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OBITUÁRIO

1930-2022 Maria de Lourdes Modesto

A guardiã

ARQUIVO A CAPITAL

A mulher que mais zelou pelo património gastronómico


português morreu aos 92 anos. A comunidade dos
cozinheiros perdeu a sua matriarca

Ricardo Dias Felner

Quando deixou Beja para vir para Lisboa, aos 17 anos,


queria ser atriz. Para trás ficava o ambiente sufocante
do Alentejo e uma vida com três irmãos, debaixo das
saias apertadas de uma mãe divorciada, demasiado
ocupada com a sobrevivência. Filha de um pai “não-
exemplar”, já nessa altura Maria de Lourdes Modesto
tinha noção de que teria de crescer independente e de
que não viveria às custas de um homem. Mas queria
fazê-lo com estilo. Queria deixar uma marca.

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O caminho para lá chegar não foi óbvio. Havia entraves.
Primeiro, era preciso uma justificação para que a mãe a
deixasse partir para Lisboa e a libertasse da província.
Depois, teria de tratar de arranjar quem a acolhesse e
meios para subsistir. Tudo deveria parecer dentro dos
costumes — e assim aconteceu: a jovem Maria de
Lourdes acabaria por entrar no curso de Educadora de
Economia Doméstica e instalar-se num lar da Mocidade
Portuguesa.

Na escola, esteve sempre confortável com o currículo.


Cedo se habituara às tarefas do lar e nenhum ofício lhe
parecia complicado. “Com cinco anos sabia fazer bainhas
abertas”, recordaria numa entrevista a Anabela Mota
Ribeiro. No seu horizonte estava ser restauradora de
obras de arte do Museu de Arte Antiga, porque sabia
bordar a ouro, mas a vocação para o ensino levá-la-ia a
dar aulas, algo que ela via com agrado, desde que o
fizesse num sítio arejado.

Mais arejado do que o Liceu Francês, em Lisboa, não


havia. Aos 21 anos iniciava lá a carreira docente, um
idílio de sofisticação num Portugal bafiento. Ensinava
Trabalhos Manuais, mas era para a vida das artistas de
cinema que olhava. Começou a copiar-lhes as
sobrancelhas, à imagem de Audrey Hepburn. “Eu não
tinha a graça dela, claro, mas cultivava aquele estilo. Era
magra, tinha as maçãs do rosto salientes, os olhos
enormes.”

Entre ponto-cruz e lições de boas maneiras, a jovem


Maria de Lourdes arranjaria tempo para se infiltrar no

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teatro. Nas horas livres entrava em peças amadoras e
dava nas vistas. “Cheguei a receber convites da senhora
d. Amélia [Rey Colaço] e do Fernando Frazão, que tinha
uma peça para encenar. Queria-me a mim e à Amália”,
recordará numa entrevista, em 2019, no “DN”, a
Alexandra Tavares-Telles.

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O salto para a televisão

Seria, contudo, através de uma peça de Molière,


“Monsieur de Pourceaugnac”, apresentada no Liceu
Francês, que viria a saltar para a televisão. “Falava dois
patuás, comia uma maçã no palco, não me recordo se
cantava, mas era um papel interessante.” A equipa da
RTP, que lá se encontrava a gravar achou o mesmo e foi
convidada a ir gravar em estúdio. Em menos de nada
estava a ser convidada para um programa a solo.

De início, não havia qualquer ligação à culinária. A mãe


não era “grande cozinheira” e tinha-lhe ensinado apenas
o básico, “a cozer umas batatas, a cozer um peixe, a
fazer um ensopado”. Depois, não tinha qualquer

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saudosismo pela cozinha alentejana, que queria
enterrada no passado, juntamente com o casario em
banda e a coscuvilhice rural. “Não tenho aquela paixão
concreta pelo Alentejo. Por aquelas casinhas em fila,
uma porta/uma janela, uma porta/uma janela, uma
porta/uma janela, com toda a gente a saber o que se
passa no monte”, admitiria, muitos anos depois, quando
já vivia sozinha na sua vivenda de sempre, em Alapraia,
São João do Estoril.

A herança gastronómica alentejana estava enterrada.


