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Juan Pablo Mollo

Psicanálise e
Criminologia:
Estudos Sobre a Delinquência

Tradutora
Yellbin Morote García

2ª edição

2019
Capítulo I
A distinção de Freud

INTRODUÇÃO

I
A Psicanálise aplicada à clínica com delinquentes começou a se
desenvolver paulatinamente junto ao próprio movimento analítico, e
mais especificamente após as guerras mundiais. É certo que a ques-
tão do crime está presente nos textos de Freud, todavia, este não se
ocupou diretamente da delinquência (exceto num breve artigo), sen-
do suas anotações sobre o tema, escassas e secundárias. Entretanto,
é possível encontrar em sua obra algumas conceituações e – quiçá
– precárias referências não divergentes.
No prólogo à obra de Aichhorn Verwahrloste junged de 1925,
Freud faz uma clara distinção entre a Psicanálise do neurótico e a
reeducação do jovem desamparado de um lado, e o delinquente im-
pulsivo, do outro (Freud, [1925] 1999: 298). Esta justa apreciação
manifesta cuidadosamente a profunda experiência de Aichhorn com
delinquentes juvenis. De fato, como se verá na segunda parte deste li-
vro, a partir de sua prática inaugural com jovens delinquentes, a figu-
ra de Aichhorn será decisiva na história da Psicanálise em relação à
terapêutica do adolescente. Por outro lado, no breve prólogo de livro
sobre o árduo labor terapêutico, educativo e político de Aichhorn,
Freud não deixa de fazer menção à piada sobre os três ofícios impos-
síveis: educar, curar e governar (Freud, [1925] 1979: 296).
Desde outra perspectiva, mais amparada, problemática e es-
trutural na Moral sexual cultural e o nervosismo moderno de 1908,
Freud faz uma nota à margem da temática central: “Quem, em conse-
quência de sua constituição insubmissa, não possa acompanhar esse
sufoco do pulsional enfrentará a sociedade como ‘criminoso’, como
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‘outlaw’ [‘fora da lei’], toda vez que sua posição social e suas real-
çadas aptidões não lhe permitam impor-se na condição de grande
homem, de ‘herói’” (Freud, [1908] 1979a). Esta concepção paradoxal
de herói criminoso supõe uma ideia não patológica do delinquente
que encontra uma correlação em duas teorias sociológicas:
1. A hipótese do delinquente com destacadas aptidões que lhe
permitem se transformar em herói resulta análoga ao “re-
belde funcional” de Émile Durkheim, e ao que Robert Merton
situa como modo de adaptação ao sistema de “tipo inova-
ção”. O rebelde funcional não é um delinquente absoluto, é
qualificado como tal pelas instituições porque questiona a
divisão imposta do trabalho e as desigualdades sociais que
a acompanham. Assim também, a rebelião que instiga é fun-
cional porque ilustra a falta de correspondência entre as ca-
pacidades individuais e a assunção de papéis sociais. O pro-
tótipo do criminoso herói que abre o caminho das mudanças
é Sócrates: um homem que sustenta ideias ilegítimas que
Durkheim denomina de “consciência coletiva”. Conforme o
direito ateniense, Sócrates era um delinquente e sua conde-
nação foi justa; no entanto, para Durkheim é um herói que
antecipa uma moral e uma fé novas (a liberdade de pensa-
mento) que se faziam necessárias na Atenas daquela época
(Durkheim, 2003: 99). Em Teoria e estruturas sociais, Merton
apresenta o inovador como uma forma de adaptação antis-
social a uma estrutura cultural como a norte-americana, na
que se promovem imperativamente objetivos exitistas e de
trunfo (o sonho americano) mas que distribui os meios de
realização de forma desigual (Merton, 1964: 150-158).
Por outro lado, segundo Foucault, o criminoso herói apa-
rece após o ano de 1840 no contexto burguês ou peque-
no burguês junto à constituição de uma estética que faz de
Lacenaire o protótipo deste novo criminoso. O criminoso
herói não é nem popular e nem aristocrático (é sim um ini-
migo das classes pobres). Os pais de Lacenaire fracassaram
nos negócios, mas ele foi bem educado de acordo com os
valores da burguesia: foi ao colégio, sabia falar, ler e escre-
ver, era lúcido e inteligente e por isso possuía os recursos
Psicanálise e criminologia: estudos sobre a delinquência 25

clusão, a Psicanálise permite uma releitura do contrato social e do


pensamento político moderno.

