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Ismail Xavier - 18 - Setembro de 1996

Glauber, trágico e nacional

O político e o poeta ; Transformar o mundo

ISMAIL XAVIER

Glauber, trágico e nacional


este livro faz parte da coleção "Autores", dirigida pelos "Cahiers du Cinéma", dentro da tradição da
revista em privilegiar a autoria tal como concebida na emergência do cinema moderno. Não por
acidente, a coleção tem eleito, no caso de não-franceses, os "grandes" deste cinema. Glauber
Rocha é um deles, e o livro de Sylvie Pierre condensa muito bem o seu percurso, por meio do
relato competente, e impecável no estilo, de quem o acompanhou de perto e viveu a batalha do
Cinema Novo na frente européia.
O texto é mais do que uma peça introdutória, pois traz uma interpretação do fenômeno Glauber,
tomando-o como centro de toda uma constelação cultural e política. Atenta a seu interlocutor
imediato, o cinéfilo francês dos anos 80 pouco afeito ao mundo de Glauber, Sylvie combina sua
intervenção, informativa, interpretativa, com a apresentação de materiais que trazem a voz do
cineasta e a de alguns de seus amigos.
Da autora, vem um balanço introdutório, onde avalia o sentido geral do trajeto e sua recepção na
Europa, seguido de uma biografia condensada e do "alfabetagamaGlauber", mosaico de temas
glauberianos que organiza como uma pequena (e pessoal) enciclopédia.
No mais, seu trabalho é o de apresentar a coleção criteriosa de textos de Glauber, sobre o Cinema
Novo e sobre cineastas estrangeiros, e expor as razões que a levaram a incluir, no livro, a palavra
de Carlos Diegues, a do cineasta português Paulo Rocha, a de José Sarney (o amigo no poder que
ilustra o Glauber-monumento oficial) e a de Arnaldo Carrilho (o amigo diplomata).
Da coleção de textos do cineasta, a par dos mais conhecidos, o destaque é a entrevista dada a
João Lopes, em Portugal, em abril de 1981 -exposição serena de idéias, que contrasta com a
polêmica no Festival de Veneza de 1980 e com certa imagem que circulou de um Glauber em
transe nos meses que precederam a sua morte.
Muitos brasileiros têm mais na memória o Glauber "estrela" da mídia, sendo provável que foram
menos expostos a seus filmes do que à polêmica em torno da sua personalidade. Sylvie começa
pela consideração das vicissitudes do artista na esfera pública, atenta ao jogo de Glauber com os
fabricadores de imagem e à sua estratégia política nesse teatro que, afinal, lhe impôs as suas
regras. A partir deste nível mais aparente, ela busca as razões do cineasta por detrás da sua
performance, procurando descrever trajetos e apontar sentidos, de modo a fazer emergir o seu
Glauber Rocha.
Sua opção tem nítida inclinação psicológica, à francesa, e solicita a biografia, o saber que permite
a observação do comportamento adulto como articulado a um sistema de carências enraizadas na
formação, no romance familiar, na natureza e contexto social, que definiram a postura que
informa o estilo do cineasta. Neste sentido, seu trabalho tem um resíduo teleológico, comportando
prefigurações, sínteses retrospectivas, coroamentos, embora Sylvie desenvolva tal "discurso sobre
a vocação" dentro de um tom pós-moderno, lendo vida-e-obra como texto e os gestos como
enunciados.
O político e o poeta
A vida de Glauber é assumida como um romance cuja sequência lógica ultrapassa os seus filmes e
os inscreve numa textualidade que se resolve na morte, capítulo decisivo. Como reiterou Pasolini,
a morte é o momento da montagem, último lance pelo qual o artista consequente toma a corpo a
sua radicalidade (a relação entre Glauber, Pasolini e a morte é o núcleo de um episódio
extraordinário, de 1981, comentado no livro).
Em função da brevidade do texto, Sylvie descarta a exposição mais detida do que bem conhece -a
textura dos filmes. E se concentra na biografia como foco gerador de sentido, campo de conjeturas
em que ela é às vezes radical: "Se seus pais tivessem tido um segundo filho, talvez nunca
houvesse existido o Cinema Novo no Brasil". Em seu texto, é o autor que prevalece sobre a obra,
