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nesse fato o final do momento de brilho pulsante e da coletividade

“Cinema Novo”. O casal e o laço de parentesco concedia uma união


particular ao grupo como um todo, que certamente o extrapolava,
mas que sem ele ficou esgarçado. Declarações de época mostram que
a morte de Anecy foi um golpe fatal na saúde mental de Glauber.
Também Walter Lima sofreu, mas, numa medida diferente do
cunhado, conseguiu sobreviver e refazer a vida. A tragédia foi uma
espécie de manto final colocado sobre o período mais juvenil do
Cinema Novo, aberto de modo intenso, naturalmente, às
experiências e à convivência grupal.

CINEMA MARGINAL
A partir de meados da década de 1960, um conjunto de jovens
diretores, próximos inicialmente ao grupo cinemanovista, acentua e
radicaliza a linha da opção narrativa alternativa. Abandonam os
dilemas do engajamento e incrustam-se na exasperação, no deboche
e na curtição. Progressivamente se acentua a ruptura com a geração
anterior, na qual diversos diretores tiveram raízes. É o chamado
Cinema Marginal, nome que os cineastas receberam à sua revelia,
mas que os define bem, mostrando opções estilísticas e de produção
alternativas que escolheram conscientemente, além da sintonia com
outros grupos de vanguarda da época que receberam a mesma
denominação, como a poesia marginal. Hélio Oiticica, numa de suas
obras mais conhecidas do período, estampou a frase “seja marginal,
seja herói”. O grupo Marginal possui unidade bem mais dispersa que
o Cinema Novo e nunca se constituiu como um todo, envolvendo
relações de amizade e estratégias de produção perdurando por
décadas. Elas existiram, mas em períodos mais restritos e com
relações pessoais mais focadas. O conjunto de obras do Cinema
Marginal, no entanto, se apresenta de modo bastante orgânico e
estrutural. Ao examinarmos as condições de produção e o intervalo
histórico em que se constituem, delineia-se um conjunto com
unidade razoável. Há, portanto, uma “geração marginal” mais
próxima da contracultura que o Cinema Novo, também enfronhada
nos horrores da repressão e da luta armada, como opção não seguida.
Essa parcela mais jovem da “geração 1968” rompe com os
precursores cinemanovistas por uma questão de espaço no mercado
cinematográfico e recursos para produção, ou para assumir opções
estilísticas mais radicais.
É importante mencionar que houve proximidade, em
determinado momento, com o Cinema Novo, seguindo-se um maior
ou menor ressentimento no afastamento. Afastamento que
podemos encontrar testemunhado, em termos cinematográficos, no
curta tardio, Horror Palace Hotel (1978), de Jairo Ferreira. Dentro dos
Marginais que circularam pelo Cinema Novo, estão diretores que
mais tarde terão um papel central no cinema da nova geração, como
Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Neville d’Almeida, Geraldo
Veloso, Luiz Rosemberg, Eliseu Visconti e outros. A produção dos
primeiros filmes de Rogério Sganzerla em São Paulo, longe da
guarida do Cinema Novo, é sintoma desse distanciamento
progressivo. Ainda, Rogério participa solitário do Festival
Internacional de Cinema no Rio de Janeiro, patrocinado pelo INC e
boicotado pelo Cinema Novo. Essa participação só faz aumentar
ressentimentos mútuos. Em 1969, Júlio Bressane e Rogério
Sganzerla publicam artigos e fazem declarações ironizando o
Cinema Novo e suas propostas, o que provoca reações ressentidas da
geração mais velha. A polêmica atinge o ápice com a publicação, em
dezembro de 1970, de uma entrevista conjunta de Rogério Sganzerla
e Helena Ignez ao jornal O Pasquim66, em que ambos criticam
agressivamente o Cinema Novo, chamando-o de “conservador de
direita”, “paternalizador” e representante da “antivanguarda”.
Glauber Rocha não deixa esses ataques sem resposta, em
observações que, aparentemente, guardou para si: “Caiu a ponte de
gentilezas. O udigrúdi é um aborto restaurador do formalismo
decadente do amante de Anastacya. O primeiro e único filme
underground 68 é Câncer, made by Glauber Rocha”67. Um pouco
depois, não é surpreendente encontrarmos Glauber também
definindo o caráter “regressivo” dos Marginais em 1975 (na
contemporaneidade de seu longa bem “marginal”, Claro), no artigo
“Udigrúdi: uma velha novidade”. O tom do artigo destoa do espírito
contracultural “irracionalista” de “Eztetyka do Sonho”, em 1971.
Está próximo, outra vez, às demandas de uma “progressão” (e não
regressão) racional na “crítica da história” pela obra de arte, para
combater o “caos social” (retornamos aos dilemas da segunda
metade da década de 1960). Descobre então que: “os filmes udigrúdi
são ideologicamente reacionários porque psicologistas e porque
incorporam o caos social sem assumir a crítica da história e
formalmente, por isso mesmo, regressivos”68. Glauber mostra-se
ainda ressentido com os desdobramentos Helena/Sganzerla: “os
jovens cineastas Tonacci, Sganzerla, Bressane, Neville e outros de
menor talento levantaram-se contra o Cinema Novo, anunciando
uma velha novidade: cinema barato, de câmara na mão e ideia na
cabeça”69.
Na geração Marginal, podemos destacar o grupo sediado no Rio
de Janeiro e, particularmente, Júlio Bressane como mais próximo à
tradição cinemanovista, embora o diálogo e a convivência sejam
intermitentes. Em São Paulo, onde o Cinema Novo nunca chegou de
verdade, a distância é mais fácil e aguda. Já dentro de uma linha de
contato direto com o mercado e ruptura maior com o que chamam
de linguagem “europeia e elitista” do Cinema Novo, Carlos
Reichenbach, João Callegaro, Antônio Lima, Jairo Ferreira, tendo
muito próximo Rogério Sganzerla, iniciam a produção de uma série
de filmes marcados pela absorção sem culpa da narrativa clássica
hollywoodiana, horizonte ausente do Cinema Novo. A questão do
público e da forma como atingi-lo aparece em primeiro plano. A
geração dos “novíssimos” emerge em sintonia com a primeira Boca
do Lixo e circula com agilidade por seus produtores (que também
iniciavam carreira), entre os quais reinava o comercialismo mais
selvagem. A ele se adaptam dentro do recorte do avacalho, sem
contradição com as demandas do contexto ideológico da
contracultura.
Existe ainda outra face do Marginal paulista que fica mais
próximo da vanguarda literária e teatral, que dialoga com as
experiências do grupo Oficina e os tropicalistas baianos, que nesse
momento moram em São Paulo. João Silvério Trevisan (Orgia ou o
homem que deu cria, 1970), Júlio Calasso (O longo caminho da morte,
1971), José Agripino de Paula (com o precoce Hitler no III Mundo,
1968) e Carlos Albert Ebert (República da traição, 1969) circulam com
agilidade nesse ambiente. Ainda mais ligado ao Oficina, André Faria
Jr. dirigiria, em 1971, Prata Palomares, e José Celso Martinez começa
também nesse ano o longo e acidentado trajeto de O rei da vela,
produção especificamente ligada ao Oficina que só terminaria na
década de 1980, tendo certificado de censura emitido em 1982. São
cineastas que também circulam pela Boca, já em plena ebulição e
onde tudo acontece no início da década, mas sua interação com os
produtores não possui a sintonia de um Carlão, do primeiro
Sganzerla, de um Callegaro. Andrea Tonacci faz parte do grupo,
inclusive por sua proximidade, desde os primeiros curtas, com
Rogério Sganzerla, mas articulará a produção de seu Bang bang por
fora da Boca, com o pessoal de Minas no Rio de Janeiro,
particularmente Lanna e Veloso.
Com participação orgânica na geração Marginal, Júlio Calasso e
Carlos Ebert são dois diretores que têm proximidade com o grupo
Oficina, e inserção simultânea no mundo do cinema e na Boca.
Calasso fez parte do elenco de Galileu Galilei, participa intensamente
de atividades diversas nos meios artísticos da época, com espírito
livre e aberto para experiências que não se restringem ao cinema.
Terá depois carreira independente e variada. Com recursos
mínimos, realiza O longo caminho da morte (1971), no qual se sente
fortes pitadas do “espírito” marginal, embora partindo de uma
temática histórica com corte fora do marginal-cafajeste. Ebert é
figura tradicional no meio cinematográfico, com posterior carreira
ampla de fotógrafo e vínculos claros com a geração cinéfila do
Marginal paulista que remonta a Escola Superior de Cinema São
Luiz. Fez câmera em O Bandido da Luz Vermelha e fotografou Prata
Palomares. Dirige República da traição, contemporâneo na realização
de Gamal (1969), contando com Júlio Calasso na direção de
produção e contatos com o grupo Oficina. É filme bem típico da
estética Marginal com exaltação expressa em gritos guturais, vômito,
sangue. Sente-se o peso da dramaturgia do Oficina da época. A
explosão de cores de República da traição brilha com força única nos
filmes Marginais, boa parte em preto e branco e fotografia precária
(faz par com o cinerama de Copacabana mon amour). Revela o
cuidado que o talentoso fotógrafo Ebert teve com a luz e a revelação
do negativo, em seu único longa. André Faria também circula no
grupo teatral e dirigiria Prata Palomares, filme marcado por uma
espécie de cruzamento entre “tropicalismo/Oficina/Cinema Novo-
Marginal”, respirando o clima político da época. Em troca da
assistência de câmera em República da traição, Ebert fotografou Prata
Palomares. Esse recorte do Marginal paulista evolui com certa
independência da Boca do Lixo e nunca possuiu a intimidade,
inclusive em termos de produção, dos “cafajestes”.
No trabalho de João Silvério Trevisan, Orgia ou o homem que deu
cria (1970), como também no de João Batista de Andrade, em Gamal,
o delírio do sexo (1969), nota-se traços de apelo ao público (o título
erótico, por exemplo) que revelam a presença de uma preocupação
de atingir o mercado exibidor. Orgia, no entanto, é um filme ainda
fortemente marcado pela estética da representação do Brasil, sua
história e suas forças sociais, características da última fase do
Cinema Novo. Na composição dos quadros que simbolizam o Brasil,
sente-se igualmente a presença de traços tropicalistas. Trevisan se
afirmaria em seguida como uma espécie de teórico do Cinema
Marginal, na ruptura com os cinemanovistas. Mantém polêmica
acesa com Glauber, tanto nos debates estéticos como na valoração
da questão de gênero/sexualidade, no horizonte da contracultura.