1. AQUELES QUE DELINQUEM


POR SENTIMENTO DE CULPA

1.1. O sentimento inconsciente de culpa


Segundo indica Freud em Totem e tabu, o crime dá origem à
subjetividade e à estrutura social, assim como, os dois tabus funda-
mentais do totemismo coincidem com os dois desejos reprimidos do
complexo de Édipo (Freud, [1913-1914] 1980: 145). Precisamente, a
união originária entre os dois mitos freudianos outorga um primeiro
registro sobre o sentimento de culpa: trata-se de uma tensão entre o
desejo e a proibição, isto é, entre os desejos infantis e a instância pa-
rental agente da repressão. Desta forma, o sentimento inconsciente
de culpa se localiza no campo das realidades psíquicas, não fáticas
(Freud, 1989: 160).
De igual modo, desde a primeira metapsicologia justifica-se esta
localização do sentimento de culpa como inconsciente. Com efeito,
em seu texto O inconsciente, Freud propõe a distinção entre afeto e
representação inconsciente; esta última, continua existindo no inte-
rior do sistema inconsciente como formação real, enquanto que o
afeto inconsciente fica no seu âmago, não sendo-lhe permitido de-
senvolver-se (Freud, [1915] 1979b: 337). Nesse mesmo ano, no texto
A repressão, elabora o fator quantitativo da pulsão com três desti-
nos possíveis: a pulsão é sufocada por completo, transforma-se em
angústia, ou sai à luz como um “afeto colorido qualitativamente de
algum modo” (Freud, [1915] 1979a: 148).
Em síntese, na primeira tópica, a culpa como afeto inconsciente
é um destino do fator quantitativo da moção pulsional, consequên-
cia da repreensão por algo que não se fez e que causa um mal-estar
polimorfo.
Com relação à segunda tópica, em Bate-se numa criança, a pri-
meira fase da fantasia de surra nas meninas, “o pai bate no menino”,
segundo Freud significa “ser amado pelo pai”; mesmo que ao não
existir ainda separação na mescla de pulsões, a esta etapa não se
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super eu por trás das boas razões da civilização e o contrato social. É


a face da lei que impõe suas exigências bem além da capacidade de
obedecê-las.

1.3. Nietzsche e Dostoievski


Os conceitos de culpa e má consciência serão dados por Nietzs-
che no segundo tratado da Genealogia da moral, partindo do saber fi-
lológico de culpa cujo significado é “ter dívidas”. A culpa produz uma
relação contratual com um credor, quer dizer, sobre o terreno das
obrigações e direitos surgem os conceitos morais. Desde esta pers-
pectiva, o delinquente é um devedor que atenta contra o seu credor:
a comunidade social, a qual se vinga por ressentimento e o castiga
segundo os códigos penais (Nietzsche, 1996). A crítica de Nietzsche
fundamenta-se em desarticular o pagamento (castigo social) da dí-
vida (consciência de culpa) e a sanção social do ato do delinquente.
Sem embargo, não se trata de uma avaliação forense ou de uma aná-
lise para um progresso social, implica um combate contra a própria
cultura e suas subestruturas, colocadas sobre o sentimento de culpa
em nome de uma cultura dos afetos (Klossowski, 1995: 25).
Com efeito, Nietzsche mantém presente a antiguidade grega, na
qual os homens valiam-se dos seus deuses para manter afastada de
si mesmos a “má consciência” e a culpa, pois os próprios deuses eram
os que colocavam-se como causa do mal e assim justificavam o ho-
mem que atuava incorretamente. No cristianismo, Deus é o credor e
o homem o culpado, mas, além disso, a dívida é impossível de pagar e
nenhum castigo é suficiente para pagá-la, portanto, a culpa é inextin-
guível (Nietzsche, 1996: parte II, ns. 19, 20 e 21). Segundo Nietzsche,
a má consciência é a planta mais sinistra e interessante de toda a
vegetação terrestre, embora “não tenha crescido neste solo”; quer
dizer, a moral mesma é contrária à natureza, hostil à vida, e um aten-
tado contra a liberdade do homem (Nietzsche, 1996: parte II, n. 14).
Em sua teoria, a origem da culpa não é “a voz de Deus no ho-
mem” nem o imperativo categórico kantiano, senão o regresso con-
tra si da hostilidade e da crueldade dirigida aos outros: “todos os
instintos que não se lançam para fora voltam ao interior” (Nietzs-
che, 1996: parte II, n. 16). Ademais, existe uma conexão psicológica
entre consciência de culpa e crueldade que se pode captar em cada
Capítulo II
Psicopatias, carateropatias e perversões

