Você está na página 1de 4

MÓ DULO 6 A cultura do palco

A CULTURA DO PALCO
O termo «barroco» surge pela primeira vez no livro Coló quio dos Simples e Drogas
da Índia (1563), de Garcia de Orta, para se referir a pérolas deformadas e irregulares,
sendo até ao século XIX usado como sinó nimo de «absurdo» ou «grotesco». Só com o
historiador Heinrich Wö lfflin (início do século XX) «barroco» passa a descrever uma
expressão artística complexa, elaborada e emotiva ocorrida ao longo do século XVII,
aplicando-se às artes plásticas, à arquitetura, à mú sica e, por vezes, também à
literatura. Na arte em geral, o Barroco surge em Roma associado à Contrarreforma e
caracteriza o movimento dinâmico e a retó rica expressiva, sendo estes domínios
adequados para exprimir o espírito fulgurante da revitalizada Igreja Cató lica.
O Barroco constituiu uma deliberada rejeição do hermetismo e da complexidade a
que o Maneirismo tinha conduzido a arte, a favor de um retorno aos valores que o
Classicismo tinha atingido durante o Renascimento.
Orientação que acabou por ser recebida entusiasticamente tanto pelas cortes
absolutistas europeias, como pela Igreja Cató lica romana, pois só uma linguagem
universal, expressiva e persuasiva, capaz de chegar a espetadores de todas as classes,
podia afastar o receio de uma ainda maior fragmentação política e religiosa na
Europa.
Durante o Barroco, a sensação de insegurança coletiva provocou a afirmação do
sujeito, dos sentidos, das emoçõ es e das experiências sensíveis intensas, com a
valorização do contraste e do limite. Insegurança que se traduz igualmente na
obsessão pelas aparências: no que parece ser excessivamente realista, a imagem
barroca é falaciosa e paradoxal, encerrando sempre um significado implícito. De
resto, a manipulação é um dos mais fortes recursos do Barroco: tanto a Igreja
contrarreformista como as monarquias absolutas perseguiram a instrumentalização
da arte para a sedução sensorial das massas. Nos espetáculos teatrais, nas ó peras,
nas procissõ es e nas festas, fundem-se persuasivamente os mais distintos géneros
artísticos (arquitetura, pintura, escultura, mú sica, teatro, dança) servindo os mesmos
fins; não se trata tanto de estabelecer um controlo ideoló gico, mas antes o de
concretizar uma generosa implicação afetiva.
Na pintura, o Barroco desenvolveu uma tendência para romper o plano da imagem
acentuando a sensação de profundidade, jogou com as formas fluidas e ondulantes,
aplicou um animado cromatismo e tirou partido dos efeitos ilusionistas. Igrejas e
mosteiros cobrem, então, as suas paredes de quadros e frescos onde se narram
episó dios sagrados e vidas de santos, enquanto reis e nobres reú nem nos seus
Mosteiro de Melk, Jakob Prandtauer,
Melk, Á ustria, 1702-1738. palácios coleçõ es de retratos e cenas mitoló gicas onde refletem a sua cultura e o seu
No sul da Alemanha e na Á ustria, poder. E, se o panorama escultó rico é menos variado, marcado sobretudo pela
o Barroco atingiu uma grandiosidade
e uma opulência pouco comuns. influência internacional de Bernini (e caracterizada pelo naturalismo, pelo
Os «salões imperiais», as igrejas dinamismo e pela expressividade), já na arquitetura barroca proliferaram as formas
e as bibliotecas eram os espaços
privilegiados para a sua expressão
onduladas, as fachadas cenográficas e a abundante decoração, em composiçõ es cujos
requintada. fundamentos estéticos e plásticos são ainda clássicos.
A escada barroca
A modulação das sequências espaciais
interiores e a modelação da
luminosidade-obscuridade e da
expansão-reclusão espacial foram ele-
mentos predominantes na arquitetura
barroca.
E, particularmente na Alemanha e na
Á ustria, estes aspetos ganharam outra
dimensão ao serem reforçados através
da «escada», um elemento da
composição arquitetó nica que, desde
Alberti, tinha sido menosprezado.
De facto, no tratado De Re
Aedificatoria, Alberti referira que
«quanto menos escadas houver num
edifício e menor for o espaço que
ocupem, menos prejuízos causarão».
Não foi isso que pensaram os
arquitetos bávaros e austríacos, pois,
no melhor estilo barroco, exploraram
as potencialidades dinâmicas, plás-
ticas e espaciais das escadas, e atri-
buíram-lhes um papel determinante na
conceção arquitetó nica, sendo,
frequentemente o elemento mais
elaborado do projeto.
É o exemplo da imponente escadaria
do Palácio do Arcebispo de Würzburg,
obra do conceituado arquiteto
Balthasar Neumann, cujo teto abo-
badado recebeu um requintado fresco
de Tiepolo (1696-1770) datado de
1752--1753.

