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Toco seu braço direto e sinto sua pele se arrepiar, tenho que
me concentrar para não olhar para a maldita camisola que ela veste.
Aplico a vacina e Paloma nem protesta, parece preocupada.
Termino colocando um adesivo em sua pele e ela se vira
para mim. Parece pronta para dizer algo, mas fica paralisada,
apenas me olhando. Descarto a seringa na lixeira.
— Martim, preciso te contar uma coisa. — Diz ela com a
voz trêmula, me olhando temerosa.
— Seja o que for eu estou muito cansado e preciso tomar
um banho e dormir. Amanhã quero chegar cedo à cidade.
— Martim, por favor, não me odeie pelo que eu vou te
contar. — Diz segurando em meu braço, me obrigando a olhar para
ela. Ela me olha com tanto medo que quase deixo as barreiras
caírem e a puxo para os meus braços.
— Diga de uma vez, Paloma, o que você fez? O que mais
você aprontou que eu não estou sabendo? — Digo revoltado com a
hipótese de ela estar me escondendo algo.
— Primeiro, eu quero que saiba que eu te amo, e se fiz essa
besteira foi por medo de te perder! — Fala olhando em meus olhos,
deixando as lágrimas caírem. Eu não aguento e viro meu rosto, não
quero ver seus olhos azuis. Não sou tão forte para aguentar vê-la
assim, eu ainda a amo mesmo me odiando por isso.
— Diga, Paloma, diga o que você fez dessa vez!
— Promete que não vai me mandar embora e que não vai
ficar com raiva de mim?
Olho para ela tão desesperada e começo a ficar nervoso.
— Fala, Paloma! — Exijo.
— Promete primeiro que não vai me mandar embora. Eu
quero ficar aqui com você! Por favor, não me manda embora!
— Droga, Paloma, diga, porra! — Falo já estressado.
— Eu menti para você. — Diz ela se afastando, parece com
medo. Ver seu olhar amedrontado para mim me fere de uma
maneira que não deveria.
— Sobre o que você mentiu, Paloma? — Pergunto indo
direto ao ponto.
— Eu... Eu não estou grávida.
— Você o quê?! — Pergunto não entendendo direito.
— É isso! Eu não aguento mais mentir para você. Mamãe
conseguiu o teste falso que usei para te convencer a me trazer para
cá. Você precisa me entender, eu fiquei desesperada, tive medo de
te perder para sempre. Eu agi errado, mas não quero mais mentir
para você, eu quero ser digna do seu amor.
Senti como se tivesse sido apunhalado pela segunda vez.
— Dessa vez você passou de todos os limites. Falsificar um
exame de gravidez? Você sabe que pode ser presa por isso,
Paloma? Você mais uma vez brincou com meus sentimentos.
Paloma, uma criança!? Como pôde fingir estar grávida, porra!! —
Grito revoltado, dando um passo atrás, tentando não fazer nenhuma
besteira.
— Eu sei, querido, eu juro que não pretendia te enganar, eu
ia contar assim que as coisas se resolvessem entre nós dois.
— Você não imagina o que eu estou sentindo agora,
Paloma. Quando penso que você não pode me ferir mais, você vem
e faz isso! Já chega de tantas mentiras, Paloma, eu não aguento
mais, não aguento mais você! Você vai embora dessa casa, eu não
quero te ver nunca mais!
— Não! Não, Martim! Não, eu não posso aceitar isso, eu
não vou te deixar! Eu sei que você só pensa o pior de mim, e sei
que a culpa é minha disso estar acontecendo, mas, por favor, não
me mande embora.
— Você não vê, Paloma? Eu não vou te perdoar nunca, não
vou cair mais no seu joguinho. Não existe mais nós dois, a única
coisa que te mantinha aqui era o suposto bebê que agora não existe
mais.
— Martim! Martim, por favor, meu amor, não me deixe!
Não me mande embora!