INTRODUÇÃO
Realizar um estudo sobre a delinquência torna necessária uma
breve indagação sobre as ambíguas categorizações que dão o títu-
lo ao presente capítulo. Pode-se adiantar desde já, que a escolha de
formar um ensamble entre psicopatias, carateropatias e perversões,
obedece estritamente à necessidade de diferenciá-las das delinquên-
cias que compõem o fundamento deste livro.
A breve exposição sobre psicopatia não pressupõe nenhuma
pesquisa que possa aportar algo novo à tradição e evolução psiquiá-
tricas que têm desembocado basicamente no transtorno antissocial
da personalidade. Inversamente, a noção de carateropatia possui
uma conotação de origem freudiana, e como sua etimologia indica
relaciona-se com os traços de caráter. Por último, realizar um recor-
rido pela perversão e as perversidades mereceria um volume à parte
começando pelos gregos, passando por toda a filosofia e a psiquiatria
até chegar à psicologia e à psicanálise.
Por outro lado, a básica reconstrução conceitual das categorias
psiquiátricas sobre a psicopatia, de modo algum implica numa dialé-
tica linear na qual os termos chegam a sobrepor-se ou substituir-se
trás uma categoria do tipo ideal. Contrariamente à Sociedade Suíça
de Psiquiatria de sua época, Schneider entende que o termo “psico-
pata” – e outros conceitos clínicos amplamente utilizados – encon-
tra-se em retrocesso e decadência quanto a sua denominação, po-
rém, não quanto a sua efetiva existência (Schneider, 1962: 77).
Por último, este capítulo pode ser lido a partir de uma perspec-
tiva diacrônica tomando como eixo o tratamento teórico e clínico de
um mesmo problema “delituoso”. Em sendo assim, a série “psicopa-
tias, carateropatias e perversões” teria mais valor como história de
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heterotopias no sentido foucaultiano, como uma inquietante e desor-


denada série heteróclita – sem um lugar comum – que impede no-
mear e manter juntas as palavras e as coisas (Foucault, 1997).

