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RESUMO: O artigo analisa, por meio de uma inter- ABSTRACT: The article analyzes, through an inter-
locução do direito com a psicanálise, propostas locution of the law with the psychoanalysis, Pro-
e projetos de lei que buscam alterar a forma de posals and Projects of Law that search to change
o Estado lidar com os portadores de sofrimento the way of the State to deal with the mental
mental que cometem um delito, seja tornando suffering people that commit a wrongdoing. It
ainda mais draconiana a medida de segurança, is to make the security measure even more dra-
possibilitando internações longas e indetermi- conian, allowing long and indeterminate admis-
nadas, seja delegando a competência pelo tra- sions, either by delegating jurisdiction over the
tamento desses sujeitos à esfera cível ou mesmo treatment of these subjects to the civil sphere
apenas à autoridade de saúde. Saberes especia- or even to the health authority alone. Speciali-
lizados sobre os “loucos”, de diversas correntes zed knowledge about the “crazy”, from several
políticas e epistemológicas, tomam a dianteira political and epistemological currents, takes the
da discussão em cada proposta, sem que o sa- lead of the discussion in each proposal, without
ber desses sujeitos seja chamado a compor o the knowledge of these subjects is called to com-
debate. O conceito de periculosidade ainda re- pose the debate. The concept of dangerousness
siste nos textos analisados, sendo que, quando still resists in the texts analyzed, and when it is
ele é supostamente superado, ou seja, suprimido supposedly overcome, that is, suppressed from
do direito penal, não são apresentados critérios criminal law, sufficient judgement are not pre-
suficientes para evitar satisfatoriamente que a sented to avoid satisfactorily that segregation
BRISSET, Fernanda Otoni de Barros; JUNCAL, Regina Geni Amorim. O que diriam os “loucos”?.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 144. ano 26. p. 441-473. São Paulo: Ed. RT, junho 2018.
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segregação e a exceção não ocorram em outros and exception does not occur in other areas. The
âmbitos. A longa e atual internação de jovens na long and current admission of young people in
Unidade Experimental de Saúde, sem que lhes the Experimental Health Unit, without having
tenha sido dada a oportunidade de tratamento been given an outpatient treatment, shows the
ambulatorial, dá mostras dos riscos e dos cuida- risks and the care that must be taken when
dos que se deve ter quando se trata de legislar it comes to legislating on the subject of the
sobre a matéria dos designados “loucos infrato- so-called “crazy offenders”: the logic of dange-
res”: a lógica periculosista tende a permanecer e rous-ness tends to remain and can be reprodu-
pode ser reproduzida massivamente mesmo fora ced massively even outside the penal system.
do sistema penal. Nesse imbróglio de possibilida- In this confusion of possibilities, any proposal
des, qualquer proposta deverá considerar o saber should consider the knowledge of the subject
daquele nomeado como “louco” ou qualquer ou- named as “crazy” or any other classification that
tra classificação que o designe. Sem isso, não há designates them. Without this there is no legiti-
proposta legítima nem debate verdadeiramente mate proposal neither a truly democratic debate.
democrático.
PALAVRAS-CHAVE: Medida de segurança – Inimpu- KEYWORDS: Security measure – Inimputability –
tabilidade – Loucura – Direito Penal – Respon- Madness – Criminal law – Responsibility.
sabilidade.
1. intRodução
A medida de segurança constitui uma espécie de sanção penal portadora
de um impasse quanto à noção de responsabilidade no Direito Penal, pois sua
concepção parte da ideia de uma periculosidade intrínseca atribuída àqueles
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4. “Uma inadequada prática judiciária permite aos peritos concluírem seus laudos afir-
mando ou negando tivesse o sujeito compreendido a criminalidade do ato. Seme-
lhante afirmação usurpa a função judicial, que é a única a que incumbe determiná-lo,
por tratar-se de um grau de exigibilidade e não de uma simples comprovação técni-
co-médica” (PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de
direito penal brasileiro – parte geral. 4. ed. São Paulo: Ed. RT, 2002. p. 630-631).