Possui análise lúcida sobre o Cinema Marginal e seu significado para
a época. João Batista de Andrade é companheiro de época dos
Marginais, depois seguindo carreira própria. Em Gamal dirige um
longa meio fora de esquadro em sua obra, um dos filmes da geração
que vai mais fundo na fragmentação narrativa: nele só se respira
agonia e exasperação, e a expressão é sintonizada no modo gutural.
O fato de João Batista, com carreira posterior diversa, haver sido
cooptado na órbita Marginal é significativo da intensidade que esse
núcleo estético e ideológico exerce de modo horizontal na época.
Maurice Capovilla com seu O profeta da fome (1969) pode ser
analisado na mesma linha de atração. Tomadas de O profeta da fome
aparecem em Audácia!, filme manifesto do cinema cafajeste.
Em 1968, Rogério Sganzerla dirige em São Paulo O Bandido da Luz
Vermelha, que marca o ponto de transição entre a geração
cinemanovista e a ruptura Marginal. A narrativa tem giro numa
intertextualidade centrifugada em velocidade que o Cinema Novo
não acompanha. Traz para junto de si o universo de referências
cinematográficas da nova cinefilia, indo do brega sem complexos
(incluindo a trilha sonora) ao kitsch reiterado dos cenários, a mídia
sensacionalista, o estilo radiofônico fora de sua gravidade, a
presença recorrente dos quadrinhos, da ficção científica, das
citações de filmes de gênero, tudo trabalhado em um modo
citacional, intertextual, fundado na consciência reflexiva, marca
desse momento de ruptura no cinema brasileiro. Embora filmado na
Boca do Lixo, com produção própria e da Boca (em seus primeiros
tempos), aparentemente teve apoio do Cinema Novo antes da
ruptura, se acreditarmos nas declarações de Glauber à revista
Hablemos de Cine concedidas, no Rio de Janeiro, em abril de 1969.
Glauber acusaria Sganzerla de ser ingrato (“um oportunista que quer
obter patrocínio do INC”) e não reconhecer em seus vínculos
iniciais com o Cinema Novo: “[Rogério Sganzerla] não conta que fez
seu filme [O Bandido da Luz Vermelha] em São Paulo e enviou todas
as contas à Difilm para que as pagasse, causando-lhe um prejuízo de
Cr$ 9 milhões”. Rocha menciona também na entrevista
adiantamentos da Dilfilm e, portanto, do Cinema Novo, aos filmes
iniciais de Bressane, Cara a cara, e Neville, Jardim de guerra70.
Bandido evolui dentro de um estilo em “transe”, que não deixa
de lembrar figuras glauberianas. Possui ainda rastro de origem na
produção do Cinema Novo, como mostra a demanda premente pela
representação do Brasil e de sua história, mas já está em outro
patamar, fechando-se na agonia do deboche e do avacalho, sem que a
dimensão da má consciência ou os dilemas existencialistas sobre a
liberdade no compromisso político deixem a mais leve marca. Nesse
sentido, a ruptura é bem resumida pela frase-chave do filme, que
virou lema dos Marginais, em seu circuito fechado no desbunde:
“quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha – avacalha e se
esculhamba”. Efetivamente, o que restava a fazer, a partir do
fechamento agudo da sociedade brasileira em 1970, era se
esculhambar, no sentido de uma volta ao próprio ego dilacerado:
mergulhar no “dentro-de-si mesmo”, esculhambando os afetos até o
desbunde – ao mesmo tempo que se avacalhava expectativas
movidas à razoabilidade que ainda traziam a dimensão da práxis no
horizonte. O fato é que O Bandido da Luz Vermelha é um filme de
ruptura, fora do esquadro cinemanovista, e foi recebido com forçada
indiferença pelo grupo. Geraldo Veloso descreve bem a recepção
pelo Cinema Novo de O Bandido, aprofundando a fissura já esboçada
em um caminho sem volta:

O filme [O Bandido] cai com enorme impacto sobre a


comunidade cinematográfica. A inesquecível sessão na cabina de
Líder, com todo o Cinema Novo presente, vai desencadear uma
série de reservas mais ou menos veladas a meu ver causadas
pelos ciúmes dos resultados fantasticamente criativos
alcançados por Rogério em seu filme. Ferido, Rogério se recolhe
[...]71.

Já no filme seguinte de Sganzerla, A mulher de todos, de 1969,


também produção plenamente integrada na Boca, o estilhaçamento
do espelho é mais agudo e o Brasil voa pelos ares com a figuração
livre das referências múltiplas da cultura de massa, misturando-se às
imagens da pequena burguesia depravada e cafajeste em seu lazer
praiano. Se em O Bandido, a presença do universo urbano, da
sociedade de consumo e do lixo industrial marca a particularidade
numa composição que ainda respira história, agora o universo
fantasista das mercadorias e seu agentes sociais esculhambados
transfere-se para a baixa classe média na praia, em seu momento de
consumo e lazer. O abandono da ética cinemanovista se acentua,
com o aproveitamento ativo (no modo da citação não valorativa) do
kitsch (brega). Em um modo livre, a degradação dos personagens
pode ser “curtida” na própria estatura baixa e repugnante de sua
constituição. Nesse sentido, A mulher de todos possui um papel de
ruptura similar ao de O Bandido da Luz Vermelha, acentuando e
aprofundando os traços mais agudos e firmando de vez a estética
Marginal.
O Marginal-cafajeste caracteriza-se por possuir linha de contato
forte com o mercado e o cinema emergente na Boca paulistana.
Segundo Carlos Reichenbach, um grupo de jovens cineastas
cansados de tentar conseguir financiamento para um filme “sério”
resolve “fazer um filme sacana no momento em que todos os colegas
sonhavam com o filme político”72. As libertinas inicia o processo,
sendo produzido a partir de esquemas alternativos da Boca do Lixo,
já em seu primeiro momento, em 1968. Tem como objetivo imediato
o lançamento do filme no mercado e consequente retorno
financeiro, mas é impregnado pela cinefilia com corte reflexivo,
marcando a modernidade do jovem cinema. Seu cartaz o define
como um “sexo-filme”. Seus diretores, Carlos Reichenbach, Antônio
Lima e João Callegaro, aparecem como “sexo-diretores”, e seus
episódios (Alice; Ana; Angélica), “sexo-estórias”. É clara a postura
lúdica e autorreferente com relação ao universo representado,
explorando o eixo erótico. Não contradiz a demanda dos produtores,
mas sintoniza suas necessidades para poder debochar. A
convergência, enquanto dura, singulariza a produção “cafajeste” na
Boca, fazendo a ponte com um cinema de narrativa moderna, já no
corte cinéfilo. Mulheres bonitas, pitadas de comédia e cenas
sensuais integram-se numa obra que se aproxima da futura produção
pornochanchada.
Em 1970, no folheto promocional de O pornógrafo, distribuído no
lançamento do filme, intitulado “Manifesto do cinema cafajeste”,
João Callegaro define alguns pontos da estratégia do Cinema
Marginal que convive de modo mais íntimo com a Boca e seus
produtores. Trata-se de abandonar as “elucubrações intelectuais,
responsáveis por filmes ininteligíveis”, e atingir uma comunicação
ativa com o grande público, aproveitando os “50 anos de mau cinema
norte-americano devidamente absorvido pelo espectador”. Vamos
nomeá-lo aqui de Cinema Marginal-cafajeste. Mantém um
relacionamento estreito com os produtores da Boca, onde consegue
o financiamento para produções precárias, feitas a toque de caixa,
com óbvios apelos ao grande público (sexo, aventura) e retorno
comercial satisfatório. O diferencial do Cinema Marginal-cafajeste
da Boca é o diálogo ativo com certa vanguarda do novo cinema
europeu da primeira metade da década de 1960 que possui a ruptura
da modernidade, mas é carregada pela cinefilia, incorporando,
inclusive, pelo viés autoral, do lixo do cinema, o filme B de gênero. É
um cinema jovem que, principalmente em Sganzerla, mas também
em Reichenbach, sabe onde colocar os pés e em que lugar se situar na
história do cinema. No Cinema Marginal desloca-se o quadro
valorativo. A linguagem que os jovens cineastas marginais da Boca
buscavam permite o “deglutir” de objetos estéticos intragáveis ao
estômago cinemanovista, bem mais delicado. Trata-se da descoberta
intertextual atraída pelo verniz clássico que incorpora, numa
inspiração nouvelle vague, desde o filme B autoral hollywoodiano
mais precário (ou cafajeste), o western, o musical e o policial noir, até
as próprias chanchadas, agora glorificadas exatamente na
precariedade que antes tanto incomodava e no deboche, que lhes é
inerente. Uma vez abandonada a tábua valorativa e a ética da verdade
que o primeiro Cinema Novo ainda sustenta, a proximidade com o
universo da sociedade de consumo e da cultura de massa é
incorporado pela narrativa Marginal de forma ativa. Ao incluirmos
também os restos bregas e degradantes da cultura de massa, teremos
uma das chaves para o que foi definido73 como Estética do Lixo.
A evolução do grupo “cafajeste” em direção a filmes como
Audácia! (1970) enfatiza a presença da autorreferência pela
avacalhação. Audácia é longa-metragem com prólogo e dois
episódios74, com direção de Carlos Reichenbach e Antônio Lima,
explorando o mesmo veio de As libertinas. Conta com a participação
de Jairo Ferreira como assistente de direção. Parece mais uma
brincadeira com cinema do que um filme comercial propriamente,
talvez em razão das cenas eróticas enxertadas. Audácia! (que tem o
subtítulo A fúria dos desejos) chega a ser lançado e é tido por seus
diretores como um filme que não decepcionou em termos de
público. O prólogo é uma espécie de pesquisa, bem em família, sobre
a Boca do Lixo em 1969 e seus habitantes, com as referências
cinéfilas nacionais dos Marginais-cafajestes. Uma entrevista de
Sganzerla com José Mojica surge no final, e a defesa do “filme ruim”
de Paulo Emílio também está lá (“o negócio é fazer filmes péssimos”,
diz uma personagem na discussão de bar que finaliza o episódio). O
“filme péssimo” de Audácia! é o filme B no discurso dos Marginais,
“curtido” na intertextualidade cinéfila, louvado pela agilidade na
produção, contra o esteticismo caro e vazio da geração mais velha.