1. PSICOPATIAS

1.1. As classificações da psiquiatria clássica


As primeiras alusões às desordens psicopáticas ou à psicopatia
como entidade clínica predomina fortemente nos diagnósticos du-
rante o século XIX. Mas a doença já pode ser constatada academica-
mente em Traité médico-philosophique sur l´alienation mentale ou a
manie, de Philippe Pinel, desde sua primeira edição em 1801. Trata-
-se de obra clássica que centra sua análise na mania como modelo tí-
pico e frequente (como alude o título do livro, “mania” é sinônimo de
alienação mental) e apresenta uma descrição da “psicopatia” como
“mania sem delírio” ou “mania pensante”, na qual as funções do en-
tendimento permanecem intactas, não subsistindo nada mais do que
a alteração da afetividade e a excitação a miúdo furiosa (Bercherie,
1986: 18). Posteriormente, em Des maladies mentales – outra obra
clássica –, Esquirol critica e modifica as concepções nosográficas de
Pinel – mesmo sendo no plano doutrinário um discípulo ortodoxo
que situou as causas físicas e morais na loucura – classificando as
doenças mentais em quatro grandes grupos. Um deles, o das mo-
nomanias subdivide-se por sua vez, em monomanias intelectuais
(correspondem à distimia), afetivas (correspondem à paranoia) e
instintivas (que compreendem as alterações especiais das funções
psíquicas centrífugas) no qual se agrupam as futuras perversões e
psicopatias. Por sua vez, as monomanias instintivas subdividem-se
em cinco variantes: erotomania, sem delírio ou pensante (mono-
manie raisonnante), dipsomania: incendiária e homicida (Esquirol,
1838). Segundo Foucault, a psiquiatria do crime começa com uma
patologia do monstruoso e responde com a invenção de uma iden-
tidade fictícia entre crime e loucura – que é precisamente a que pa-
decia Raskolnikov –, é a monomania homicida. Uma categoria que se
manifesta unicamente através do crime, e é diagnosticável somente
pelo especialista que deverá determinar os seus sinais premonitó-
rios (Foucault, 1996).
Capítulo I
Psicanálise e delinquência

INTRODUÇÃO
Em conferência proferida em 1906 no seminário de A. Löffler
(professor de jurisprudência da Universidade de Viena), Freud dis-
tingue “responsabilidade subjetiva” de “responsabilidade jurídica”,
ao advertir aos juristas presentes sobre o falso testemunho vinculado
ao sentimento de culpa. Assinala também, que o método psicanalíti-
co não pode ser validado como elemento probatório numa sentença,
nem pode servir de ferramenta jurídica, e tampouco o inconsciente
pode revelar uma verdade certa para o direito (Freud, [1906] 1979).
Por outro lado, também em 1906 – ano significativo para a psicanáli-
se –, Freud discorre sobre os trabalhos de Jung e Bleuler (em Zurich)
e os de Wertheimer e Klein (na Alemanha) sobre as provas da asso-
ciação, com o objeto de estabelecer legalmente a verdadeira nature-
za dos fatos requeridos pela lei (Zilboorg, 1956). O cineasta Ettore
Scola mostra a tese de Freud sobre o falso testemunho em seu filme
traduzido ao espanhol como Crónica de un jóven pobre, onde um dos
personagens pensa a execução de um assassinato que não chega a
cometer, não obstante, acaba sofrendo uma condenação porque teve
a intenção e o desejo de matar.

Em 1931, em breve informe sobre o caso Halsmann, Freud ad-


verte sobre a extralimitação no emprego das noções psicanalíticas
do complexo de Édipo e repressão no ditame pericial (Freud, 1989).
Entre outros analistas, Franz Alexander sustentava que a prática ju-
dicial, com frequência, não lograva distinguir entre os verdadeiros
criminosos e os que não o eram, sendo tarefa da psicanálise o esta-
belecimento de uma distinção inequívoca (Alexander, 1930: 294),
por saber que a lei baseada na concepção da justiça “que julga a
todos os homens iguais” difere amplamente da ciência psicológica
Capítulo II
As ações delitivas