No mesmo sentido: “Aqueles que prestigiam o conceito de doença mental engessado
na concepção alienista de base biológica esquecem que a doença mental só resulta
em inimputabilidade quando impedir que se possa exigir do sujeito a compreensão
da ilicitude de sua conduta ou a autodeterminação segundo tal compreensão, o que
compreende claríssima valoração jurídica imposta pela lei. Para eles, o fator valorativo,
indispensável para o juízo de culpabilidade, estaria a rigor excluído pela predominân-
cia biológica da doença mental; assim, ante o diagnóstico pericial, tocaria ao juiz ape-
nas referendá-lo (declarando a imputabilidade ou a inimputabilidade). Já disse que
isso seria uma ‘conviva de pedra’ no processo. Ao contrário, a declaração de inimputa-
bilidade demanda claramente a valoração jurídica da doença mental (em sentido amplo)
ou do desenvolvimento mental incompleto ou retardado referida ao conteúdo injusto do
fato concreto. Reside aí um componente jurídico-valorativo através do qual é ava-
liada a aptidão da doença mental (em sentido amplo) ou do desenvolvimento mental
incompleto ou retardado para suprimir a capacidade de compreensão. [...] Por isso
costuma-se frisar que a fórmula legal responde a um critério psíquico-normativo, já
que ela remete às limitações psíquicas do sujeito submetidas no entanto a uma valora-
ção jurídica. [...] Com isto, fica claro que a imputabilidade penal constitui um conceito
jurídico, cuja valoração corresponde unicamente ao juiz, a quem o perito apenas ilustra
com os dados de seu saber” (ALAGIA, Slokar; BATISTA, Nilo; SLOKAR, Alejandro;
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2017. v. 2.
t. 2. p. 257-258. Grifo nosso).
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o que importa sobre sua vida, ainda que seja ao seu modo. O saber psiquiátrico
nesses casos é a única voz a ser levada em conta no processo. O saber do “por-
tador de diploma médico” passa a ser o único saber válido para dizer quem é o
“portador de doença mental” e o que ele pode vir a ser. O que o sujeito fez não
interessa mais, muito menos o que ele diz e o que ele sabe. “O que ele é”, con-
forme o saber do perito, passa a dirigir o processo judicial. O exame de veri-
ficação da cessação da periculosidade se torna um imperativo e o especialista
opera em um registro de garantia diante do real, impossível de saber5.
Trata-se, na verdade, de uma ideologia de controle cuja pretensão é transmi-
tir a funcionalidade da defesa social6, outro conceito cuja materialidade social
se realiza na prática executiva por meio do exercício cotidiano da violação de
direitos. Mas como mensurar a periculosidade de alguém? Seria possível?
Como legitimar em um Estado democrático que um ser falante não tenha
o direito de ser escutado sobre um ato que praticou? Quais são os princí-
pios republicanos que sustentam a instalação da mordaça em sua boca, silen-
ciando sua palavra, sua voz, sua resposta? Como sustentar a validade dos
direitos humanos num Estado Democrático de Direito quando se admite que
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7. LACAN, Jacques. A ciência e a verdade. In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998. p. 873.
8. “Foi para não perdê-lo, esse pulo do sentido, que enunciei agora que é preciso sus-
tentar que o homem tem um corpo, isto é, que fala com seu corpo, ou em outras
palavras, que é um falasser por natureza” (LACAN, Jacques. Joyce, o sintoma. In:
LACAN, Jacques. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2003. p. 562).
9. Disponível em: [http://almanaquepsicanalise.com.br/wp-content/uploads/2015/09/
Nada-mais-humano-que-o-crime.pdf].
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10. FREUD, Sigmund. A pulsão e suas vicissitudes. Edição Bilíngue. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013. p. 13-72.
11. A entrevista com Éric Laurent, “O tratamento da escolha forçada da pulsão”, pode
nos servir de forma esclarecedora aqui. Disponível em: [http://www8.tjmg.jus.br/
presidencia/programanovosrumos/pai_pj/revista/edicao_02_01/01-O%20TRATA-
MENTO%20DAS%20ESCOLHAS%20FORCADAS%20DA%20PULSAO.pdf]. Acesso
em: 15.01.2018.
12. LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985.
13. MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana on-line nova
série, São Paulo, n. 7, ano 3, p. 42, 2012. Disponível em: [http://opcaolacaniana.com.
br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf]. Acesso em: 15.01.2018.
14. “Há um corpo que fala. Há um corpo que goza por diferentes meios. O lugar do
gozo é sempre o mesmo, o corpo. Ele pode gozar masturbando-se ou, simplesmente,
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Por isso se entende que convocar o falasser a falar para alguém, dizer do
gozo que irrompeu na forma de ato, é oferecer-lhe forma de conectar o que
pulsa em seu corpo à forma simbólica, inventando conectores, grampos, para
reenlaçar o que irrompeu fora da lei, fora do laço social, e encontrar nesse
acesso a invenção de uma outra forma de satisfação do gozo, o gozo da fala,
ampliando seu circuito mais além do corpopróprio.
Normas, processos e rituais jurídicos fazem parte do escopo simbólico e
cultural de uma dada sociedade, e, ao ser ofertado a todo cidadão, serve como
um recurso civilizatório, regulador, ao indicar o que é razoável como forma
de satisfação nos modos de convívio e o que do gozo restará sempre sem cabi-
mento no laço social: o fora da lei. No final das contas, o Direito existe porque
há o gozo. É nisso que está a sua essência, diz Lacan, “repartir, distribuir, retri-
buir o que diz respeito ao gozo”15. E viver junto exigirá de cada um essa tarefa
constante de regulação do gozo, desde que seja permitido gozar um bocadi-
nho, que cada um possa, afinal, alçar um pedacinho de satisfação. Existem
tantas formas de satisfação, ou seja, de gozar, quantos forem os falasseres. O
direito de convivência, dada tal pluralidade, participa de uma real democra-
cia. Afinal, “são esses bocadinhos do gozo que conferem seu estilo próprio ao
nosso modo de vida”16. A cada um é consentido gozar, desde que não ultrapasse a
borda do que é considerado razoável em uma dada sociedade. Em nossa socie-
dade, coube ao Direito estabelecer as estacas formais que delimitam essa borda.
Dos diversos modos de satisfação, podemos sublinhar o órgão da linguagem
como um aparelho de gozo, pois boa parte dessa satisfação se localiza e se rea-
liza no ato de falar. Jacques-Alain Miller irá sublinhar em Lacan, no princípio
de seu ensino, que:
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Por que a interlocução com a psicanálise nos interessa nesse debate? Por-
que aos sujeitos ditos “loucos e infratores”, hoje, resta o silêncio. Os peritos
falam em seu lugar. Depois de detectada a sua inimputabilidade, não são ouvi-
dos em audiências, não participam do processo, pois sua fala não é considerada
válida. Considerar esses sujeitos como cidadãos de direitos é conferir a cada
um o direito de participar de cada formalidade instituída enquanto processo
jurídico. Nossa prática junto a esses falasseres nos confirma que a acessibi-
lidade a formas jurídicas, como qualquer cidadão, pode vir a ser uma maneira
de fazer o gozo alçar o campo do discurso e fazer dessa alça um modo de gram-
pear-se ao laço social, conferindo à substância pulsional uma borda, um litoral.
Por essa via do alçamento, em muitos casos verifica-se uma mutação da satis-
fação, do ato à fala, sempre de forma contingente e singular, ao modo do laço
social de cada um, mas, indubitavelmente, uma forma inédita de lidar com o
que do gozo tende a escapar. É o que o PAI-PJ pode testemunhar, em 18 anos
de experiência, por meio de inúmeros casos dos falasseres que acompanha em
sua relação com a justiça.