— Para! Para com suas mentiras! Para de implorar por algo
que não vai acontecer! Quero você fora daqui!
— Eu entendo a sua raiva, compreendo o seu rancor, mas
eu sei que nós fomos feitos um para o outro. Não há maneira de
sermos felizes separados. Você me ama, eu sei que o sentimento
ainda está aí dentro de você, só preciso despertá-lo.
— Chega, Paloma! Você nem sabe o que está falando!
Arruma suas coisas que amanhã eu vou te levar no aeroporto e
você vai embora. — A deixo sozinha na sala e entro no meu quarto.
Tento controlar a vontade que eu tenho de quebrar tudo, gritar com
ela.
Deus, eu não aguento. Essa dor é sufocante demais. Gemo
agoniado. Por que me fazer conhecê-la? Por que me apaixonar
justo por ela? Uma mulher tão cruel, tão terrível. Me enganou,
mentiu, me usou. Paloma só brincou comigo, eu era algum tipo de
diversão para ela, nada faz sentido! A única coisa que sei, é que dói
saber que tudo não passou de mentiras.
Percebo que fiz merda assim que sinto o tapa em meu rosto.
O olhar que Paloma me direcionou me desarmou; eu a feri,
a magoei. Pedi desculpas, mas isso não muda nada. Ela se trancou
em seu quarto e eu não consegui me explicar. Droga!
Talvez seja melhor assim, não posso ser um fraco. Paloma
não merece nenhum sentimento da minha parte, não depois do que
ela me fez, não depois de ter arrancado meu coração. Talvez isso
seja bom para ela sentir um pouco do que sinto.
Vou para meu quarto e tento em dormir, mas é inútil. Vejo
as horas se arrastando, a noite se torna madrugada e a madrugada
dia. Decido que não adianta ficar na cama; me levanto, tomando
um banho rápido, e vou para a cozinha preparar um café. Arrumo
uma bandeja com café, leite, torrada e omelete, não esquecendo as
tâmaras porque sei que ela agora criou uma verdadeira adoração
por essa fruta.
Pego a chave extra no meu quarto e abro a porta, seu quarto
está escuro, mas posso ver claramente a teimosa dormindo no chão
frio. Seu corpo está encolhido e o rosto inchado. Sinto a culpa me
acertar em cheio, ela está assim por minha causa. Com cuidado,
coloco a bandeja na cômoda e com delicadeza a pego no colo,
Paloma me abraça automaticamente, ressonando forte. Coloco-a na
cama, seus cabelos se espalham pelo travesseiro. Cubro-a com a
manta e beijo sua testa. Por que nós temos que sofrer assim,
loirinha?
Fecho a porta com cuidado para não acordá-la, e penso que
é melhor ir logo até a cidade resolver as coisas que ela me pediu
ontem.
Dirijo até a cidade, onde primeiro compro a máquina de
lavar mais moderna que encontro, e depois procuro uma loja para
resolver o problema de locomoção de Paloma.
Passo no supermercado e compro algumas coisas que já
estão faltando, em seguida volto para a cabana.
Estaciono o carro e pego as sacolas. Entrando em casa,
encontro Paloma enrolada em uma toalha, com outra no cabelo.
— Bom dia. — Falo ainda envergonhado por ontem.
— Bom dia. — Diz sem me olhar, entrando no quarto.
Decido guardar as coisas e deixar para conversar depois.
Minutos depois, ela aparece vestida e com a bandeja intocada nas
mãos.
— Você não vai comer? — Pergunto preocupado, porque
sei que ultimamente ela anda comendo bem no café.
— Só de olhar para essa bandeja já fico enjoada. O cheiro
forte desse café me dá ânsia. — Fala ficando pálida.
— Você deveria vir comigo ao hospital fazer alguns
exames. Não é a primeira vez que passa mal.
— Eu estou bem, deve ter sido o estresse de ontem.
