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Viver com o veneno

E-Mail

EXPOSIÇÃO Imagens retiradas de um vídeo que mostra


as condições de trabalho no interior da fábrica da Gopher
Resource, na Florida, onde milhares de trabalhadores
adoeceram fotografias Tampa Bay Times

Milhares de trabalhadores de uma fábrica na Florida


foram expostos a níveis extremos de chumbo. Esta é a
primeira de duas reportagens do “Tampa Bay Times”,
vencedor do Prémio Pulitzer de investigação

texto Corey G. Johnson, Rebecca Woolington e Eli


Murray “Times”/”Tampa Bay Times”

arrapos de poeira impregnados de chumbo atravessam


a fábrica como uma tempestade de areia. O veneno
paira tão espesso no ar que por vezes a única coisa
visível é o tórrido brilho laranja da fornalha. Centenas de
trabalhadores suados fazem turnos de 12 horas na
Gopher Resource, em Tampa. Extraem chumbo de
baterias de carro usadas, derretem-no e transformam-
no em blocos de metal para vender. Eric Autery, de 43
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anos, chegou à fábrica no verão de 2017 em busca de
um novo começo. Veterano militar oriundo da Virginia,
escapou a balas e a explosões de minas no Afeganistão
e no Iraque, mas enfrentou novos riscos na única
fundição de chumbo da Florida.

Trabalhava na fornalha, retirando impurezas do chumbo


derretido. Mexia-se depressa no calor sufocante, lutando
contra uma persistente nuvem de fumo. Com o suor
acumulado, a máscara respiratória escorregava-lhe da
cara. Um fedor metálico, como de moedas velhas, ia-se
insinuando. Sentia-se pesado, com um ar cinzento. A
cabeça latejava. Semanas depois de ter começado, os
níveis de chumbo no seu sangue dispararam. Colegas e
supervisores disseram que tinha de se lavar melhor
antes das pausas, ou após o turno. Mas o veneno iria
sempre entrar no seu corpo. A quantidade de chumbo
no ar era sete vezes superior àquela para a qual a
máscara fornecida pela empresa estava preparada.

Autery é um de milhares de trabalhadores da Gopher


que foram expostos a concentrações extremas de
chumbo. Inalaram-no, foram queimados e cobertos por
ele. E ninguém o parou. Repórteres do “Tampa Bay
Times” passaram 18 meses a examinar milhares de
páginas de relatórios oficiais e documentos da empresa,
incluindo dados sobre a evolução dos níveis de chumbo
no ar e no sangue dos trabalhadores. Entrevistaram
mais de 80 trabalhadores e ex-trabalhadores, dos quais
20 partilharam os seus registos médicos. As revelações
a que chegaram foram contadas numa série de
reportagens, das quais esta é a primeira.
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Durante anos, a Gopher expôs trabalhadores a níveis de
chumbo centenas de vezes acima do limite estabelecido
a nível federal. Às vezes a concentração implicava risco
de vida. Trabalhadores descreveram tarefas rotineiras
que os deixavam cobertos de poeira, como se os
tivessem mergulhado em açúcar em pó. Entre 2014 e
2018, oito em cada dez trabalhadores tinham chumbo
suficiente no sangue para ficarem sujeitos a disfunção
renal, tensão alta ou doença cardiovascular. Nos últimos
14 anos, pelo menos 14 trabalhadores e ex-
trabalhadores tiveram ataques cardíacos ou AVC, alguns
depois de trabalharem nas zonas mais contaminadas da
fábrica. Um empregado passou três décadas com o
veneno antes de morrer de problemas cardíacos e renais
aos 56 anos.

A Gopher sabia que a fábrica tinha demasiada poeira de


chumbo, mas desativou ventilações que capturavam
fumos e tardou a reparar sistemas mecânicos
defeituosos, deixando vulneráveis os trabalhadores,
com máscaras que não os protegiam quando os níveis
tóxicos aumentavam. Em 2019, um empregado
enfrentou uma concentração de chumbo 15 vezes
superior àquela de que a sua máscara o podia proteger.
As regulamentações federais exigiam exames médicos
regulares, mas o médico contratado pela Gopher não
explicou aos trabalhadores que aqueles níveis de
chumbo no sangue os punham em risco. Quando tinham
problemas de saúde possivelmente relacionados com o
chumbo, dizia-lhes que podiam continuar a trabalhar.

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DOENÇA Vista aérea da fábrica da Gopher Resource, em
Tampa, na Florida Dirk Shadd

A Gopher dava bónus a empregados que mantinham


baixos os níveis de chumbo no sangue e punia os outros,
uma prática que alarmava os médicos. Desesperados, os
trabalhadores tentavam retirar metais do corpo,
recorrendo a procedimentos médicos perigosos e, em
casos mais extremos, doando sangue contaminado.
Suspeita-se que a poeira da fábrica tenha sido a origem
da exposição ao chumbo de pelo menos 16 crianças —
filhos de empregados que, sem o saber, levaram para
casa o veneno nos seus automóveis ou na sola dos
sapatos. Testes a uma bebé revelaram níveis tão altos
do metal que o pediatra recomendou que ela fosse
monitorizada semanalmente. A Agência Federal de
Saúde e Segurança no Trabalho (OSHA) não inspeciona
os níveis de contaminação de chumbo na fábrica desde
2014, e em visitas anteriores não detetou problemas
críticos. Mesmo quando funcionários superiores de
departamentos de segurança regionais ordenaram mais
inspeções a empresas que lidam com chumbo, ninguém
visitou o único local da Florida que o produz.

