Você está na página 1de 7

Encontros e desencontros: Uma breve reflexão sobre Bonnie and Clyde, de

Arthur Penn

Vinícius Domingos

Bonnie and Clyde (1967), de Arthur Penn, é considerado um dos primeiros filmes da
chamada “Nova Hollywood”, o momento em que a maior indústria cinematográfica do
mundo, num contexto de crise, como logo veremos, lança mão de técnicas e formas da
nouvelle vague francesa e do “cinema de autor” europeu para atrair novas e jovens
audiências. Ainda que com enredo e estrutura narrativa convencionais, a obra chamou
atenção por conta do que, na época, foi visto como um conjunto de inovações formais e
expressivas. O intuito deste estudo é colocar na mesa uma questão: a utilização de técnicas
visuais e sonoras ditas inovadoras e não convencionais foi suficiente para que o filme
assumisse uma estética verdadeiramente avançada do ponto de vista das possibilidades de
cognição e aferição crítica do processo social e histórico do período? Procuraremos
demonstrar que não, inclusive no que diz respeito a debates já existentes, ainda que
razoavelmente incipientes, no decurso dos anos 60, não somente com as lentes analíticas dos
dias de hoje.

Brevíssima consideração sobre os anos 60

O dado de maior relevância sobre os anos 60 para esta análise é o que diz respeito ao
desenvolvimento dos debates chamados “identitários”. Na esteira dos movimentos de
independência e emancipação política no chamado “Terceiro Mundo”, começaram a emergir,
no interior de países imperialistas e colonialistas como os EUA, Inglaterra e França (o
chamado “Primeiro Mundo”), movimentos em prol de liberdade, visibilidade e emancipação
ideológica dos marginalizados, segregados e oprimidos seja pelo patriarcado, pela
branquitude, pelos políticos no poder etc. Referimo-nos aos “inner colonized of the First
World – ‘minorities’, marginals, and women”, conforme Fredric Jameson 1. A luta era por
direitos, mas também para que fosse amplamente percebido e reconhecido por todos que
esses grupos eram não somente objetos, mas sujeitos históricos. Era pelo direito e

1
JAMESON, F. “Periodizing the 60s”. In: The ideologies of theory. London: Verso, 2008. Esta brevíssima
consideração se utiliza bastante do argumento geral desse texto de Jameson.
oportunidade de falar, produzir, criar e representar – atuar no campo tanto do Real quanto do
Simbólico - por conta própria e enquanto identidade coletiva, e não somente de serem
discutidos(as), defendidos(as) e representados(as) (como objetos) pelo homem branco
intelectual, liberal e de classe média. Mais uma vez nas palavras de Jameson, “this was also a
movement of decolonization”.
Por mais que ainda estivesse incipiente, muito do discurso progressista identitário já
estava na ordem do dia em 1967, quando Bonnie and Clyde foi lançado, em especial no que
diz respeito ao feminismo e ao antirracismo. Trazer esse mesmo discurso para a prática
cinematográfica e incorporá-lo na dinâmica das narrativas era outro desafio, nem sempre fácil
de cumprir, ainda mais quando se fala de uma indústria ainda muito conservadora nos
costumes, como era o caso de Hollywood (e em muitos sentidos ainda é). O cinema dos anos
60, em decorrência de uma grave crise por conta do rápido crescimento da concorrente
indústria televisiva, lançou mão de novas formas e novos conteúdos sob o signo do
investimento: técnicas mais experimentais, diferentes do usual comercial, e conteúdos menos
conservadores e mais politizados poderiam atrair massas de jovens imbuídos do novo
zeitgeist sessentista. Nossa análise procurará demonstrar que Bonnie and Clyde tentou
assimilar esses debates e essas tendências de caráter “novo” e vibrante, mas acabou por
reproduzir, em sua forma, a ideologia conservadora da opressão branca e masculina.