— Paloma, sobre ontem, nós precisamos conversar.
— Não há o que falar. Você deixou claro o que pensa de
mim, não preciso de explicações agora.
— Me desculpa por ontem, eu passei dos limites. Eu não
posso negar que morri de ciúmes de ver aquele homem tocando em
você. Ver você sorrindo para ele, como não sorria há muito tempo.
Ela solta um suspiro triste e esfrega a testa.
— Estou com dor de cabeça e não quero falar sobre isso. —
Ela parece cansada, pálida demais. Alguma coisa está errada com
seu corpo, talvez esteja doente e não queira me falar.
— Eu trouxe um presente para você, talvez isso te anime.
Eu também já comprei a máquina de lavar, eles vão vir trazer
amanhã.
— Isso é bom. — Fala sem muito ânimo.
— Vem. — Estendo a mão para ela indicando a
porta. Paloma ignora minha mão estendida, caminha até a varanda
e fica procurando o presente.
Corro até o jipe e descarrego a bicicleta que comprei para
ela. Ela é cor de rosa com uma cestinha branca.
— Uma bicicleta? Sério isso, Martim? Eu pedi um carro e
você me trouxe uma bicicleta?
— Ela é bonita, não é? Pedi rosa porque sei que você gosta;
tem cestinha, você pode colocar sua bolsa ou algo que comprar na
feira.
— Você só pode estar louco pensando que vou andar nisso!
— Mas eu achei que você ia gostar. Para que comprar um
carro, Paloma? A vila fica perto daqui, com uma bicicleta você
pode se locomover da mesma forma.
— Eu não vou subir nisso, nem ferrando! Eu vou cair e me
esfolar todinha. Você fez de propósito! Você quer que eu caia
dessa coisa e morra, isso sim.
Fico ofendido com a forma que ela fala.
— Deixa de ser mimada, Paloma, o que você queria, uma
Lamborghini vermelha? — Digo frustrado.
— Eu não quero uma bicicleta. — Fala ela quase chorando
e então eu sinto que ela esconde algo.
— Por que detesta tanto a bicicleta? — Pergunto me
aproximando dela com a bicicleta nas mãos.
— Eu não vou saber usá-la, vou me machucar. Prefiro um
carro, pode ser velho igual o seu, só não me peça para subir nisso.
— Você não vai se machucar. Ninguém esquece como se
anda de bicicleta, logo você pega a prática e vai ser ótimo para
andar na trilha.
— Que merda, Martim!! Eu não sei andar de bicicleta, é
isso que quer ouvir? Eu nunca andei! Não sei como usar! Então,
isso é inútil, melhor devolver e poupar seu dinheiro. Eu mesma vou
comprar um carro para mim.
— Eu não entendo, como é possível que você nunca tenha
andado de bicicleta? — Pergunto confuso.
— Eu... Eu não tive uma infância normal. Com sete anos eu
já não tinha tempo para essas coisas, tinha que me preparar para os
concursos. Se mamãe me pegasse no jardim toda ralada, ela se
decepcionaria comigo. Arturo uma vez prometeu que ia me ensinar
na dele, mas mamãe chegou mais cedo naquele dia e eu levei uma
bronca. Uma miss não podia ter o joelho ralado ou o cabelo todo
bagunçado da corrida. Então, depois que eu e Arturo ficamos de
castigo, nunca mais pedi para o meu irmão me ensinar.
Simplesmente deixei de mão.
— Eu não sabia de nada disso, nunca imaginei que sua
infância fosse assim.
— Tem muitas coisas que você não sabe. E é por isso que é
melhor devolver essa bicicleta ou doar para alguém.
Olho para ela, que parece extremamente triste, pensativa
com as lembranças de infância.
— Se você quiser eu posso te ensinar. — Digo como quem
não quer nada.
— Não sei se é uma boa ideia, você tem que ir ao hospital.
— Posso ir mais tarde. Quero te ensinar.