Há também a sequência em que a turma Sganzerla, Carlão e Lima
aparece junto de Candeias, na época uma referência, como Mojica,
para o grupo. No episódio de Reichenbach, num ambiente de total
descaso e deboche da realização, vislumbra-se, na ironia, a prática do
elogiado “filme péssimo”. A narrativa traz a marca da modernidade e
da cinefilia meio nouvelle vague, na qual os mais antenados do grupo –
Carlão, Jairo e Sganzerla – sintonizam. Na mesma linha, João
Callegaro, que já havia dirigido um episódio de As libertinas, faz, em
1970, O pornógrafo, obra na qual se sente um trabalho autoral mais
desenvolvido. Há o diálogo com o classicismo de gênero norte-
americano na fotografia, cenários e no universo ficcional, trazendo a
marca do Marginal paulista. Numa atmosfera de filme policial, são
narradas as desventuras de um produtor de revistinhas
pornográficas (os antigos “catecismos”).
Jairo Ferreira deve ser destacado nesse grupo. Um pouco mais
tardio e mais tímido que o necessário para se firmar como diretor,
sua obra cinematográfica é consistente. Ficou um pouco ao largo na
geração, por se utilizar basicamente do suporte Super-8. Obtém
resultados impressionantes para a bitola, mas ela impede uma maior
circulação cinematográfica de sua obra. Jairo é o grande cronista do
grupo Marginal no período, acompanhando as andanças do grupo
cafajeste e de outros pela Boca. É também um cinéfilo de mão-cheia –
como o são Carlão e Sganzerla –, dominando um campo de
referências com personalidade que ultrapassa a lista de citações. Sua
atitude sempre aberta para a vanguarda radical e sua personalidade
retraída sem interesses financeiros de produção imediatos
permitem que estabeleça vínculos também com o grupo do Rio de
Janeiro: Bressane, Geraldo Veloso, Visconti, Lanna, Neville, Ivan
Cardoso e outros. Enquanto os jovens que chegavam a seu primeiro
longa tinham obrigações com a estrutura de produção, Jairo
circulava com mais liberdade, podendo cumprir essa função de
cronista, seja nas críticas que publicava no São Paulo Shinbum entre
1966 e 1973, seja nos longas mais tardios, e por isso mesmo
retrospectivos dos anos áureos, como O vampiro da Cinemateca
(1975-1977) e o memorialista O insigne ficante (1980). O vampiro da
Cinemateca é uma espécie de súmula crítica de Jairo Ferreira e do
Cinema Marginal na Boca. É o manifesto audiovisual da geração,
escrito em matéria fílmica no formato longa-metragem.
Conforme mencionado, em A mulher de todos (1969), Sganzerla
acentua os aspectos da intertextualidade cafajeste, num modo que
evolui radicalmente com relação a O bandido, em termos de
fragmentação narrativa e exacerbação dramática. Estamos num
patamar que já dá o passo e se integra aos filmes seguintes que o
diretor fará na produtora Belair. Sganzerla é ponto-chave para
compreender a ligação do Cinema Novo com o Cinema Marginal,
principalmente por sua vivência, inicialmente na produção marginal
paulista (incluindo Tonacci), e sua posterior liderança, com Júlio
Bressane, no Rio de Janeiro, do ciclo de produção Belair. Em meados
da década de 1960 (no início, com sua atividade de crítico), Sganzerla
esteve perto de franjas do Cinema Novo, incluindo o próprio
Glauber, num modo único no Marginal paulista. Por isso A mulher de
todos é filme-chave. Marca a completa ruptura com o universo
cinemanovista que, de algum modo, ainda se respira no Bandido.
Escancara a janela em direção aos filmes e ao clima do universo
ficcional da Belair. Junto com O anjo nasceu (com o qual concorre no
Festival de Brasília de 1969) e Matou a família e foi ao cinema, compõe
a corrente de ar que estoura as margens estreitas do Cinema Novo,
desembarcando no Marginal maduro e autossuficiente da Belair.
Bressane, inicialmente, também foi próximo da geração
cinemanovista, circulando bem em seu meio. Seu primeiro longa,
Cara a cara, teve participação concreta da Difilm. Consta sua
presença como assistente de eletricista em Menino de engenho
(algumas fontes referem-se a assistência de direção) e dirige com
Eduardo Escorel o documentário direto Bethânia bem de perto (1966).
Seu primeiro curta solo, do mesmo ano, Lima Barreto: trajetória, tem
a participação de David Neves, além de Escorel e Affonso Beato.
Ainda em 1967–1968, logo antes da ruptura mais forte
Marginal/Cinema Novo, entra como produtor associado em Brasil
ano 2000. É de dentro do Cinema Novo, portanto, que Bressane
emerge, puxado com mais força para fora por Sganzerla, a partir de
1969.
A proximidade de Bressane com a estética Marginal pode ser
sentida nos dois filmes de 1969, O anjo nasceu e Matou a família e foi ao
cinema. É neles que o estilo de Bressane dá o salto. É claro um inédito
dilaceramento da narrativa na escansão temporal (particularmente
em O anjo nasceu), abrindo-se para uma representação liberta da
teleologia histórica que, no modo cinemanovista, ainda se respira em
Cara a cara (1967). É de Bressane o passo que introduz no cinema
brasileiro, nesse modo radical, a liberdade narrativa da imagem-
tempo, deixando ao largo a amarração causal no modo estilístico
audiovisual fílmico. Em O anjo nasceu, existe uma independência da
amarração sensório-motora da ação que não se via na grande
produção cinematográfica brasileira desde Limite. Sente-se essa
liberdade ancorada não só na escansão temporal vazia, mas também
no modo em que evolui para o ritmo sincopado e repetitivo, espécie
de disco riscado que basta a si mesmo no risco, pois não tem objetivo
de fechar significância. Permanece como fissura na estrutura
narrativa só pelo fato de permanecer, sem outras contas a prestar.
Em Matou a família, pouco posterior a O anjo, essa disposição já
amadurece no modo em que seria radicalizada noutros longas da
carreira do diretor. Encontramos nesse filme igualmente o diálogo
maduro da contracultura com a cultura de massa, a mídia
sensacionalista, o universo de gênero flertando com o terror e o
policial – além do conflito geracional dilacerado dentro da família.
As cenas de horror e agonia tem o clima persecutório do pós-1968.
É Sganzerla, já mais estabelecido e com dois longas redondos, de
sucesso, que migra para o Rio e encontra Julinho, tirando-o
definitivamente da gravidade cinemanovista. O encontro tem seu
momento paradigmático no Festival de Brasília de 1969. Como passo
definitivo na passagem de Bressane para fora do Cinema Novo pode
ser citado esse Festival, quando Sganzerla concorre com A mulher de
todos e Bressane com O anjo nasceu. Conta a lenda que Sganzerla teria
ido ao quarto de Bressane altas horas e durante longa conversa
selaram um entendimento, até então implícito, mas evidente em
termos geracionais e estilísticos, que resulta na produtora e no jorro
criativo da Belair que se segue alguns meses depois, no primeiro
semestre de 1970. Queriam fazer um novo cinema, que não era
Cinema Novo, e agora tinham as condições práticas para tal, dentro
da estrutura da produção Marginal. A Belair nasce dessa constatação,
usando os recursos de Sganzerla com o sucesso de A mulher de todos e
uma produção meio atrapalhada que Bressane havia conseguido
junto a Severiano Ribeiro. São cinco longas (um deles não finalizado)
mais o inconcluso A miss e o dinossauro (8 mm), realizados em três
meses. Há um ritmo de produção alucinante de quem, no auge da
juventude, tem inspiração e capacidade de criação saindo pelos
poros. Por mais precário e de baixa produção que tenha sido o
esquema Belair, são sempre altos os investimentos e preparações
exigidas pela arte do cinema. A Belair, com todo o desvario da
geração, dá conta do recado, produzindo obras-chaves, pequenas
joias da cinematografia brasileira. É na Belair que a geração Marginal
se afirma, na confluência entre o grupo mineiro/paulista (Lanna,
Veloso, Tonacci, Jairo, Carlão e Sganzerla) e carioca (Bressane,
Visconti, Ivan Cardoso e Neville), todos circulando, de um modo ou
de outro, pelas produções em andamento nos primeiros meses de
1970: alguns assistindo às filmagens dirigidas por Bressane e
Sganzerla, outros passando para vê-las e ajudando ocasionalmente
ou, ainda, só sintonizados em sua existência e em seus resultados
(caso dos Marginais paulistas).