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Os responsáveis da empresa recusaram ser
entrevistados. O CEO da Gopher, Eric Robinson, enviou
uma declaração e respondeu a algumas perguntas por
escrito. Afirmou que a empresa tinha reduzido para
metade os níveis médios de chumbo no sangue dos
empregados desde que comprou a fábrica em 2006, e
investiu 140 milhões de dólares (€130 milhões) para a
tornar mais segura. Acrescentou que a empresa
dedicava milhares de horas anuais a formações de
segurança. “O nosso pessoal e as comunidades que
servimos são a parte mais importante do nosso trabalho,
e por isso o nosso valor primordial é servir o pessoal e
as comunidades. Fazemos muito para manter seguros
os nossos empregados”, disse Robinson.

Só dez resistem

Na última década, mais de um terço das fábricas de


reciclagem de baterias nos Estados Unidos encerraram.
Já só existem dez. Duas são propriedade da Gopher
Resource, sediada no Minnesota. Fundada há 75 anos, a
empresa tem um rendimento anual de centenas de
milhões de dólares, segundo um analista financeiro. Os
seus clientes incluem o exército americano, fabricantes
de baterias e fornecedores de munições. Nas instalações
em Tampa trabalham mais de 300 pessoas. Muitos são
negros ou imigrantes. Alguns chegaram lá diretamente
a partir do liceu, outros num recomeço de vida após
estadias na cadeia. O trabalho rendia uns 20 dólares por
hora (€18,7), com bónus substanciais — mais dinheiro
do que alguns trabalhadores tinham julgado que as

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circunstâncias das suas vidas alguma vez lhes
permitiriam ganhar.

A fábrica fica umas seis milhas (9,6 km) a leste da baixa


de Tampa, junto a uma estação ferroviária e a uns 800
metros de uma escola primária. As suas enormes
chaminés erguem-se sobre uma comunidade de casas
pequenas, oficinas de automóveis e igrejas. A Gopher
fala de si própria como sendo uma empresa verde, que
ajuda a manter anualmente 13 milhões de baterias fora
das lixeiras. Mas na última década, a empresa é uma das
razões por que Hillsborough tem mais casos de
envenenamento por chumbo de adultos do que qualquer
outro condado da Florida, segundo relatórios do
departamento de saúde. Desde 2010, o condado
registou mais de 2400 casos de envenenamento entre
crianças e adultos, ultrapassando até Miami-Dade, que
tem quase o dobro dos residentes.

O chumbo devasta praticamente todos os sistemas do


corpo. Os efeitos para a saúde são tão generalizados que
podem ser atribuídos integralmente a outras causas. Os
trabalhadores da Gopher não têm nenhuma forma
definitiva de identificar se qualquer um dos seus
problemas de saúde se deveu ao chumbo. Mas muitos
problemas médicos podem ser agravados por exposição
repetida e prolongada, em especial nos níveis
encontrados na fábrica. Dez especialistas médicos e
industriais disseram ao “Tampa Bay Times” que a
Gopher precisava claramente de baixar os níveis de
contaminação — alguns dos quais tão elevados que
normalmente só se encontram em países em
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desenvolvimento. Ana Navad-Acien, especialista em
toxicidade de metais pesados da Universidade de
Columbia, considerou a exposição dos trabalhadores da
Gopher “totalmente inaceitável”.

No interior da fábrica, a simples visão da poeira é


inquietante. Autery, o veterano, passou pouco mais de
um ano na Gopher. Ainda recorda a primeira vez que lá
entrou. “O que é toda esta poeira aqui no chão”,
perguntou ao trabalhador que o guiava. Partículas de
chumbo. “O quê”, respondeu Autery. “Não é sujidade?”
Não, é chumbo.

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DOENÇA Eric Telemaque, Ko Brown e Len Vernon,
antigos trabalhadores da fábrica, apresentaram sempre
níveis elevados de chumbo no sangue fotografias Martha
Asencio Rhine

A produção funciona dia e noite. Dezenas de


trabalhadores entram às sete da manhã ou da tarde.
Espera-os um emaranhado de canos, tubos a apitar e o
barulho de tapetes rolantes, num calor abrasador.
Atiram baterias de automóvel usadas para máquinas que
as esmagam, escorrem o ácido e separam o chumbo dos
invólucros plásticos. O metal é recolhido por camiões e
atirado para fornos cuja temperatura atinge 1500 graus.
Aí derrete. Não é raro a água atingir o chumbo líquido,
desencadeando explosões violentas que o fazem voar
pelo ar. Cicatrizes desses salpicos são tão comuns que
os trabalhadores se lhes referem como “tatuagens” e as
consideram um rito de passagem.

O chumbo escorre por calhas até caldeiras, onde brilha


como lava na penumbra da refinaria. Salpicado com
químicos que o purificam, é então vertido em moldes
inscritos com o nome da empresa. A maior parte da
fábrica não tem ar condicionado, e os fornos raramente
são desligados. Bombeiros têm aparecido a socorrer
trabalhadores que sofrem sobre-exposição a produtos
químicos ou ficam tontos, com dificuldade em respirar
ou desidratados. Alguns saem da fábrica em macas, com
o coração acelerado ou inconscientes.

