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Capítulo 01 – Reflexões
Há muitas pessoas que acreditam os homens serem cordeiros; outras há que consideram os
homens como lobos. Ambos os lados podem reunir argumentos em seu favor. Os que sugerem
serem eles facilmente influenciáveis a fazer o que lhes é dito, mesmo que isso os prejudique;
para o de terem eles seguido líderes em guerras que nada mais lhes trouxe além de destruição;
para o de terem acreditado em qualquer espécie de tolice desde que apresentada com
suficiente vigor e apoiada pelo poder – desde as ásperas ameaças de sacerdotes e reis até as
voes melífluas de persuasores ocultos e não tão ocultos. Parece que a maioria dos homens são
crianças sugestionáveis, semidespertas, dispostas a entregar sua vontade a quem lhes falar com
uma voz suficientemente ameaçadora ou doce para abalá-los. Na verdade, quem tem uma
convicção suficientemente forte para suportar a oposição da multidão é antes a exceção do que
a regra, uma exceção amiúde admirada séculos depois, mas na mor parte alvo a chacota dos
contemporâneos.
Foi baseado nesta suposição – de que os homens são cordeiros – que os Grandes Inquisidores
e os ditadores ergueram seus sistemas. Mais do que isso, essa mesma crença dos homens serem
cordeiros, e portanto precisarem de líderes para tomarem decisões por eles, muitas vezes deu
aos líderes a convicção sincera de estarem preenchendo um dever moral – embora trágico –
caso dessem ao homem o que, este queria: caso fossem líderes que tirassem dos ombros dele
o fardo da responsabilidade e liberdade.
Mas, se a maioria dos homens têm sido cordeiros, por que a vida do homem é tão diferente
da do cordeiro? A sua história foi escrita com sangue; é uma história de violência contínua, para
vergar-lhe a vontade. O paxá Talaat sozinho teria exterminado milhões de armênios? Foi Hitler
sozinho que exterminou milhões de judeus? Stalin sozinho exterminou milhões de inimigos
políticos? Esses homens não estavam sós; tinham milhares de homens que matavam para eles,
torturavam para eles, e faziam isso não só de bom grado como até com prazer. Não vemos a
inumanidade do homem para com o homem em toda parte – na guerra implacável, no
assassinato e estupro, na exploração desapiedada do fraco pelo forte, e no fato dos soluços dos
torturados e sofredores tão frequentemente terem caído em ouvidos surdos e corações
empedernidos? Todos esses fatos levaram pensadores como Hobbes à conclusão de que homo
homini lúpus (o homem é um lobo para o seu semelhante).
Devemos supor que você, eu e a maioria dos homens comuns somos lobos com pele de
cordeiro, e que nossa “verdadeira natureza” se tornará evidente assim que nos descartamos das
inibições que até agora nos têm impedido de agir como feras? Esta suposição é difícil de refutar,
porém não é de todo convincente. Há numerosas oportunidades para crueldade e sadismo na
vida quotidiana nas quais as pessoas poderiam saciar-se sem temor à retaliação; no entanto,
muitas não o fazem; com efeito muitas reagem com certo sentimento de revolta ao verem
crueldade e sadismo. (pág. 18/19)
Devemos imaginar que a resposta simples consiste em haver uma minoria de lobos vivendo
lado a lado com a maioria de cordeiros? Os lobos querem matar; os cordeiros querem seguir.
Daí os lobos levarem os cordeiros a matar, a assassinar, a estrangular, e os cordeiros obedecem
não por gostarem disso, porém por quererem seguir; e mesmo então os assassinos têm de
inventar estórias acerca da nobreza de sua causa, da defesa contra as ameaças à liberdade, da
vingança pelas crianças mortas a baionetas, pelas mulheres violentadas e pela honra
conspurcada para fazerem a maioria dos cordeiros agir como lobos. Outrossim, como podem os
cordeiros ser tão facilmente persuadidos se não for de sua natureza agir assim, ainda admitindo-
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se que a violência lhes seja apresentada como um dever sagrado? Nossa hipótese atinente a
lobos e cordeiros talvez não seja sustentável; será talvez verdade, afinal de contas, que os lobos
representem a qualidade intrínseca da natureza humana, apenas mais abertamente do que a
maioria revela? Ou, afinal, talvez a alternativa toda esteja errada. Talvez o homem seja lobo e
cordeiro – ou nem lobo nem cordeiro?