Entre os que circulam em proximidade com a Belair, interagindo
com o grupo, pode-se destacar o carioca Eliseu Visconti, que acabou
ficando com os negativos/copiões parciais do último longa da Belair,
Carnaval na lama, para uma finalização que nunca ocorreu. Visconti
possui obra própria que bate no coração da estilística Marginal. Seu
vínculo demonstra a força de atração que a sensibilidade Marginal
exerce em toda a sua geração. Isso fica claro na guinada que há entre
seus dois longas no período, Os monstros de Babaloo (1970) e
Lobisomem, o terror da meia-noite (1971) e sua produção posterior,
ligada a documentários etnográficos. O Marginal atrai, e Visconti
está preso em seu foco de gravidade. Além dos dois longas e da
presença na Belair, Visconti também acompanha a turma no exílio,
com passagens por Londres. Em Os monstros de Babaloo vivemos por
inteiro a estilística Marginal, com quatro atrizes que têm potencial
para sintetizar bem o movimento em suas diversas facetas: Helena
Ignez, Wilza Carla, Zezé Macedo e ainda Betty Faria, bem à vontade
no estilo de interpretação Marginal. Faria carrega no improviso, com
naturalidade impressionante, desenvolvendo um tipo meio sensual
que cai para a avacalhação. Faz companhia perfeita a Zezé Macedo (e
seu tipo construído na chanchada) e Wilza Carla com seu corpo
acentuando as dimensões do grotesco e do abjeto, que tanto atraem
os Marginais. Helena, em Babaloo, está arquetípica, incorporando o
deboche que define a estilística Marginal e que ela encarna como
ninguém desde A mulher de todos. Aqui ainda escorrega mais para
baixo e adiciona a bobice e a irritação infantil débil mental. É estado
de espírito que o Cinema Marginal gosta e que outros personagens
repetem em seu universo ficcional. Lobisomem, o terror da meia-noite,
segundo longa de Visconti, caminha na mesma trilha, misturando
horror e avacalho, com larga representação do escatológico. O
diálogo com o gênero em Lobisomem, no modo que Ivan Cardoso
retomará mais tarde, está presente à larga. Paulo Villaça está bem
confortável na encenação Marginal no modo bem esculhambado,
com berros e uivos, fazendo o Satanás. Villaça é o lado masculino da
encenação Marginal, compondo com Ignez duas faces da moeda
perfeita que tão bem ilustra o estilo com um todo, e que teria ainda
Gladys e Guará, se quisermos completar um quadrado. Wilson Grey,
unindo os gêneros chanchada e horror, faz o vampiro atraído pela
escatologia putrefata, com fundo musical que vai do lisérgico
Hendrix às modinhas populares no contato com o samba do morro.
Existe no Marginal carioca um veio mineiro forte que pode ser
sintetizado nas obras de Neville d’Almeida e Geraldo Veloso. Neville
tem voo próprio nos contatos que estabelece com a Belair. A atuação
com Hélio Oiticica, que marca ambos os artistas no intercâmbio,
define sua particularidade na vanguarda da época. Jardim de guerra
(1968) é filme anterior a esse encontro75 e pode ser situado na
transição entre o Marginal e o Cinema Novo. É obra ainda marcada
pelo Brasil cinemanovista, suas figuras e seus dilemas, mesmo que
radicalizados. Mas é com Mangue bangue, filmado em 1971, que
Neville dá o pulo do gato e adentra sem peias as profundidades da
representação no modo pulsional, indo até os contornos mais
extremos da escatologia e do desbunde presentes na geração
Marginal. E carrega-os com uma intensidade recorrente. Mangue
bangue é filme de produção pequena, articulada em baixo orçamento
e ambições narrativas fechadas na expressão da intensidade e na
curtição debochada, soltas em tomadas feitas em comunidade
(comunidade na vida e comunidade no filme). Sente-se em Mangue
bangue o mesmo clima no qual vibra a vida comunitária que cerca os
longas da Belair, e nessa vibração está sua potência. A articulação
fílmica posterior às tomadas é tênue. Há trabalho de sonorização
mínimo, mas que se articula organicamente na proposta do filme. A
narrativa flui numa espécie de pequena sonata da exasperação e da
curtição, sem deixar a peteca do ritmo cair, agarrada no transcorrer
solto e livre na tomada. Não há falas nem som sincrônico. A ausência
da sintaxe marca a encenação da expressão, abrindo caminho para a
figuração do indizível gutural em suas formas fisionômicas ou
gestuais. O filme é pós-sincronizado com trilha sonora que vai dos
sambas/modinhas a Hendrix/Led Zeppelin, numa faixa de distensão
estilística típica do gosto musical dos Marginais. Paulo Villaça e
Maria Gladys estão em momentos altos da encenação Marginal,
entrando sem medo nos meandros da interpretação que esse tipo de
encarnação das pulsões demanda. Os desenvolvimentos extremos
da segunda parte do filme culminam numa experiência escatológica
de regressão, plena na incorporação da animalidade.
Geraldo Veloso escreve uma das recapitulações mais
interessantes das experiências da geração Marginal carioca/mineira,
dando um preciso panorama do ambiente no Rio de Janeiro em “Por
uma arqueologia do ‘outro’ cinema”76. Seu filme-chave para a
compreensão do período é Perdidos e malditos, também realizado em
Minas, como Bang bang e Sagrada família, no ano capital de 1970. A
representação da escatologia também é aguda, com a conhecida cena
de Villaça com a cabeça na privada e os costumeiros berros
reincidentes em planos longos. O personagem de Villaça assassina a
mulher e o cotidiano que ela representa em busca de um “caos
paradisíaco” (a curtição) que deve se instaurar sobre a terra. No
estilo Marginal, a busca pessoal se configura no poço sem fundo da
exasperação, deixando a sociabilidade para trás num beco sem saída.
No final, Villaça aparece defecando – cena que desempenha em pelo
menos dois outros filmes Marginais –, trazendo a afirmação
antropofágica “o homem é o que ele come”, que resume bem o
horizonte ideológico do esculhambar a si próprio, modelo para a
subjetividade desarticulada do ego Marginal. A deglutição
intertextual desse cinema, depois de tudo haver citado e devorado,
dirige sua necessidade libertária para explorar sem peias éticas ou
ideológicas a devoração do outro e de si. Adentra assim o beco
escatológico de Perdidos e malditos e Mangue bangue.
Próximo ao grupo “cafajeste” em termos estéticos – mas distante
do esquema de produção da Boca e também com independência da
Belair – está o cineasta Andrea Tonacci e seu filme Bang bang. É obra-
chave no período ao incorporar a cinefilia de gênero mais paulistana
e casar com a radicalidade estilística dos mineiros. Tonacci sempre
foi próximo de Luiz Rosemberg, outro que tem voo independente,
mas circula à vontade junto à nova geração. Carioca, com acesso ao
Cinema Novo, Rosemberg radicalizou no caminho Marginal mais
típico, deixando os eflúvios da geração mais velha para trás. Como
Tonacci, manteve sempre uma carreira com características pessoais.
É dele o radical Jardim das espumas (1971), marco da estilística
Marginal mais característica, nos pontos altos da dicotomia
exasperação/curtição. Jardim possui a particularidade de pensar o
momento do cinema no mundo da contracultura, expresso numa
longa sequência em que o próprio diretor surge num descampado,
discutindo longamente em grupo o assunto. Depois voltamos ao
regime habitual, regado a gritos fortes e som lisérgico modulando a
poesia. Aos momentos de forte curtição e sensibilidade, abertos a um
paradisíaco pleno, se contrapõe a presença militarista, encarnando a
brutalidade e o esgarçamento corporal, na dilaceração da carne pela
violência da tortura. A singularidade de Rosemberg no grupo
Marginal e sua sintonia ao radicalismo estilístico abre espaço para a
valorização de seu trabalho por Glauber, de quem foi mais próximo e
que talvez veja nele uma espécie de alter ego Marginal. A veia crítica
glauberiana costuma poupar-lhe nas diatribes que lança contra o
grupo Marginal e deixa-lhe elogios na escrita de Revolução do
Cinema Novo, feita logo antes de falecer.
Tonacci aproxima-se do grupo mineiro Marginal que, na
realidade, é mineiro-carioca pois, na virada dos anos 1960 para 1970,
já estão fixados no Rio de Janeiro. Filma Bang bang numa espécie de
desdobramento, em termos de produção, de Sagrada família de
Sylvio Lanna. A falta de contato com os produtores da Boca na
feitura de Bang bang é significativa das opções que faz e permite a
ausência da temática erótica nesse filme, realizado a partir de um
empréstimo concedido pela Secretaria de Cultura do Estado de São
Paulo e lançado de maneira precária, permanecendo menos de uma
semana em cartaz. Sagrada família e Bang bang possuem estrutura
narrativa parecida, com a articulação livre dos planos relacionada à
disposição da trilha sonora, veio explorado com particular
intensidade em Bang bang. Como o próprio nome indica, Bang bang
possui vínculo marcado pela intertextualidade com a narrativa
clássica norte-americana, no modo da citação, o qual incorpora e
retorce. É algo que está ausente em Sagrada família, filme que flui
livre narrativamente, tendo como polo de atração mais estreito a
composição visual imagética. São dois filmes parentes, filmados
paralelamente, quase irmãos gêmeos, singulares no panorama do
cinema brasileiro da época. Em ambos, a ação fílmica desvincula-se
do esquema ação-reação/sensória-motora que tradicionalmente dá
forma à intriga e compõe personagens pela ordem psicológica na
forma narrativa clássica. A ação patina, patina, não sai do lugar,
fragmenta-se, evolui aos soluços de modo sincopado, cristalizada em
sintagmas isolados. Sagrada família é radical na direção do estender e
do dilatar, levando o tempo do intervalo a perdurar até a escansão e a
ruptura pelas dilatações. Longe da consequência do movimento, o
intervalo parece ficar boiando no tempo do filme, carregado por
espectros de personagens e tipos que mal se delineiam. São blocos
que evoluem em suspensão como se tudo se passasse numa bruma
audiovisual do tempo. É nessa suspensão que se configura então a
mencionada dialética entre curtição e exasperação, talvez menos
aguda em Sagrada Família que em Bang bang. Temos nesses dois
filmes distância absoluta em relação ao universo cinemanovista, ao
qual Tonacci ainda presta claro débito em seu média-metragem Blá,
blá, blá, de 1968.