Não oferecer o acesso a esse recurso civilizatório que participa da ordem
simbólica de nossa época é manter a solução segregativa de ejetar o indivíduo
denominado inimputável para um sistema de exceção da humanidade, objeta-
lizá-lo como um animal para exame, promovendo o apagamento da expressão
de sua fala, pela qual transmite sua singularidade, sua resposta/responsabili-
dade. Ao não se reconhecer sua condição de falasser por natureza, lhe é negado
o direito de demonstrar sua capacidade de conectar o que é disjunto pela pró-
pria natureza.
17. MILLER, Jacques-Alain. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana on-line nova
série, São Paulo, n. 7, ano 3, p. 42, 2012. Disponível em: [http://opcaolacaniana.com.
br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf]. Acesso em: 15.01.2018.
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23. Entrevista inédita de J. Lacan realizada por Emilio Granzotto, concedida à revista ita-
liana Panorama, 1974 (LACAN, Jacques. Un entretien inédit avec Jacques Lacan par
Emilio Granzotto. Magazine Littéraire, n. 428, février 2004).
24. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universi-
tária, 2011. p. 230-231.
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com a sentença baseada em uma inimputabilidade que lhe rendeu seus últimos
anos em internação:
25. ALTHUSSER, L. El porvenir es largo – los hechos. Barcelona: Ediciones Destino, 1992.
p. 25-31.
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O dispositivo conector funciona como uma sutura que vem refazer uma
conexão que estava interrompida. O termo sutura é usado em Medicina,
exatamente com o sentido que acaba de ser lembrado. Ele não assume cará-
ter defeituoso, ou de precariedade, como seria o caso se o aproximássemos
de remendo, ou substituto de uma solução mais elaborada.
A conexão se passa entre duas instâncias do serviço público brasileiro, a
saber, o serviço de Saúde Mental e o Judiciário. Entre as instâncias dos dois
serviços, havia um tensionamento originado pelo acúmulo de usuários que
chegavam às portas do hospital psiquiátrico, oriundos do Judiciário, quando
esses usuários haviam recebido uma medida de segurança, após terem sido
considerados inimputáveis diante do juiz. [...] O paralelo com o dispositivo
conector sugere que estamos diante de fenômenos aproximados do ponto de
vista da invenção, criação social. [...] O dispositivo conector viu seu alcance
reconhecido por sua vez, ao revelar toda sua capacidade quando permitiu
tirar uma outra conclusão, a saber, era possível atender o louco infrator
longe do regime de internação permanente, das instituições manicomiais,
marcadamente fonte e origem de sociabilidade destroçada, e demais traços
de uma prática segregativa26.
O êxito do PAI-PJ se mostra não apenas por articular a rede de saúde mental
com o Poder Judiciário sem se pautar na periculosidade para o direcionamento
do tratamento, mas também por demonstrar que, ao ampliar os recursos dis-
cursivos e materiais que favorecem o laço social, a redução da passagem ao ato
é uma resposta, como demonstra a redução a quase zero da reincidência por
crimes hediondos. A importância desse necessário dispositivo conector, que se
instala entre os equipamentos de tratamento em saúde mental e o sistema judi-
ciário, possibilita-nos analisar algumas importantes e atuais propostas de alte-
ração de leis penais que dizem respeito ao louco infrator e, portanto, à medida
de segurança.
26. GARCIA, Célio. Prefácio. In: BARROS-BRISSET, Fernanda Otoni. Por uma política de
atenção integral ao louco infrator. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça do Estado de
Minas Gerais, 2010. p. 8-9.