sua criatura, e não a obra que cria o autor. A pedagogia impõe esta ordem de precedência e,
dentro desta convenção, sua prosa mostra a força do ensaio conciso, que flui com "conhecimento
de causa". O leitor atento pode cobrar de Sylvie uma ou outra imprecisão histórica -como no caso
da Coluna Prestes-, mas isto não incide sobre o eixo do trabalho em sua composição da
personalidade do cineasta, terreno em que nos oferece passagens notáveis, como quando
descreve a mescla de elementos agressivamente ativos e de submissão passiva em Glauber.
Como a descrição mais detalhada dos filmes fica adiada para o capítulo final da filmografia, o texto
biográfico, embora se apóie, em sua lógica, numa consideração integral da obra, somente retira
dos filmes o que interessa para delinear o percurso de Glauber Rocha, dentro de uma dialética
entre o político e o poeta, que, ficcionalmente, o próprio poeta cristalizou em "Terra em Transe".
Às vezes a qualificação de um filme soa um tanto quanto peremptória, como quando "Barravento"
é tomado como filme marxista. Mas logo tal designação se atenua e fica patente a sua idéia de
trabalhar a dialética de Glauber na sucessão, tomando cada filme como um pólo ou momento do
processo, sem explorar a fundo a dialética interna de cada um deles, operação que exigiria outro
tipo de enfoque.
Com o intuito de corrigir equívocos da crítica européia, ela pauta o texto como um discurso de
retificação apto a compor o cineasta como um "campo de coerências", na contradição. Daí a
ênfase que dá ao movimento pelo qual, na sucessão dos filmes, as polarizações ou excessos
formam um jogo de compensações bem próprio à pessoa dividida, no caso entre as demandas do
sonho coletivo e as do poeta solitário. O princípio do dilaceramento preside o dinamismo gerador
de uma obra às voltas com um horizonte sempre adiado de totalizações. Eco sartriano na
biografia, embora esta exiba outro vocabulário; sinal talvez de fidelidade aos anos 60 e de atenção
às afinidades do menino prodígio, que ela projeta no herói angustiado que viveu o martírio dos
papéis a que sua missão revolucionária o obrigou.
A natureza do processo exige que, dentro do Glauber militante, exista o Glauber funcionário de si
mesmo, pois a própria afirmação do Cinema Novo envolve a administração de seu talento maior. O
relato aos poucos compõe a figura do viajante que não pára de fazer política, conspirar, dar a si
próprio como alvo. Se a contradição é sua marca específica, Sylvie supõe que o que vale para o
indivíduo vale para a nação que ele, por escolha, simboliza, na acepção romântica do termo. O
campo de coerência, na contradição, é então expressivo, porque nacional, condensação de uma
crispação coletiva. Glauber "sacrificou qualquer preocupação em afirmar peremptoriamente suas
qualidades de artista em favor da tarefa de viver, até as mais autodestrutivas consequências, as
contradições culturais do país".
Podemos perguntar: que contradições culturais? uma, com certeza, aí implicada, é a da pobreza
dos recursos face à riqueza do talento, algo que lembra o paradigma da morte precoce ou da
meia-idade amarga do cineasta brasileiro face aos entraves e à "situação colonial", tal como a
tematizou Paulo Emilio. Balisada no conflito entre a grandeza do cineasta, o acanhamento do meio
e a incompreensão da Europa, Sylvie constrói o relato da longa agonia, não desejada, porém
assumida, e o faz na chave trágica. Emerge o tema do sacrifício de Glauber, o que aproxima Sylvie
das interpretações de sua morte feitas no Brasil.
Tal reiteração do tema do sacrifício, comum entre os brasileiros, carrega certa ironia, pois um país
cuja ficção não se inclina significativamente para o trágico, parece ter acumulado, na crônica de
seu cinema, esta inclinação para o gênero. É comum dizer que Glauber morreu "de Brasil", de
modo a fazer sua tragédia a da nação condensada ali no seu corpo. Sobre este se projeta uma
promessa que caberia a nós cumprir, embora a matéria do mundo, por enquanto, a desenhe como
miragem. Para Sylvie, ele morreu "de utopia". Porta-voz de um projeto de nação pelos idos de 60