Por que resistir aos lobos quando somos todos lobos, conquanto uns mais que outros?
Guerras são o resultado da decisão de chefes políticos, militares e do mundo dos negócios de
travar guerra com o fito de adquirir território, recursos naturais, vantagens comerciais; para
defesa contra ameaças reais ou alegadas à segurança de sua pátria por outra potência; ou para
enaltecer o prestígio e glória pessoal deles mesmos. Esses homens não diferem do homem
comum: são egoístas, com pequena capacidade para renunciar a vantagens pessoais em
proveito de outros, mas não são cruéis nem maus. Quando homens assim – que na vida comum
provavelmente fazem mais bem do que mal – chegam a posições de poderio onde podem
mandar em milhões de pessoas e controlar as armas mais destrutivas, podem provocar um mal
imenso. Na vida civil poderiam ter destruído um concorrente; em nosso mundo de Estados
poderosos e soberanos (“soberano” significa não-sujeito a qualquer lei moral que lhe restrinja a
ação), poderão destruir a raça humana. O homem ordinário com poder extraordinário é o perigo
capital para a humanidade – não o fanático ou o sádico. O homem que apertará os botões
enviando mísseis com cargas nucleares, cada um dos quais poderá matar centenas de milhares
de pessoas, não terá a experiência de matar ninguém na acepção da experiência que um soldado
tem ao usar a baioneta ou a metralhadora. Todavia, mesmo que o ato de lançar armas nucleares
conscientemente nada mais seja que a obediência fiel a uma ordem, subsiste a questão de saber
se nas camadas mais profundas da personalidade deva existir, se não impulsos destrutivos, pelo
menos uma profunda indiferença face à vida, para tornar possíveis atos assim.
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... o amor à morte, o narcisismo maligno e fixação incestuosa simbiótica. Essas três
orientações, quando combinadas, formam o “síndrome de deterioração”, aquele que impele
homens a destruir por amor à destruição e a odiar por amor ao ódio. Em contraste com o
“síndrome de deterioração”, descreverei o “síndrome de crescimento”; este consiste em amor
à vida (em contraste com o amor à morte), amor ao homem (em contraste com o narcisismo) e
independência (em contraste com a fixação incestuosa simbiótica). Só em escassa minoria de
pessoas qualquer um desses síndromes está plenamente desenvolvido. Mas não se pode negar
que todo homem avança na direção por ele escolhida; a da vida ou da morte; a do bem ou do
mal.
FEMINISMOS TRANSNACIONAIS
As linhas vermelhas são uma espécie de memória silenciosa de uma história antiga, uma
história feminina sempre lançada à sombra, a história da violência contra a mulher, que vem
à tona e ganha forma e movimento na performance “No princípio fomos todos mulheres”
Matérias de jornal sobre feminicídio ocupam uma banheira, no lugar da água. Uma mulher
descalça tenta andar e se equilibrar em um caminho repleto de cacos de vidro. Outra mulher
lava as mãos numa bacia suja de sangue. Linhas vermelhas envolvem os corpos de todas essas
mulheres, mesmo aquela que aparentemente não corre nenhum risco: numa mesa de jantar,
uma jovem bebe vinho, ansiosa, feliz, à espera de alguém. As linhas vermelhas ao redor de
seu corpo são um anúncio, todas essas mulheres estão conectadas, há uma história em
comum a todas que corre, silenciosa, pelos seus corpos, corre silenciosa por gerações. As
linhas vermelhas podem permanecer frouxas sobre as suas peles, ou podem apertar, sufocar,
matar.
As linhas vermelhas são uma espécie de memória silenciosa de uma história antiga, uma
história feminina sempre lançada à sombra, a história da violência contra a mulher, que vem
à tona e ganha forma e movimento na performance “No princípio fomos todos mulheres”,
do coletivo Sozinhas somos muitas, apresentada no Parque Lage – no evento “Um Berro, um
sussurro”, idealizado por Tanja Budon – em junho de 2019.
