hipótese, partimos do princípio que uma visão contrastada entre os três
autores mencionados, consolida a demonstração de uma nova visão de neurose,
sustentada na busca que o ideal de ego procurando satisfação no eu ideal produz
novas formas de sofrimento representadas no modelo horizontal de sociedade atual.
Como objetivo secundário buscaremos neste trabalho demonstrar como a fricção
entre diferentes formas de pensar um mesmo fenômeno podem contribuir para uma
visão mais holística, menos ortodoxa e, portanto, atenta à um desdobramento
fenomenológico impensável, pela própria contingência temporal, aos autores em
destaque.
Na primeira parte do trabalho, abordaremos a evolução do conceito em Freud a
partir da análise sucinta dos mesmos em quatro textos elementares: “Introdução ao
narcisismo” (1914), “Conferências introdutórias sobre psicanálise” (1917), “Psicologia
das massas e análise do eu” (1921) e “Novas conferências introdutórias sobre
psicanálise” (1933). Na segunda parte, focaremos em uma análise do O imaginário e o
simbólico na construção do eu ideal e no ideal de eu, a partir da perspectiva lacaniana.
Na terceira parte, estudaremos a visão de ego como instância ansiodefensiva de Klein
e seus contrastes com a visão freudiana. Finalmente, em sede de conclusão, procurar-
se-á alinhar os três posicionamentos com uma visão da crítica objetal, tal como exposta
na hipótese acima ventilada.
Para atingir à esses objetivos, a metodologia empregada foi a pesquisa
bibliográfica.

1 UM CONCEITO EM EVOLUÇÃO

1.1 Introdução ao narcisismo (1914)

O ideal do eu aparece como um conceito ainda incipiente em 1914, quando da


publicação de “Introdução ao Narcisismo”. Operando com o conceito de um modelo de
“referência do eu”, Freud observa a conjunção entre a substituição do narcisismo e a
substituição da figura parental onde considera que, na manifestação do IDEAL, a libido
passe de uma relação objética (o outro) para uma perspectiva do indivíduo para
consigo. Em outras palavras, seria a própria existência do narcisismo primário (e, claro,
sua renúncia), a chave de surgimento do outro ideal.
Fica patente, entretanto que, o ato da renúncia nesse momento que a relação
entre recalque e essa estariam instaladas na submissão proibitiva das figuras parentais.
O problema da formação do eu, portanto, estaria localizado na condição que
proporcionaria o recalque. Segundo a boa síntese de Tiago Azevedo acerca do texto
em questão, “neste trabalho, ele explica que quando uma pessoa se desenvolve, ela
desenvolve uma espécie de autocensura. Em indivíduos paranoicos, o ideal do ego é
muito forte e descontrolado, o que faz com que um indivíduo possa desenvolver a ideia
de ser monitorado por pessoas invisíveis. Freud também explica que o ideal do ego
poderia ser a causa da voz relatada em pacientes com transtornos mentais, que muitas
vezes é dita ser crítica do indivíduo” (Freud, 1914).

1.2 Conferências introdutórias sobre psicanálise (1917)

Três anos após suas primeiras considerações sobre o tema, Freud modifica esse
constructo. Antes porém de adentramos ao ponto central do ideal do eu nessa obra, é
válido explicarmos pum conceito chave que o precede: o conceito de consciência moral
(Gewissen).
Em “Totem e Tabu” (1912), Freud descreveu a consciência moral como sendo,
““a percepção interna da rejeição de um determinado desejo a influir dentro de nós”. O
desejo de hostilizar, matar e do desejo sexual seriam os aríetes objeto dessa rejeição.
Como acertadamente propõe, Manuella Mucury Teixeira:
“Desse modo, a ideia de ação parece ser determinante para distinguir um tipo e
outro de consciência. A consciência moral possui a função de acusar os pensamentos
impróprios do indivíduo — o seu alcance vai desde os pensamentos conscientes e
inconscientes até os atos dele que também são igualmente vigiados e punidos por essa
instância — enquanto a Schuldbewusstsein pune a atuação do desejo proibido por
aquela” (TEIXEIRA, 2019).
Em “Conferências”, Freud propõe então que no processo de construção do ideal
de eu como instância, se dê a partir da transferência funcional até então delegada à
Gewissen. O resultado da conversão da consciência moral se converta nesse. Com
isso, o processo de avaliação e o crédito de eventos como a censura onírica, por
exemplo, teriam nele seu terreno de atuação.
A grande virada nesse pensamento, contudo, vem a partir do momento em que
Freud reelabora o conceito de eu.