Em Lisboa, comia o que os lares lhe davam, sem
saudosismo nem lamentos. Mas tinha uma vontade
enorme de singrar, de estar entre artistas. Se fosse
preciso aprender a cozinhar, a usar a sageza e a
sensualidade, a empatia e os coletes à Jacqueline
Kennedy, fá-lo-ia. “Era cosmopolita, perigosa e
mandona, no bom sentido”, diz Miguel Esteves Cardoso.
Quando definia um objetivo, cumpria.

No dia da estreia do seu programa na TV, chamado


“Culinária”, enviou um telegrama à mãe que denunciava
o distanciamento entre as duas. “Veja televisão hoje
nove horas”, escrevera-lhe. Nessa altura não era preciso
indicar o canal, só havia um. A mãe terá ido a um café,
sem saber que era a filha quem apareceria no ecrã. As
duas nunca falaram sobre o assunto. “Não faço ideia do
que sentiu. Não era muito de me estimular, a minha mãe
era mais de me criticar”, comentaria a propósito.

Preparara-se com esmero para esse momento. Carregou


ainda mais no lápis nos olhos, calibrou a dieta de acordo

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com os modelos de Paris (recusando o estilo mais
anafado, habitual nas calçadas do Chiado). Estudou
receitas. Testou-as — garantia testá-las sempre três
vezes antes de cada programa. Atirou-se para a frente
das luzes. Estatelou-se.

No seu afã pela novidade, pelo que era moderno,


escolheu começar por falar de alcachofras, um produto
clássico em França, um exotismo para os espectadores
portugueses. A transmissão era em direto e a dada
altura, bloqueada com a fala, Maria de Lourdes chegou
mesmo a sair do enquadramento por instantes. Pela sua
cabeça passou-lhe fugir dali, mas a ideia de fracassar
perante a mãe e os seus alunos fê-la prosseguir. Acabou
com um gemido de prazer, depois de provar o molho das
alcachofras — “Humm, que bom” —, que terá feito
suspirar as audiências da estação pública, então, claro,
com 100% de share.

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O sucesso

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A partir daí o sucesso foi rápido. Nascia uma estrela.
Fresca. Nova. Moderna. “Eu era engraçada, gira e fugia
ao estereótipo: era professora no Liceu Francês, viajava,
tinha uma mentalidade, não direi avançada, mas
aberta”, recordou na mesma entrevista a Anabela Mota
Ribeiro, para o “DN”, em 2014, um dos raros momentos
em que expôs os seus sentimentos mais íntimos. Entre
os mais puristas e nacionalistas surgiram, no entanto,
críticas.

A culpa terá sido da margarina, num certo período. Ávida


da segurança financeira que nunca tivera, aceitou
escrever fichas culinárias para a Vaqueiro, enquanto
assalariada da multinacional Lever. Miguel Esteves
Cardoso, escritor e gastrónomo, seu diretor quando
escreveu para “O Independente”, considera que isso em
nada a desmereceu. “A margarina fica boa em muita
coisa. Ela não tinha essa coisa de dar valor à origem. Ou
fica bom ou não fica”, comentou. Duarte Calvão, ex-
jornalista de gastronomia e autor do blogue “Mesa
Marcada”, seu amigo, recorda, por sua vez, que nessa
altura a margarina “não tinha a má fama que tem hoje”.

Fora a escorregadela na margarina, houve ainda a


acusação de estar a sobrepor a cozinha francesa à
portuguesa. Numa fase inicial, a acusação terá feito
sentido. Mas poderia ser estendida a gerações e
gerações de atores da gastronomia nacional, de escribas
a intelectuais e praticantes, devotos dos ventos que
sopravam de França há cinco séculos, daquilo a que,
décadas depois, Maria de Lourdes Modesto apelidaria de
“cozinha de palácio, farinhada, pesada”. Apesar de
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assumir a sua francofonia, a gastrónoma não se
embevecia com qualquer vol-au-vent.

Duarte Calvão considera que houve um momento em


que terá tido consciência de que era preciso mudar, de
que devia ter um maior foco na culinária portuguesa —
“e ainda bem”. A partir daí, assumir-se-ia como “a figura
mais importante da nossa gastronomia no século XX e
neste início do século XXI”, defende.