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A lei é a borda, resposta simbólica e social que indica o limite para nossos
atos em uma comunidade, numa determinada época. A lei é uma referência,
inclusive para situações em que o sofrimento intenso embaraça a fronteira
que demarca as condições de sociabilidade, dos acordos de convivência re-
guladores da sua humanidade. Apresentar-se como responsável é reconhecer
a lei e consentir com as consequências estabelecidas pela sociedade quando
seu ato for fora da lei. [...] Porém, no final das contas, é o tal dito “louco”
julgado incapaz de responder pelas consequências de seus atos, quem res-
ponderá. Serão o seu corpo, sua subjetividade e sua sociabilidade que sofre-
rão as consequências da sua suposta incapacidade e periculosidade. [...] O
delírio de controle do risco, presumível no corpo marcado pelo diagnóstico,
tornou o próprio sistema de justiça enlouquecido. As sentenças criminais,
por via de regra, ao conter os corpos a serem controlados, geram danos
cada vez maiores na vida dessas pessoas. A subjetividade e a singularidade
desses sujeitos que passaram ao ato com seus crimes foram trituradas pelo
trator nosológico, deixando essas pessoas quase sempre incapazes de se pro-
tegerem e se defenderem em face dos julgamentos que silenciam a sua voz,
promovendo o apagamento do sujeito e de suas respostas de sociabilidade27.
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5.2. Reforma da Parte Geral do Código Penal: uma proposta alternativa para
debate32
A mais recente das propostas analisadas ainda mantém o referencial da peri-
culosidade e dos fins curativos, e acrescenta três pontos: 1) tendo como refe-
rência o Código Penal Espanhol, de acordo com o seu artigo 97, § 5º, propõe a
dosimetria da medida de segurança, de tal forma que o juiz ou Tribunal deverá
fixar o tempo de duração da medida; 2) o § 1º do mesmo artigo faz referên-
cia expressa a que “a internação será aplicada se for necessária, e desde que a
lei comine pena privativa de liberdade para o fato previsto como crime”; 3) a
perícia pode ser realizada a qualquer tempo, ainda nos termos do § 2º daquele
artigo.
O primeiro ponto vem de uma reivindicação antiga de importantes juris-
tas e pesquisadores brasileiros. No entanto, ao tentar dar esse passo em dire-
ção à dosimetria da medida, ainda se manteve a permanência de um referencial
retrógrado, pois, de acordo com o § 1º-A do seu artigo 97: “o agente será
desinternado ou liberado do tratamento ambulatorial quando for averiguada,
mediante perícia médica, a cessação da sua periculosidade”. Dessa forma, a
proposta retrocede mesmo quando propõe avançar. No final das contas, de
acordo com a proposta, o agente só será liberado da medida quando houver a
cessação da periculosidade. Esse parágrafo, ao fim e ao cabo, autoriza que, caso
a “periculosidade” não cesse (a precisão e a idoneidade em se aferir isso é polê-
mica – para não dizer inexistente, como já vimos), o sujeito pode permanecer
sob tutela penal, apesar do cumprimento da medida de segurança em sua inte-
gralidade, determinado pela dosimetria. A tônica continua a ser a periculosi-
dade e o direito penal de autor.
O segundo, por sua vez, traz às claras o paradigma da reforma psiquiátrica;
porém, da forma como está escrito, essa “necessidade” dá azo a grande discri-
cionariedade do magistrado. A assimilação dos preceitos da reforma psiquiá-
trica e da luta antimanicomial não passará de retórica politicamente correta
caso ainda se mantenha o princípio segregativo que embasa o direito penal de
autor lastreado pelo domínio do saber médico sobre a loucura.
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Ainda que tal proposta aponte um esperado novo horizonte com a aboli-
ção do sistema penal, o que é desejável e urgente, infelizmente, ainda não deu
conta de avançar considerando o sujeito responsável e capaz de responder pelo
que faz. Ao tomá-lo como uma exceção à regra por ser quem ele é, a medida
afirmativa de deslocar o processo para o âmbito cível pode provocar o mesmo
estado de violação de direitos antes praticado no âmbito penal. Isso porque só
podemos considerar uma proposta válida, no sentido de legitimar e sustentar
os direitos humanos, se o homem ao qual ela se refere for tratado como um
ser humano sujeito de direitos, com capacidade e responsabilidade para res-
ponder pelo que faz, sustentar a autoria e as consequências de seus atos, de
forma razoável, como qualquer cidadão, apesar das diferenças incomensurá-
veis e insondáveis que marcam o ser de cada um.
34. LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Trad. Sebastião José Roque. São Paulo:
Ícone, 2007. p. 12.
35. LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Trad. Sebastião José Roque. São Paulo:
Ícone, 2007. p. 8.
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crime e loucura. Pode-se imaginar que tipo de estruturas serão criadas para
alojar os corpos dos seres, cujos atos são silenciados, sem mais nada a dizer.
Se “nada é mais humano que o crime”, ao apagar o crime, apaga-se o homem.
O que resta? O inumano e sua vida nua, cujo destino a história do holocausto
brasileiro e de tantos outros não permite esquecer. De quem será a responsa-
bilidade?
A aposta na presunção de sociabilidade, da capacidade e da responsabi-
lidade do sujeito em inventar saídas de laço social, seja ele quem for, é uma
aposta na humanidade. Sem essa aposta, ampliar-se-ão os investimentos na ges-
tão biopolítica das populações, na tecnologia de controle e vigilância máxima,
nas câmeras panópticas para concentração dos demasiados perigosos, hereges
incorrigíveis, desviantes da concepção do homem médio, ou seja, para promo-
ver o extermínio deles.
Conceber uma sociedade em que não haja uma hierarquia entre os seres
falantes exige o investimento na ampliação de recursos materiais e simbólicos,
de dispositivos conectores ao alcance do falasser. O esforço de grampear o real
do corpo pulsional aos recursos materiais e simbólicos que a sociedade dispõe,
em cada época, é tarefa custosa para todos. Mais ainda para os que se encon-
tram numa realidade de precariedade social, situação na qual se apresenta a
maioria da população penal brasileira. Portanto, ofertar àquele que comete um
ato tipificado como crime um lugar de conexão ao mundo da vida requer con-
siderá-lo capaz e responsável de demonstrar respostas de laço social ao acessar
os recursos da justiça, os recursos disponíveis para tratamento em saúde men-
tal, os recursos sociais e da cultura para, ao seu modo, deles se servir conforme
os recursos sintomáticos que advêm de sua lógica subjetiva sem par.
Nossa experiência testemunha que esse é um mundo possível, desde que o
Estado cumpra a sua parte, conforme está disposto no texto constitucional, e
faça valer sua responsabilidade na partilha das responsabilidades aqui em jogo.
Caso contrário, reviveremos uma atualização do pleito de triste memória do
século XIX.
BRISSET, Fernanda Otoni de Barros; JUNCAL, Regina Geni Amorim. O que diriam os “loucos”?.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 144. ano 26. p. 441-473. São Paulo: Ed. RT, junho 2018.
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Dessa feita, podemos dizer que responder pelo ato, em situações tipificadas
em nossa cultura e em tantas outras como um ato fora da lei, um ato social-
mente relevante, não é só um dever, mas também um direito de qualquer cida-
dão, como o filósofo Althusser sublinha em sua obra ou mesmo o psicanalista
Jacques Lacan36, ao insistir que da nossa posição de sujeito somos sempre res-
ponsáveis. Abolir a responsabilidade de um cidadão é apagar a sua condição
de falasser, sujeito de seus atos, transformando-o, como a história da medida de
segurança confirma, em um objeto de exame e controle, a ser classificado pela
ciência positiva como doente, perigoso, incapaz, louco, portanto, inimputável –
uma exceção humana. Durante o percurso deste artigo, grafamos em itálico a
diversidade de expressões que servem para designar tal exceção.
Em nossa cultura, a regra é que quando um cidadão comete um ato fora da
lei, seja ele quem for, é chamado a responder por isso no sistema de justiça.
Desde o século XIX, a engrenagem acionada quando um ato/crime acontece
segue a lógica do sistema que responde pelo nome de Direito Penal.
Porém, o problema, ainda não superado, é que o sistema penal é um fra-
casso execrável, uma máquina de violação de direitos, uma máquina de tortura.
No lugar de abolir a responsabilidade de um sujeito, seja ele quem for – pois
não estamos entre os que se servem do direito penal de autor para punir nem
para absolver –, devemos trabalhar e reunir nossos esforços para construir uma
forma de abolir o direito penal como sistema de punição para todo e qualquer
cidadão.