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O coração de Kevin Lewis batia tão fortemente e tão
rápido quando ele trabalhava na fornalha que mal
conseguia respirar. Aos 26 anos, teve de ser levado de
ambulância. Larry Wheeler, de 39 anos, ficou
desorientado e desmaiou quando trabalhava numa das
áreas mais poeirentas da fábrica. Levaram-no de
urgência para o hospital, onde lhe disseram para limitar
a sua exposição ao chumbo. James Pitts, de 49 anos,
desmaiou quando saía do balneário para iniciar o seu
turno de manutenção. Com batimento cardíaco
irregular, foi igualmente levado por paramédicos.

Robinson, o executivo da Gopher, recusou responder a


perguntas sobre exposições ou lesões de trabalhadores
concretos, citando regras de privacidade médica. Mas os
três homens sempre tinham tido níveis elevados de
chumbo no corpo quando trabalhavam na Gopher. Há
venenos por todo o lado na fábrica, incluindo, além de
dióxido de enxofre, cádmio e arsénico, que são
cancerígenos. O que mais prevalece é o chumbo.

As regras da OSHA exigem às empresas que meçam os


níveis de chumbo no ar, ligando monitores aos
trabalhadores. As regras limitam a exposição dos
trabalhadores a 50 microgramas de chumbo por metro
cúbico de ar ao longo de um turno de oito horas. Isso
equivale a um monte de chumbo com um milímetro de
altura, de largura e de comprimento. Mais ou menos a
ponta de uma esferográfica. Na fábrica, poeira
impregnada de chumbo cobre o chão de cimento.
Empilha-se nos cantos e cobre as cabinas das
empilhadoras e dos camiões. Algumas zonas estão tão
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poeirentas e escurecidas que parece que uma bomba ali
explodiu.

A empresa construiu uma nova fábrica no local em 2012


e anunciou que quadruplicaria a produção operando com
mais segurança. Um sofisticado sistema de ventilação
deveria capturar a poeira perigosa. Mas não funcionou
adequadamente, segundo estudos de 2012, 2013 e
2017. Em resultado, os níveis de chumbo no ar
ultrapassam com frequência o limite federal, segundo
relatórios de laboratório.

Dois mundos diferentes

O “Tampa Bay Times” obteve e analisou mais de 300


amostras de ar recolhidas pela empresa a partir de
monitores ligados a empregados entre 2007 e 2019. Os
níveis de chumbo excedem as capacidades protetoras
das máscaras fornecidas à maioria dos trabalhadores,
em 16% do tempo na fábrica inteira, e em 26% na
fornalha. Os líderes da Gopher sabiam que níveis mais
baixos eram possíveis. Tinham o exemplo da sua outra
fábrica em Eagan, no Minnesota. Empregados de Tampa
que iam a Eagan para reuniões ou sessões de treino
ficavam espantados com o que viam. O chão estava tão
limpo que se podia comer nele, diziam a brincar. Entre
2013 e 2014, a leitura média de chumbo na fornalha em
Tampa era seis vezes a de Eagan, segundo dados
entregues aos reguladores do Minnesota e outros
registos da empresa. O nível mais alto dentro de Eagan
foi de 2537 microgramas de chumbo por metro cúbico.
Isso é dezenas de vezes superior ao limite federal, mas

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nada que se pareça com o nível mais elevado em Tampa.
Este último foi de 78.729 — ou seja, mais de 1500 vezes
o limite federal.

Em junho de 2014, um empregado de Tampa foi exposto


a 172.655 microgramas de chumbo quando trabalhava
no filtro de mangas, para onde a poeira de outras partes
da fábrica é enviada. No ano seguinte, um monitor
atmosférico registou uma concentração de chumbo que
ultrapassava 200.000. Estas leituras estavam bem
acima do que os responsáveis federais consideravam
implicar risco de vida. Um vídeo feito por um empregado
mostrava fumo a sair de um cano, uma nuvem
castanho-cinzenta, qual neblina, no local de trabalho.
Equipamentos zumbiam e assobiavam enquanto os
trabalhadores guiavam pequenas empilhadoras, sem
vidros de proteção.

Kevin Lewis, de 26 anos, teve de ser levado de


ambulância. Larry Wheeler, de 39 anos, ficou
desorientado e desmaiou ao trabalhar numa das
áreas mais poeirentas da fábrica. James Pitts, de
49 anos, desmaiou ao sair do balneário

Os trabalhadores descreveram que, em certas zonas da


fábrica, tinham de parar os camiões de carga, porque
ficava demasiada poeira para conseguirem ver.
Tentavam limpar o solo com vassouras largas e pás,
apenas conseguindo atirar mais poeira para o ar. No final
de alguns turnos, a poeira venenosa agarrava-se como
areia à pele suada.

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A Gopher violou repetidamente as regras da OSHA sobre
níveis de chumbo no ar e máscaras. Mas em anos
recentes a empresa não tem infringido as regras da
agência federal sobre o quantidade máxima de chumbo
permitido no corpo de um trabalhador. Isso acontece
porque a OSHA permite que os trabalhadores tenham
até 60 microgramas de chumbo por decilitro de sangue,
um número estabelecido há 42 anos. Muitos
responsáveis de saúde dizem que o padrão da OSHA
está desfasado da ciência moderna, que já há décadas
atribui danos na saúde a níveis muito inferiores de
chumbo. O Centers For Disease Control and Prevention
(CDC) considera que níveis de chumbo no sangue a
partir de cinco microgramas por decilitro são elevados.
Mas alguns responsáveis da saúde reconheceram que
danos provocados pelo chumbo, como disfunções renais,
podem ocorrer mesmo abaixo disso.