INTRODUÇÃO
O conceito de acting out em Freud, e para o conjunto de autores
pós-freudianos, tem resultado ser o mais discutido e ambíguo, mas
ao mesmo tempo tem sido reconhecido como uma peça fundamental
da psicanálise.
Uma prova da imprecisão do acting out encontra-se na dúvida
acerca da origem do termo na obra de Freud, posto alguns autores
considerarem que aparece em Psicopatologia da vida quotidiana de
1901, embora a maioria aluda o termo à obra Fragmento de análise
de um caso de histeria de 1905.
De fato, no primeiro texto, o capítulo IX é intitulado “Atos sin-
tomáticos e casuais”, os quais posteriormente seriam chamados de
acting out (Freud, [1901] 1990). Não obstante, trata-se de ações
casuais que possuem um propósito inconsciente, consideradas por
Freud como ações sintomáticas em geral, e que não podem identi-
ficar-se como acting out. A referência que mais sobressai do termo
acting out, é o termo alemão agieren que se encontra no epílogo do
“caso Dora”: “De tal modo, atuou [agieren] um fragmento essencial
de suas recordações e fantasias, ao invés de reproduzi-lo na cura”
(Freud, [1901-1905] 1978: 104). A respeito, faz-se conveniente des-
tacar que o verbo usado em Psicopatologia da vida quotidiana, não é
o clássico agieren do “caso Dora”, mas a palavra handeln que também
significa atuar. Como se verá posteriormente, esta primeira distinção
delineia um problema essencial: definir se o acting out é ou não um
ato sintomático.
Em Recordar, repetir e elaborar de 1914, Freud introduz o con-
ceito de compulsão de repetição para referir-se ao fenômeno trans-
ferencial, e a relação entre recordação e repetição torna-se mais
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complexa. Neste texto afirma: “podemos dizer que o analisado não


recorda, em geral, nada do esquecido e reprimido, mas sim atua. Não
o reproduz como recordação, mas como ação; o repete sem saber, tão
logo, o faz” (Freud, [1914] 1990:152).
Finalmente, a última referência de Freud se encontra em Es-
quema da Psicanálise. A propósito do capítulo sobre a técnica ana-
lítica diz:
Outra vantagem da transferência é que nela o paciente ence-
na ante nós com plástica nitidez, um fragmento importante
de sua biografia sobre o qual é provável que em outro caso,
tivesse nos dado insuficiente notícia. Por assim dizer, atua
[agieren] ante nós, ao invés de nos informar (Freud, [1938-
1940] 1980a: 176).
Neste contexto, a repetição transferencial é o agieren em opo-
sição à recordação insuficiente, e inclusive, não aparece como uma
resistência. No entanto, a seguir menciona:
É muito indesejável para nós, que o paciente fora da transfe-
rência, atue ao invés de recordar. A conduta ideal para nossa
finalidade seria a de que fora do tratamento ele se compor-
tasse da maneira mais normal possível, e exteriorizasse suas
reações anormais dentro da transferência (Freud, [1939-
1940] 1990a: 177).
Aqui observa-se uma delimitação do acting out dentro e fora da
transferência, e esta última é qualificada de inconveniente porque
não se recorda.

1. A NOÇÃO DE ACTING OUT


1.1. Phyllis Greenacre, Horacio Etchegoyen
No artigo “Problemas gerais do acting out” publicado em 1950,
Phyllis Greenacre recopila o material bibliográfico da época e agre-
ga suas próprias hipóteses. O acting out é uma atividade organizada
– não é um simples movimento, ou uma expressão isolada –, sendo
função de seu aparecimento, o alívio da tensão interna e uma des-
carga parcial para desviar impulsos. O acting out é uma forma espe-
cial de rememoração atuada, onde a antiga recordação é novamente
representada, ou seja, é o modo de reprodução compulsiva de uma
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está o reforço do eu e a identificação ao analista, mais precisamen-


te, tal posição conduz à insurreição do a e de todos os seus efeitos
(Lacan, 2006: 142).
O acting out só será pacificado se ocorrer o efeito irresistível
do desejo que dá a certeza ao sujeito de ter um lugar no desejo do
Outro, e não existe uma fórmula planejada porque se existisse, dei-
xaria de ser algo autêntico. Trata-se de uma manobra, um manejo
transferencial, uma interpretação singular que só será avaliada como
eficaz após a resposta do sujeito. Desde esta perspectiva, o desejo do
analista – que não é o desejo de falo, senão uma operação – reduz
o acting out, e recorta o objeto em jogo nessa pantomima singular
segundo o fantasma de cada sujeito. Que a pacificação do acting out
seja a certeza do alojamento do objeto no desejo do analista significa
que a cessão do objeto a para o campo do Outro – evocado no esque-
ma da divisão – reitera-se na estrutura do dispositivo analítico. Por
isso, o analista deve analisar-se o suficientemente para driblar as vi-
cissitudes do objeto a, e conseguir “oferecer ao conceito da angústia
uma garantia real” (Lacan, 2006: 365).