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As imagens são fortes, as linhas podem também atravessar os rostos, cobrir olhos e bocas,
impedindo a fala, impondo uma cegueira e desnorteamento de si mesma e da própria
condição. Aos poucos, a própria dinâmica da performance no espaço revela que aquelas
mulheres não estão sozinhas, elas vão percebendo a presença uma da outra, o que as
conecta, a linha vermelha. É nesse momento, da consciência do coletivo, que essas
experiências traumáticas saem de um dor individual e se transformam em possibilidades de
troca, cura e libertação.
Compondo o ciclo “Arte e Feminismos”, da edição especial Feminismos Transnacionais, a
escritora Claudia Lage conversa com a diretora da performance Ana Paula Lopes, uma das
criadoras do projeto Beatriz Brandão, uma das atrizes, Witória Santos e a pesquisadora porto-
riquenha Carmen Soto, com direito a intervenções poéticas de Adelaide Ivánova, Conceição
Evaristo, Angélica Freitas, Alice Ruiz e Sylvia Plath.
(Adelaide Ivánova)
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O debate sobre temas feministas, como a violência doméstica, aumentou nos últimos
anos, especialmente depois da Lei Maria da Penha, como vocês se aproximaram desse
tema, ou como o tema se aproximou de vocês?
Beatriz Brandão– Foi um bom ponto de partida você trazer a perspectiva jurídica, com a
Lei Maria da Penha, de 2006, para pensar a violência contra a mulher. O tema, a partir dela,
alcançou mais debate público, se expandiu politicamente e se tornou mais próximo das
mulheres, modificando certas narrativas correntes. É importante frisar que os estudos
feministas, tanto academicamente quanto em seus movimentos políticos, são muito fortes
desde a primeira onda do feminismo, com as sufragistas, já no fim do século XIX. No entanto,
muitos casos de violência (de todo tipo) continuam sendo vivenciados e naturalizados em
relações afetivas, familiares, de trabalho e havia a falta de um respaldo legal que aglutinasse
várias instâncias em torno desses casos, alcançando e se capilarizando para mulheres, de
todas as classes sociais, poderem reaver as violações diárias a que estavam submetidas. Esse
vácuo histórico – de modo material e legal – me faz acreditar que a primeira aproximação
com esse tema se dá primeiro de forma ainda inconsciente, quando se veem permeadas de
silenciamentos e culpabilizações e, não conseguem explicar tais questões de forma teórica,
histórica, de direitos. Em muitos casos, há uma virada, um momento chave em que essas
representações violentas são postas à prova. As biografias e as trajetórias pessoais, em algum
momento, vão se atravessar com a desnaturalização de atos nocivos. Como você perguntou
sobre a nossa relação em específico, o feminismo se apresentou a mim, de forma mais
profunda, pelo tema do abuso. O abuso é tratado como uma atitude que faz com que a pessoa
se sinta silenciada, agredida. Porém, comecei a perceber que algo se torna ainda mais abusivo
quando não somente nos sentimos, mas quando não nos vemos como parte agredida. Isso é,
o abuso se inicia com o outro sabendo que está sendo desrespeitado e acaba com o outro se
culpando por estar sendo desrespeitado. A partir disso, comecei a perceber que quando eu
era respeitada, aquilo me assustava. Como pode o respeito assustar?
Ana Paula Lopes – Principalmente após o assassinato da Marielle. Soube à noite, pela
minha irmã, antes de ser noticiado no dia seguinte. Fui à primeira manifestação no Centro da
Cidade e encontrei um ex-aluno que mora na Maré, conhecia a Marielle, convivia com ela.
Ele estava petrificado. Sou professora de teatro e, naquele momento, me dei conta de como
era importante me aproximar dos coletivos da escola, dar voz aos alunos, para que não
fossem paralisados pelo medo. Comecei a trabalhar mais intensamente com o Teatro do
Oprimido, porque o Boal dá corpo, voz e visibilidade a quem não tem, investigando,
coletivamente, relações entre opressor e oprimido, que emergem sob diferentes pontos de
vista, assim como os possíveis caminhos de libertação. Paralelamente participei de uma
oficina de teatro para mulheres com a Jaqueline Elesbão, atriz e ativista negra. Foi ali que,
ouvindo histórias de diferentes mulheres, na singularidade de cada uma delas, reconheci
abusos silenciados em mim, nas do meu convívio. Percebi como, muitas vezes, não nos damos
conta desse sistema patriarcal e repetimos comportamentos historicamente arraigados.