O “Tampa Bay Times” obteve e analisou exames ao


chumbo no sangue feitos a mais de 500 empregados da
Gopher entre 2014 e 2018. Quase todos os
trabalhadores foram expostos a suficiente metal tóxico
para arriscarem graves problemas. Nove em cada dez
tinham médias de chumbo no sangue superiores a cinco
microgramas por decilitro. Oito em cada dez
trabalhadores tinham níveis que os punham em risco de
tensão alta, problemas renais ou doença cardiovascular.
Era em algumas das áreas mais poeirentas da fábrica
que os trabalhadores tinham mais metal no corpo.
Quatro em cada dez trabalhadores da fornalha tinham
um nível médio de 20 microgramas por decilitro entre

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2014 e 2016. Ou seja, quatro vezes o nível que o CDC
considera elevado.

O chumbo não fica muito tempo no sangue. Parte dele é


expelido na urina ou instala-se nos tecidos. O resto é
confundido com cálcio pelo corpo e absorvido no
esqueleto. Uma única exposição a quantidades
moderadas de chumbo não provoca danos duradouros.
Mas a exposição crónica, com o tempo, pode resultar em
efeitos irreversíveis para a saúde. O chumbo acumula-
se nos ossos em depósitos cada vez maiores, criando um
banco de veneno que pode reentrar no sangue e atacar
os órgãos do corpo durante décadas.

O “Times” partilhou as suas descobertas com dez


especialistas médicos. Todos disseram que os
trabalhadores na fábrica tinham níveis de chumbo no
sangue suficientemente elevados para haver problemas
de saúde a curto e a longo prazo. Acrescentaram que a
exposição ao chumbo podia exacerbar problemas como
hipertensão ou função renal diminuída.

Origem da doença

Não é fácil provar que uma doença específica foi


provocada unicamente pela exposição ao chumbo. As
doenças muitas vezes desenvolvem-se por uma
combinação de fatores de risco, tais como idade,
genética ou estilo de vida. O “Tampa Bay Times”
examinou as fichas médicas de 16 ex-trabalhadores da
empresa que passaram entre um e 33 anos na fábrica e
saíram na última década. Sete tinham pelo menos uma

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análise que revelava possíveis danos no fígado. Em 11
que tinham feito análises ao sangue antes de serem
contratados, todos revelavam um salto na quantidade
de metal no sangue semanas depois de começarem a
trabalhar.

Pelo menos 14 trabalhadores e ex-trabalhadores


tiveram ataques cardíacos, paragens cardíacas ou
derrames nos últimos anos, segundo entrevistas e
registos médicos. Todos tinham menos de 60 anos. Três
deles, incluindo Ric Hattan, tinham menos de 45. Um
ataque cardíaco na idade de Hattan é raro. Menos de 1%
das pessoas abaixo dos 45 anos tiveram um, segundo
dados federais. Hattan, um ex-trabalhador de
manutenção, tinha níveis de chumbo no sangue entre 10
e 20. Contou que sofrera dois ataques cardíacos pouco
depois dos 40 anos, ficando com tanto medo de forçar o
coração que hesitava em pegar ao colo o seu filho de
três anos. “Sou demasiado novo para ter um ataque de
coração”, recorda-se de pensar. “Sou demasiado forte.”

Prospere Dumeus começou a trabalhar na fábrica no


outono de 1985. Nessa altura era uma pequena fundição
de chumbo familiar chamada Gulf Coast Lead. Com 23
anos, vindo do Haiti e recém-chegado à Florida, foi
trabalhar na fornalha. A fábrica antiga não era
completamente fechada. O espaço era atravessado por
brisas que arrefeciam os trabalhadores e levavam para
fora a poeira de chumbo. A fábrica tinha um único forno
e produzia uma fração do metal de hoje. Os
trabalhadores tiravam as máscaras para conversar.
Comiam e fumavam ao lado do forno.
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A escolaridade formal de Dumeus terminou no início do
liceu, mas ao longo dos anos ele adquiriu um vasto
conhecimento da maquinaria e das suas peculiaridades.
Quando algo corria mal, recordam colegas de trabalho,
Dumeus conseguia diagnosticar problemas melhor do
que muitos mecânicos. Alguns riscos eram óbvios. Uma
explosão espalhara chumbo derretido em Dumeus no
outono de 1999, queimando-lhe um olho e a perna
esquerda. Em 2006, chumbo líquido escorreu-lhe para a
bota e queimou-lhe o pé.

VÍTIMA Colin Brown, de sete anos, filho de dois


trabalhadores da Gopher Resource, foi diagnosticado
com autismo e apresenta elevados níveis de chumbo no
sangue Martha Asencio Rhine

As queimaduras inquietavam a sua irmã, Madeleine. Ela


implorou-lhe que se fosse embora. “Estou-te a dizer.
Este trabalho mata-te”, dizia-lhe. Mas ele adorava estar
ali. Falava do trabalho com a mesma adoração que tinha
por jogos de dominó no parque, idas à pesca e canções
de Bob Marley. Comprou uma casa tipo chalé, rodeada
por palmeiras grossas, a quilómetro e meio da fábrica.
Quanto mais trabalhava à volta de chumbo, porém, mais
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o seu corpo ia quebrando. Registos médicos e testes de
laboratório do final dos anos 90 mostram que Dumeus
tinha sempre níveis de chumbo no sangue que eram
cinco, seis, sete e mesmo oito vezes o que agora se
considera elevado.