— Se você insiste... Mas vou logo avisando que é perda de
tempo. Ninguém aprende a andar de bicicleta depois de velho.
— Vem, vamos tentar. Você vai ver como é fácil.
Ela vem meio incerta, eu a ajudo a subir na bicicleta e
explico o que precisa fazer.
Ela tem um ótimo equilíbrio e logo não precisa que eu a
segure.
— Eu vou soltar agora, você só precisa fazer o que estava
fazendo.
— Tudo bem, pode soltar.
Então me afasto, deixando-a andar sozinha. Paloma
consegue e grita empolgada.
— Isso é muito legal! É incrível, eu consegui! — Grita
correndo pela grama.
— Parabéns! Eu disse que conseguia.
— Amor, olha... Olha isso! — Diz ela acelerando animada,
porém sem perceber uma pedra grande bem à frente. Tento
alcançá-la antes que caia, mas é inútil; quando vejo, Paloma caiu de
bunda diretamente em uma poça de lama, sujando o rosto e a
roupa.
Não consigo segurar e começo a gargalhar da sua pose toda
torta, caída na lama.
— Não ri de mim, seu idiota! Isso não é justo. Essa pedra
não era para estar aí. — Resmunga igual uma criança birrenta. Me
aproximo, ajudando-a a se levantar, mas sou pego de surpresa por
uma bola de lama que ela atira em mim.
— Isso é para você aprender a não rir da desgraça dos
outros.
— É guerra que você quer, princesa? Então, é guerra que
você terá.
— Não! Você nem ouse fazer isso! — Diz ela rindo,
tentando se afastar, mas a pego no colo.
— Martim, não! Desculpa, eu não vou mais fazer isso.
Me jogo na poça com ela no colo e Paloma grita com nojo.
Nós dois estávamos todos sujos, mas gargalhando feito
crianças.
— Você destruiu a minha roupa. — Resmunga ela no meu
colo e acerta uma mão cheia de barro no meu cabelo.
— Confesso que eu mereci isso. — Me rendo.
Paloma sorri divertida e eu não resisto. A beijo, pegando-a
de surpresa.
O beijo é delicado, um beijo de saudade, carinho. Ela
segura na minha camisa com força e eu aprofundo o beijo, aos
poucos minha língua vai brincando com a sua e gememos um nos
braços do outro. Parando apenas quando já não tínhamos ar.
— Por que me beijou? — Pergunta ela me olhando
seriamente.
— Eu não sei, só precisava fazer isso. Talvez seja um poder
que você tem sobre mim. Quando vejo já estou te tocando, como
um encanto de uma sereia.
— Eu te amo e quero o seu perdão, Martim! Apenas isso.
— Diz tocando meu rosto.
— Eu pensei em darmos uma trégua, pararmos de brigar
tanto. — Falo me erguendo e a ajudando a levantar da lama. — Eu
não sei o que vai ser quando sairmos daqui, se esse casamento vai
continuar ou não. E também não sei se um dia vou conseguir te
perdoar de verdade, sem guardar nenhuma mágoa, mas não quero
que vivamos em pé de guerra.
— Eu... Não sei se isso é uma boa ideia... — Paloma fica
hesitante.
— Eu sei que você sente algo por mim, Paloma. E posso
ver o quanto tem se esforçado nos últimos meses. Mesmo quando
não quero ver, eu vejo você lutando para conseguir o meu perdão,
eu só não estou pronto ainda para te dar. Nós podemos ao menos
tentar ser amigos, conviver civilizadamente.
— Martim, eu não posso aceitar aquela mulher dando em
cima de você e você se esfregando nela, isso é demais para mim.
— Eu também não posso aceitar outros homens te tocando,
te querendo, isso me deixa louco de ciúmes. E Hellen não significa
nada para mim, eu não quero nada com ela, eu juro.