2.3. Uma decepção enigmática


Freud recebe à jovem traída por seus pais, os quais lhe confiam
a tarefa de trazer a filha de volta à normalidade, depois de sua ten-
tativa de suicídio (Freud, t. XVIII: 142). A jovem quer se submeter à
análise pelo bem dos seus pais (Lacan, 2006: 147). Sabendo que não
existia uma demanda de análise, Freud tinha várias razões para sen-
tir-se intranquilo, contudo, decide escutá-la. No relato do caso, indica
que a jovem de dezoito anos não era uma doente (Lacan, 2006: 144),
tinha atravessado o seu Édipo normalmente (Lacan, 2006: 148), e
durante a breve análise não apresentou nenhum sintoma histérico
(Lacan, 2006: 149). Também aponta que a mãe não queria renun-
ciar a agradar por si própria, mantinha uma atitude jovial e tratava
com ternura aos seus três filhos homens, mas era dura com sua filha
(Lacan, 2006: 142). Havendo pouco espaço para a menina no desejo
da mãe, a jovem estava demasiado instalada em “ser o falo” para o
pai. Depois, o nascimento de um irmão produz nela uma “decepção
enigmática” (Lacan, 2006: 122), não elaborável por invejas e desejos
hostis.
Capítulo III
A psicanálise lacaniana
e a criminologia

1. O PAI, A ANGÚSTIA, E O DELINQUENTE


1.1. O estruturalismo e a lei do incesto
Quando estourou a guerra em 1939, Lévi-Strauss teve que
abandonar sua cátedra no Brasil para voltar à França, e o armistí-
cio em 1941 obriga-o a fugir por causa de sua condição de judeu.
Muda-se para Nova Iorque, onde entra em contato com antropó-
logos como Franz Boas e Radcliffe-Brown, e em especial com Ro-
man Jakobson, encontrando nele a inspiração para construir um
enfoque estrutural da antropologia. Concretamente, Lévi-Strauss
adapta o método fonológico desenvolvido por Nikolái Sergéyevich
Trubetzkoy e Roman Jakobson, chegando a considerar as teorias
antropológicas como mitologias comparáveis aos mitos elaborados
pelo “pensamento selvagem”. Em 1945, publica artigo intitulado “A
análise estrutural em linguística e em antropologia” (Lévi-Strauss,
1995: 75-96), que representará a criação da antropologia estrutu-
ral sobre o modelo fonológico. A transposição do método linguísti-
co à etnologia representa sua invenção original, e é a plataforma do
estruturalismo.
Em sua tese de 1947, As estruturas elementares do parentesco, a
aplicação do sistema estrutural fonológico aos sistemas de parentes-
co possui uma correspondência direta: os termos de parentesco (pai,
mãe, tio, esposa) são os elementos de significação, e correspondem a
fonemas da fonologia. Adquirem significação apenas na condição de
integrar-se em sistemas de relações de parentesco, de regras matri-
moniais. Como em linguística, estruturam-se em uma série complexa
de correlações formadas por casais de opostos (pai–filho, tio–sobri-
nho), ou de semelhança binária (esposo–esposa). Desde esta pers-
224 Juan Pablo Mollo