Os seus problemas cardíacos começaram nessa altura,


segundo uma ficha técnica que faz parte dos seus
registos. Ainda não tinha 40 anos. Na década seguinte,
fez várias operações: bypass, substituição de válvulas...
Desenvolveu úlceras nas pernas e coágulos sanguíneos.
O seu coração funcionava com esforço. Diversos fatores
punham-no em risco de problemas cardíacos:
hipertensão, tabaco, demasiada gordura no sangue. Foi-
lhe diagnosticada doença arterial coronária, o problema
cardíaco mais comum na América. Também é a forma
de doença cardíaca mais habitualmente associada à
exposição ao chumbo. Investigações médicas
estabeleceram uma relação entre problemas
cardiovasculares e concentrações de metal no
organismo muito inferiores às de Dumeus.

A concentração mais elevada de chumbo no caso dele,


45 microgramas por decilitro, foi medida em 2006, um
mês depois de a Gopher comprar a fábrica. Na altura,
Dumeus usava uma máscara respiratória fornecida pela
empresa que lhe cobria apenas metade da cara.
Semanas depois, segundo dados da empresa, a
quantidade de chumbo no ar ultrapassava cerca de cinco
vezes a capacidade de proteção da máscara. Aos 50 e
poucos anos, os seus pulmões tinham a capacidade de
resistência que os médicos esperariam num homem de
17
100 anos. A última vez que a empresa mediu o metal no
seu sangue foi em março de 2017. Como o chumbo fica
pouco tempo no sangue, os testes normalmente
mostram exposição recente, não o que se foi
acumulando no corpo. O “Times” determinou a
quantidade de veneno alojado nos ossos de Dumeus
analisando 182 testes ao chumbo no sangue que ele fez
ao longo da sua carreira. Os cálculos estimaram a
quantidade de chumbo alojado no osso da perna, e a
seguir multiplicaram o resultado com base no peso
estimado do esqueleto.

A análise mostrou como o efeito das exposições se foi


acumulando. O nível médio de chumbo no sangue de
Dumeus — 26 microgramas por decilitro — multiplicou-
se para uns estimados entre 420 mil e 840 mil
microgramas de chumbo nos seus ossos. Nenhuma
quantidade de chumbo nos ossos é considerada segura.

Anos a ser envenenado

Prospere Dumeus trabalhou na fábrica durante 32 anos.


Os seus níveis de chumbo no sangue foram testados
pelo menos 180 vezes. Dois médicos reviram a análise
do “Tampa Bay Times” e confirmaram as conclusões. O
dr. Brian Schwartz, especialista em exposição crónica ao
chumbo na Universidade Johns Hopkins, diz que os
níveis de Dumeus podem ser comparados aos efeitos de
ingerir diariamente um comprimido com veneno durante
anos. Em meados dos anos 90, a neurotoxina estava
firmemente instalada no seu corpo, segundo uma
análise. No inverno de 2017, ele cumpriu o seu último

18
turno. Em março, fez uma operação de coração aberto.
Após meses de uma recuperação difícil, o seu médico
pessoal disse-lhe que podia voltar ao trabalho, mas
proibiu-o de levantar pesos superiores a 30 libras (13,6
kg). Em resposta, a Gopher despediu-o. A sua irmã
conta que ficou devastado. A Gopher não respondeu a
perguntas sobre Dumeus, justificando-se com a
privacidade dos empregados.

Menos de dois meses depois, em dezembro de 2017, o


seu coração parou durante um serviço religioso. Esteve
sem pulsação durante pelo menos 27 minutos. Os
paramédicos aplicaram-lhe o desfibrilhador duas vezes
e conseguiram fazê-lo reviver, mas o cérebro tinha sido
afetado. Ficou apático, com a capacidade verbal limitada
e movimentos bruscos.

Enviaram-no para um centro de reabilitação em


Clearwater. Parou de comer e tinha convulsões. Em
2019, levaram-no para o hospital, onde o seu estado se
deteriorou ainda mais. No dia 21 de fevereiro de 2019,
às 7h57, um médico declarou a sua morte por doença
coronária e complicações da sua lesão cerebral e da sua
doença renal. Tinha vivido 56 anos. 32 dos quais
passados a trabalhar na fábrica.

As regras federais exigem à Gopher que forneça


avaliações médicas regulares aos empregados, e é
função de Bruce Bohnker garantir que os trabalhadores
têm condições de segurança. Bohnker é o diretor médico
da clínica de Tampa que a Gopher contratou nos últimos
sete anos para monitorizar a saúde dos empregados.

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Mas quando eles tinham problemas que podiam ser
causados ou agravados pelo chumbo, Bohnker não
notou uma possível relação, nem os avisou sobre as
consequências, segundo uma análise de dezenas de
fichas médicas de trabalhadores efetuada pelo “Times”.

Em 2016, Bohnker escreveu a Dumeus uma carta onde


explicava os resultados do seu exame e notava a sua
história de problemas cardíacos. Nessa avaliação,
Bohnker não dizia que a hipertensão e os problemas
cardíacos o tornavam mais vulnerável aos venenos. Não
mencionava o resultado de um exame que indicava
função renal diminuída. Escreveu que Dumeus “tinha
uma longa história de trabalhar na fábrica sem
quaisquer problemas”.