1.3 Psicologia das massas e análise do eu (1921)

De acordo com Roudinesco, acerca do conceito de eu, “a partir de 1920, o termo


mudou de estatuto, sendo conceituado por Freud como uma instância psíquica, no
contexto de uma segunda tópica que abrangia outras duas instâncias: o supereu e o
isso (id). O eu tornou-se então, em grande parte, inconsciente.” Com isso, i ideal do eu,
toma uma nova posição, de muito mais destaque, na liturgia freudiana.
O primeiro ponto é que a distinção entre ego e ideal de eu passa a ser, então,
distintamente demarcada. O conflito entre ambos passa ao protagonismo e, dessa
anotação, todas as demandas referentes à estrutura á estrutura de choque no
psiquismo assume uma nova versão. Não por acaso, em 1923 (“O eu e o isso”) Freud
acaba criando a identificação do ideal de eu com o superego.
Cabe aqui, uma intervenção que adiante aprofundaremos. É de suma
importância recordar que o ideal de eu seria, a priori, uma instância formada pelo
Complexo de Édipo e que agiria, portanto, como uma substituição simbólica do
narcisismo primário. Assim, toma-se o lugar do outro como o ideal para autorização de
desejos e, em nosso posicionamento, sendo a imagem parental o referencial primário,
temos a concepção de ideal de ego como instância de formação moral conjunta
(portanto, não homônima) ao superego. Nesse viés, o superego teria uma
fundamentação vertical (comandos proibitivos explícitos de um ‘autoridade’ superior);
ao ideal de ego caberia uma visão horizontal de objetos e seu suposto alcance.

1.4 Novas conferências introdutórias sobre psicanálise (1933)

A última intervenção Freudiana objeto desse curto trabalho localiza se em 1933.


Na trigésima primeira conferência, já instalada a figura do superego, Freud traz a ideal
de eu como uma configuração que se caracteriza pela comparação.
Essa referência pode ser tomada como um ótimo filtro hermenêutico em que,
compreender o processo de idealização é uma projeção sempre fragmentária calcada o
desejo. Assim, a comparação sempre remete à um plano do simbólico e, assim sendo,
aspira à perfeição projetiva que, obviamente, não existe.
E como fica a distinção dentre ideal do eu e eu ideal nesse caso? Como já
anotado por diversos autores, Freud não se atém à essa distinção de um modo claro.
Andréa Di Pietro Lewkovitch e Angélica Bastos de Freitas Rachid Grimberg, apontam
que:
“Em seu seminário sobre os escritos técnicos de Freud, Lacan (2009) debruça-se
sobre o estudo do narcisismo e diferencia o Ideal-Ich (eu ideal) do Ich-Ideal (Ideal do
eu), apostando no rigor da escrita freudiana, já que os dois termos foram utilizados. No
ensino de Lacan, o eu ideal é uma instância imaginária, a imagem no espelho, uma
projeção. Para que essa imagem se constitua, no entanto, é necessário que o olho, no
esquema óptico, esteja em certa posição em relação ao espelho, ou seja, que o sujeito
se situe em uma posição no simbólico. O modelo simbólico que guiará essa projeção é
o Ideal do eu, que se constitui em uma introjeção (LEWKOVITCH, 2016).
É a partir desse recorte eu iniciaremos nossa próxima sessão desse texto.

2 O IMAGINÁRIO E O SIMBÓLICO NA CONSTRUÇÃO DO EU IDEAL E NO IDEAL


DE EU

Partindo da observação lacaniana exposta no tópico anterior, podemos assinalar


que o eu ideal se sustenta no imaginário e que, com isso, há uma consideração de que
“gostaríamos de ter sido aquilo que se espera que fôssemos”. Em outras palavras,
surge um descompasso, uma descontinuidade, entre o eu e o “eu como um objeto para
o outro”.
Para compreender melhor a visão lacaniana acerca desse ponto é fundamental a
absorção de que que a tendência à neurotização se revela na aspiração de que o ideal
de eu se satisfaça com o eu ideal, como expressa Lacan no Seminário 6. A seu turno,
parte se do pressuposto que o eu ideal seria uma instância do imaginário, enquanto o
ideal de eu seria uma instância do simbólico.
Mas o que significam esses conceitos em Lacan?