Gênero, sexualidade e crime

O filme Bonnie and Clyde se inicia com fotos em preto-e-branco mostrando cenários,
famílias e pessoas pobres no interior dos Estados Unidos. Tais fotos situam o espectador num
contexto rural, provinciano e de classe baixa, embora sejam mostradas de forma bastante
ligeira. Depois de alguns segundos, toca ao fundo a canção romântica “Deep Night”, de 1929,
cantada por Rudy Vallée. Esta também tem fins de contextualização histórica (o enredo do
filme se passa no início dos anos 30) e indica que a narrativa a seguir também será de caráter
romântico (o que, a nosso ver, não se concretiza por completo). Surgem dois letreiros
subsequentes que contam brevemente a história dos protagonistas do filme, baseados em
pessoas reais: Bonnie Parker nasceu no Texas e trabalhava como garçonete; Clyde Barrow
era filho de sharecroppers e já possuía histórico criminal e prisional. Ambos são
estabelecidos como provincianos e filhos da classe trabalhadora a partir desse recurso.
A primeira cena propriamente dita se inicia com um close da boca com batom
vermelho de Bonnie. Seu rosto completo então surge no espelho: loira de olhos claros,
maquiada, imagem típica de uma mulher atraente e vaidosa. A mise-en-scène é feita de
alternâncias entre planos médios e fechados focados no rosto maquiado e no corpo esguio de
Bonnie. A cena a mostra nua em seu quarto, embora não explicite sua nudez. Por mais que
seja uma mulher dos anos 30, baseada em alguém da vida real (registrada em fotos,
inclusive), a Bonnie do filme é retratada a partir de tintas fortemente sessentistas. Seu corte
de cabelo, sua maquiagem, suas poses e caras, as boinas que usa no restante do filme, a nudez
no quarto etc., são elementos que remontam à imagem da mulher dos anos 60: mais livre
estetica e sexualmente. O intuito de tal caracterização muito provavelmente reside numa
possível e desejada identificação imediata das espectadoras jovens para com a personagem de
Faye Dunaway2. No entanto, não é só a estética do corpo e do rosto de Bonnie que puxa o
filme para os anos 60, mas também a liberdade da câmera e a forma sexualizada de retratar a
personagem feminina logo de início (algo que, nos anos 30, certamente teria encontrado
estranheza, censura e proibição). Todavia, um problema encontrado nessa cena, ao menos do
ponto de vista da liberdade sexual da mulher, está no fato de Bonnie existir como um corpo e
um rosto a serem apreciados por ela mesma e pelo espectador. O que prevalece é o famoso
“male gaze”, característica comum do cinema hollywoodiano desde antes dos anos 60, de
acordo com a cunhadora do termo, Laura Mulvey. Tal estética faz da mulher e do corpo
feminino objetos reificados de apreciação e geradores de prazer (para o homem, diga-se)
distanciando-se então de uma estética feminista que, a princípio, parecia propor.
É nua que ela se apresenta a Clyde, que está do lado de fora da sua casa tentando
roubar o carro de sua mãe. Clyde demonstra interesse na mulher seminua (a opacidade do
vidro da janela e a posição de Bonnie não permitem que Clyde a veja completamente nua)
que surge à sua vista e que, inesperadamente, demonstra interesse, no lugar de repulsa ou
medo, em seu crime quase realizado. O fascínio de Bonnie pelo mundo do crime como
contraponto a uma vida repetitiva e aprisionante de trabalho alienado e baixa renda (tema
frequente no cinema americano do cinema não só da década de 60, mas também das
subsequentes) é mais um elemento que puxa a obra para a sua contemporaneidade. No
contexto sessentista, tal fascínio revelava um encanto da juventude pela rebeldia anti-

2
A nosso ver, a escolha de protagonistas bonitos, jovens e, no caso de Bonnie, com um senso de moda
contemporâneo, serve, dentre muitos outros recursos, para a identificação do espectador jovem e a par do novo
espírito da época com os protagonistas, que a partir daí se tornam heróis no olhar do público. Nas palavras de
Peter Lev, “In Bonnie and Clyde, the spectator identifies with the title characters for multiple reasons: they are
young and beautiful; they are robbing socially ‘‘bad’’ institutions; the chief lawman is a nasty character; they
are played by movie stars; they are the on-camera centers of attraction. There is room to doubt the main
characters (is Clyde really justified in shooting the bank employee?), but in general the film sympathizes with
the good-bad guys.” (LEV, P. American films of the 70s: conflicting visions. Austin: The University of Texas
Press, 2000)
establishment, a que a figura do criminoso em muitos sentidos remete. Establishment aqui
podendo ser: a família tradicional, o trabalho alienado, a padronização da vida, o consumismo
e o grande mercado, a religião e o conservadorismo, o patriotismo reacionário, a etiqueta e os
protocolos oficiais, os preconceitos de vário tipo, o sistema capitalista etc.
Como trata-se de um filme de 1967, já há liberdade artística suficiente para trabalhar
questões de cunho erótico e sexual que, nos anos 30, seriam impossíveis. Uma delas está na
emblemática cena em que Clyde mostra o revólver para Bonnie. Enquanto bebem
efusivamente garrafas de Coca-Cola (a câmera registra os rostos em plano fechado), Bonnie
pergunta a Clyde sobre a sensação de um roubo à mão armada, o que o leva a mostrar
sensualmente a pistola3. Trata-se de uma clara alusão fálica, em especial na forma como o
rosto de Bonnie reage ao ver e tocar (!) a arma. Nesta cena, crime e libido se confundem e,
não só mutuamente, somam-se ao prazer do consumo do mais famoso refrigerante do mundo
- já nos anos 60 uma das mais famosas marcas de qualquer coisa no planeta, nascida nos
EUA.
O primeiro contato erótico entre o casal (beijos e abraços no carro durante a primeira
fuga juntos) acontece justamente após Clyde realizar um assalto num comércio local,
mostrando para Bonnie que é capaz de tal feito: proeza criminal se iguala à proeza sexual no
contexto da obra, ou pelo menos em seu início. A questão da libido e da sexualidade no filme,
no entanto, é problematizada na figura de Clyde. Bonnie é retratada como uma figura de alta
libido e muito vigor sexual, algo que um filme dos anos 30 dificilmente retrataria. Clyde
desde o início se desvia dos avanços de Bonnie dizendo que não é um “lover boy”, mas que
não há nada de errado com ele, afinal ele não gosta de garotos 4. A proeza criminal de Clyde
mantém Bonnie atraída por ele, uma vez que ele não está disposto a entregar o que ela quer
do ponto de vista sexual. Seu revólver é seu falo. Não há como negar que há algo de
diferenciado e interessante nesse tratamento atípico da sexualidade: a mulher avança
enquanto o homem recua; ela, ainda que de criação provinciana e conservadora, é libidinosa;
já ele, mesmo sendo bom com o revólver e astuto na realização dos crimes e na fuga da
polícia, é impotente, como demonstra a ousada cena em que Bonnie tenta fazer sexo oral no