— Eu não sei se posso aceitar essa trégua, Martim. Eu não
quero você pela metade, quero o homem que amo de volta.
— No momento isso é tudo que posso te oferecer, Paloma.
— Digo sendo franco.
Ela me olha decepcionada, eu sei que não é isso que ela
quer e, sendo sincero, uma parte minha também não. Mas talvez
essa seja a única forma de mantê-la aqui. Não quero que ela se vá,
mas também não consigo confiar que ela não vá me trair, e perdoá-
la.
— Se é assim, tudo bem. Eu aceito a sua trégua. Amigos,
então! — Oferece a mão direita para mim.
— Amigos! — Aperto firme e ela sorri.
— Preciso tomar um banho. — Fala ao ver seu estado.
— Eu também.
— Quer ir primeiro? — Pergunta gentil.
— Podemos ir juntos. — Respondo malicioso. Ela cruza os
braços sobre os seios séria.
— Nada disso, espertinho, “amigos” não tomam banho
juntos. Você fica aí e eu vou primeiro. — Caminha graciosamente
na minha frente, e mesmo toda suja de barro, ela ainda é a mulher
mais linda que já vi na vida.
Duas semanas sem ela. Ainda parece mentira que ela se foi.
Algo dentro de mim não quer acreditar que por minha culpa ela não
está mais aqui. Suas coisas ainda estão no mesmo lugar. A casa
ainda tem o toque dela. E eu passo as noites abraçado à sua
camisola vermelha.
Não consigo suportar a culpa me consumindo, os olhares
acusatórios dos malditos funcionários. Abba e Zaki eu mandei
embora, e não sem antes ameaçá-los. Não aguentava mais ouvir o
choro daquela mulher, e Zaki me olhando como se eu fosse um
mostro. Eu não queria que ela tivesse morrido, eu a queria comigo,
ao meu lado para sempre. Sinto falta do seu sorriso, aquele doce
que sempre via no começo de nosso casamento.
De madrugada, quando a lua está alta no céu, eu juro que
posso ouvir sua voz chamado por mim. Eu juro que posso vê-la em
minha frente. A bebida já não funciona para amenizar a dor que me
consome. Até tentei usar o corpo de Amara para esquecê-la, mas é
impossível. A dor é sufocante e sempre presente.
Seus gritos de socorro estão tão vivos em minha memória.
Não compareço à prefeitura desde sua morte. Isaac, meu
secretário, vem me trazer documentos que precisam ser
despachados, os quais assino em meu próprio quarto. Aqui, posso
sentir seu cheiro.
Mas então começaram as malditas mensagens.
No começo eram apenas avisos. “Eu sei o que você fez.”
— Foi a primeira.
Tentei ligar para o número, mas só dava caixa postal.
A segunda foi uma foto do túmulo de Kadish, com a
legenda “Assassino”.
Desde então, diariamente sou atormentando por mensagem
com fotos dela, e em todas seu rosto está machucado e seu corpo
sem vida. Foram oito dias seguidos de mensagens. Eu já estava à
beira da loucura com as ameaças; cheguei a jogar meu celular na
parede.
E foi quando as cartas começaram a chegar. Cartas
contendo apenas uma frase: “ASSASSINO”. Então cheguei à
conclusão de que estava sendo traído, pelos meus próprios
funcionários. Expulsei todos da minha casa, eu já não poderia
confiar em ninguém, todos queriam tirá-la de mim. Por culpa deles
ela não estava mais comigo.
Bebo mais um gole do uísque direto da garrafa, sentado na
sacada do nosso quarto. Minha cabeça lateja, há dias que não como
nada.
Pego minha arma, com a garrafa na outra mão.
— Não sei por quanto tempo vou conseguir viver sem você,
Flor-de-lis! — Digo olhando para o jardim.
A arma pesa em minha mão, a coloco na boca pronto para
atirar e me livrar de vez de todo esse sofrimento. Uma parte de
mim se acovarda, e eu não atiro. Olho novamente para o jardim e
sinto raiva de mim mesmo por ter feito isso com ela.