2.1 O Imaginário

Roudinesco afirma que, acerca da concepção lacaniana sobre o imaginário que


esse veio “a construir, em 1938, em Os complexos familiares, sua teoria do imaginário:
não mais um simples fato psíquico, porém uma imago, isto é, um conjunto de
representações inconscientes que aparecem sob a forma mental de um processo mais
geral” (op.cit, p. 385)
Essa imago surge, em um primeiro momento a partir de uma visão etóloga:
somos animais sapiens que se sustentam em processos parta criar relações. Nesse
processos, reconhecemos expressões e estabelecemos uma relação geral no campo
da identificação.
Diverso de alguns entendimentos, Lacan relaciona o imaginário com o Ego (parte
consciente, parte inconsciente). A linguagem, portanto, acaba sendo, do ponto de vista
do imaginário, um ilusão de um entendimento unívoco, consolidado, universal.
Como dito anteriormente, o eu ideal (para o autor) afigura-se como uma instância
do imaginário. Novamente, Roudinesco que “num primeiro momento, Lacan mostrou
que o estádio do espelho era a passagem do especular para o imaginário, e depois, em
1953, veio a definir o imaginário como um engodo ligado à experiência de uma
clivagem* entre o eu (moi) e o eu ([je] o sujeito).” (op. Cit. Idem, ibidem)

2.2 O Simbólico

Segundo Lacan, ao inconsciente correspondem as formas simbólicas. A


importância central do conceito de simbólico. Retirado da linguística e da antropologia,
o simbólico pode ser retratado como o fez Levi Strauss, aqui citado por Roudinesco,
uma das maiores influências da primeira clínica de Lacan ao afirmar que: “Os símbolos
são mais reais do que aquilo que simbolizam. O significante precede e determina o
significado.” (ROUDINESCO, op. Cit. p, 728)
O simbólico é inferido pela totalidade. A inscrição do ideal de eu no campo do
simbólico ocorre justamente pela substituição da imagem parental: relações como
parentesco (edipianas), do discurso, das narrativas (enquanto mitos), etc, corporificam
o simbólico como um sistema em que nenhum elemento tenha significado em si.

2.3 O Real

A estrutura triádica dos registros psíquicos se encerra com a presença do real.


As interações constantes e indivisíveis (com exceção das estruturas psicóticas) entre
esses três elementos na topologia dos nós borromeanos, é considerado por muitos
como o ponto alto da obra de Lacan.
A primeira questão acerca do real é que ele não se confunde com a realidade;
antes, o real é o que se subtrai dela. Explicando: a realidade é a construção que se
utiliza a fim de confere sentido, horizontalidade, totalidade; enfim uma narrativa linear e
cronológica (ou próximo à isso) da estrutura que compreendemos como mundo.
O real, ao contrário, é o objeto dito heterônomo: não se integra, não possui
sentido lógico, não se pode representar não pode ser pensado e se revela por um
conceito muito exposto em teoria psicanalítica: a repetição. O lugar do real para Lacan
era a loucura, uma vez que se inscreve como significante rejeitado pelo simbólico.