Senti então a necessidade de levar essa experiência para as minhas alunas adolescentes e
para a exposição que o meu coletivo foi convidado a fazer no CCC, ampliando a investigação
e o debate. O trabalho resultou em sessenta pequenas telas, janelas do cotidiano, formando
um grande painel sobre a violência contra a mulher. Também em uma instalação com um
vestido de noiva, objeto de desejo idealizado no imaginário feminino, suspenso pela tê nue
linha entre sonho e realidade, já que a maioria dos feminicídios acontece por parte do próprio
cônjuge, vide a história da Maria da Penha, que dá nome à nossa lei.
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BB – Acho que o nome do projeto fala muito sobre sua pergunta: Sozinhas somos muitas.
Nada nunca é só nosso, mas sempre fala de nós. Um processo que pode começar de forma
solitária nunca se estanca em nós mesmas. Falar de outras ao mesmo tempo que se fala de
si denota uma emoção partilhada, em que há uma gestão de autobiografias em cruzamentos.
Nesse caso, surgiu de uniões de dilemas pessoais meus, Piera Pillar e Rebeca Banus, que se
expandiram a muitas outras mulheres. A prática artística foi a linguagem que alcançamos
como forma de tradução de sentimentos represados, fazendo, atuando, cantando, agindo,
escrevendo conseguimos nos acessar mais que de outro modo que havíamos tentado antes.
Esse é o sentido de eu – sozinha – ser muitas ao mesmo tempo. E que preciso, do mesmo
modo, ser sozinha para me descobrir em (e com) muitas. Como foi expresso no roteiro cênico,
não há um uso monolítico da categoria mulher, pensamos em formas de liberdades. Como
recuperar, significar, encontrar as possíveis liberdades que temos dentro das trilhas
femininas. Essas passam por atos políticos, éticos e estéticos, que foram vistos e
apresentados em cada partitura artística.
BB – Descobri uma coisa muito potente depois da experiência entre arte e feminismo. O
feminismo me alcançou não somente de forma teórica, mas pessoal e artística, e mostrou
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Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
(Conceição Evaristo)
Nos depoimentos de mulheres que sofreram violência, elas geralmente relatam que
viveram longos anos em silêncio, antes de conseguir falar sobre o abuso e a violência que
sofriam. Pensando no processo criativo, como foi trabalhado artisticamente esses dois
aspectos, a violência e o silêncio? No caso do silêncio, como se realizou a representação
dessa opressão que está no não dito? No caso da violência contra a mulher, que é diferente
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de outras violências, já que ela envolve afetos e relações muitas vezes próximas, como se
representa algo tão brutal e ao mesmo tempo tão íntimo?
É preciso coragem para sair de uma relação abusiva, e mesmo para falar sobre ela, como
essa dificuldade foi tratada emocional e esteticamente, na relação com as atrizes e em
relação com o espaço?
BB – O primeiro passo é ter a consciência do abuso, como disse, o mais difícil é quando a
parte agredida se sente culpada por se sentir abusada e o processo de desconstrução não se
dá sem complexidades. Um caminho em espiral, de idas e vindas, onde tem-se que conhecer
a você mesma, a situação que a relação se inscreve, o outro, saber os limites e alargamentos
de seus direitos e da outra parte. Não é uma equação simples, ela se dá em processo, em
etapas, em gradações. As nossas camadas vão sendo descobertas, retrabalhadas, realocadas.
O desafio de tradução artística, com mulheres de idades, raças e classes diferentes, foi a de
ouvi-las e perscrutar suas singularidades para dar voz à um coletivo, algo que lhes fosse
verdadeiro e característico, ao mesmo tempo perceptível e de apreensão aos que iam nos
assistir. E o processo artístico se transparece nos instantes da performance. Buscamos
montar um repertório verdadeiro vindo delas, assim, propomos escalas e estações para
contar essas histórias. A primeira, de chegada, se mostrava num estado real das opressões:
da que grita e nos coloca diante da visibilidade do feminicídio, até aos abusos silenciosos,
silenciados e propositalmente sutis, expressos em sorrisos, convites e sussurros. A
experiência com esse primeiro momento nos encaminha para um “entre lugar”, aquele que
a mulher começa a tomar consciência e a tentar se expressar diante das violências que a
tentam desigualar. A desigualdade escancara um processo de tentativa de encontro pessoal
e coletivo, pautado não mais por essa lógica desigual, e sim na descoberta de diversidades e
diferenças. Temos em cena mulheres fazendo uso de suas próprias possibilidades e recursos
de sair do silenciamento. A terceira escala é sonora, é para a qual caminhamos nesse
processo de conhecimento da própria opressão, da chegada a um “entre lugar” de encontro
consigo, até o possível terreno de libertações diversas.