Depois de 1965 temos já o receituário regional em força,


sem estrangeirismos. Até que a televisão a cansou. Ao
fim de 12 anos no ar, Maria de Lourdes estava esgotada.
Confessaria, muito mais tarde, ter detestado a constante
pressão do público. Acabou com uma depressão — e
nunca mais aceitaria fazer um programa regular para a
televisão, que passou a ver como um meio frívolo e
desestabilizador.

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ARQUIVO A CAPITAL

A passagem para os livros

Acabava a televisão, começavam os livros. Um, em


particular, haveria de provocar filas à porta das livrarias:
“Cozinha Tradicional Portuguesa”. “Foi a sua forma de
reagir”, refere Duarte Calvão, referindo-se às críticas de
que fora alvo no passado. Ao longo dos anos, seria esse
livro, em particular, que a sustentaria. Assente em
receituário regional, que havia sido enviado pelos
telespectadores e selecionado e trabalhado por ela, o
livro seria o cânone da cozinha portuguesa dos anos
seguintes — e é ainda hoje usado com o mesmo afã por
amadores e profissionais, como escreveu o primeiro-

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ministro, António Costa, na nota sobre a sua morte, esta
terça-feira.

O seu sucesso continua a não ter concorrência — 40


anos depois da primeira edição —, alimentando uma
editora, a Verbo, que tem na sua obra a joia mais
valiosa. Embora a Verbo se tenha negado a revelar
números de vendas, já serão 30 edições e mais de 400
mil livros vendidos, a um preço que neste momento
anda entre os €55 e os €60. Fazendo contas grosseiras,
chegamos a mais de €22 milhões de receitas. O contrato
com a Verbo estará blindado e abrange várias outras
referências bibliográficas da autora. Maria de Lourdes
esbarrou sempre em questões jurídicas para conseguir
libertar-se da ligação à editora. Em resposta a perguntas
escritas do Expresso, a Verbo, assinando como
“Administração da Babel Distribuidora”, lamenta
“profundamente a perda” e adianta que Maria de
Lourdes Modesto sempre “manifestou o seu desejo de
que a ‘Cozinha Tradicional Portuguesa’ continuasse na
Verbo”.

Apesar do sucesso editorial, a esquerda tentou cancelá-


la. Miguel Esteves Cardoso sublinha que isso aconteceu
simplesmente porque ela escolheu existir durante o
antigo regime. “Não era reacionária. Era uma
conservadora com amor ao presente. E gostava de
brincar às marquesas, não o sendo.” Foi Miguel Esteves
Cardoso, já na mudança de século, quem a resgatou do
seu jardim de estrelícias e orquídeas de Alapraia para
colaborar com ele no suplemento ‘Preguiça’, d’ “O
Independente”.
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De então para cá, ainda que sem o palco da televisão, a
sua influência ressurgiu com a nova euforia pelas
tradições portuguesas. Já depois da onda de culto dos
chefes, depois da moda da cozinha de fusão e da cozinha
molecular, muitos jovens cozinheiros — e outros não tão
jovens — voltaram-se novamente para os sabores
regionais portugueses. Entre os seus cozinheiros
preferidos estavam José Avillez, à cabeça, mas também
Vítor Sobral.

Maria de Lourdes Modesto admitia uma gastronomia


sem barreiras, mas era contra usurpações do património
alimentar. Virgílio Gomes, historiador e gastrónomo, cita
o exemplo das “Amêijoas à Bulhão Pato”, a dada altura
refrescadas com vinho, algo que não existia na receita
original. Ficaram famosas várias tiradas próprias do seu
humor, ora subtil, ora demolidor. Mas já ninguém
ousava contradizê-la.

Tornou-se, com o passar dos anos, na cozinheira dos


chefes. Na última década, continuava crítica de desvios
autorais, mas mais suave no verbo. E fez, por fim, as
pazes com o seu Alentejo, com a sua paisagem e a sua
cozinha.

Acabou tranquila com o seu passado. Mas acabou. A


comunidade gastronómica perdeu a sua matriarca. Na
expressão do crítico gastronómico José Quitério —
porventura o patriarca —, Portugal perdeu a sua
“guardiã do fogo”.

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Agradecemos a Francisco Camacho, Jorge Colaço,
Teresa Vivas e Paulo Pinto Mascarenhas

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