O “Times” teve acesso a cartas que Bohnker enviou a


outros seis trabalhadores que tinham hipertensão,
indícios de possíveis problemas renais, ou ambas as
coisas. “Com base neste exame físico, não vejo motivos
de preocupação relacionados com exposições no
trabalho”, disse o médico a Dumeus e a cada um dos
outros trabalhadores. Os trabalhadores descreveram
como sumários os exames que lhes tinham feito, e
disseram que nada lhes fora explicado sobre os
resultados das suas análises, incluindo os níveis de
chumbo no sangue.

Em 2012 a empresa deu 330 dólares (€307,4) aos


trabalhadores que tinham um nível de chumbo no
sangue abaixo de 17 microgramas por decilitro.
Abaixo de 23 era 100 dólares (€93)

20
Alegando confidencialidade médica, Bohnker recusou
responder a questões sobre quaisquer empregados da
Gopher. Também não respondeu a questões sobre o seu
papel ou sobre os riscos para os trabalhadores na
fábrica. Médicos entrevistados pelo “Times” disseram
que teriam dito aos trabalhadores com problemas de
saúde que a exposição contínua ao chumbo pioraria as
coisas.

Bohnker passou mais de três décadas como médico da


Marinha, reformando-se em 2005. Com certificações em
medicina do trabalho, aeroespacial e preventiva, não
tem cadastro disciplinar na Florida. É membro do
American College of Occupational and Environmental
Medicine (uma associação profissional de medicina do
trabalho e ambiental), e em 2019 foi presidente da sua
delegação na Florida.

Há mais de uma década, essa organização nacional


incentivou empresas e médicos a adotarem padrões
mais estritos para retirarem do local os trabalhadores
com níveis elevados de chumbo, em vez de seguirem as
regras desatualizadas da OSHA. Afirmaram que
trabalhadores com dois testes ao chumbo de sangue que
dessem pelo menos 20 microgramas por decilitro, ou um
único que desse 30, deviam ser retirados. Quando
trabalhadores cujas fichas o “Times” analisou tinham
níveis que excediam 20 microgramas por decilitro ou
mesmo 30, o parecer médico de Bohnker não indicava
que a saúde deles pudesse estar em risco. Em vez disso,
deixava sem marcação um quadradinho nos formulários

21
que se referia a “um nível onde podem ocorrer efeitos
de saúde adversos”.

As regras federais dão a médicos do trabalho como


Bohnker latitude para recomendar que trabalhadores
sejam afastados da exposição ao chumbo,
independentemente dos seus níveis no sangue, se o
médico achar que a exposição os põe em risco excessivo.

Um dia, dois empregos, três horas de sono

Isso não aconteceu a Eric Telemaque. Ele tinha adquirido


uma reputação de alguém que trabalhava no duro,
fazendo horas extra para sustentar os seus filhos e a
família. No início dos anos 90, partiu da ilha de La
Gonâve, no Haiti, para a Florida. Tinha dois empregos
em Tampa, dormindo três horas por noite, até ser
contratado para desmantelar baterias velhas na fábrica.

Quando começou em 2006, aos 40 anos, já tinha a


tensão alta — 148/90. A quantidade de chumbo no seu
sistema aumentou rapidamente. Tinha dificuldade em
lidar com o sistema de saúde, em parte porque falava
sobretudo crioulo e precisava de um intérprete. Os seus
registos médicos mostram que lutava para controlar a
tensão alta, passando às vezes longos períodos sem
medicação.

Nas suas consultas com Bohnker, ao longo de três anos,


testes mostraram que tinha na sua urina níveis
extremamente elevados de uma proteína que indicava
possíveis danos renais. Nos resultados das suas
análises, os níveis das proteínas estavam marcados por
22
círculos. Mas Bohnker não mencionou isso nem em
registos nem em cartas. No exame de 2015, três
análises separadas indicaram que os rins de Telemaque
podiam estar afetados. Tinha trabalhado na fábrica
durante nove anos. A sua tensão era 207/136. “É o tipo
de tensão que de facto envia uma pessoa para as
urgências”, disse o dr. Howard Hu, um médico e
especialista em exposição de adultos ao chumbo da
Universidade da Califórnia do Sul. Bohnker escreveu nos
exames que Telemaque não estava a tomar os
medicamentos para a tensão.

O nível de chumbo no sangue de Telemaque estava


abaixo do padrão da OSHA. Mas Wu e outros médicos do
trabalho disseram ao “Times” que os seus problemas de
saúde — proteínas elevadas na urina, hipertensão e
insuficiência renal — implicavam que ele não devia estar
próximo de chumbo e outros venenos. Bohnker disse
que ele podia ir trabalhar. “Para um médico do trabalho,
isso é terrível”, comenta Hu. No seu diagnóstico,
Bohnker tinha marcado as análises de Telemaque como
“clinicamente sem significado”.

Mas numa carta a Telemaque, Bohnker notou que um


resultado anormal numa análise, um elevado nível de
catabolitos no sangue [definidos como os produtos de
degradação do metabolismo celular, os catabolitos
incluem ureia e ácido úrico] podia ser um indício de
problemas nos rins. Escreveu que a tensão alta de
Telemaque o punha em risco de doença cardíaca, doença
renal e AVC. “Recomendo fortemente que tente gerir
melhor a sua tensão”, escreveu a Telemaque em letra
23
grossa e sublinhada. “Deve ter um médico local que o
acompanhe, se for possível.” Mas disse que não estava
preocupado com a exposição ao chumbo, usando a
mesma linguagem das cartas a Dumeus e aos outros
trabalhadores.