Nenhum sistema funcionará no sentido de promoção do laço social, do res-
peito ao sofrimento e à dignidade humana, se, na concepção de seus funda-
mentos, a ideia de homem e de sociedade que orientar a lógica da sua ação for
violadora de direitos. A questão a que devemos tratar de responder refere-se ao
que virá com a abolição do direito penal. Qual proposta desejamos construir
em resposta ao fato incorrigível de que os homens continuarão cometendo cri-
mes? Nada é mais humano! Ao derrubar os muros das prisões, que soluções
podemos inventar para impedir que novas muralhas se ergam em seu lugar?
Nos casos em que o ato/crime se manifestar de uma forma louca, seria dese-
jável uma legislação específica? A abolição do direito penal se resolverá na
absorção de sua matéria pelo campo cível? Para os normais, o direito penal;
para os anormais, o direito civil? É notável que, nesse tipo de solução, o con-
ceito da inimputabilidade continua inabalável, ainda que a validade da noção da
periculosidade seja, desejavelmente, questionada. Na prática, como se espera
36. LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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ter demonstrado, o caso Champinha aponta como, ainda assim, tal noção con-
tinua válida e serve de substrato, mesmo em ações cíveis.
Com efeito, a Constituição da República menciona apenas uma vez a pala-
vra inimputável, e o faz em seu artigo 228, referindo-se única e tão somente
aos menores de 18 anos, que devem responder perante legislação específica.
Nada fala, portanto, de uma exceção ou de uma legislação criminal especí-
fica para aqueles chamados também pelo Código Penal e Processual Penal
de inimputáveis por “doença mental”. O argumento que os retiraria do Código
Penal e Processual Penal, conduzindo-os ao Campo Cível, malogradamente,
encontra suas raízes no próprio direito de autor: eles não serão condenados
pelo que são, mas absolvidos pelo que são, a saber, inimputáveis/doentes men-
tais. E a sua condição diagnóstica de doença/transtorno/portador de sofrimento
mental continua sendo a alavanca que retira seus corpos da moenda do direito
penal e os entrega ao campo cível, em que a moenda pode não ser menos tru-
culenta, como o caso Champinha pode mostrar.
Importante ressaltar, uma vez mais – nunca será demais –, que tal exce-
ção não se orienta pelo dizer e saber desses sujeitos, os que são alvo dessa
discussão. A sustentabilidade desse estado de exceção está baseada no saber
dos especialistas. Interessa-nos, sobremaneira, perguntar: o que dizem os lou-
cos de todo gênero sobre isso? O saber desses sujeitos está sendo considerado
nessas propostas?
Pontua-se, ainda, que se está em tempo de abrir essa delicada discussão
junto àqueles cujos corpos sensíveis serão objeto de tal decisão, para não terem
mais uma vez o destino da impronúncia, esmagados pela pedra sepulcral do
silêncio, já vivido e registrado por Althusser e tantos outros anônimos confi-
nados nos porões da loucura e campos de concentração.
7. ConsideRações Finais
Como exposto, não se pode construir uma proposta sobre o dito “porta-
dor de sofrimento mental” sem considerar o saber do sujeito, sua palavra e
seu dizer. Os loucos falam e têm o que dizer; é fundamental integrá-los a esse
debate. É ainda importante destacar que uma pessoa, por sua condição de
sujeito (loucos de todo gênero), não deve deixar de ter, no mínimo, os mesmos
direitos e garantias de qualquer cidadão, sob o risco de ser desconsiderado em
sua condição humana.
Não obstante, parece oportuno destacar que tais propostas não apreciaram
as possibilidades de dosimetria (sem a referência da periculosidade), precio-
samente defendida pelo pleito de autores como Amilton Bueno de Carvalho e
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Muitos são os esforços para tentar uma superação do cenário obsceno atual.