Bang bang é articulado em torno de sequências, sintagmas fixos,
que se repetem no modo tipificado da ação, isolando para destacar e
simultaneamente desconstruir sua forma clássica. É um estilo
reflexivo que aparece no que podemos chamar de “sintagmas de
ação”, na fotografia marcada, na trilha sonora, nos cenários, na
encenação dos atores, nos diálogos, no ritmo das sequências e nas
citações da cinematografia da cinefilia. O referencial a partir do qual
se marca a imagem é criado por traços que, já em si mesmo, são
cinema, carregados na origem pelo modo clássico narrativo. A
presença do classicismo como referência é incisiva, refletindo o
vínculo com os Marginais paulistas e o Sganzerla inicial. Conforme
mencionado, Tonacci possui estreita convivência no Marginal
paulista a partir da juventude de cinéfilo nos cinemas da capital,
repartida com Sganzerla (a experiência de cinefilia de ambos é
representada no primeiro curta de Rogério, Documentário). É essa
atitude de “curtir” a imagem que já foi imagem (o filme de gênero) –
transformando-a em figura de segunda mão carregada até o kitsch de
traços de estilo – que caracteriza diversos filmes da produção
Marginal e tem em Bang bang uma realização ao mesmo tempo
elaborada e radical. O cinema clássico respira junto ao ombro, sente-
se seu hálito, mas é para ser batido e retorcido. Está vazio e boia
jogado para lá e cá, na centrifugação de uma espécie de máquina de
lavar, representação alucinada de ação e mais ação. A razão de tal é
que o vínculo sensório-motor foi rompido, fraturado, dilatado,
adiado indefinidamente em sua consequência. No intervalo entram
as repetições que, ainda no modo da citação, dilatam as sequências
na suspensão da ação, permitindo o tempo correr livremente. As
sequências são troços soltos de motivação, plenos de caracteres
(música, figurinos, cenários) que, com a ação dilatada, passam a
existir por si e derrapam. Sagrada Família parece ser um filme que se
passa em câmera lenta. Bang bang flui no acelerado, tem a
particularidade de grudar mais próximo no mundo, já transtornado
pelo cinema na circunstância da tomada, ousando inserir a escansão
narrativa onde ela é mais cerrada. Bang bang ainda faz esse
movimento lidando com as figuras arquetípicas do Cinema
Marginal, que são a animalidade, a escatologia, o berro demorado, a
gargalhada, o disforme, o pantagruélico, em mistura às vezes aguda
com o sublime ou elevação sensorial na qual chega a curtição pelo
prazer.
Destacam-se ainda na geração Marginal dois filmes baianos que
carregam com talento, em plena sintonia na estilística Marginal, o
último sopro da intensidade da produção que marcou, conforme
vimos, a Bahia do início da década de 1960. Meteorango Kid – herói
intergaláctico (1969), de André Luiz Oliveira, filme marginal precoce,
está inteiramente inserido no radicalismo do novo cinema. Traz foco
no conflito geracional. O cabeludo e underground protagonista Lula
(Antônio Luiz Martins) erra pela Salvador do final dos anos 1960,
vivendo no quarto, consumindo maconha na frente dos pais e em
reuniões familiares na sala de jantar. Com música dos Novos Baianos
e rock lisérgico ao fundo, o universo da contracultura e dos
quadrinhos da cultura de massa está a pleno vapor. Riso solto na
curtição, Lula é crucificado numa agonia que dura. O filme é
dedicado a seus cabelos longos e desafiadores. Também está lá o
Caetano Veloso de “É proibido proibir”. O posterior Caveira My
Friend, ainda do ano auge do movimento, 1970, de Álvaro Guimarães,
vai também fundo na violência armada que se sente próxima e no
banditismo adolescente, com um clima de deslumbramento e
curtição. Percebe-se certa influência de O Bandido no retrato do
bando assaltante do protagonista Caveirinha. A fragmentação
narrativa é acentuada, e a narrativa parece avançar sem maiores
preocupações além da curtição da tomada. Os planos deixam-se
levar por certo desleixo oriundo dessa disposição. O diálogo com o
outro-popular do cinema baiano de oito anos antes efetivamente
sumiu do horizonte – apesar de o Departamento de Teatro da
Universidade Federal da Bahia constar nos créditos. Sobraram
alguns membros da geração anterior, como Orlando Senna, mas
agora são os Novos Baianos que dominam as referências culturais,
com Baby Consuelo aparecendo recorrentemente na trilha e
também no filme, além de Paulinho Boca de Cantor e Gal Costa. O
clima astral é o desbunde da contracultura e a trilha sonora com as
canções exotéricas do grupo o acentua, marcando o tom que a
narrativa cola no universo ficcional violento. No final, Caveirinha e
seu bando são mortos pela polícia nas dunas das águas escuras da
Lagoa de Abaeté.
Um elemento-chave para pensarmos essa passagem de bastão na
vanguarda do cinema brasileiro, motivo para ruptura definitiva entre
os grupos Marginal e Novo, é o modo como evolui a baiana Helena
Ignez. Musa maior dos Marginais, sintetiza em sua encenação não só
a estilística, mas a ideologia da curtição que o grupo encarna. Helena
representa igualmente a ruptura pessoal que separou os grupos
Marginal/Cinema Novo, ao encarar, sucessivamente, um casamento
com o líder dos novíssimos cineastas, Rogério Sganzerla, depois de
se divorciar da figura mítica de Glauber Rocha, de quem foi a
primeira esposa. É a “mulher de todos” em seu poder de desafiar a
ordem patriarcal apontando na direção do avacalho – como estampa,
em manchete provocadora, a turma misógina do Pasquim na já
referida entrevista com o casal Ignez/Sganzerla77. Parece não haver
mais campo comum a se partilhar na discordância, agora que a
mulher do pai Glauber também foi deglutida. Helena Ignez encarna
com a própria encenação de seu corpo a passagem do bastão. Fixa o
tipo “avacalho Marginal” definitivamente em Mulher de todos,
seguindo o que já havia esboçado em O Bandido. Torna mais aguda a
proposta na produção seguinte da Belair, marcando, como matriarca
do deboche, o fim do domínio do horizonte ideológico do Cinema
Novo até onde se pode enxergar. Existe agora um novo desafio que
foge aos dilemas da consciência da geração anterior e ele se faz pela
trilha da expressão pura e da potência desbragada, no modo
desenfreado do esculhambo, no qual as pulsões irracionais (o berro,
o desespero, a escatologia, a debilidade) dão vazão aos afetos.
A dimensão do trabalho de Helena Ignez como personalidade
forte central no grupo Marginal fica claro por sua presença
onipresente em todos os longas da Belair, dando com sua atuação o
tom final que predomina nos filmes da produtora. Foi no início de
1970 que Rogério Sganzerla, após o sucesso de suas duas produções
na Boca paulista (O Bandido da Luz Vermelha e A mulher de todos),
fundou com Júlio Bressane, no Rio de Janeiro, a Belair – produtora de
vida efêmera, mas braço longo no cinema brasileiro. No período de
fevereiro a maio de 1970, os dois diretores realizaram seis longas-
metragens (na realidade, cinco, pois, Carnaval na lama ficou
incompleto, sem conclusão da montagem/mixagem) e ainda um
filme em Super-8, também sem acabamento. Na Belair, Sganzerla
dirigiu Betty Bomba, a exibicionista (mais tarde, Carnaval na lama),
Copacabana mon amour e Sem essa aranha. E Bressane dirigiu Barão
Olavo, o horrível; Cuidado, madame e A família do barulho. O Super-8
chamado A miss e o dinossauro teria sido feito a quatro mãos.
Sganzerla realiza efetivamente dois longas no período Belair:
Sem essa aranha e Copacabana mon amour. Ambos são próximos entre
si, sendo Sem essa aranha o mais elaborado, talvez dando o tom final à
proposta pela qual os dois filmes respondem – embora Copacabana
seja o primeiro e carregue mais próximo o pique da produção
anterior, A mulher de todos, em continuidade. Sem essa aranha coloca
no chão a representação do Brasil e do Terceiro Mundo/América
Latina, para estraçalhá-la. Copacabana possui sua personalidade no
conjunto, ao abrir a fenda ainda sem o compasso, radicalizando a
partir do ponto de partida debochado e livre de A mulher de todos. A
narrativa funciona num modo mais solto, com os cortes sendo
esticados e puxados pelo seguimento contínuo e longo da duração.
Sem essa aranha aprofunda e elabora com mais tranquilidade e
segurança, já com domínio da medida para fechar o círculo. Em Sem
essa aranha, Sganzerla mostra-se no auge de sua criatividade e
domínio da estilística cinematográfica, uma das mais apuradas no
cinema brasileiro. Agora já sabe com o que está lidando, enquanto
em Copacabana, com sua criatividade pululante e sideral, está apenas
tateando. É uma linha que deve ser caracterizada na evolução, sem
grandes solavancos, pois é norteada pela intuição cristalina que se
vislumbra na primeira fase da carreira de Sganzerla, no modo que ela
parte de O Bandido e avança por A mulher de todos, depois Copacabana
e Sem essa aranha, até o retorno ao Brasil com Abismu (1977), talvez
sem o mesmo punch.
Bressane também agudiza e matura seu estilo de representação
mais cool na Belair, abrindo a composição do quadro planejado e mais
fixo, sustentado no modo serial compulsivo da estrutura narrativa,
como já apontamos em Matou a família e O anjo nasceu, e que irá se
tornar arquetípica na produção do exílio com Memórias de um
estrangulador de loiras (1971). Está claro que é nessa senda que evolui
a produção Belair de Bressane, nos assassinatos seriais de Cuidado,
madame e Barão Olavo, o horrível e nas tramas recorrentes, ainda em
serialidade de A família do barulho. É o tema do “essa é violenta” ou
“cala a boca, babaca” que não para de se repetir na contraposição
Kléber Santos e Guará desse último filme, por exemplo. A narrativa
bressaniana da época também gosta do disco riscado para perfurar o
mundo das coisas e da carne. Coloca a câmera sem âncora para pairar
sobre eles e tentar encontrar o buraco no ser que transcorre. É a
repetição que traz a fissura possível. Então ela aproveita e entra, pois
é a única entrada e ela fica por lá mesmo – não há outra. A evidência é
de que as coisas passam no ritmo pastoso da duração, os corpos se
movendo, durando. Na medida – e principalmente na desmedida (a
exasperação, a debilidade) – em que não se acha o buraco ou não se
acha o sentido, começa-se tudo de novo, e é esse movimento que
satisfaz o artista.