Telemaque passou mais sete meses na fábrica. Em julho


de 2016, dias antes do seu 50º aniversário, sofreu um
AVC, terminando o seu último turno no chão do
balneário. Desde então teve mais dois AVC. Aos 54 anos,
o seu olhar é vago. Quando se tenta pôr de pé,
cambaleia. O ano passado começou a vaguear fora do
seu apartamento em Tampa e perdeu-se. Um lar para
pessoas com deficiência é agora a sua casa.

Baixar o nível para subir de nível

Muitos trabalhadores na Gopher viam a quantidade de


chumbo no sangue como uma medida não de risco, mas
de estatuto dentro da empresa. Isso porque ela os
pressionava para reduzirem os níveis. Segundo
documentos internos da empresa, os empregados eram
dispensados ao fim do período experimental de seis
meses se não conseguissem manter baixos os níveis de
chumbo no sangue. Empregados com mais experiência
também eram avaliados.

Para se tornar um supervisor da fornalha, Ko Brown diz


que lhe exigiram um nível de chumbo no sangue igual
ou inferior a 21 microgramas por decilitro. Progredir na
fábrica era importante para Brown, que começara em
2011 com um cadastro criminal. Arranjar outro

24
emprego, em especial um que pagasse bem, não iria ser
fácil. “O dinheiro que eu ganhava estava a mudar a
minha vida”, diz Brown. “Racionalizava tudo o que tinha
a ver com aquela empresa. Não me importava com o
que ela me estava a fazer.”

Brown diz que foi a uma clínica durante semanas fazer


terapia de quelação, um processo através do qual metais
pesados são extraídos do corpo e expelidos na urina.
Pode ser perigoso, pois o tratamento não distingue entre
metais bons, como o ferro, de metais maus, como o
chumbo. “Ia lá em todas as folgas que tinha”, diz Brown,
que conseguiu a sua promoção. Havia outros incentivos
financeiros. A cada seis meses a empresa oferecia bónus
aos trabalhadores para manterem os níveis baixos. Em
2012, por exemplo, trabalhadores receberam 330
dólares (€307,4) por terem um nível de chumbo no
sangue abaixo de 17 microgramas por decilitro. Abaixo
de 23 era 100 dólares (€93), abaixo de 27, 50 dólares
(€46,5).

Especialistas médicos dizem que associar bónus aos


níveis de chumbo no sangue do trabalhador não era
ético. Isentava a empresa da responsabilidade pelos
níveis de exposição, diz Arthur Kaplan, um bioético e
fundador da divisão de ética na escola de medicina da
New York University. “Não se pode andar por aí a culpar
os empregados pelas exposições elevadas. É ridículo. É
absurdo. É injusto.” A higiene dos trabalhadores é vital,
incluindo lavar as mãos durante as pausas e tomar
duche após o turno para remover a poeira de chumbo.
Mas a responsabilidade principal por limitar a quantidade
25
de contaminação na fábrica continua a ser da empresa,
segundo médicos e especialistas em higiene industrial.

Em anos recentes, a empresa atribuiu bónus trimestrais


baseados na média dos níveis de chumbo no sangue, às
vezes pondo os empregados uns contra os outros. A
Gopher tornava fácil saber quem estava a pôr os bónus
em risco, afixando os nomes dos trabalhadores com
níveis elevados dentro das salas de descanso. Às vezes
havia confrontos entre empregados, quando alguém
pensava que o seu bónus se encontrava em risco por
outra pessoa estar a fazer subir a média.

A Gopher não respondeu a questões sobre bónus ou a


sua cultura. Robinson disse que os programas de
redução à exposição ao chumbo tinham encorajado
níveis mais baixos de chumbo no sangue dentro da
fábrica. Os trabalhadores tentavam todo o tipo de
soluções para extrair metal dos seus corpos. Em casos
mais extremos, doavam sangue contaminado ou
plaquetas.

Três empregados contaram ao “Times” que doaram


sangue. Uma dúzia mais disse que a prática era comum.
Acreditavam que isso podia reduzir a quantidade de
chumbo no sangue antes dos seus testes bimestrais.
Alguns disseram ter pensado que os bancos de sangue
os alertariam se a sua doação fosse um problema.
Especialistas médicos que nunca tinham ouvido falar de
tal prática compreendiam o desespero entre os
trabalhadores. Mas avisaram que doar sangue
contaminado era inquietante. Os bancos de sangue não

26
verificam a toxicidade de metais pesados, como fazem
com certas doenças. Isso poderia resultar em um doente
receber sangue com chumbo antes de uma transfusão.
Os médicos também disseram que doar sangue
contaminado não ajudaria significativamente os
trabalhadores a reduzir os seus níveis de chumbo no
sangue.

Outros empregados contaram que tomavam


comprimidos, como EDTA, para limpar os seus sistemas.
As tabletes de EDTA são vendidas como uma forma de
quelação, um de poucos tratamentos médicos que
existem para o envenenamento por chumbo. Muitos
médicos acham que implica riscos consideráveis,
incluindo potenciais danos renais. Costuma ser
reservado para quem tem níveis muito elevados de
chumbo no sangue. As regras federais proíbem as
empresas de dizerem aos empregados para usarem
tratamento de quelação como forma de escapar aos
limites regulatórios. “Não aprovamos, e desencorajamos
fortemente, práticas inseguras que visam reduzir os
níveis de chumbo no sangue”, disse Robinson.