3 O IDEAL DO EU EM KLEIN

É curioso pensar que em Melaine Klein, a princípio, o ego assumia um papel


secundário em sua teoria. A reflexões da autora de conceitos como a inibição, por
exemplo, colaboraram para que a teoria fosse então, em certa medida, suportada pela
clínica. É válido dizer que a metapsicologia Kleiniana não foi o ponto forte de seu tralho
quando em contraste com seu forte embasamento prático.
Freud entendia que, inobstante à natividade do ego na estrutura psíquica, o
mesmo não se desenvolvia de modo complexificado até a idade de 3-4 anos; o Id
assumiria a capitania psíquica do indivíduo até então. Em contraposição Klein entendia
que, mesmo não organizado, o Ego se desenvolveria em um momento muito anterior.
Para tanto sustentava que a ansiedade, os mecanismos de defesa e as relações
objetais já eram correntes – e visíveis- em crianças na primeira idade.
A lactância seria um fator fundamental nesse processo. O atendimento ás
necessidades corresponderiam à um dos lados da moeda; a fome e o abandono
sentidos pelo bebê, ao outro. Segundo Klein:
“Esses objetos reais e irreais são vivenciados ao mesmo tempo; são
excessivamente objetos bons ou maus, mas num plano diferente (...) Os objetos maus
serão sentidos como ameaçadores e perseguidores. Na cisão, o ego divide os objetos e
assim modifica o medo que sentia do superego, modificando-o, projetando-o para um
objeto externo(...) “Certas pessoas assumem o objeto ameaçador; a mãe assume o
papel de objeto protetor”. .
O dualismo kleiniano põe as fantasias em lume: o seio bom e o mau passam a
ser diretrizes das experiências a posteriori vivenciadas pelo ego. A clivagem do ego
assume papel primordial (agradável/desagradável). A unificação do ego só passa a se
referenciar no próprio desenvolvimento posterior.
De acordo com Klein, “no neurótico obsessivo, a coerção infligida contra outras
pessoas é o resultado de uma projeção multiforme: Tenta se livrar da compulsão
intolerável que está sofrendo – trata seu objeto como se fosse o id ou seu superego e
deslocando a coerção para fora; Assim, satisfaz seu sadismo – atormenta e subjuga
seu objeto; está pondo para fora em seus objetos externos, seu medo de ser destruído
por seus objetos introjetados. Esse medo despertou nele uma compulsão de controlar e
governar suas imagos” (grifo nosso) (Klein, idem, ibidem).
Um outro ponto relevante à presente discussão envolve o conceito de Superego
para Klein. Para a autora, o mesmo se desenvolve cedo (antes dos 3 anos de idade);
portanto bem mais cedo do que a teoria Freudiana (por volta dos cinco anos). Porém o
ponto de divergência fundamental entre os dois teóricos versa em torno do surgimento
do mesmo: para Klein o superego não é uma superação do complexo de Édipo. Para
Klein em crianças pequenas o SE gera terror, e não culpa.
Desse modo, a visão da autora nos dá uma terceira perspectiva: ainda que as
crianças defendam-se da realidade repudiando-a, a capacidade de adaptação à
realidade por parte do indivíduo é que definirá o grau de tolerância à vida adulta.