pectiva, o inconsciente estrutural obedece fundamentalmente a uma


lógica binária (Lévi-Strauss, 1969: caps I a V).
Assim também, Lévi-Strauss ilustrou de forma inovadora a fa-
mosa questão da proibição do incesto. Ao invés de buscar a gênese
da cultura em uma hipotética renúncia dos homens à prática do in-
cesto, ou opor a essa origem o florilégio da diversidade das culturas
(desde Malinowski até os culturalistas), ele eludiu essa bipolariza-
ção para mostrar que a proibição realizava a passagem da nature-
za à cultura. Esta nova expressão da dualidade: natureza e cultura
acompanha uma concepção do homem como um ser biológico e um
ser social. Lévi-Strauss refere-se a “estruturas fundamentais do es-
pírito humano” que possibilitam ao homem criar a cultura e impor
leis que articulam o inarticulado da natureza. Em conclusão, o que
possibilita desnaturar a natureza e fazer cultura é a universalidade
da matriz simbólica própria e exclusiva do ser humano. Resulta en-
tão, infrutífero buscar na natureza, a origem das regras institucio-
nais que supõem a cultura, porque sua instauração no seio de um
grupo é efeito da intervenção da linguagem.
Sem embargo, a lei da proibição do incesto tem menos um va-
lor de proibição, e mais um valor de doação, já que, acolhendo o
que Marcel Mauss explica em seu Ensaio sobre o dom, publicado em
1925, resulta ser a regra de doação por excelência. Segundo Mauss,
a mudança se manifesta nas sociedades primitivas sob a forma de
“transações de dons recíprocos”, e essa lei de reciprocidade afeta
todas as relações sociais (Mauss, 2009). Lévi-Strauss questiona o
ponto de vista evolutivo e econômico ao considerar que a “recipro-
cidade” é a forma universal que subjaz em todo tipo de organização
social. Precisamente, o valor da exogamia é manter o grupo como
grupo; quer dizer, os vínculos de aliança exogâmica asseguram a pri-
mazia do social sobre o natural. O intercâmbio então, é a expressão
da exogamia, possui um valor que vai mais além do valor do produ-
to do intercâmbio, visto que proporciona o meio para relacionar os
homens entre si, sobrepondo aos vínculos naturais do parentesco,
os vínculos artificiais que garantem as alianças. Assim, a exogamia
organizada pela lei da proibição do incesto tem um valor funcional
em todos os grupos sociais, e a mulher é o supremo presente, o bem
fundamental em seu quádruplo plano: sexual, econômico, jurídico
e social.
Capítulo IV
Interseções finais

O conceito de drift (à deriva), e a caracterização do delinquente


como transitório nas obras citadas de Matza, vêm coincidir com vá-
rias teorias psicanalíticas sobre a causação da delinquência juvenil, e
com a possibilidade de uma “cura” repentina, ou mais precisamente,
com uma súbita mudança de posição subjetiva. Em primeiro lugar,
pode-se citar a obra pioneira de Aichhorn sobre a delinquência juve-
nil, em que o abandono e a carência se integram em uma categoria
psicopatológica específica denominada Verwahrlos-tung, cujo signi-
ficado remete aos “abandonados” como referência “aos que se per-
dem fora da proteção da verdade”. Aqui, acentua-se não só o papel
do meio ambiente, como também ressoa diretamente com o termo
de Hilflosigkeit que Freud usava para definir o desamparo originário
da criança, e que Lacan vinculava ao émoi (falta de potência e recur-
sos simbólicos), e finalmente ao acting out. Em suma, esta pseudo-
nosografía, entanto possa resultar difusa, pode ser concebida como
enquadrada dentro de uma unidade conceitual que resume a posição
subjetiva do acting out, em oposição ao delinquente compulsivo, dis-
social, psicopata, ou criminoso. Assim também, pode-se estabelecer
um paralelo entre drift e deprivação, como noção causal da tendên-
cia antissocial, seguindo a perspectiva winnicottiana, ou a separação
precoce segundo a teoria do apego de Bowlby, entre outras similitu-
des possíveis. A delinquência é a materialização do drift, assim como
a tendência antissocial é a materialização da deprivação original ou
a separação precoce. Assim também, quando Matza aponta que o de-
linquente atua por desespero para encontrar um sentimento de hu-
manidade, tenta explicar um movimento de subjetivação semelhante
ao processo adolescente descrito por Peter Blos, e não uma mera im-
pulsividade sem sentido.
Em contrapartida, a noção de drift diferencia-se das categori-
zações psicanalíticas mencionadas (deprivação, separação precoce,

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