Outros empregados praticavam métodos menos


extremos. Tomavam comprimidos de vinagre.
Concentravam-se em comer legumes com folhas.
Tentavam sumos de coentros, vitaminas, frutos,
probióticos, ameixa e pickles. “As pessoas tentavam
tudo para baixar os níveis de chumbo no sangue”, disse
Wilbert Townsend, uma antiga supervisora da fornalha.
“Eu percebi que a melhor forma era manter-me longe da
fábrica.”
27
Herança perigosa

Alguns trabalhadores transportavam a poeira de chumbo


nos seus sapatos, carros e telemóveis. A poeira ia de
Tampa até casas onde havia crianças. O “Times”
identificou 16 filhos de empregados da fábrica que
tinham chumbo no corpo, segundo entrevistas e registos
médicos. Quando os trabalhadores discutiam os níveis
de chumbo no sangue com pediatras do departamento
de saúde, explicavam-lhes que a causa era
provavelmente a poeira na fábrica.

O Departamento de Saúde da Florida rastreia casos de


envenenamento por chumbo que possam vir de pinturas
velhas, cerâmica, cosméticos e outras causas. A nível
estadual, de 2010 a 2014, a agência descobriu 175 casos
de trabalhadores que expuseram os seus filhos,
incluindo 18 em Hillsborough County, segundo o estudo
mais recente do Departamento.

Os casos associados à fábrica datam da primeira década


deste milénio, antes de a Gopher comprar a fábrica. Uma
criança passava os dedos na carrinha do seu pai, coberta
com poeira de chumbo, e a seguir punha as mãos na
boca, disse Joe Galant, que esteve encarregado da
segurança no tempo dos antigos proprietários. Outro
trabalhador levava a poeira para casa nas botas. O
veneno infiltrava a carpete, onde o seu filho metia os
dedos na boca quando gatinhava.

Pelo menos 15 trabalhadores tiveram crianças com


níveis elevados de chumbo no sangue, descobriu o

28
“Times”. Como a filha pequena de Altonio Bradshaw, que
trabalhava no forno. O bebé de Larry Wheeler, que
trabalhava no filtro de mangas. O filho de James Pitts,
que lidava com manutenção. O caso mais recente é do
ano passado. Robinson diz que a Gopher não têm
consciência de casos de envenenamento por chumbo
envolvendo filhos dos seus atuais empregados.

Qualquer quantidade de chumbo numa criança é


considerada perigosa. Os efeitos podem incluir dor de
estômago, dor de cabeça, QI baixo ou crescimento lento.
Em 2014, Adam Risher, que trabalhava no filtro de
mangas, soube que a sua filha mais velha, Cheyenne,
de quatro anos, tinha acusado chumbo no sangue.
Durante um check-up, ela revelou um nível de 16
microgramas por decilitro. Os seus filhos mais novos
também tinham chumbo no corpo. Ayden, então com
dois anos, tinha um nível de 12, enquanto Addison, a
bebé, chegava aos 34.

Responsáveis de saúde do condado investigaram a


origem da exposição e identificaram a poeira da fábrica
como a causa. O pediatra de Addison disse que o seu
nível era tão elevado que ela teria de ser monitorizada
semanalmente, recorda Risher. A bebé tinha mais
chumbo no seu sangue do que a maioria dos
trabalhadores no forno da fábrica. “Não sei o que hei de
fazer”, lembra-se de ter dito ao médico.

O trabalho de Risher era poeirento. Ele e os colegas


recolhiam manualmente poeiras de chumbo sempre que
o sistema automático ia abaixo. No trabalho, o chumbo

29
cobria o seu corpo suado. Ele deitava fora sapatos que
pudessem ter poeira pegada a eles, e pensava se não
seria boa ideia lavar as meias e as boxers em casa.
Pensava nos seus filhos, na mulher que ficava em casa
com eles, e na necessidade de fazer horas extra num
emprego que não exigia formação superior. Prometia
que um dia, de alguma forma, faria com que os níveis
de chumbo no sangue dos seus filhos baixasse. Há dois
anos, mudou para um departamento com menos poeira,
antes de deixar a Gopher.

Muitos trabalhadores acreditavam que, no ambiente


poeirento, não se poderiam livrar completamente do
chumbo. Preocupavam-se em ficar com ele preso ao
pescoço ou embutido nos cabelos. “Quem tinha um nível
de chumbo no sangue, levava-o para casa”, diz Brown,
o antigo supervisor do forno. O seu filho, Colin, tem
chumbo no sangue desde bebé. Quando tinha dois, três
anos, os seus níveis andavam sempre à volta dos 9
microgramas por decilitro. Nessa altura Brown
supervisionava um turno na fornalha. O seu emprego
permitiu à família comprar uma casa de dois andares,
nova. Mas o orgulho misturava-se com medo e culpa.
Ele pesava os benefícios do emprego contra o perigo.

Em bebé, Colin desenvolveu-se lentamente. Tardou a


sentar-se e não balbuciava, jamais dizendo mamã ou
papá. Uns anos depois, foi-lhe diagnosticado autismo,
défice de atenção e hiperatividade. Aos sete anos, adora
tecnologia e dissecar o funcionamento das coisas. O pai
diz que ele sofre do estômago, e recentemente começou
a ter convulsões. Os médicos não têm a certeza se o
30
chumbo foi um fator em algum dos seus problemas de
saúde, mas Brown suspeita que sim. Em 2019, Colin
tinha o nível mais baixo de chumbo jamais registado no
seu corpo. Dois anos depois de o seu pai ter deixado a
fábrica.

Tradução Luís M. Faria

Texto originalmente publicado no “Tampa Bay Times”

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