Escadaria do Palácio-Residência do Arcebispo de Würzburg, Johann Balthasar


Neumann, Würzburg, Alemanha, 1737-1742.
MÓ DULO 6 A cidade barroca: dinamismo, esplendor e extensão
A CULTURA DO PALCO
espacial
Durante o Barroco, os artistas puderam exprimir a sua arte numa extensão jamais igualada.
Vastos programas foram desencadeados pelas grandes potências e as cidades, autênticas
manifestaçõ es do poder, conheceram um desenvolvimento extraordinário. A cidade barroca
já não é, tão-somente, um somató rio de edifícios necessários à vida pú blica. A cidade barroca
adquire um simbolismo muito pró prio, em que as ruas, as praças e os grandes jardins são tão
importantes como as igrejas ou os palácios. O ideal de persuasão e autoridade traduz-se no
dinamismo, no esplendor e na extensão espacial. É num tal contexto que se traçam os
primeiros planos de urbanismo das cidades de Roma e Paris, pensando a cidade como uma
totalidade integrada num sistema muito mais vasto do que a simples aglomeração de
edifícios. Na cidade barroca os edifícios perdem a sua individualidade plástica para se
Fontana di Trevi, Nicola Salvi
e Giuseppe Pannini, Roma, tornarem parte integrante de uma totalidade urbana mais complexa.
Itália, 1732-1762.
A Fontana di Trevi é um dos monumentos O vocabulário da arquitetura barroca é o mesmo do Renascimento e do Maneirismo: colunas,
mais emblemáticos pilastras, frontõ es, arcos e frisos, todos importados da Antiguidade greco-romana, mas com
e representativos do esplendor do uma utilização distinta. Enquanto no Renascimento a utilização destes elementos concilia
Barroco romano. Os seus primeiros
estudos foram ainda desenvolvidos problemas de ordem técnica com a ordem estética, o Barroco confere à plástica uma função
por Bernini, por encomenda do simbó lica. As grandes ordens barrocas tornam visível a autoridade, a estabilidade, as gló rias
Papa Urbano VIII cerca de 1629, que celestiais ou terrenas, tirando partido do conteú do simbó lico adquirido por estes elementos
desejava construir uma grandiosa
fonte no termo do aqueduto Aqua construtivos desde a Antiguidade. Se a coluna evoca estabilidade, já a cú pula remete para o
Virgo, um aqueduto com um forte misticismo da abó bada celeste.
simbolismo para a cidade.
No entanto, só mais tarde o projeto Foi neste sentido que, nos finais do século XVI, o Papa Sisto V empreendeu uma significativa
definitivo viria a ser concretizado intervenção urbanística em Roma que, para além de unir simbolicamente as sete grandes
por Nicola Salvi e, após a sua morte,
concluído por Giuseppe Pannini. basílicas paleocristãs, procurando revitalizar a essência do Cristianismo primitivo, também
A composição escultórica é dominada pretendeu rasgar uma ampla rede viária que facilitasse as rotas de peregrinação entre elas.
pela figura de Neptuno (escultura de Mas a reforma urbanística de Sisto V foi mais longe, visando resolver problemas orgânicos e
Pietro Bacci) sobre uma carruagem
em forma de concha, puxado por estruturais da cidade, inaugurando deste modo o urbanismo moderno. Foram rasgadas
dois cavalos-marinhos, por sua vez amplas artérias, os espaços pú blicos foram enriquecidos com estátuas, obeliscos e fontes, os
conduzidos por dois tritões. Ladeando jardins foram apetrechados com lagos, repuxos e jogos de água, e foram abertas praças onde
Neptuno, figuram as alegorias
femininas da Abundância (à esquerda) decorriam festas, mercados e cerimó nias, nas quais se evidenciava sempre a igreja,
e da Salubridade (à direita), duas omnipresente como símbolo agregador da comunidade.
esculturas de Filippo della Valle.
Esta foi a Roma Triumphans, a cidade-espetáculo erguida por Sisto V, que respondeu tanto aos
desígnios do poder papal quanto ao triunfo do catolicismo sobre a Reforma protestante. Os
melhores exemplos desta prática são, porventura, o traçado da Piazza Navona sob
intervenção dos dois arquitetos mais destacados do barroco romano (Borromini e Bernini), e
o arranjo da Praça de São Pedro, onde Bernini atingiu o apogeu do seu trabalho como
arquiteto.
Praça de São Pedro, Bernini, Vaticano,
Roma, 1656-1667.
Para aquela que foi a obra culminante da carreira
de Bernini enquanto arquiteto, o Papa Sisto V
pretendeu criar um espaço suficientemente
significante e simbólico capaz de prestigiar aquele
que é o centro da cristandade.
Bernini considerou que os «braços» que formam a
enorme oval da praça deveriam representar «os
braços maternais da Igreja, abraçando os católicos
para reforçar a sua fé, os hereges para trazê-los de
novo ao seio da Igreja e os ateus para iluminá-los
com a luz da verdadeira fé».

Palais-Royale, Jacques Lemercier, Paris, França, 1624.


Em França, o Barroco submeteu-se a um rigor racional e clássico, respeitando a sobriedade, a contenção e a ortodoxia
da aristocracia parisiense, tão bem representada pelo poder absoluto de Luís XIV. No Palais-Royale, Lemercier interpretou
corretamente os valores do Classicismo que haviam de marcar a arquitetura do Barroco francês.

Palácio do Belvedere, Lucas von Hildebrandt, Viena, Á ustria, 1714-1724.


Na Alemanha e na Á ustria, regiões de tendência católica, fez-se sentir uma maior influência do Barroco de inspiração romana.
Da complexidade formal à exuberante decoração, estes palácios e igrejas replicaram fielmente o Barroco
da Contrarreforma.

Você também pode gostar