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CRUZAMENTOS E DIVERGÊNCIAS
Mas porque Ruby Rich denominou esse conjunto de obras com personagens
gays e lésbicos de New Queer Cinema? Por que não continuou a referir-se a
eles como filmes gays ou Cinema LGBT? O que a motivou a dar uma nomen-
clatura diferente àqueles filmes? Quais as diferenças entre as obras citadas
pela autora em seu artigo e as obras anteriores, até então chamadas apenas
de filmes gays?
A fim de possibilitar uma catarse com sua obra, cineastas tentarão ao má-
ximo aproximar seus filmes da realidade vivida pelo espectador. Isso é
facilmente percebido nos romances e dramas, por exemplo. É comum nes-
ses gêneros ver casais heterossexuais a viver a sua afetividade e sexualidade
de forma tranquila, pois, de acordo com as normas sociais, a heterossexua-
lidade é a única natural ao ser humano. Pelo menos foi o que prevaleceu
até a retirada da homossexualidade da lista internacional de doenças pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), em 17 de maio de 1990. Contudo,
atualmente ela ainda é proibida em muitos países, como Sudão, Arábia
Saudita e Irã, onde homossexuais são punidos com morte.1 Sendo assim, o
homossexual raramente se viu representado como “normal” em obras ante-
riores às produzidas nos anos 1990.
Por todos esses motivos, o homossexual foi por tanto tempo invisibilizado
no cinema ou tratado com desrespeito e desprezo, uma forma de reforçar o
modo como eles eram vistos pela sociedade. Tal situação só viria a mudar
no início dos anos 1990, com a chegada de uma onda de filmes cujos enre-
dos ofereciam destaque positivo a personagens homossexuais e situações
vividas por eles no cotidiano. A esse conjunto de filmes, B. Ruby Rich deno-
minou de New Queer Cinema.
Mas, além da epidemia de AIDS, o contexto social e político do final dos anos
1980 e início dos anos 1990 possibilitou a organização desse “movimento
cinematográfico”. O advento dos movimentos feministas e LGBT nos anos
1960 e 1970 permitiram uma maior visibilidade às mulheres, gays, lésbicas,
negros, travestis, transgêneros e bissexuais, os quais, naquele momento, já
haviam conquistado alguns espaços e posições importantes. Harvey Milk,
por exemplo, foi o primeiro homem declaradamente gay a assumir um car-
go político nos Estados Unidos e a conquistar direitos para essa classe na
cidade de São Francisco, nos anos 1970. Tais fatores propiciaram a formação
de um público que queria se ver representado no cinema e também o debate
sobre a pluralidade de gênero, diversidade sexual, normas sociais e outras
questões direta ou indiretamente vinculadas.
Mas, afinal, o que é Cinema Queer? Queer e LGBT são a mesma coisa? Ao
longo do seu artigo, Rich não dá muitos detalhes sobre a diferença entre
esses filmes aos quais ela denominou de Queer e os filmes gays e lésbicos
produzidos nas décadas anteriores. Ela não esclarece se há uma diferença
estética ou temática. Ao leitor fica implícito que a intenção da autora era
Essa falta de clareza provocou equívocos quanto aos filmes que deveriam
ser enquadrados no provável gênero emergente. Percebe-se uma falta de
consenso no circuito cinéfilo e teórico, sendo comum o uso do termo cinema
queer como sinônimo de filmes LGBT.
Para Barbara Mennel (2013, ps. 9-10), o cinema queer vai além da simples
descrição de filmes de gays e lésbicas. Eles, por sua vez, fazem parte de
um projeto maior para estudar a filmografia LGBT. São uma espécie de
arqueologia de uma estética cinematográfica alternativa que se concentra
em desejos desviantes, indo além das noções de identidade gay ou lésbica.
Significa reivindicar o direito de ser diferente nos relacionamentos sexuais,
eróticos e afetivos.
Mas, apesar de Mennel tentar descrever o cinema queer para além das ques-
tões homossexuais, fazendo relação com outras sexualidades desviantes, a
autora se contradiz ao confirmar esse elo quase exclusivo, como se observa
no trecho a seguir:
Então, Cinema Queer e Cinema LGBT são a mesma coisa? Não necessaria-
mente. Concorda-se que eles se referem aos filmes com essência política,
porém compreende-se o vínculo apenas às sexualidades desviantes como
superficial. Tatiana Araújo (2014) afirma que filmes com sujeitos e relaciona-
mentos LGBT não garantem uma subversão por si só, podendo filmes com
características normativas ter elementos Queer em sua narrativa.
Para compreender o ponto de vista de Tatiana Araújo, com o qual este es-
tudo está de acordo, é necessário apontar o uso do termo Queer nos países
anglófonos e o porquê de sua apropriação pela Teoria Queer.
2. Tradução livre do autor a partir do original em francês: “D’une maniéré générale, le cinéma
queer prétend raconter des histoires de gays et de lesbiennes confrontés à des événements typiques
de leur expérience collective: jeunesse solitaire et amours déçus, évil sexuel et révélation de leur
homosexualité, épreuves et tribulations des communautés gay et lesbienne. En décrivant des désirs
réprouvés et en suscitant une communion affective de la part du public, le cinéma queer est d’essence
politique” (Mennel, 2013, p. 11).
Portanto:
Queer passou a ser, então, mais do que o qualificativo genérico para gays,
lésbicas, bissexuais, transgêneros de todas as colorações. A expressão
ganhou força política e teórica e passou a designar um jeito transgres-
sivo de estar no mundo e de pensar o mundo. Mais do que uma nova
No início dos anos 1990 surgia a Teoria Queer, tendo o livro Problemas de
Gênero (2017), da teórica pós-estruturalista Judith Butler, como obra de
estreia. Segundo Larissa Pelúcio, “a escolha da palavra ‘Queer’ para deno-
minar uma teoria tratou-se de uma escolha política. Quer dizer, a ideia era
transformar a injúria, as identidades ofensivas atribuídas pelos outros em
um termo de luta e combate” (Pelúcio, 2014, p. 33). A autora ainda clarifica:
Com efeito, este estudo propõe-se a seguir uma análise do filme Boi Neon
(2015), de Gabriel Mascaro, a fim de elucidar o nosso ponto de vista e mos-
Junioréoutropersonagemquetambémdesconstróipadrões. Biologicamente
homem, deveria manter os cabelos curtos e não ser demasiado vaidoso.
Entretanto ele tem os cabelos compridos e preocupa-se em mantê-los lisos
e bem tratados.
Para finalizar
O que se tentou foi trazer uma reflexão sobre o conceito de Cinema Queer
por considerar que este vem sendo tratado de forma limitada. A partir de
pressupostos da Teoria Queer, infere-se que há uma possibilidade muito
maior de obras pertencentes a esse gênero.
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