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Educação Literária… A Par e Passo!

Lê o texto com atenção. Consulta as notas, sempre que achares necessário.

Nesse tempo tinha-lhe medo. Medo e admiração. O medo resultava do que


acabo de contar. A admiração vinha das récitas1 dos amadores dramáticos da vila.
Era pelo inverno. Jantávamos à pressa e nessas noites minha mãe penteava-me
com cuidado. Calçava uns sapatos rebrilhantes e umas peúgas de seda que me
5 enregelavam os pés. Saíamos. E, no negrume2 da noite que afogava as ruas da vila, eu
conhecia pela voz famílias que caminhavam na nossa frente e outras que vinham para
trás. Depois, ao entrar no teatro, sentia-me perplexo3 no meio de tanta luz e gente
silenciosa. Mas todos pareciam corados de satisfação.
Daí a pouco, entrava num mundo diferente. Que coisas estranhas aconteciam!
10 Ninguém ali falava como eu ouvia cá fora. E mesmo quando calados tinham outro
aspeto; constantemente a mexerem os braços. Mestre Finezas era o que mais se
destacava. E nunca, que me recorde, o pano desceu, no último ato, com Mestre
Finezas ainda vivo. Quase sempre morria quando a cortina principiava a descer e, na
plateia, as senhoras soluçavam alto.
15 Aquelas desgraças aconteciam-lhe porque era justo e tomava, de gosto, o
partido dos fracos. E, para que os fracos vencessem, Mestre Finezas não tinha medo de
nada nem de ninguém. Heroicamente, de peito aberto, e com grandes falas, ia ao
encontro da morte.
Eu arrepiava-me todo. Uma noite Mestre Finezas morreu logo no primeiro ato.
20 Foi um desapontamento. Todos criticaram pelo corredor, no intervalo. “O
melhor artista morreu mal entra em cena!... Não está certo! Agora vamos gramar
quatro atos só com canastrões4!”, dizia o doutor delegado a meu pai.
Mas a cena tinha sido tão viva e a sua morte tão notada durante o resto do
espetáculo que, no outro dia, me surpreendi ao vê-lo caminhando em direção à loja.
25 Ora havia também um outro motivo para a minha admiração. Era o violino.
Mestre Finezas, quando não tinha fregueses, o que era frequente durante a maior
parte do dia, tocava violino. E, muita vez, aconteceu eu abandonar os companheiros e
os jogos e quedar-me5, suspenso, a ouvi-lo, de longe.
Era bem bonito. Uma melodia suave saía da loja e enchia a vila de tristeza.
30 Passaram anos. Um dia, parti para os estudos. Voltei homem. Mestre Finezas é
ainda a mesma figura alta e seca. Somente tem os cabelos todos brancos.
– Olha bem para mim – pede-me às vezes –, olha bem e diz lá se este é o
mesmo homem que tu conheceste? ...
Finjo-me admirado de uma tal pergunta. Procuro convencê-lo de que sim, de
35 que ainda é. Compreende as minhas mentiras e abana docemente a cabeça:
– Estou um velho, Carlinhos!...

Manuel da Fonseca, Aldeia Nova. Alfragide, Bis, Leya, 2009, pp.122 e 123.

Notas: 1. récitas: representações teatrais; 2. negrume: escuridão; 3. perplexo: confuso; 4. canastrões: maus
atores;
5. quedar-me: permanecer quieto.

©Edições ASA | 2020-2021 – Carla Marques | Ana Paula Neves


Responde às questões que te são colocadas.

1. Completa o quadro com excertos textuais relativos aos


Compreensão literal
comportamentos das pessoas da vila, em diferentes momentos, em dia de
espetáculo teatral.
Reconhecimento
a) Refeição: de traços de
b) Preparação para a saída: comportamento
c) Percurso até ao teatro: de personagens

d) Dentro do teatro:

1.1. Seleciona a opção que completa corretamente a afirmação. Compreensão


inferencial
As pessoas da vila adotavam estes comportamentos porque
(A) sentiam que ir ao teatro era entrar num mundo diferente. Dedução de
(B) consideravam os dias de espetáculo muito importantes. relações de
(C) agiam desta forma sempre que saíam à rua. causa-efeito
(D) não queriam passar vergonha junto dos outros.

2. Identifica as características principais das récitas dos amadores Reorganização


dramáticos, na perspetiva do narrador.
Classificação
(A) Desenlaces trágicos (E) Acontecimentos populares
(B) Finais românticos (F) Linguagem informal
(C) Modo de falar estranho (G) Gestos exagerados
(D) Histórias invulgares (H) Uso de língua gestual

3. Explicita uma reação que o narrador teria tido na noite da récita que Compreensão
pudesse justificar o seu sentimento no dia seguinte: “me surpreendi ao vê- inferencial
lo caminhando em direção à loja” (l. 25).
Dedução de
____________________________________________________________ detalhes
____________________________________________________________
____________________________________________________________
Compreensão
4. Identifica o recurso expressivo presente na frase “Uma melodia suave inferencial
saía da loja e enchia a vila de tristeza.” (l. 30) e refere a sua função para a
caracterização da música. Interpretação
____________________________________________________________ de linguagem
figurada
____________________________________________________________
____________________________________________________________
Compreensão
5. Compara a personagem Mestre Finezas do início do excerto com a inferencial
personagem que fala com Carlinhos, o narrador, no final.
____________________________________________________________ Dedução de
____________________________________________________________ comparações
____________________________________________________________
Compreensão crítica
6. Qual a tua opinião relativamente à falsidade que o narrador revela no
final do excerto?
____________________________________________________________ Juízos de valor
____________________________________________________________
____________________________________________________________

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Propostas de correção
1. a) “Jantávamos à pressa...” (l.3); b) “...penteava-me com cuidado” (l. 3); “Calçava uns sapatos
rebrilhantes e umas peúgas de seda” (l. 4); c) "famílias que caminhavam” (l. 6); d) “sentia-me perplexo”
(l. 7); “gente silenciosa” (ll. 7-8); “corados de satisfação” (l. 8)
1.1. (B)
2. (A); (C); (D); (G)
3. O narrador teria acreditado que Mestre Finezas teria efetivamente morrido em palco.
4. A frase apresenta uma personificação que contribui para caracterizar a música como algo muito
marcante, capaz de influenciar todos aqueles que a ouviam.
5. No início do excerto, Mestre Finezas surge como uma personagem imponente, com muita vida,
admirado por todos devido aos seus dotes artísticos, quer como ator quer como violinista.
No fim, é uma personagem envelhecida, desanimada, perfeitamente consciente da sua velhice.
Assim, conclui-se que há uma diferença entre o Mestre Finezas da infância do narrador e aquele que
este reencontra quando regressa à vila, já adulto.
6. Julgo que a atitude que o narrador revela no final é compreensível porque ele não quer magoar
Mestre Finezas ao confirmar que o barbeiro já não é a pessoa que ele conheceu quando era criança,
porque este envelheceu.

©Edições ASA | 2020-2021 – Carla Marques | Ana Paula Neves

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