O universo ficcional esboçado nos filmes da Belair segue o
padrão Marginal da convulsão expressiva, com berros e longas cenas
expressando o horror que perpassa de ponta a ponta seus filmes. A
imagem do abjeto (baba, vômitos, sangue, excrementos, lixo etc.),
constitui um traço característico do Cinema Marginal e também
aqui encontra significação reiterada na narrativa. Tem-se a
impressão de que existe algo incomensuravelmente ignóbil que
necessita, para poder ser expresso, dilacerar a textura da linguagem,
já que ela, em si mesma, pelo simples fato de existir, é
necessariamente motivo de falseamento dos sentimentos
exacerbados. Podemos então falar de uma atividade da
“representação” que lida com um universo ficcional, mas é
estourada, dilacerada. A linguagem só consegue roçar a superfície
quando a pulsão impera nessa intensidade. A expressão do extremo
dramático funciona em torno de um “si-mesmo” absoluto, que
parece acreditar ser possível romper o circuito da representação pela
exacerbação do “de-dentro” e significar, nesse estouro, em estado
bruto, a coisa concreta do mundo.
Outro traço preponderante dos filmes da Belair é o retorno da
narrativa sobre si mesma e a “curtição” do ato de filmar como
circunstância da tomada. A curtição da tomada é elemento
intrínseco à encenação e à mise-en-scène Marginal. Apesar disso, os
filmes são sempre de ficção, com um universo ficcional carregado e
fantasista. Não há propriamente documentários na produção
Marginal, um ponto a ser levado em consideração. Os longas são
feitos com baixo orçamento e com escassas possibilidades de
exibição. Contam com a participação de pessoas conhecidas entre si,
muitas vezes vivendo em comunidade, que fazem com que o ato de
filmar seja considerado uma atividade essencialmente lúdica. É
comum, nessas fitas, a sensação de que a cena se desenvolve de
acordo com um ambiente de momento, no qual todos – atores e
cineastas – podem liberar suas potencialidades pessoais para além
de roteiros ou objetivos predeterminados em termos de uma obra
final. O horizonte da encenação está na convivência grupal
comunitária. É também o esquema de produção “familiar” que
viabiliza os filmes no sentido financeiro, visto não haver
possibilidade de retorno a partir de uma exibição no mercado.
A geração do Cinema Marginal teve, em quase sua totalidade,
uma vivência bem marcada de exílio. A partir de 1970, a maior parte
desses cineastas foi obrigada a deixar o país, alguns ameaçados de
prisão. O ambiente cultural tornara-se demasiadamente pesado para
que surgisse algum tipo de criação cultural mais radical. O exílio dos
“marginais” centrou-se principalmente em Londres, com viagens
diversas aos pontos mais longínquos do planeta (principalmente
África, Ásia e Extremo Oriente). No exterior, acentua-se o esquema
de produção familiar. Em Londres estiveram, às vezes, em épocas
distintas, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Geraldo Veloso, Neville
d’Almeida, Andrea Tonacci, Sylvio Lanna, Eliseu Visconti e outros.
Bressane realiza no seu período fora do Brasil filmes com graus
distintos de elaboração final, como A fada do Oriente (1972), em uma
passagem pelo Marrocos, Lágrima pantera (1972), sem sonorização e
montagem final, e os longas Amor louco (1971) e Memórias de um
estrangulador de loiras (1971). Sganzerla busca finalizar e montar
Carnaval na lama, longa iniciado na Belair, e Fora do baralho, com
imagens rodadas na África (Saara). Em 1972, com Andrea Tonacci,
realiza uma viagem de carro ao Extremo Oriente, atravessando parte
da Ásia. Cenas dessa viagem podem ser vistas em O monstro caraíba.
Ainda em Londres, Neville tenta finalizar Night Cats, longa-
metragem incompleto ou perdido. Sylvio Lanna, em 1972, faz em
Londres, em Super-8, Way Out e, no ano seguinte, Forofina, na África.
Rosemberg, na época em Paris, realiza filmagens esporádicas. Maria
Gladys, musa, com Helena Ignez, dos filmes marginais, tomou
coragem e dirigiu The First Odalisca (com som de Sylvio Lanna),
longa-metragem que diz ter deixado inacabado depois de uma
projeção frustrante para Caetano Veloso, ainda em Londres. A volta
ao Brasil se dá aos poucos, em 1972-1973. Ivan Cardoso ainda dirige,
em 1971-1972, no Brasil, diversos filmes em Super-8, dentro da linha
bem característica do Cinema Marginal, com um pé mais firme na
referência de gênero: Nosferatu no Brasil (1971), Sentença de Deus
(1972) e A múmia volta a atacar (1972). Pode-se vislumbrar o
arrefecimento da produção Marginal após a volta do exílio, embora a
continuidade do estilo siga nítida em carreiras pessoais.

ENFIM UM CINEMA POPULAR


Há dois diretores paulistanos, Ozualdo Candeias e José Mojica
Marins, que costumam ter sua obra confundida na geração Marginal,
diagnóstico válido se levarmos em consideração a dimensão da
influência exercida. Mais conhecido pelo personagem que criou e
interpretou, Zé do Caixão, Mojica iniciou a carreira na década de
1950 e circulou com agilidade nos rescaldos dos grandes estúdios,
evoluindo para as produções da Boca do Lixo como boa parcela de
sua geração. Para um panorama de sua filmografia, devemos
mencionar não só os filmes feitos antes do personagem Zé do Caixão
(A sina do aventureiro, 1958; e Meu destino em suas mãos, 1962), mas a
vasta produção da década de 1970, com média de mais de um longa-
metragem por ano, em boa medida passando ao largo do
personagem. Em seguida, nos anos 1980, ainda faz quatro longas
com sexo explícito (A 5ª dimensão do sexo, 1983; 24 horas de sexo
ardente, 1984; Dr. Frank na clínica das taras, 1986; e 48 horas de sexo
alucinante, 1985) e seu último filme em 2007-2008 – depois de vinte
anos sem dirigir longas–, a Encarnação do demônio, obra que
aparentemente encerra sua carreira. A produção do “além Zé do
Caixão” se concentra na década de 1970, apresentando filmes
diversos, como os da dupla Finnis hominis (1971) e Quando os deuses
adormecem (1972), ambos dialogando com o fantasma morto de Zé
do Caixão; comédias eróticas, como A virgem e o machão (1973), Como
consolar viúvas (1975), A mulher que põe a pomba no ar (1977); filmes de
aventura inteiramente descolados do terror, como Sexo e sangue na
trilha do tesouro (1970) ou D’Gajão mata para vingar (1971); ou mais
próximos do gênero, mas sem o personagem Zé do Caixão, como A
estranha hospedaria dos prazeres (1975), Inferno carnal (1976); ou
somente amargos, como Perversão-estupro (1978) ou Mundo mercado
do sexo: manchete de jornal (1978). Os títulos estrambólicos em sua
maioria podem ser debitados aos produtores da Boca que, com sua
visão curta, sempre cercaram Mojica.
Mojica criou dois personagens na vida (e na performance da vida
propriamente, seus filmes e suas “aparições”): o humilde, racional e
bem-comportado Mojica e o aloprado convulsivo Zé do Caixão.
Tentou estabelecer um terceiro, o profeta do bem Finnis Hominis,
que não vingou. É companheiro de Candeias desde os primórdios da
Boca, cineasta que ocupa posição similar na atração sobre os jovens
Marginais e também com eles não se confunde. Mas se o cinema de
Candeias pode pensar sem falar para expressar a intensidade, Mojica
é o cineasta do discurso solto, da fala, embora nem sempre de sua
escrita. Suas obras pensam. Mojica é o cineasta do pensamento no
cinema brasileiro. Nas modalidades da expressão carregada pela fala,
traz para a imagem as figuras do horror e da abjeção que lhes são
caras. No cinema de Mojica, o abjeto não emerge de per si, mas se
ergue por meio de um discurso explicativo, uma grande teoria do
mundo e do universo, teoria que carrega consigo o Mojica pensador.
É ela que permite e justifica a ação e a encenação da crueldade, em
seu modo agudo de potência. Possui um objetivo mais nobre, o de
pensar a crueldade, que surge de modo mais enfático e em sua
formulação mais pura, nos dois primeiros filmes com Zé do Caixão
(À meia-noite levarei sua alma, 1964; Esta noite encarnarei no teu
cadáver, 1966). É neles que está o veio do pensamento da potência,
conforme sintetizado de modo brilhante pela fala expositiva de Zé
do Caixão na surpreendente consistência de um pensamento
bastante coerente. Numa espécie de jorro inicial, entre 1963-1964,
formula, com clareza, as entranhas da vontade e seus dilemas,
incorporando-as no personagem nietzschiano que viria a encarnar
como autor. Em seu vigor mais puro, em seu modo cristalino de
figurar a potência e as pulsões, esse pensamento atrai intensamente
tanto os cineastas Marginais, que se espelham na expressão
exacerbada, como o diretor cinemanovista que flerta mais
proximamente com os abismos da potência da vontade e da
exasperação e também tenta elaborá-los: Glauber Rocha.
A intensidade única do cinema de Mojica fulgura principalmente
antes do encontro com o roteirista Rubens Lucchetti, descrito por
seus biógrafos em 196678. A influência de Luchetti se efetiva
progressivamente a partir do episódio “Pesadelo macabro” de
Trilogia do terror (1968), no qual ainda sentimos o Mojica inicial. É
influência que se aprofunda, conforme os anos avançam, nos outros
filmes “Zé do Caixão”, como o média/episódio “Ideologia” em O
estranho mundo do Zé do Caixão (1967), e em Ritual dos sádicos (1969),
para não mencionarmos as diluições mais extremas do personagem
em Exorcismo negro (1974) ou mesmo as sobreposições em soluço de
Delírios de um anormal (1977-1978). Se por um lado Lucchetti permite
uma articulação desenvolta ao personagem, claramente o reduz.
Dilui a potência inicial de Mojica a dicotomias simplistas que acabam
por sufocar Zé do Caixão em dilemas de manual de gênero, longe da
representação do horror dilacerado e da vontade de potência
original.
Já Candeias é o poeta da sensibilidade lírica popular da Boca.