— Me perdoa, meu amor, eu não queria te machucar!!
PARAÍSO SE DESFAZENDO
"Uma pessoa muda apenas por duas razões, porque aprendeu
de mais ou porque sofreu o suficiente."
Acordo com uma terrível dor na cabeça, sem saber onde estou.
Aos poucos as coisas vão ganhando foco e logo reconheço que isso
é um quarto de hospital. Um quarto de hospital! Há fios em meu
peito, meu braço, um tubo em minha boca. Tento me mexer, mas
ouço um som de bipe forte. Me sinto fraca.
Não demora muito a porta se abre e vejo entrar uma enfermeira,
seguida por doutor Vicente.
— Senhora Lancaster, que bom que acordou! — Diz ele
sério, me olhando de maneira profissional.
— Onde está Martim? — Tento dizer, mas o tubo em minha
garganta impede.
— Fica calma que eu vou tirar o tubo de respiração de
você.
Tento me acalmar, mas a dor na minha cabeça não deixa.
Minha mente viaja para tudo que aconteceu. Minha filha, ela é tudo
que me preocupa.
Sinto minha garganta arder e o ar encher meus pulmões.
— Minha... Minha f-filha? — Consigo dizer com a voz
fraca.
— Eu sinto muito. — Ele respira fundo e prossegue,
falando tudo que eu não queria ouvir. — Seu bebê não resistiu. A
bala perfurou o útero e atingiu o feto. Realizamos uma cirurgia de
emergência para retirar a criança, entretanto, ela já se encontrava
sem vida. Nós fizemos tudo que podíamos, mas não tivemos nem
chance de salvar sua filha.
Me recuso a acreditar em suas palavras, tudo parece
mentira, irreal, uma brincadeira idiota. Toco minha barriga e de
cara percebo que ela está baixa. A pequena ondulação que era
presente ali já não existe mais.
— Não!!! Não!!! — Grito forte, me sentindo vazia, oca,
sem vida. — Minha filha não!!! — Começo a arrancar os fios do
meu braço desesperada. A dor me sufoca, é como se minha vida
tivesse sido arrancada de mim.
— Não, minha filha não! Não, de novo não! Eu não mereço
isso! — Vicente e a enfermeira tentam me segurar, mas eu resisto,
puxando os fios e gritando por ela. Os dois me seguram forte e me
prendem à cama.
— Minha filha! Minha filha não morreu! Não! Ela não pode
ter morrido! Vocês estão mentindo! Parem com isso!! — Grito,
sentindo lágrimas grossas escorrendo pelo meu rosto.
— Você precisa se acalmar. — Diz o doutor, tentando me
controlar, mas tudo que queria fazer era me debater. Gritar que não,
que isso era mentira. Tudo estava acontecendo de novo. Um filme
bizarro de terror. Eu perdi um filho pela segunda vez. Eu tinha algo
precioso, algo que me traria felicidade e isso foi arrancado de mim.
— O que está acontecendo? O que estão fazendo com
minha mulher?! — Grita Martim assim que abre a porta e me vê
contida pela enfermeira e o médico.
— Ela está fora de controle, está em choque! — Diz
Vicente amarrando minha mão ao lado da cama.
— Eu não sou louca!! — Grito fora de mim. — Minha
filha! Martim, diz que é mentira! — Imploro e vejo ele paralisar.
— Eu disse que não era para contar para ela! Eu disse para
me chamar assim que ela acordasse!!
— Eu não sou louca! — Repito sentindo meu peito arder.
Ele não negou, não disse que era mentira, que ela não está aqui.
— Solte-a! — Exige olhando para a enfermeira, que
segurava uma agulha pronta para administrar algo em meu braço.
Martim vem ao meu lado e desata o nó das ataduras presas
no ferro da cama.