(Rupi Kaur)
A imagem de uma linha vermelha está presente no seu trabalho em diversos momentos,
pode falar um pouco dessa escolha estética para este tema específico?
AP- A linha vermelha deve estar em algum lugar do meu inconsciente. Há muito tempo eu
me deparei com a carcaça de um cachorro morto queimado em um terreno da EBA, onde
estudava. Fui arrebatada por aquela imagem e, com a ajuda de amigos, tive o impulso de
realizar um ritual circunscrevendo o cadáver, como que o restituindo de vida ao dignificá-lo
na morte. Foi nesse ritual que, pela primeira vez, a linha vermelha surgiu desenhada sobre
um filó branco sobreposto à carcaça do animal. Esse trabalho foi tão significativo para mim
que o escolhi para a exposição de formatura no MNBA. Agora, depois de muito tempo, a linha
vermelha ressurge justo na exposição sobre a violência contra a mulher: na instalação do
vestido de noiva e em uma das sessenta telas de pequeno formato escrevendo a palavra
amor, “em seus altos e baixos”, como disse um aluno ao observar o movimento da linha sobre
a tela. Eu não tinha pensado em incluir a linha vermelha na performance, mas ela apar eceu,
instintivamente, durante o processo, ganhando presença na cena como elemento simbólico,
envolvendo os corpos das performers, atando-as aos objetos, ou como rastros no espaço.
Até mesmo à minha participação, com o novelo da linha vermelha em mãos. Eu percorria os
espaços e me aproximava, cuidadosamente, de quem cruzasse o meu caminho, então
perguntava se a pessoa já tinha vivenciado alguma situação de abuso ou se conhecia alguém
que já tivesse. Se a resposta fosse positiva, eu pedia permissão para amarrar um pedaço da
linha vermelha no pulso dela, como que ritualizando um pacto, num gesto de conexão e
solidariedade. Foi uma experiência muito íntima e singular. A linha vermelha é esse
acontecimento, a veia correndo sangue. Talvez o cordão umbilical. Ou quem sabe esta
indeterminação da vida, esta linha tênue que nos separa da morte.
Qual foi o impacto da performance no público, nas mulheres e também nos homens?
Houve diferenças nas reações, na receptividade e no olhar para essas experiências?
AP – Para falar deste impacto eu preciso ressaltar que houve um processo intenso de
concepção e, nessa concretização do desenho no espaço, a escuta da Rebeca Banus foi
determinante porque ela conseguiu realizar, com o mínimo de recursos, um trabalho
primoroso: desde a criação da iluminação com abajures à cuidadosa escolha dos adereços
em detalhes que fizeram toda a diferença, a cereja do bolo. Como migramos de três para
muitas mulheres, foi também necessário pensar numa estratégia de realização junto à
produção e eu confesso que me espantava com a eficiência da Carolina Torres, porque eu
mal terminava de falar, ela já tinha realizado. Eu acredito que é esta vontade de realização,
todo esse trabalho por trás, que causa impacto. E o impacto se dá não apenas no público,
mas em todas nós, que fazemos a coisa acontecer. Eu não tenho como mensurar o que foi
gerado em cada um, mas arrisco dizer que quem foi, saiu de alguma forma afetado, porque
havia, naquele espaço, muita potência de vida. Levo comigo a alegria da realização, do
encontro. E as inúmeras linhas vermelhas que amarrei como um sinal de que, mesmo com
tudo contra, é preciso continuar.
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Algum homem que assistiu demonstrou desconforto pela consciência de que o seu
gênero estava ali presente também, apesar da ausência física, mas como sujeito da
violência contra a mulher?
BB – Sim, recebemos muitos relatos, alguns por escrito. Tivemos muitas surpresas em
relação ao impacto da performance com os homens. Não criamos tantas expectativas com
isso, o que fez com que os retornos fossem ainda mais potentes. Dois homens, Rafael Teixeira
e Eduardo Talois, escreveram relatos tocantes e fortíssimos. Outros dois ainda usavam
enrolados em seus pulsos a linha vermelha da performance. Disseram que não tirariam de
seus corpos para que lembrassem dos abusos e violências que as mulheres sofrem.