Contudo, ainda na tentativa de propor formas de mitigar os efeitos do direito
penal sobre os corpos desses cidadãos, algumas propostas podem gerar novas
formas de segregação e controle, fora do sistema penal, mas em outros sistemas
para os quais migrou a competência, pois o que não muda em nenhuma das
propostas é o fundamento de que a esses indivíduos, hoje algemados à medida
de segurança, deve-se oferecer um sistema “especial” de tratamento, exceção,
por serem o que são: uma exceção à regra. Sem que seja ultrapassado o arcaico
fundamento dos princípios do direito penal de autor, condenar, absolver ou
sentenciar terá como efeito a proliferação do germe da segregação. Não é difí-
cil antever a construção de sistemas de isolamento e segregação seja no âmbito
do sistema executivo de saúde ou vinculados à justiça civil como competência,
locais que servirão aos mesmos propósitos: separar os insanos dos normais em
nome da defesa social, pois se parte da presunção de que eles não sabem o que
fazem, são incapazes de responder, deficitários quanto ao que rege a condição
humana, portanto, coitados, doentes, imprevisíveis, indissociavelmente temerá-
rios, incorrigíveis e demasiadamente perigosos.
O portador de sofrimento mental deveria ter a sua sentença fixada e possuir
todos os direitos e garantias jurídicas e processuais assim como qualquer outro
cidadão maior de 18 anos. Desejaríamos que estivesse banida do campo do
direito, seja ele qual for, a sentença de privação de liberdade como resposta do
Estado a um ato fora da lei. Como? O debate entre nós deve seguir sem recuo,
enquanto aguardamos o surgimento de respostas que favoreçam a aposta na
humanidade e seus laços. Afinal, o mal é um real ineliminável cujo germe vive
instalado em cada um de nós, sem exceção. Alojar em estufas vigiadas seres
humanos não eliminará o germe de ervas daninhas, mais o fará proliferar.
Pontua-se, ainda, que, desde já, antes e depois de qualquer sentença em res-
posta a um crime cometido, o acesso ao tratamento seja uma garantia a qual-
quer cidadão; que a resposta do Estado reflita sobre a sua responsabilidade
e amplie os recursos para que cada cidadão se engendre ao laço social, a sua
maneira; que a eles seja ofertado o acesso a um dispositivo institucional, uma
secretaria feita por muitos profissionais, capaz de acompanhar a conexão pos-
sível da responsabilidade do sujeito quanto ao seu gozo em face do ato e das
soluções de sociabilidade que possa inventar, forma singular de amarração a
um projeto razoável de laço e convívio social.
Contudo, são muitas as questões ainda sem respostas. Como construir
novos ritos processuais e antecipar suas consequências jurídicas, sociais, mate-
riais e mesmo psíquicas?
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O que se deixa como proposta, a única que este trabalho sustenta e almeja
registrar, é que antes de qualquer decisão sobre qualquer proposta de reforma
em discussão, o Estado brasileiro possa colocar a mão no freio e jamais seguir
adiante sem a participação efetiva dos usuários e trabalhadores dos serviços de
saúde mental nessa discussão. Qualquer proposta deverá contar com o saber
que advém desses corpos falantes, da sua experiência com o mal, com o desejo
e o gozo, com sua leitura sobre o ato, as consequências da ruptura e sua potên-
cia de laço social. Sem a presença desses corpos falantes e a assinatura desses
seres humanos, nenhuma proposta nos parecerá legítima. Será, apenas e his-
toricamente, mais uma proposta, a expressão do saber de uns sobre os outros,
cujo destino será a inconteste segregação.
Nossa aposta, orientada quanto ao real da experiência desses falasseres, é
que, ao dar-nos a oportunidade de escutá-los, ao dar-lhes voz, a força da enun-
ciação de suas experiências poderá nos conduzir à construção de uma saída
responsável, orientada quanto ao real do gozo37, e que favoreça o laço social,
fim último do sistema de justiça. Desmontar juridicamente o silêncio sepul-
cral que submete o louco infrator aos porões da loucura é abrir caminho para a
responsabilidade e para que seja possível advir, daí, um sujeito de direitos, ou
seja, um ser que fala e tem o que nos dizer.
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