Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Hans-Thies Lehmann
Tradução: Matheus Cosmo, Paula Bellaguarda e Sofia Vilasboas.
Revisão: Matheus Cosmo.
***
***
Duas observações servirão para justificar a tentativa que se segue de considerar a
questão do espectador através da poética da tragédia. Por um lado, é sempre recomendado, em
um momento de crise de um gênero, reconsiderar seu ponto de partida. O conhecimento dos
elementos de base pode possibilitar uma visão mais livre – desde que nos guardemos daquela
tentação de querer facilitar nosso próprio caminho, reduzindo certa novidade inquietante
àquilo que se conhece há muito tempo. Por outro lado, é impressionante que numerosos
artistas diferentes, como Jan Fabre, Claudio Castellucci do Societas Raffaello Sanzio, Robert
Wilson ou Einar Schleef, se refiram mais explicitamente à tragédia antiga (talvez até ao
teatro barroco) do que à tradição dramática teatral inaugurada no século XVIII. A mesma
observação pode ser aplicada aos artistas da performance. Radicais autores contemporâneos,
como Heiner Müller e Sarah Kane, com textos particularmente correspondentes aos
paradigmas pós-dramáticos, também fazem essa referência à Antiguidade. Anagnorisis, o
reconhecimento, é, em oposição à catarse, já discutida com bastante exaustão, uma categoria
particularmente negligenciada da Poética de Aristóteles. Respeitando ao mito (plot) da
tragédia, que resulta da systasis pragmaton (a reunião das ações), Aristóteles aponta três
elementos substanciais a toda tragédia: a peripécia, um acontecimento patético (desencadeador
de uma profunda dor) e anagnorisis, o reconhecimento. “A peripécia”, escreve Aristóteles, “é a
reviravolta da ação, que agora caminha em sentido contrário [...]. O reconhecimento
(anagnorisis), como o próprio nome indica, faz passar da ignorância ao conhecimento,
mudando o ódio em amizade, ou inversamente, naquelas pessoas destinadas à infelicidade ou
ao infortúnio”. Em seguida, são distinguidos diversos tipos de anagnorisis, a partir da
qualidade do objeto de reconhecimento, sendo ora uma coisa ora um indivíduo, ou conforme a
condução dos episódios em direção a um bom final ou não, etc. O próprio comentário desses
aspectos já nos parece muito peculiar, mas, como estamos lidando com um conceito, iremos
ainda mais longe. Na verdade, é precisamente pelo reconhecimento de um sujeito que
Aristóteles se interessa. Porque, segundo ele, será principalmente um reconhecimento desse
tipo que produzirá eleos e phobos (piedade e terror) em grandes proporções – eleos e phobos
que, como ele diz, são o verdadeiro objetivo da tragédia. A tragédia mais bem-feita é aquela
onde anagnorisis coincide com a peripécia, como acontece em Édipo Rei, convocada como
modelo ideal pela Poética.
Anagnorisis é um reconhecimento. Contudo, esse reconhecimento não produz somente
um novo saber, mas também uma reação afetiva. Na Poética, ele é uma questão essencial ao
conteúdo da tragédia. Contudo, o que diz Aristóteles acerca dos heróis trágicos aplica-se, de
antemão, ao espectador. Aristóteles pensa em termos de efeito. Mas dois interesses, ao menos,
coabitam o peito do autor da Poética quando procura capturar o efeito da tragédia para pensá-
la. O primeiro aspira a uma racionalização radical. A tragédia (assim como o belo) é
incontestavelmente pensada por Aristóteles como algo que eu definiria como uma
representação paralógica: a construção da tragédia é projetada em uma progressão lógica, o
tema do reconhecimento figura ao centro, e a ideia de que o teatro deve transmitir um
ensinamento atravessa toda a Poética. Mesmo o prazer vivido pelo indivíduo diante da mimesis
ou da imitação, manifesto desde a infância, é explicado com a ajuda do verbo syllogizesthei –
portanto com a ajuda de um processo lógico-teórico: “nós sentimos prazer ao observar as
imagens pois aprendemos a observar e deduzir (syllogizesthei) o que representa cada coisa”. E é
assim que, a certa altura, o autor da Poética leva a cabo a tese bastante curiosa de que o teatro
seria uma responsabilidade daqueles que não gostam de pensar, uma vez que a grande maioria
da humanidade infelizmente sente nenhum desejo de aprender. Por conta disso, os filósofos, se
seguem a lógica de argumentação aristotélica, não têm a necessidade do teatro ou das imagens.
A tragédia se mostra como uma saborosa medicina inventada pelas massas em vista de lhes
proporcionar a compreensão de certas coisas, para que, em seguida, o próprio pensamento não
precise exercer esta função nem possuir tamanha obrigação. Desse modo, menos é exigido ao
teatro: com efeito, a famigerada catarse já se produz, segundo Aristóteles, no instante mesmo
da leitura da tragédia. O logos do texto é suficiente – no máximo, nós podemos considerar que
a voz propõe um jogo entre a prática antiga de ler o texto em voz alta e aquela que implica uma
leitura silenciosa, por si só. O teatro, de modo concreto, é considerado por Aristóteles como um
ingrediente largamente desprovido de valor artístico e, no fundo, absolutamente supérfluo.
(Platão, por sua vez, não se contenta em enunciar um simples caráter supérfluo ao teatro. Diz-
se que, ao invés disso, em seus discursos oficiais, o que ele condenava era a predominância das
reações afetivas, que acabaram por atribuir ao teatro um valor altamente nocivo.)
À primeira vista, a concepção de anagnorisis tende a obedecer à mesma lei de lógica
extrema da estética, presente na Poética; mas anagnorisis é um reconhecimento dos heróis que
desempenham uma importância decisiva para o desenvolvimento do conflito. Diz-se que o
herói trágico, ao menos em certos casos, é atirado sobre o espectador que não terá como entrar
em nenhum outro lugar que não mathesis, o conhecimento que antes não podia ter ou não
tinha. Wolfram Ette coloca este ponto em evidência:
***