Espécie de flor no lodo, como surge essa figura própria da metáfora
candeiana em seus filmes. Candeias cresceu e sobreviveu em meio
aos produtores mais comercialistas e sexistas da produção Boca do
Lixo. Fez diversas concessões às demandas desse cinema e seu
circuito exibidor, mas manteve o viés torto (como o anjo de
Drummond) que marca, na insistência, o corte diferenciado de sua
obra. Voz do povo, que veio de suas camadas mais humildes
(caminhoneiro e brevemente operário), não possui integração
orgânica com a geração jovem de classe média mergulhada na
vanguarda contracultural do final dos anos 1960, mas é figura muito
próxima deles, sempre uma referência. Candeias estava na estrada
há anos quando os jovens paulistas marginais descobrem a cinefilia,
e dela não compartilha. Como Mojica, também chega ao cinema
pelos rescaldos dos grandes estúdios que articularam a produção
inicial da Boca. Seu primeiro filme, o radical e surpreendente A
margem (1967), serviu como retaguarda inspiradora e de produção
para os jovens marginais paulistas (os “cafajestes” Carlão, Jairo,
Callegaro, Lima e Sganzerla), que logo o descobrem quando estão
começando a pipocar na Boca da época ( já encontramos Candeias
presente como citação em Audácia!). O cinema de Candeias pode
afetar, sem falar, para expressar a intensidade, em contraste com o
cinema-pensamento de Mojica. São como água e óleo, que não se
misturam, mas mostram em singularidade absoluta a sensibilidade
lírica do outro-popular no cinema brasileiro (sensibilidade do outro-
popular que o Cinema Novo tanto buscou sem conseguir
sintonizar).
Candeias e Mojica são os dois diretores de ascendência popular,
classe média baixa, com universo ideológico não erudito, que se
aproximam e conseguem manter um diálogo ativo com o contexto de
ruptura aberto pela contracultura. É horizonte ideológico que,
importado, para surpresa de ambos, acaba envolvendo o período
mais criativo de suas carreiras. Lidam com suas demandas de modo
desajeitado, contudo nunca agressivo. A margem supera Terra em
transe como grande filme de 1967 (ano em que foi filmado), se
formos colocar na mesa o talento inegável dos dois diretores,
embora Glauber já esteja maduro e com horizonte ideológico menos
naïf. É uma briga que comprou a geração de críticos mais antiga –
adversária do Cinema Novo e na época ainda dominando o INC –, ao
conceder ao longa A margem o prêmio de melhor filme do ano,
preterindo Terra em transe. Com sua sensibilidade, Glauber deve ter
computado o desaforo e nunca se aproximou de Candeias, ao
contrário das efusões conhecidas com Mojica.
Precoce na constituição da geração Marginal, inclusive por vir de
fora dela, A margem surge no horizonte em 1967 como uma espécie
de óvni que desembarca no cinema brasileiro. É filme de forte
extensão lírica carregado de particularidades e talento que salta aos
olhos. A barca da morte que atravessa a narrativa em A margem,
caçando seus protagonistas, parece uma espécie reciclada da
personificação bergmaniana do espectro em O sétimo selo. Serve
também de ponto de referência para localizarmos as especificidades
do filme em relação à produção Marginal. Está lá para levar para
melhor os puros e altivos desse mundo baixo, aqueles que, de algum
modo, não se imiscuíram nas baixezas do lixo e da “margem”, do
mundo baixo no qual o universo ficcional é mergulhado por uma
ação exterior heterogênea (a ação maldosa). A barca e seu
personagem da morte levam embora pelo lado do horrível, do terror,
do fim da vida. Mas os protagonistas de A margem buscam e, em
algum momento, conseguem achar espaço para compartilhar o
imaculado na gravidade da morte. Não há pavor, ou terror, por parte
deles no olhar para a morte, há grandeza. O filme é voltado para a
composição do sublime por oposição à baixeza e ao lixo, em
preparação para a elevação do espírito até a barca. A flor que
percorre a narrativa como motivo central é compartilhada pelos
personagens como símbolo da pureza, incorporando esse elemento.
Há postura altaneira nos puros que se congregam na barca da morte,
exatamente por haverem se preservado do sujo da margem, no
imaculado. Do bobo preservado em sua inocência à prostituta que
almeja o branco imaculado e virginal da noiva, assim como o
cavaleiro que lhe concede a confiança na sua pureza, há no filme de
Candeias esse movimento ascendente que busca resgatar um
sublime que insiste em cair. É movimento que demonstra as
particularidades de A margem no universo baixo e dionisíaco das
pulsões que domina a estética Marginal. No Marginal mais típico, os
afetos não são ultrapassados pela altivez, mas representados em
convulsão exatamente para escandir o fechamento em uma
subjetividade que ainda pode tentar se mostrar composta, mas não
resiste. A margem passa ao largo da fissura do horror, pois não faz
parte do horizonte ideológico de Candeias, nesse momento,
valorizar – sem culpa ou peias – as emoções “cruéis” da exasperação
e do abjeto, do dilaceramento, do riso grotesco.
Embora parte da crítica queira ver Candeias como par nesse
universo da estética Marginal, para poder lhe entregar a bandeira de
uma representação de mundo que não lhe pertence, sua obra inicial
circula com facilidade no polo da representação do positivo/bom, do
sublime/belo/puro. Na balança das dicotomias que atravessam os
filmes contemporâneos ao Cinema Marginal, ele fica fora, apesar de
inspirar pela potência de sua narrativa singular, retorcida pelo
império do afeto. Grudada na intensidade muda do mundo, a
estilística de Candeias estoura as articulações da amarra clássica,
estampando outro tipo de poesia. Deve-se admitir que sua narrativa
bate nesse patamar do grotesco e do disforme com facilidade, pois o
cinema de Candeias é um cinema da tomada, um cinema do mundo,
no qual a vida pulsa e as coisas vibram com intensidade muito
natural, mas torta, no universo que lhes cerca. Quando vira sua
câmera, é no disforme e no exagerado o primeiro ponto em que
estaciona. Mas a articulação fílmica parece se incomodar com tal e a
lição de moral também está à mão, numa espécie de resgate. Sua
produção posterior segue na linha da busca do sublime inicial como
em Meu nome é Tonho (1969) e A herança (1971), ou mesmo no
compassivo Candinho (1976). Em sua carreira, como um todo,
progressivamente, descamba para outro lado, principalmente em A
opção ou as rosas da estrada (1981) e também no significativo média
Zézero (1974), filme do início, no qual consegue trabalhar mais
livremente, sem a canga dos produtores da Boca. Talvez no final da
vida, a descoberta da representação estirada nos abismos da
escatologia e do horror adquira mais espessura, refletindo a
progressiva confluência da radicalidade de sua narrativa com o
espírito da época. Ainda que sempre vicejando dentro (e contra) o
ambiente restringente a voos mais soltos da Boca do Lixo, Candeias
tem liderança na classe e voo próprio, sabendo como impor seu
cinema a seus pares. É importante frisar que a obra cinematográfica
de Candeias, na singularidade que possui pela sensibilidade fílmica
advinda das camadas populares da população brasileira, foi sempre,
em seus momentos capitais, ignorada pelos mecanismos de fomento
à produção do Estado brasileiro. A marginalidade de sua produção
certamente reflete os dilemas que essa geração viveu ao estender sua
mão ao outro-popular.

NOTAS
1 Cf. entrevista no documentário O mundo de um filme, de Clara Linhardt, Camila
Maroja e Daniel Caetano, Filmes do Serro e Departamento de Cinema e Vídeo –
UFF, 2012.
2 Cf. André Gatti, “Difilm”, em: Fernão Pessoa Ramos e Luiz Felipe Miranda
(orgs.), Enciclopédia do cinema brasileiro, São Paulo: Edições Sesc São Paulo;
Editora Senac, 2012.
3 Glauber Rocha, “O Cinema Novo e a aventura da criação”, Visão, 2 fev. 1968, p. 44.
Cf. também Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, São Paulo: Cosac Naify,
2004, pp. 127-50.
4 Gustavo Dahl, “Cinema Novo e estruturas econômicas tradicionais”, Revista
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: mar. 1966, n. 5-6.
5 Cf. entrevista de Glauber Rocha em: Federico de Cárdenas e René Capriles,
“Glauber: el ‘transe’ da América Latina”, Hablemos de Cine, Lima: maio-jun. 1969,
n. 47, p. 34-8, apud Glauber Rocha. Revolução do Cinema Novo, op. cit., p. 189.
6 Governador de Minas Gerais que foi um dos líderes civis do golpe de 1964. Cacá
Diegues, Vida de cinema: antes, durante e após o Cinema Novo, p. 198.
7 Ibidem.
8 Ibidem, p. 148.
9 Jean-Claude Bernardet, “Para um cinema dinâmico”, Revista Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro: maio 1965, n. 2.
10 Ibidem.
11 Jean-Claude Bernardet, “Apelo, um documentário”, O Estado de S. Paulo, São
Paulo: 30 set. 1961, Suplemento Literário.
12 Roberto Schwarz, “O cinema e Os fuzis”, Revista Civilização Brasileira, Rio de
Janeiro: set.-nov. 1966, n. 9-10.
13 Idem, “Cultura e Política, 1964-1969”, em: O pai de família e outros estudos, Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978.
14 Glauber Rocha, “Eztetyka da fome 65”, Revolução do Cinema Novo, São Paulo:
Cosac Naify, 2004.
15 Cf. “Helena Solberg”, em: Memória do cinema documentário brasileiro: histórias de
vida, Fundação Getúlio Vargas/CPDOC: 2015, disponível em: <goo.gl/qZTbMP>,
acesso em: maio 2017.
16 O subtítulo do filme já enuncia: “aventuras e desventuras de Luzia e seus 3
amigos chegados de longe”.
17 Glauber Rocha, “Como e por que realizei Terra em Transe”, Estado de Minas, Belo
Horizonte: 18 set. 1982.
18 Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, op. cit., pp. 248-51.
19 Idem, “Eztetyka do sonho”, em: Revolução do Cinema Novo, op. cit., p. 249, grifos do
original.
20 Ibidem, p. 249.
21 Cf. entrevista em: “Cassy Person Jones picha todo mundo”, Jornal Pasquim, Rio
de Janeiro: 5-11 jun. 1973, ano v, n. 205.
22 Jean-Claude Bernardet, Brasil em tempo de cinema, Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1967.
23 Gustavo Dahl, “O Cinema Novo e seu público”, Revista Civilização Brasileira, Rio
de Janeiro: 12 mar. 1967, n. 11.