(Sylvia Plath)
Carmen Soto – A minha experiência de poder ver a performance sobre violência contra a
mulher que a Ana Paula dirigiu no Parque de Lage foi transformadora, um acontecimento que
validou a minha estadia no Rio de Janeiro. Eu havia chegado ao Rio com algumas premissas
que já faziam parte programa de pesquisa de pós-graduação em relações internacionais da
universidade New School de Nova York, que necessitavam ser clareadas. Foi então que uma
amiga, a artista e ativista Julie Brasil, recomendou a performance No Princípio fomos todos
mulheres, que se relacionava à minha área de interesse: questões feministas, ativismo e arte.
Desde que vi a performance me dei conta de que era esse, mais precisamente, o tema que
eu queria investigar nestes dois meses. Queria explorar mais a violência contra a mulher e
descobrir que tipo de ativismo estava sendo realizado no Rio de Janeiro para educar a
sociedade. Algo despertou o meu coração e me tocou profundamente quando vi a
performance no Parque Lage. Além de assistir, eu queria participar de algum dos
maravilhosos projetos que a Ana Paula tinha em mente relacionado a este ativismo para
trazer a consciência sobre a violência doméstica. Eu e minha colega de trabalho, Emilly Keller,
nos aproximamos da Ana Paula e, de uma entrevista, surgiu a proposta da realização de uma
nova performance como possibilidade do caminho de libertação, rompendo com o ciclo dos
maus-tratos. Desde a realização da performance na praia, o mar nunca mais voltou a ser o
mesmo para mim. Agora eu vejo o oceano com o significado de liberdade e amor, me
recordando que a luta deve ser constante e que a voz das muitas mulheres ativistas que lutam
contra as injustiças deve ser escutada. Essas experiências me impactaram tanto de forma
pessoal, como profissional. Essa experiência e ajudou a ver a arte de uma outra perspectiva,
me deixou clara a possibilidade do grande lugar de troca, da importância de levar voz a todas
às comunidades.
Witória Santos – Ter sido abusada pelo meu padrasto foi sempre um grande tabu na
minha vida. Antes mesmo de decidir por mim mesma, se eu me sentia à vontade para falar
sobre isso com outras pessoas, me disseram: “não fica falando disso para os outros”. Como
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se fosse algo do qual eu devesse me envergonhar, esconder para que ninguém soubesse… E
durante anos eu guardei isso dentro de mim. E junto com a lembrança do ocorrido eu guardei
a dor. Na escola, numa roda de conversa sobre violência contra mulheres, com minha
professora de teatro Ana Paula, me senti à vontade para falar sobre a minha experiência, me
senti tão acolhida e abraçada que aceitei o convite, primeiramente para transformar a minha
experiência em um trabalho teatral no CEFET/RJ. Ao lado de outros alunos e da professora,
adaptamos a minha história para uma cena de teatro fórum, do Teatro do Oprimido.
Posteriormente participei da Performance No Princípio Fomos Todos Mulheres, no Parque
Lage. A experiência foi de liberdade. Me senti tão apoiada por todas aquelas outras mulheres,
me senti apoiada por mim mesma, ali, expressando através da arte a dor que eu sentia. Sem
perceber, a cada toque do sino uma parte dessa dor se esvaía do meu peito, a cada gesto,
fala, abraço que eu recebia, uma parte dessa dor de esvaía do meu peito. Ao final de tudo eu
me sentia livre… livre da dor, da vergonha… havia entendido que a culpa não era minha e a
única pessoa que deveria se envergonhar era o meu abusador, não eu. E então na
performance seguinte, realizada na praia, veio a cura final. Ali, na praia, um lugar tão especial
para mim, o lugar que mais me traz paz no mundo, o processo de finalização daquela ferida
aconteceu. Através da arte.
Houve alguma diferença de sentido e aprendizado nas duas experiências? Como foi
participar do projeto na praia depois da apresentação no Parque Lage, o que você levou de
uma experiência a outra?
(Angélica Freitas)
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Vocês perceberam alguma mudança no olhar de vocês sobre as mulheres e o tema depois
de todo o processo? Como entraram e como saíram da experiência?