CONCLUSÃO

Na introdução desse trabalho, colocamos como hipótese, que uma visão


contrastada entre o ideal de eu e o eu ideal em Freud, Lacan e Klein, consolidaria a
demonstração de uma nova visão de neurose, sustentada na busca que o ideal de ego
procurando satisfação no eu ideal produz novas formas de sofrimento representadas no
modelo horizontal de sociedade atual.
Vivemos em tempos onde a liquefação das relações sociais se torna o campo
prolífico para a aproximação do real de forma vertiginosa e profundamente angustiante.
Heiddeger disse que “a angústia é a disposição fundamental que nos coloca perante o
nada”. Em um contexto de menos de um século aquilo que era objeto de certezas em
tempos de paz, se dissolve sob novas perspectivas neurotizantes às quais a
catalogação do DSM ainda não pôde apreender.
De acordo com o jornalista Luciano Trigo, “o termo “pós-verdade” foi empregado
pela primeira vez em 1992, em um artigo do dramaturgo Steve Tesich na revista “The Nation”,
mas ganhou força mesmo em 2016, quando a Oxford Dictionaries, o departamento da
Universidade Oxford responsável pela publicação de dicionários, elegeu "pós-verdade" como a
palavra do ano da língua inglesa” (TRIGO, 2018). Qual a verdadeira relevância de um termo
que se torna em tão pouco tempo “a palavra do ano” para uma publicação de tanta grandeza?
O que diria Freud acerca de um fenômeno dessa natureza? Segundo a narrativa atual
a pós verdade percorre o caminho da descrença-indiferença –conivência: ‘“Eu” não creio
no discurso - logo “eu” me torno indiferente a ele e, em consequência - ‘eu” me torno
conivente a’.
Ora, se o último ponto teórico de Freud com relação ao ideal de eu foi a idéia de
comparação (e consequentemente a idealização a partir da mesma), a era da pós verdade
traz um pólo negativo onde o “eu” passa a se reconhecer não mais na crença – mas em seu
oposto. O ideal passa a ser o “não ideal” e as aspirações são imediatamente recebidas como
angústias. Na acepção de Matthew D’Ancona, “em um mundo no qual a mentira é percebida
como regra, e não exceção, é como se todos fossem mentirosos, mesmo quem fala a
verdade. Assim, o que nos resta é escolher a mentira mais adequada aos nossos interesses,
ou aquela que nos traz mais segurança emocional” (“Pós-verdade – A nova guerra contra os
fatos em tempos de fake news” (Faro Editorial, 2019)
Sendo entendido como instância do real e, enquanto figura mestra no processo
secundário, o Ego carrega a contingência de atuar como um mitigador, que se interpõe
entre a indomada selvageria do ID e o sisudo juízo representado pelo Super Ego.
Analogamente à qualquer jurisdição mediadora, o Ego teme, de certo modo, que
transcender à uma mera oposição dicotômica: bom/ruim, aprovável/reprovável,
posso/não posso seriam uma amostragem sensivelmente reducionista da diplomacia
laboral exercida por esse conciliador assim constituído.
Desse modo, Lacan poderia se fazer a seguinte questão: se o inconsciente é
constituído como linguagem, e o deslizamento dos significantes se torna
circunstancialmente mais e mais movediço, como o Ego responde às exigências de um
discurso que não suporta um “acordo de verdades”? Como reafirmar a angústia:
lacunosa ou complementar? Ou, em outras palavras:
"Em Inibição, Sintoma e Angústia, Freud nos diz, ou parece dizer, que a angústia
é a reação-sinal ante a perda de um objeto. (...) Vocês não sabem que não é a
nostalgia do seio materno que gera a angústia, mas a iminência dele? O que provoca a
angústia é tudo aquilo que nos anuncia, que nos permite entrever que voltaremos ao
colo. (...) O que há de mais angustiante para a criança é, justamente, quando a relação
com base na qual essa possibilidade se institui, pela falta que a transforma em desejo,
é perturbada (...) Não se trata de perda do objeto, mas da presença disto: de que os
objetos não faltam" (LACAN, J. O seminário, livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005. 368 p.) 
Pensemos em Klein: se o Ego se instala como uma instância de defesa contra
ansiedades arcaicas, como essa instalação se processa se a ansiedade
paterno/materna se converte não mais como uma forma neurótica mas como um
registro da experiência cotidiana? A experiência voltar-se em uma quase totalidade
para o seio mau, para a ausência, para a anomia parental?
No jogo de aparências e reproduções, o grupo cede lugar ao enxame, que, no
turbilhão coletivo, perde aquele autêntico sentimento de pertencimento que faz de cada
homem um membro da sociedade, na qual - mencionando Durkheim - realiza a
dualidade natural de o sujeito: animal com personalidade socializada, união de instinto
e razão, de si e do mundo. Longe de uma distopia, ausente de uma caracteriologia
definitiva (o que seria, por si só, um contra senso em uma sociedade líquida!), a
melancolia parece hoje um modo de fábrica da nascente geração. Talvez o momento
atual precise de uma reflexão mais aguda, menos caricata, menos indefinida, volátil ou
supérflua. Talvez o mundo mereça uma reflexão mais ao estilo de Schopenhauer:
“Destarte, para a maioria dos homens, a vida não é senão uma luta pela
existência, com a certeza duma derrota final. Mas o que os faz perseverar em tão
penoso combate não é tanto o amor da vida, quanto o temor da morte que, sempre
inevitável, sempre à vista, pode a cada instante rojar-se sobre eles. A própria vida é um
mar semeado de escolhos e de abrolhos que o homem evita com prudência e cuidados
extremos, embora não ignore que apenas lhe tenha escapado, cada novo passo o
aproxima dum naufrágio bem diversamente formidável, dum naufrágio total, inevitável e
irreparável, da morte para a qual navega diretamente; termo final da fatigante travessia,
porto mais terrível que todos os escolhos evitados” (O Mundo Como Vontade e
Representação – Livro IV, p. 278, 1980).

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psicanálise de Freud. Psicoativo, 2017. Disponível em:
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