e 70, cineasta cuja obra se pautou pela figuração eloquente, e variada, dos destinos do país,
Glauber alcança post-mortem a dimensão de símbolo, momumento apto a assinalar que a cultura
e o cinema feitos no Brasil definem um campo de sentidos, uma história, contribuindo para um
senso de pertinência à nação como comunidade imaginada (na acepção de Benedict Anderson).
Em sintonia com tais aspirações, Sylvie Pierre, sob o peso dos recuos da década de 80, acentua o
pathos glauberiano, o que dá ao seu livro uma tônica distinta daquela encontrada em outras
publicações sobre o cinema brasileiro, onde Glauber obviamente ganha destaque, seja na França,
na Itália ou nos EUA. Tais livros sinalizam uma estabilização do Cinema Novo como episódio da
história do cinema com notável significação estética, e não apenas política, mas o empenho de
Sylvie na biografia introduz o drama, e seu livro se movimenta a partir do pressuposto da
amizade. Acentuo este dado, não para sugerir qualquer atitude banal de mistificação, mas para
marcar um movimento de compreensão que não exclui uma rara franqueza em momentos
delicados.
Transformar o mundo A empatia é refletida, e a autora sabe estar cumprindo um desígnio já
inscrito na estratégia que o cineasta montou, quando da emergência do Cinema Novo, na atenção
à crítica européia e aos festivais, quando tomou o prestígio internacional como balisa de uma
afirmação dentro do Brasil e nos contextos em que, por algum tempo, se irmanaram a cinefilia e a
vontade de transformar o mundo. Sylvie nos faz uma excelente síntese da entrada do Cinema
Novo pela Itália, quando Glauber, inventor de um estilo, alcançou o privilégio, sancionado por
Godard e Buñuel, de estar entre os "grandes".
Na crônica das alianças, emerge o tema da amizade como traço do Cinema Novo, sobre o qual ela
reflete enquanto o vivencia, admirada, como o crítico italiano Lino Miccichè, da capacidade deste
movimento em se manter hegemônico no Brasil por um longo período. Valeu aí a convergência de
inclinações pessoais e estratégias políticas, dados da sobrevivência de um grupo que viu seu êxito
depender, não sem conflitos e antipatias internas, de uma energia de coesão que Sylvie atribui à
tenacidade de Glauber e a seu carisma. Ela vai fundo nesta crônica familiar, e quase tudo,
inclusive a dissolução do movimento, se equaciona em termos de uma análise desta sociabilidade
intragrupo, associada a uma psicologia de Glauber na qual, em consonância com o afeto, ela
ressalta o impulso generoso do líder carismático, tomando sua grandeza mais como fardo do que
por seu lado "coronel", muitas vezes truculento e autoritário.
O Glauber de Sylvie é o viajante que buscou no contato com o outro um caminho de encontrar sua
própria identidade, refazendo um roteiro que tem sua matriz modernista, mas foi vivido pelo
cineasta na tônica do desconforto, porque se tratava de Glauber, da década da urgência e do
mundo "barra pesada" do cinema. Ela vê neste roteiro a expressão de uma heteronomia que
permeia a cultura brasileira, claramente sinalizada no cotejo obsessivo entre o nacional e o
estrangeiro que, de diferentes modos, em 1920 ou em 1960, estabeleceu essa dinâmica pela qual
o nacionalismo se alimenta na busca e no espelhamento do que precisa negar. No Brasil, a cinefilia
é, de saída, um contato com o estrangeiro, uma atenção a um presente adverso tendo em vista
um futuro melhor a preparar. A revolução do cinema é o sonho glauberiano que Sylvie assume,
empenhada em esclarecer uma história individual que, a seu ver, resume aspectos essenciais do
encontro ou choque de culturas, pois uma das tragédias do cineasta teria sido, em seu final,
tentar "fazer a aliança (impossível e, em certo sentido, suicida) com o que a Europa detesta em si
mesma". Neste livro, ela oferece a Glauber Rocha o gesto que complementa suas estratégias. Para
que os elos de continuidade não se percam, ela compõe, nos anos 80, frente a ele e ao Cinema
Novo, um olhar "de dentro", escrito em Paris.

Ismail Xavier é professor de cinema da ECA-USP

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