BB – Sim, muitas coisas, tanto na relação com as mulheres, suas dissidências pessoais, seus
encontros, atravessamentos que nos promovem uma ligação. Muita coisa marcou no
processo, na formação, e teve suas formas de ressoar e reverberar em cada uma. Vou apontar
dois pontos principais, um sobre a minha relação com outras mulheres e outro no tocante à
arte. Saio na certeza que as histórias singulares são sobre nós e que, juntas, chegamos a um
ponto que sempre ressalto: que o pouco não nos baste. Ao que se refere às performances
feministas, penso que a violência contra a mulher e o sexismo cultural não são acidentais .
Assim como a arte feminina não é acidental. A capacidade de formular renascimentos, de dar
ventre à luz não é um acidente.
AP – O mais potente para mim foi juntar muitas mulheres, de diferentes locais, idades,
etnias. A diversidade faz toda a diferença porque agrega experiências de vida muito distintas,
quebra modelos, estereótipos, e nos engrandece ao trazer novas questões que fazem rever
conceitos, nos colocando em constante aprendizagem. No espaço interno da biblioteca,
pensado para denunciar e silenciamento histórico, nenhuma mulher teria voz, só que a Ana
Luz, atriz negra que ficou na banheira sob as notícias de feminicídio (já que as mulheres
negras estão entre os maiores índices) escreveu um texto que necessitava ser dito. Então,
nesta recíproca escuta, eu ia fazendo os ajustes necessários. O texto da Ana soou como uma
lâmina no espaço, um rasgo, uma abertura em contraponto as ações das demais performers.
Na entrada da biblioteca Juliana Dalle, com sua presença imponente e sorriso largo, recebi a
o público, como uma boa mulher deve fazer. Adentrado o espaço, o passante mais atento,
perceberia a Ju Satiê, espremida entre estantes com pedras amarradas aos pés numa ação
que remetia às opressões da cultura oriental. Tatiana Oliveira, entre outras prateleiras,
procurava respostas, num jogo com livros feministas. Bia Leitte ia e vinha num constante
percurso, do corredor para a janela, anteparo que permitia ver o exterior, mas que a impedia
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(Alice Ruiz)
Claudia Lage é escritora e roteirista, formada em Teatro (UNIRIO) e Letras (UFF), mestre
em Literatura (PUC-Rio). Autora do livro de contos A pequena morte e outras naturezas, e
do romance Mundos de Eufrásia, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2010. Em
2013, lançou o livro Labirinto da Palavra, com ensaios-crônicas sobre literatura e criação
literária, que recebeu o Prêmio de Literatura de Brasília em 2014 e foi semifinalista do Prêmio
Portugal Telecom em 2014. Como roteirista, trabalhou na TV Globo, Conspirações Filmes,
entre outras produtoras. Tem textos traduzidos para o alemão, inglês e espanhol. Ministra
cursos de roteiro e criação literária no Rio de Janeiro. Lançou recentemente o romance O
Corpo Interminável, que evoca memórias de mulheres guerrilheiras na ditadura civil-militar
brasileira.
Beatriz Brandão é feminista, socióloga e jornalista. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-
RIO e pós-doutoranda em Sociologia pela USP. É especialista em políticas públicas, estudos
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Ana Paula Lopes é atriz, diretora, artista plástica. Mestre em Artes Cênicas (UNIRIO).
Especialização em arte e filosofia (PUC) e Preparação Corporal (Angel Vianna). Professora do
CEFET Maracanã. Trabalha com questões de opressão como a violência contra a mulher e o
suicídio na adolescência.
REFLEXÃO 02
Quais crianças sua branquitude escolhe proteger?
por Edna Jatobá e Thiago Praun
16 de junho de 2020
Pesquisas realizadas em creches apontaram que crianças negras recebiam menos carinho de
cuidadoras e educadoras que crianças brancas. A branquitude retira das crianças pretas
qualquer perspectiva de cuidado e proteção integral, sobretudo quando esta divide atenção
com outras crianças brancas, e em alguns casos, com o cuidado com os animais de estimação.
