Você está na página 1de 7

Carne mal pensada

Portugueses consomem 3,5 vezes mais carne do que a


dose diária recomendada na Roda dos Alimentos. E, a
nível mundial, a produção de alimentos de origem
animal na agropecuária gera o dobro das emissões de
gases com efeito de estufa que a de alimentos de origem
vegetal

Texto Maria João Bourbon Infografia Carlos Esteves


Ilustração Cristiano Salgado

Quando, em 2014, o polémico documentário


“Cowspiracy: The Sustainability Secret” foi para o ar,
influenciando os hábitos alimentares de pessoas em
vários pontos do mundo, várias vozes de oposição
levantaram-se. Muitas contestavam a forma como os
norte-americanos Kip Andersen e Keegan Kuhn
retratavam o impacto negativo da agropecuária
intensiva no meio ambiente e a alegada conivência de
organizações não governamentais ambientalistas com
este problema. Sete anos volvidos, o vegetarianismo,
veganismo ou a redução do consumo de carne ainda são
temas capazes de gerar discussões acesas.

Apesar de existirem “alguns aspetos pouco rigorosos” no


documentário e de estar “distante” do que se passa na
agropecuária portuguesa, “não deixa de ser um alerta”,
diz ao Expresso Francisco Ferreira, presidente da
associação ambientalista Zero. Ainda assim, considera
que este, tal como o “Seaspiracy”, se “fica muito pela
crítica e quando chega às soluções limita-se a propor
deixar de comer carne (ou peixe)” — uma “radicalização
que não conquista quem até está disponível” —, embora
louve os seus autores “pelo debate que têm gerado”.

Um dos debates a que se refere o professor de


Engenharia do Ambiente na Universidade Nova não é
novo: qual o impacto ambiental da forma como
produzimos e consumimos carne? Várias investigações
se têm debruçado sobre o tema. Uma das mais recentes
— publicada em setembro de 2021 na revista científica
“Nature Food”, que estima as emissões líquidas de gases
de efeito de estufa provocadas por este sector — conclui
que a produção de alimentos de origem animal na
agropecuária, onde se inclui a carne que consumimos,
gera o dobro das emissões de gases com efeito de estufa
(GEE) que a produção de alimentos de origem vegetal.
Todo o processo de produção de alimentos — onde se
inclui, entre outros, o uso de máquinas agrícolas, a
pulverização de fertilizantes, o transporte de produtos e
a reafetação dos solos — é responsável por 17,3 mil
milhões de toneladas de GEE por ano (ou um terço de
todas as emissões geradas pelo homem), com os
alimentos de origem animal a pesarem 57% nestas
emissões. “E o crescimento económico e demográfico
colocará uma pressão ainda maior sobre a procura”,
nota ao Expresso Atul Jain, um dos autores da
investigação.

Já em Portugal, a produção de alimentos como a carne,


os ovos e os laticínios, seja para consumo interno ou
para exportação, gera 14 milhões de toneladas de
equivalentes de CO2 (CO2, metano e óxido nitroso) por
ano, 4,5 vezes mais do que os de origem vegetal. Do
ponto de vista do consumo, independentemente dos
produtos serem nacionais ou estrangeiros, o país é
responsável por 25 milhões de toneladas de GEE por
ano, seis vezes mais do que as geradas por alimentos
de origem vegetal. “Parece que os portugueses
consomem muito mais alimentos de origem animal do
que de origem vegetal e mais de metade desses
alimentos são importados de outros países”, realça o
investigador da Universidade de Illinois, nos Estados
Unidos.

Esta é uma das questões que preocupa a associação


ambientalista Zero. “Em relação a alguns tipos de carne
somos bastante deficitários e importamos uma
quantidade significativa”, sublinha Francisco Ferreira,
dando o exemplo dos bovinos, carne responsável por um
quarto das emissões de produção e cultivo dos alimentos
(especialmente metano, GEE com um potencial poluente
25 vezes superior ao do CO2).

No caso dos bovinos, Portugal só consegue assegurar


cerca de metade da produção, sendo o resto
importações — o que pode ter impactos negativos no
ambiente, não só “por causa do transporte” mas
também “pelo próprio regime de onde esses animais
vêm”, por oposição ao português que, neste caso, é
relativamente extensivo (em grandes áreas de
pastagem). “Objetivamente, a produção de carne de
bovino em Portugal é obtida em sistema extensivo até
ao desmame, passando para sistemas semiextensivos
ou intensivos após o desmame”, explica José Pais,
coordenador regional do BovINE – Beef Innovation
Network Europe, rede transeuropeia de apoio à
sustentabilidade — ambiental, socioeconómica, entre
outras — da produção de carne de bovino.

No país, existem vários exemplos de explorações de


bovino focadas em alcançar uma maior sustentabilidade,
nota o engenheiro zootécnico. “Temos explorações em
que há pelo menos um par de décadas isto acontece,
com um foco muito dirigido para a recuperação e
conservação do solo como elemento-chave”, diz, dando
o exemplo da Herdade da Parreira (Alentejo) ou do
projeto Terraprima.

O que comemos

Na verdade, para se perceber o impacto da produção de


alimentos no meio ambiente não basta olhar para a
produção, é preciso também perceber o que
consumimos. E em Portugal o consumo de carne está
muito acima daquilo que é recomendado na roda dos
alimentos. A recomendação aponta para o consumo
diário entre 45 e 135 gramas de carne, pescado e ovos,
mas cada português consome em média 315 gramas de
carne por dia. Se excluirmos o pescado e os ovos e
considerarmos uma recomendação intermédia de 90
gramas por dia de carne, conclui-se que os portugueses
consomem 3,5 vezes mais carne do que a dose diária
recomendada.

Ainda assim, um artigo publicado em 2018 na revista


“Science” concluía que aquilo que se come é muito mais
importante do que a origem da comida, visto que as
emissões de GEE geradas pelo transporte representam
uma quantidade muito pequena das emissões dos
alimentos — a não ser que estes tenham viajado pelo ar.
Algo que o presidente da Zero reconhece, mas sublinha
que não é possível generalizar, visto existirem “muitos
exemplos de produtos com uma pegada de transporte
muito significativa”.

O importante é, “em primeiro lugar e por razões de


saúde e ambientais, reduzir o consumo de carne”,
acredita o presidente da Zero. “Em segundo lugar, optar
por carne produzida num regime extensivo, com
pastagens devidamente cuidadas para fazerem o
sequestro de carbono. Por fim, se for possível comprar
localmente ainda melhor. É importante eu ter uma visão
não apenas ambiental, mas também socioeconómica das
minhas opções.” Ou seja, não é apenas pelo tipo de
produção que resolvemos o problema das emissões
geradas pela produção de carne, defende. “É o mesmo
que eu mudar de um carro a combustão para um carro
elétrico. Diminuo as emissões, mas continuo a andar de
carro. A prioridade deve passar por reduzir o uso do
carro.”

E os Estados deveriam ter um papel mais ativo ao nível


da produção e do consumo? “O Governo é
absolutamente crucial”, atira Francisco Ferreira. “E em
Portugal e na Europa não há a concertação que seria
desejável entre a política agrícola e a climática. A
agricultura quer afirmar-se como sustentável e verde,
mas na prática são barragens, fertilizantes, subsidiação
de práticas intensivas... Além disso, deveria haver uma
campanha a dar literacia nutricional e alimentar, numa
lógica integrada aos portugueses. E isso não existe.”

Você também pode gostar