3
Seria de grande interesse um estudo sobre a significação do revólver na cultura norte-americana, em especial
no cinema. Desde pelo menos os westerns até os dias de hoje, passando pelos filmes de máfia, policiais,
derivados etc., percebe-se com clareza que essa arma ocupa lugar especial no imaginário norte-americano, quase
sempre figurada como instrumento máximo de poder, mas pequena o suficiente para as necessidades da classe
média (que se iniciam na alegação de autodefesa e terminam no mass shooting).
4
Há quem diga que o plano inicial era construir Clyde como personagem bissexual, pois há rumores de que o
Clyde real talvez também o fosse. Tal decisão seria, mesmo para os anos 60, muito ousada e poderia causar
espanto nos espectadores. De qualquer forma, a fala abre margem para suspeitas desse tipo e também
complexifica o quadro da sexualidade desenhada pelo filme.
parceiro, e inseguro, conforme revelado na cena logo após a primeira relação sexual entre os
dois, quando Clyde pergunta à parceira se ela se sente como as mulheres costumam se sentir
após o sexo. Tal tratamento é certamente herdeiro dos debates nos campos de gênero e
sexualidade que emergiram no decorrer dos anos 60.
Por mais que haja material para dizer que o filme seja avançado no que diz respeito à
questão de gênero (ao colocar Bonnie como mulher “empoderada” e administradora de sua
própria libido), as cenas seguintes demonstram como o filme ainda é retrógrado quanto a
essas mesmas questões. No restaurante, Clyde monologa a respeito da vida de Bonnie e
constrói a personagem ao espectador: é a palavra e a argúcia do homem que faz a mulher, que
ouve e concorda sem quase responder. A chegada da garçonete que flerta com Clyde reforça
o papel de “macho alfa” sedutor que é dado a ele, mesmo após o episódio da recusa do sexo
no carro. É quase uma metonímia em miniatura de sua conquista em relação a Bonnie,
também ela garçonete. O ápice se dá quando, ao fim da cena, Clyde ordena que Bonnie mude
o penteado de uma forma que apeteça a ele e a moça prontamente o faz, sentindo-se
recompensada ao ouvir um simples elogio. Como não há, a nosso ver, elementos na obra que
problematizem o ponto de vista de Clyde, permanece então a perspectiva do machismo a
respeito do material posto em cena.