Um sábio provérbio africano diz: “É preciso um vilarejo inteiro para cuidar de uma
criança”. Significa que toda uma comunidade de pessoas e, não apenas os pais, deve garantir
o ambiente saudável e seguro às crianças. O Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu
artigo 3º Parágrafo único diz o seguinte: “Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas
as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo,
raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e
aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra
condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem”. O artigo 4º
determina que todos nós como uma comunidade devemos assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes.
A criança que despencou do nono andar do edifício Pier Maurício de Nassau, na região
central de Recife, Miguel Otávio Santana da Silva era uma criança preta. Assim como a sua
mãe, assim como a sua avó. Mirtes, trabalhadora doméstica, trabalhava há
aproximadamente quatro anos na residência de sua empregadora, cuidando com zelo da
casa, dos filhos e da cachorra da família.
A empregadora não abriu mão dos serviços domésticos prestados por Mirtes durante a
pandemia, momento em que toda a população foi orientada a ficar em casa, a não ser os
profissionais que desenvolviam um trabalho essencial, estes detalhados no decreto estadual
49.055 de 31 de maio de 2020. As trabalhadoras domésticas não desenvolvem um trabalho
essencial, salvo quando prestem serviços em residências de pessoas com necessidades
especiais, o que não era o caso. Nem o trabalho de manicure, que também foi requisitado
pela empregadora no fatídico dia da queda e morte do menino Miguel.
Mirtes levou Miguel para o trabalho e, enquanto cumpria as ordens, levando a cachorra
da família para passear na área externa do edifício, confiou o seu filho aos cuidados da sua
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patroa, que, segundo apontam registros das câmeras do prédio, deixou o menino de 5 anos
sozinho no elevador e apertou o botão do último andar do edifício. O final dessa história é a
tragédia já conhecida: Miguel caiu de uma altura de 35 metros.
Ter uma criança sob supervisão, em nosso ordenamento jurídico, impõe ao adulto
responsável a “posição de garante”, prevista no artigo 13 do Código Penal, que estabelecia o
dever da patroa, que naquele momento se encarregou de tomar conta de Miguel apenas por
alguns minutos.
A morte do menino Miguel deve nos provocar uma profunda reflexão sobre branquitude (Igor Pessoa) Branquitude
A morte do menino Miguel deve nos provocar uma profunda reflexão sobre
branquitude. Porque é essa estrutura opressora e enraizada entre nós, que selou o destino
da criança. A branquitude cria empatia com crianças brancas, e descaso e repulsa por crianças
pretas. Exemplo disso é como fica nítida a preocupação com crianças brancas
desacompanhadas seja nas ruas ou nos elevadores. E como se normaliza essa situação com
relação às crianças pretas. Como se atribui a estas crianças pretas uma espécie de virtude
cruel de que são “safas”, “sabem cuidar de si”, são “desenroladas” e “naturalmente mais
fortes perante situações adversas.”
Uma pesquisa realizada em uma creche no interior de São Paulo aponta que crianças
negras recebiam menos carinho de cuidadoras e educadoras que crianças brancas. “As
crianças negras estavam, na maior parte do tempo, fora dessa prática da paparicação, em um
processo de exclusão que não está sendo entendido como ato de segregação, mas como o
recebimento de um carinho diferenciado, com menor paparicação. Isso também ocorria
com algumas crianças brancas que não estavam entre os “preferidos” (“Infância, raça e
pararicação”, de Fabiana de Oliveira e Anete Abramowicz).
A branquitude retira das crianças pretas qualquer perspectiva de cuidado e proteção
integral, sobretudo quando esta divide atenção com outras crianças brancas, e em alguns
casos, com o cuidado com os animais de estimação.
Diariamente, veículos de imprensa e órgãos da segurança pública expõem sem nenhuma
preocupação ou cuidado o nome, o sobrenome e o rosto adolescentes e jovens pretos,
atribuindo-lhes comportamentos criminosos e rótulos de pessoas violentas. Não raro,
percebemos a aplicação de adjetivos diferentes dependendo da cor da pele da pessoa.
Quando um adolescente branco é detido suspeito de ter cometido algum ato infracional, as
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Edna Jatobá é cientista social, especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública e coordenadora Executiva do GAJOP.
Colaboradora da Rede de Observatórios de Segurança e gestora local da Plataforma Fogo Cruzado/PE. Thiago Praun é
advogado, pós-graduando em LegalTech: Direito, Inovação e Startups pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Digital.