24 O texto tem origem em comunicação apresentada em Pesaro, no tradicional
festival de cinema. Cf. Glauber Rocha, “O Cinema Novo e a aventura da criação”,
op. cit., p. 44. Cf. também: Glauber Rocha, Revolução do Cinema Novo, op. cit., pp.
127-50.
25 Ibidem, p. 130.
26 Joaquim Pedro de Andrade, “Crítica e autocrítica: O Padre e a Moça”, Revista
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: maio 1966, n. 7.
27 Vinicius de Moraes, Vinicius fala de sua garota, disponível no Acervo Cinemateca
do Museu de Arte Moderna (MAM).
28 Ibidem.
29 Cf. entrevista de Glauber Rocha em: Federico de Cárdenas e René Capriles,
“Glauber: el ‘transe’ da América Latina”, op. cit., pp. 179-80.
30 Ibidem, p. 181.
31 Ibidem, p. 180.
32 Ibidem.
33 Cf. Theo Costa Duarte, Marcas do experimental no cinema: um estudo sobre Câncer,
tese (doutorado em Comunicação), Universidade Federal Fluminense, Rio de
Janeiro: 2012, p. 16. O autor menciona ainda, nesse bom estudo sobre o filme, a
possibilidade, sem comprovação, de que “tivessem sido realizadas 27 tomadas
que então seriam decompostas nos 59 planos finais”.
34 Glauber também se refere à finalização do filme em 1971, em carta a Jairo
Ferreira.
35 Em DVD do Tempo Glauber, na cópia em 4K, essa imagem inicial é percorrida
por legendas em francês. Também as canções ficaram com legendas em francês,
em função do negativo original perdido.
36 As filmagens de Deus e o diabo são do segundo semestre de 1963, e as de Dragão da
maldade, do segundo semestre de 1968.
37 Helena Salem, Nelson Pereira dos Santos – o sonho possível do cinema brasileiro, Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 215.
38 Cf. Nelson Pereira dos Santos, Manifesto por um cinema popular, 1975, Acervo da
Cinemateca Brasileira.
39 Ivana Bentes, Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista, Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1996.
40 Meire Oliveira, Liturgia da pedra: negro amor de rendas brancas, São Paulo:
Alameda, 2016.
41 Cf. entrevista em: “Programa Luzes”, Câmera nº 31, TV Cultura, 8 jun. 1976,
disponível em: <https://goo.gl/x1W189>, acesso em: maio 2017. A entrevista
encontra-se reproduzida também no catálogo da mostra Vida en movimiento:
Joaquim Pedro de Andrade, Buenos Aires: Museu Malba, 2007, p. 54.
42 Cf. o poema de Carlos Drummond de Andrade “Confidência do itabirano”.
Sobre a relação entre Minas e Joaquim Pedro com foco na literatura, cf. Meire
Oliveira, Liturgia da pedra: negro amor de rendas brancas, op. cit.
43 Cf. “Com a palavra Joaquim Pedro de Andrade”, disponível em: <
https://goo.gl/NkS4er>, acesso em: maio 2017. O texto foi publicado no
primeiro press-book do filme em 1969.
44 Mário Carneiro, depoimento concedido a Claudio Bojunga, “O rigor e o risco”,
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18 set. 1988, Caderno B Especial, p. 7. Já com mais
idade, em entrevistas da década de 1990 e 2000, Mário Carneiro cita outras vezes
o episódio do rocambole, relacionando-o também a críticas que Rodrigo de
Andrade teria feito ao roteiro de O padre e a moça (e não Macunaíma). Parece ser
mais verossímil, no entanto, a versão estabelecida no depoimento a Bojunga, em
1988. Em sua biografia de Joaquim Pedro de Andrade, Ivana Bentes cita o
episódio usando a versão do depoimento de Mário Carneiro a Claudio Bojunga.
45 Joaquim Pedro apud Heloísa Buarque de Hollanda, Macunaíma, da literatura ao
cinema, Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, p. 115. No último capítulo desse livro,
intitulado “Joaquim Pedro”, Heloísa Buarque de Hollanda constrói, conforme
detalha na Introdução (“Explicação”, p. 19), uma espécie de montagem segundo
a qual “Joaquim avalia, numa colagem de recortes de jornais, o projeto e o
momento do filme; e onde a presença exagerada de imagens oferece uma 4ª voz”.
Não são citadas pela autora as fontes primárias dos originais da “colagem”,
embora alguns trechos possam ser localizados em entrevistas da época.
46 Heloísa Buarque Hollanda, Macunaíma, da literatura ao cinema, op. cit., p. 115.
47 Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, op. cit.
48 Macunaíma é um ano e meio anterior ao Manifesto, que é de maio de 1928.
49 Haroldo de Campos percebe bem o movimento textual, em camadas
sobrepostas do livro, embora sua análise tenha marca de época. Sente-se em
Campos a tentativa, talvez um pouco desajeitada, de carregar Mário de Andrade
para o panteão concretista, com Mallarmé no topo. O método, puxado pelas
orelhas, tem o mérito de apontar no corpo de “Macunaíma, o herói sem nenhum
caráter” diversas camadas textuais e retirá-las, de modo inédito, da tabela
valorativa do símbolo. Mário sempre foi muito claro, inclusive nos Prefácios não
publicados, que Macunaíma não era símbolo de nada. Cf. Haroldo de Campos,
Morfologia do Macunaíma, São Paulo: Perspectiva, 1973.
50 Paulo Emílio Sales Gomes, Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, São Paulo:
Paz e Terra, 1980, p. 77.
51 Mário de Andrade, Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2015. Cf. apresentação e estabelecimento de texto por Telê Porto
Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo, p. 191.
52 Ibidem, p. 91.
53 Ibidem, pp. 191-2.
54 Heloísa Buarque de Hollanda, Macunaíma, da literatura ao cinema, op. cit., p. 115. O
“sem-caratismo” macunaímico, tão atraente para a sensibilidade
contemporânea, é mistura que acha o ponto entre o deslumbramento eufórico
no vira-latismo por tudo que é estrangeiro e os períodos de profunda depressão
que o país, e Macunaíma periodicamente, se afundam. É a “tristeza de Brasil”,
traço do caráter nacional que atravessa a obra e a personalidade de Macunaíma
(talvez descendendo das próprias depressões periódicas de Mário). O livro é
dedicado a Paulo Prado, que lança, no mesmo ano de Macunaíma, o herói sem
nenhum caráter (1928), o seu Retrato do Brasil, com o subtítulo significativo:
Ensaio sobre a tristeza brasileira, obra que começa com frase que caberia no
romance pelo tom: “Numa terra radiosa vive um povo triste”. Prado foi o grande
financiador e mecenas dos modernistas, e ambas as obras já estavam prontas em
1928, mas sua convergência é significativa. Joaquim Pedro tem razão ao
pressentir em Macunaíma um herói triste.
55 Ibidem, p. 115.
56 Jabor aproveita-se da captação de remessas de lucros da Columbia Pictures.
57 Veio já vislumbrado, noutra dimensão, em A opinião pública, documentário
realizado na estilística do cinema verdade.
58 É o caso de Neville D’Almeida, por exemplo.
59 Carlos Alberto Mattos, Walter Lima Júnior: viver cinema, Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2002, pp. 133-43.
60 Cf. Carlos Alberto Mattos, Walter Lima Júnior: viver cinema, op. cit., pp. 181-3.
61 Ismail Xavier, Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, tropicalismo, Cinema
Marginal, São Paulo: Cosac Naify, 2014, p. 233.
62 Ibidem, p. 234.
63 Em O Bandido da Luz Vermelha, filme de Sganzerla do mesmo ano, conforme já
vimos, o fosso da agonia desmedida se faz bem mais presente e próximo.
64 Carlos Alberto Mattos, Walter Lima Júnior: viver cinema, p. 152.
65 Lima esteve na Bahia no famoso Carnaval de 1972, que marcou a volta dos
exilados Caetano e Gil e que talvez seja inspiração para a obra.
66 Cf. entrevista em: Rogério Sganzerla e Helena Ignez, “A mulher de todos e seu
homem”, O Pasquim, Rio de Janeiro: 5-11 dez. 1970.
67 Pelas referências no texto, o artigo foi provavelmente escrito por Glauber em
1970. Sua publicação, no entanto, com o título “O cinema foi a sétima arte”,
ocorre na primeira edição de Revolução do Cinema Novo, em 1981. Cf. Glauber
Rocha, Revolução do Cinema Novo, op. cit., p. 245.
68 Glauber Rocha, “Udigrúdi: uma velha novidade”, Revista Crítica, 1-7 set. 1975. As
citações seguem reprodução do artigo em Arte em Revista, maio 1981, ano 3, n. 5, p.
80.
69 Ibidem, p. 80.
70 Cf. entrevista de Glauber Rocha em: Federico de Cárdenas e René Capriles,
“Glauber: el ‘transe’ da América Latina”, op. cit., p. 189. A referência à data e ao
local da entrevista consta no índice do livro, p. 528.
71 Geraldo Veloso, “Por uma arqueologia do ‘outro’ cinema”, Estado de Minas, Belo
Horizonte: 17 maio 1983-14 jun. 1983.
72 Carlos Reichenbach, s. d. Parte inicial de texto datilografado para a Universidade
Federal Fluminense (arquivo pessoal). Acervo Multimeios, Centro Cultural São
Paulo, Prefeitura Municipal de São Paulo.
73 Cf. o Paulo Emílio de Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, op. cit., p. 84 ou o
Robert Stam de “On the Margins: Brazilian Avant-Garde Cinema”, em: Robert
Stam e Randal Johnson, Brazilian Cinema, New Jersey: Associated University
Press, 1982, p. 312.
74 “A badaladíssima dos trópicos x os picaretas do sexo” e “Amor 69”.
75 O encontro com Oiticica se dá, na verdade, numa projeção de Jardim de guerra.
76 Geraldo Veloso, “Por uma arqueologia do ‘outro’ cinema”, op. cit.
77 Rogério Sganzerla e Helena Ignez, “A mulher de todos e seu homem”, op. cit.
78 André Barcinski e Ivan Finotti, Zé do Caixão – maldito: a biografia, Rio de Janeiro:
DarkSide Books, 2015, pp. 218-21.

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