Crise

Outra cena emblemática é aquela em que Bonnie e Clyde, no início de sua aventura
juntos, conhecem um homem pobre, Otis, dono da casa abandonada onde passaram a noite. O
sujeito está de mudança com a esposa - que aparece pouco mais ao longe tomando conta dos
filhos no carro, sem falar nada, reforçando a perspectiva do machismo mencionada acima -
pois a casa havia sido tomada pelo banco, remetendo o espectador claramente à crise
econômica de 1929. Surge então outro homem, negro (único do filme), que vem de um pouco
mais longe, num plano aberto, no meio do quadro, como uma mistura de herói e fantasma.
Otis diz que ele e Davis, o homem negro, “put in the years here”, referindo-se à casa. Clyde
incentiva Otis a atirar contra o lugar, agora sem uso, e a placa, num gesto metafórico contra o
banco em si. Assim ele o faz e diz a Davis (que não fala nada durante toda a cena) fazer o
mesmo, e este também o faz, mas não sem antes se virar servilmente para Otis, para ter
certeza se deve realizar tal ação. Otis o manda ir em frente. De um determinado ponto de
vista, a cena possui caráter progressista, pois coloca em cena um branco e um preto, ambos
sem terem onde morar, num gesto de revolta contra o banco, instituição quase símbolo do
capitalismo predatório. Por outro lado, outra camada de significado, talvez menos aparente,
dá voltagem diferente à cena. No contexto do Sul agrário do fim da década de 20, é bastante
capaz que Davis tenha vivido com Otis como seu servo, ainda mais se levarmos em conta o
olhar que um dirige ao outro antes de Davis dar o tiro. Davis se vira como quem pede
autorização, Otis dá a anuência. A dinâmica da cena não supera, mas reforça a lógica do
racismo paternalista.
No tocante à crise de 29, outra cena de interesse é certamente a do assalto ao banco
falido. Mais uma vez para impressionar Bonnie, que agora ficará responsável pela fuga,
Clyde irá realizar um assalto, dessa vez a um banco. Ao chegar lá, descobre que o banco
faliu. Para provar a Bonnie que não teve culpa pelo fracasso, Clyde leva o amargurado dono
do banco até o carro onde ela está e o faz dizer a ela que no local não havia dinheiro algum,
levando a moça às gargalhadas. Os dois fogem em seguida, não após Clyde, frustrado, dar
mais alguns tiros nas paredes do lugar. O próximo assalto se dará num pequeno comércio, na
contramão do propósito aparentemente nobre de roubar bancos estabelecido pela cena que
analisamos no parágrafo anterior5. O motivo do banco falido poderia ter servido de material
para cenas de muito mais interesse, mas sua comicidade não chegou a alcançar o nível
necessário para uma aferição crítica do processo ligado à crise de 29 e suas reverberações no
presente. De certa forma, tal cena consegue resumir o modus operandi do filme como um
todo.
A política e o processo social em Bonnie e Clyde são como os pôsteres da candidatura
de Roosevelt em uma das cenas do início do filme: estão ao fundo e passam rápido, para que
prevaleça a estética do “drama burguês”, no sentido dado por Peter Szondi 6. Obviamente,
como ocorre com qualquer obra de arte, o filme de Arthur Penn acaba por assimilar dados do
seu tempo histórico e o espectador mais bem equipado historica e culturalmente é capaz de
captá-los. Ao fim e ao cabo, no entanto, e a última cena deixa isso bem claro, Bonnie and
Clyde é um filme que narra os altos e baixos de um conflito posto como meramente pessoal,
cujas condicionantes sociais e econômicas são de interesse secundário ou ainda abaixo disso.
Ainda que de modo mais matizado e complexo, devido menos a um esforço formal do que às
energias culturais do período, a narrativa não vai além do típico motivo de heróis (os ladrões)
contra vilões (a polícia), porém em chave levemente torcida. Não há um trabalho, por
exemplo, de investigação histórica em relação aos anos 30 - e a situação específica do Sul - e
5
Curiosamente, a frase do filme que ficou mais famosa até hoje é “We rob banks”, por mais que Bonnie, Clyde
e a gangue também roubassem lojas de pequenos comerciantes, tanto no filme quanto na vida real.
6
Se formos pensar que o setting é provinciano e as personagens são de origem de classe trabalhadora, tal
estética fica ainda mais problemática e, principalmente, inadequada.
suas reverberações contemporâneas, algo até hoje do maior interesse7. É somente um cenário
histórico como qualquer outro poderia ser. O contexto maior da crise do capitalismo, ainda
mais nos anos posteriores aos da crise de 29, como é o caso do filme, não encontra lugar no
tratamento da “rebeldia” e do crime, que aqui surgem devido ao que parece ser mera euforia,
resposta impulsiva, adrenalina, manifestação prática de um desejo interno de transgressão do
ócio, do trabalho alienado e das regras do establishment, por mais que haja um ímpeto
político por trás.
A nosso ver, há em Bonnie e Clyde material estético e narrativo que vai de encontro à
aferição cultural dos anos 60, em especial no que diz respeito aos debates sobre a liberdade, a
política identitária, a rebeldia anti-establishment etc. O arranjo formal tradicional e afeito às
normas conservadoras da indústria hollywoodiana, contudo, promove um desencontro entre
experimentação formal e potência crítica do ponto de vista do materialismo histórico.

7
Tal trabalho ocorreu na década de 70 com Thieves like us, de Robert Altman.

Você também pode gostar