Eu só sabia tremer e chorar com força.
— A paciente está se negando ao tratamento! Ela arrancou
os acessos, se machucou e está fora de controle. — Diz Vicente
olhando para Martim sério.
— Saiam os dois daqui agora! — Ruge olhando para os
dois com ódio.
— Eu quero minha filha! — Choro, sentindo seus braços à
minha volta.
— Eu sei, meu amor, eu sei que está doendo. — Seu
coração bate forte, eu sei que ele sofre, assim como eu.
— Eu não vou aguentar! Não de novo! Não! Eu não quero
viver assim. — Digo entre soluços.
— Olha para mim! Eu estou aqui, nós vamos superar isso.
Nós vamos conseguir! Eu não vou te deixar entrar lá de novo!
Você não vai se entregar, eu estou aqui e você não pode me deixar!
Você é forte, é a garota mais forte que já conheci! — Fala com os
olhos cheios de lágrimas, me abraçando fortemente. — Me perdoe,
meu amor! Me perdoe por não ter lhe protegido! Me perdoe por
não ter salvado ela!
— Davina — Falo me lembrando que já tinha escolhido
esse nome. Martim me olha confuso.
— O nome dela era Davina! Minha pequena menina! Por
quê, Martim? Por que essas coisas têm que acontecer comigo? Será
que eu nunca vou ser feliz? Por que as pessoas que amo são tiradas
da minha vida?
— Não chora, meu amor! Não chora! Eu sinto tanto. Queria
poder tirar essa dor de dentro de você, e passar para mim. Queria
poder dizer que é mentira, que em alguns meses ela estará aqui,
mas eu não posso.
Vê-la assim tão quebrada, é difícil demais. Impossível não
lembrar de como a conheci. Não posso deixar Paloma voltar para o
abismo em que estava, eu não posso perdê-la para sua mente
perturbada. Foi necessário sedá-la para que enfim se acalmasse.
Avisar nossas famílias sobre a tragédia não foi nada fácil.
A perda da nossa filha me feriu profundamente; dói só de
pensar que nunca verei seu rostinho, e o pior é saber que a culpa foi
minha. Eu deveria tê-las protegido, eu deveria ter cuidado melhor
das duas. Me sinto um monstro, um inútil, queria poder tirar toda a
dor que ela sente.
Um dia antes
Assim que ele sai, eu fecho a porta com tudo e sinto meu
mundo inteiro ruir. Uma parte minha diz que devo ir atrás dele,
mas a minha consciência diz que fiz a coisa certa, que não há
futuro em um relacionamento sem confiança. Nem sempre o amor
é o bastante.
— Mamãe, eu fiz um desenho para você. — Diz Sarah
puxando a barra do meu vestido assim que entro.
— Agora não, filha. — Digo chorando, como se o peso do
mundo estivesse em minhas costas.
Meire percebe meu estado.
— Sarah, vá para o quarto brincar com suas bonecas, por
favor.
— Tá bem. — Ela sai ainda meio desconfiada.
— Você está bem, querida? Você está pálida, o que
aconteceu?
— Acabou, Meire. Martim e eu não temos mais conserto.
— Não fique assim, se for para vocês dois ficarem juntos, o
destino há de juntá-los.
— Tá doendo tanto, eu não imaginei que sofreria assim.
Ontem à noite nós ficamos juntos e parecia que nada tinha
acontecido, éramos apenas nós dois.
— Seu coração está quebrado, minha querida, só o amor
pode consertá-lo. — Fala com pesar.
Caminho até meu quarto indo direto para o banho. Tiro
minha roupa e ainda posso sentir seu cheiro grudado ao meu corpo.
Entro no chuveiro e deixo a água escaldante cair pelo meu corpo. E
choro. Choro por tudo que vivemos, choro por tudo que
poderíamos ter vivido, choro por amá-lo e não ver futuro ao seu
lado.